Artigo_final_Quatro_Líricas_de_Francisco_Mignone__Gisele_Pires_de_oliveira_

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS QUATRO LÍRICAS (1938) DE FRANCISCO MIGNONE COM TEXTO DE MANUEL BANDEIRA: MÚSICA, POESIA E PERFORMANCE Gisele Pires de Oliveira Orientadora: Profª Drª Lúcia Silva Barrenechea Goiânia 2005

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Artigo sobre as canções de câmara de Francisco Mignone com poemas de Mário de Andrade

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    QUATRO LRICAS (1938) DE FRANCISCO MIGNONE COM TEXTO DE MANUEL BANDEIRA:

    MSICA, POESIA E PERFORMANCE

    Gisele Pires de Oliveira Orientadora: Prof Dr Lcia Silva Barrenechea

    Goinia 2005

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    GISELE PIRES DE OLIVEIRA

    QUATRO LRICAS (1938) DE FRANCISCO MIGNONE COM TEXTO DE MANUEL BANDEIRA:

    MSICA, POESIA E PERFORMANCE

    Trabalho final (produo artstica e artigo) apresentado ao Curso de Mestrado em Msica da Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Msica. rea de Concentrao: Msica, Criao e Expresso. Linha de Pesquisa: Performance Musical e suas Interfaces. Orientadora: Prof Dr Lcia Silva Barrenechea.

    Goinia 2005

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    GISELE PIRES DE OLIVEIRA

    QUATRO LRICAS (1938) DE FRANCISCO MIGNONE COM TEXTO DE MANUEL BANDEIRA:

    MSICA, POESIA E PERFORMANCE

    Trabalho final defendido no Curso de Mestrado em Msica da Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois (produo artstica acompanhada de artigo), para obteno do grau de Mestre em Msica, aprovado em 29 de novembro de 2005, pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:

    ____________________________________

    Prof Dr Lcia Silva Barrenechea - UFG Presidente da Banca

    ___________________________________

    Prof. Dr. Andr Cavazotti e Silva - UFMG

    ___________________________________

    Prof. Dr. ngelo Dias - UFG

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    Ao Marcus, meu maior incentivador, meu porto seguro, minha alegria. A voc, meu amor, por tudo que voc e me faz tornar a cada dia.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus pelos talentos a mim confiados, pela fora e nimo renovados a cada dia. .

    incansvel professora Lcia Barrenechea, pela orientao firme, pela compreenso, pela amizade e por to grande confiana em mim depositada, muitas vezes maior que a minha prpria.

    A todos os colegas de mestrado que direta ou indiretamente contriburam para o processo e concluso dessa jornada. Em especial, s queridas amigas Ilka Jussara e Elenice Maranesi, minhas fiis companheiras de estrada.

    Ao Prof. Srgio Barrenechea pelas utilssimas sugestes no exame de Qualificao.

    Ao Srgio Nogueira pelo conhecimento musical comigo repartido.

    Ao amigo Samuel Silva pela pronta ajuda na reviso e editorao das partituras.

    Aos professores Andr Cavazotti e ngelo Dias por aceitarem o convite para integrar a banca examinadora da minha defesa.

    Aos msicos Francisco Orr, Ilka Jussara e Mal Mestrinho por partilharem seus talentos no meu recital final.

    Sra. Maria Josephina Mignone por ter me recebido e fornecido informaes inestimveis.

    Ao Sr. Embaixador Vasco Mariz pela prontido em colaborar com esta pesquisa e repartir seu conhecimento e vivncia.

    Escola de Msica de Braslia, na pessoa de seu diretor, Prof. Dr. Carlos Galvo, pelo incentivo e apoio durante o Mestrado.

    Aos meus pais que, mesmo de longe, sempre me apoiaram com amor e oraes.

    Samantha por me ajudar a enxergar as decises e escolhas a serem tomadas.

    A todos meus amigos e familiares que sempre incentivaram e apoiaram esse projeto.

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    RESUMO

    A pesquisa sobre a cano de cmara brasileira ainda est em seu incio e a investigao sobre a parte pianstica de tal gnero musical ainda mais escassa. Sendo assim, o material disponvel para auxiliar o pianista acompanhador na tomada de decises interpretativas na performance de canes quase inexistente. Sabendo da importncia que o acompanhamento cancional adquiriu no Romantismo, o presente trabalho objetiva analisar o ciclo de canes Quatro Lricas (1938) de Francisco Mignone com poesia de Manuel Bandeira de modo a identificar o papel do piano, tendo como propsito a performance do mesmo. Aps a anlise musical das canes, utilizou-se uma abordagem interdisciplinar na tentativa metodolgica de abarcar tanto poesia quanto msica. Para tanto, atravs da identificao da relao texto-msica, fundamentada no modelo proposto por Stein e Spillmann no livro Poetry into Song: performance and analysis of Lieder e da utilizao dos conceitos literrios de persona e modo de direcionamento, transpostos para a rea musical por E. T. Cone e explicitados no livro The Composers voice, foram obtidas informaes essenciais para ambos os intrpretes, cantor e pianista. Por meio de tal estudo pde-se embasar as decises interpretativas, especificadas nesse artigo em forma de sugestes, que nortearam a preparao e performance das canes Cantiga, O menino doente, Dentro da noite e D. Janana. Esta uma pesquisa de natureza qualitativa, onde os dados tm origem bibliogrfica, documental e do prprio texto musical e potico.

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    ABSTRACT

    The research about the Brazilian art song is in its beginning and studies about the piano accompaniment are even scarcer. Thus, the available material to assist the accompanist in the process of preparing and performing Brazilian chamber song is almost nonexistent. Knowing the importance that the cancional accompaniment has acquired in the Romantic period, this paper aims to investigate the song cycle Quatro Lricas (1938) of Francisco Mignone with poetry of Manuel Bandeira, in order to identify the role of the piano in this work, offering suggestions to performing it. After the musical analysis of the songs, an interdisciplinary approach has been used in a methodological attempt to join poetry and music. The discussion about the relation between music and words was based in the studies of Stein and Spillman from the book Poetry into song: performance and analysis of Lieder. The literary concepts of persona and mode of address used in this article were the ones transposed to the musical grounds by E. T. Cone in the book The composers voice. Through this study it was possible to capture essential informations for both performers, the singer and the pianist, as well as to shape interpretative decisions, specified in this article as suggestions, which had guided the preparation and the performance of the songs Cantiga, O menino doente, Dentro da noite e D. Janana. This is a research of qualitative nature, in which the data is bibliographical and documental, including the musical and poetical text.

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    LISTA DE TABELAS:

    Tabela 1: Canes de Francisco Mignone com texto de Manuel Bandeira ------- 17 Tabela 2: Disposio do poema na cano D. Janana ------------------------------ 43 Tabela 3: Relao de proporo entre as partes de D. Janana -------------------- 43

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    LISTA DE QUADROS Quadro 1: Personificao do narrador em O menino doente ----------------------- 63

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Cantiga, c. 1-3 ------------------------------------------------------------------- 22 Figura 2: Cantiga c. 9 ---------------------------------------------------------------------- 24 Figura 3: Cantiga, c. 8-10 ----------------------------------------------------------------- 25 Figura 4: Cantiga, c. 9-11 ----------------------------------------------------------------- 25 Figura 5: Cantiga, c. 11-12 ---------------------------------------------------------------- 25 Figura 6: Cantiga, c. 13-14 ---------------------------------------------------------------- 26 Figura 7: Cantiga c. 15-17 ---------------------------------------------------------------- 27 Figura 8: Cantiga, c. 18-19 ---------------------------------------------------------------- 27 Figura 9: Cantiga, c. 11-12 ---------------------------------------------------------------- 28 Figura 10: Cantiga, c. 18-19 -------------------------------------------------------------- 28 Figura 11: Cantiga, c. 18-20 -------------------------------------------------------------- 29 Figura 12: Cantiga, c. 17 ------------------------------------------------------------------ 30 Figura 13: O menino doente, c. 1 --------------------------------------------------------- 31 Figura 14: O menino doente, c. 3-6 ------------------------------------------------------ 32 Figura 15: O menino doente, c. 4-6 ------------------------------------------------------ 32 Figura 16: O menino doente, c. 8-9 ------------------------------------------------------ 32 Figura 17: O menino doente, c. 10-12 --------------------------------------------------- 33 Figura 18: O menino doente, c. 13-15 ---------------------------------------------------. 33 Figura 19: O menino doente, c. 16 ------------------------------------------------------- 34 Figura 20: O menino doente, c. 24-25 --------------------------------------------------- 34 Figura 21: O menino doente, c. 25-26 --------------------------------------------------- 35 Figura 22: Dentro da noite, c. 11-12 ----------------------------------------------------- 36 Figura 23: Dentro da noite, c. 13-14 ----------------------------------------------------- 36 Figura 24: Dentro da noite, c. 27-28 ----------------------------------------------------- 37 Figura 25: Dentro da noite, c. 29-31 ----------------------------------------------------- 37 Figura 26: Dentro da noite, c. 36-39 ----------------------------------------------------- 38 Figura 27: Dentro da noite, c. 40-42 ----------------------------------------------------- 38 Figura 28: D. Janana, c. 1-3 -------------------------------------------------------------- 39 Figura 29: D. Janana, c. 6-7 -------------------------------------------------------------- 39

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    Figura 30: D. Janana, c. 13-14 ----------------------------------------------------------- 40 Figura 31: D. Janana, c. 16-18 ----------------------------------------------------------- 40 Figura 32: D. Janana, c. 19-20 ----------------------------------------------------------- 41 Figura 33: D. Janana, c. 22-23 ----------------------------------------------------------- 41 Figura 34: D. Janana, c. 26-29 ----------------------------------------------------------- 42 Figura 35: O menino doente, c. 1-3 ------------------------------------------------------ 46 Figura 36: O menino doente, c. 4-6 ------------------------------------------------------ 46 Figura 37: O menino doente, c. 8-9 ------------------------------------------------------ 46 Figura 38: O menino doente, c. 13-15 --------------------------------------------------- 47 Figura 39: O menino doente, c. 16-18 --------------------------------------------------- 47 Figura 40: O menino doente, c. 22-23 --------------------------------------------------- 48 Figura 41: O menino doente, c. 24-27 --------------------------------------------------- 49 Figura 42: Cantiga, c. 1-3 ----------------------------------------------------------------- 50 Figura 43: Cantiga, c. 26-27 -------------------------------------------------------------- 51 Figura 44: Dentro da noite, c. 25-27 ----------------------------------------------------- 52 Figura 45: Dentro da noite, c. 18-20 ----------------------------------------------------- 52 Figura 46: Dentro da noite, c. 13-20 ----------------------------------------------------- 53 Figura 47: Dentro da noite, c. 36-39 ----------------------------------------------------- 54 Figura 48: D. Janana, c. 1-2 -------------------------------------------------------------- 54 Figura 49: D. Janana, c. 6-7 -------------------------------------------------------------- 55 Figura 50: D. Janana, c. 9-10 ------------------------------------------------------------ 55 Figura 51: D. Janana, c. 13-14 ----------------------------------------------------------- 56 Figura 52: D. Janana, c. 16-18 ----------------------------------------------------------- 56 Figura 53: D. Janana, c. 6-7 -------------------------------------------------------------- 60 Figura 54: D. Janana, c. 16-18.----------------------------------------------------------- 60 Figura 55: D. Janana, c. 22-23 ----------------------------------------------------------- 61 Figura 56: Cantiga, c.6-8 ------------------------------------------------------------------ 67 Figura 57: O menino doente, c. 9 --------------------------------------------------------- 70 Figura 58: O menino doente, c. 7 --------------------------------------------------------- 71 Figura 59: O menino doente, c. 8-9 ------------------------------------------------------ 72 Figura 60: Dentro da Noite, c. 9-12 ------------------------------------------------------ 74 Figura 61: Dentro da noite, c. 15-21 ----------------------------------------------------- 74-75

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    Figura 62: Dentro da noite, c. 9-10 ------------------------------------------------------ 75 Figura 63: Dentro da noite, c. 17-19 ----------------------------------------------------- 76 Figura 64: Dentro da noite, c. 35-42 ----------------------------------------------------- 77 Figura 65: D. Janana, c. 16-18 ----------------------------------------------------------- 79

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    SUMRIO

    LISTA DE TABELAS -------------------------------------------------------------------- viii LISTA DE QUADROS ------------------------------------------------------------------- ix LISTA DE FIGURAS --------------------------------------------------------------------- x RESUMO ----------------------------------------------------------------------------------- vi ABSTRACT -------------------------------------------------------------------------------- vii

    PARTE A: PRODUO ARTSTICA RECITAIS

    DE 29/11/2005 RECITAL DE DEFESA ---------------------------------------------- 2 NOTAS DO PROGRAMA ---------------------------------------------------------------- 3 DE 1/04/2005 ------------------------------------------------------------------------------- 4 DE 11/12/2003 ------------------------------------------------------------------------------ 5 DE 12/12/2003 ------------------------------------------------------------------------------ 6

    PARTE B: QUATRO LRICAS (1938) DE FRANCISCO MIGNONE COM TEXTO DE MANUEL BANDEIRA: MSICA, POESIA E PERFORMANCE:

    1. Introduo -------------------------------------------------------------------------- 8 2. O compositor e o poeta ----------------------------------------------------------- 12 3. Quatro Lricas (1938) ------------------------------------------------------------

    3.I. Relao Texto-Msica ------------------------------------------------------- 3.II. Aspectos poticos:

    3.II.1. Conceito de Persona ------------------------------------------------- 3.II.2. Modo de Direcionamento -------------------------------------------

    19 21

    44 61

    4. Sugestes Interpretativas --------------------------------------------------------- 65 5. Concluso -------------------------------------------------------------------------- 81 6. Referncias Bibliogrficas ------------------------------------------------------- 85

    Anexo I: Poemas Originais ------------------------------------------------------- 89 Anexo II: Partituras Digitalizadas ----------------------------------------------- 94 Anexo III: Entrevistas:

    Sra. Maria Josephina Mignone ----------------------------------------------

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    Sr. Embaixador Vasco Mariz ------------------------------------------------ 113

    CD ENCARTE COM GRAVAO DO RECITAL

  • PARTE A: PRODUO ARTSTICA RECITAIS

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM MSICA

    RECITAL DE DEFESA1

    GISELE PIRES DE OLIVEIRA, piano. 29/11/2005 s 8:00 h

    Mini-auditrio da EMAC/UFG

    PROGRAMA:

    Ludwig V. Beethoven (1770 1827) Sonata para violoncelo e piano, op. 69, em L maior.

    I. Allegro ma non tanto II. Scherzo III. Adgio cantabile / Allegro vivace

    Johannes Brahms (1833 1897) Sonata para clarineta e piano, op. 120, no. 2, em Mi b maior.

    I. Allegro amabile II. Allegro apassionato III. Andante com moto / Allegro

    Francisco Mignone (1897 1986) Quatro Lricas (1938) I. Cantiga II. O menino doente III. Dentro da noite IV. D. Janana

    Convidados: Francisco Orr, violoncelo

    Ilka Jussara, clarineta Mal Mestrinho, mezzo-soprano

    1 Recital apresentado por Gisele Pires de Oliveira ao Curso de Mestrado em Msica da Escola de

    Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Msica. Orientadora: Prof Dr Lcia Barrenechea.

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    NOTAS DO PROGRAMA:

    As primeiras sonatas para piano e violoncelo de Beethoven so de grande valor histrico, pois pela primeira vez, o violoncelo recebia uma escrita de igual importncia com o piano. A terceira, Sonata op.69 (1808) traz solues composicionais, encontrada atravs da pesquisa nas sonatas anteriores, de sonoridade e equilbrio entre os instrumentistas. uma sonata formada por trs movimentos em andamento rpido, tendo apenas um Adagio como introduo ao Allegro final. O primeiro movimento escrito em forma sonata, com um carter predominantemente lrico; o segundo, um Scherzo, em forma ABABA, exige grande energia rtmica sustentado por uma firme manuteno de andamento; concluindo a obra, o Adagio fornece um momento de introspeco antes do ltimo Allegro, agora vivace, formalmente equilibrado e explorando o virtuosismo e expressividade de ambos os intrpretes.

    As duas sonatas para clarineta e piano, op.120, constituem as ltimas obras para cmara de Brahms. O Allegro inicial da Sonata para Clarineta e Piano, op.120, n. 2, de carter amabile, escrito numa forma sonata expandida e no delineia uma clara diviso entre as partes, antes explora o colorido de ambos os instrumentos atravs de mudanas timbrsticas e harmnicas. Da mesma forma que Sonata op. 69 de Beethoven, tal obra no possui um movimento lento. O segundo movimento, o ltimo Scherzo de Brahms, possui carter apaixonado e herico, que contrasta com a seo central, um Sostenuto mais cantabile e lrico. Segue-se o terceiro movimento, a ltima srie de variaes do compositor: na primeira variao o desenvolvimento contrapontstico evoca uma textura barroca; na segunda, o timbre escuro da clarineta na regio mdio-grave se justape aos arabescos do piano numa regio mais aguda, criando e uma ambientao dolce, precisamente construdo; uma clareza tipicamente clssica caracteriza a terceira variao; a quarta variao se distingue pela desconstruo rtmica e meldica do tema e explorao timbrstica. A ltima variao extrapola os 14 compassos do tema, e se expande para um Piu tranqillo terminando numa retomada do allegro numa escrita virtuosstica e brilhante para clarineta e piano. Esta sonata possui uma verso alternativa, feita por Brahms, para viola.

    O ciclo Quatro Lricas (1938) pode ser considerado como um panorama das mais importantes influncias musicais absorvidas por Francisco Mignone: em Cantiga, a escrita pianstica impressionista traduz o sentimento de ambigidade de sentimentos do narrador, sendo que o piano atravs de sua movimentao descendente parece sugerir que a persona vocal resolva seus problemas atravs da morte, temtica constante em Manuel Bandeira; Em O menino doente Mignone demonstra todo o conhecimento dramtico da composio de peras e o piano cria uma ambientao diferenciada a cada seo, modificando o clima medida que cada personagem, o narrador, a me e a santa, so introduzidas na poesia. As vozes da noite ecoam atravs da polifonia seresteira de Dentro da noite, sendo que cantor e pianista dividem a responsabilidade estrutural da pea e estabelecem uma estreita relao de antecipaes e reafirmaes meldicas. Encerrando o ciclo, D. Janana, traz toda a fora rtmica dos rituais religiosos africanos, sendo que Janana, outra designao para Iemanj, representada pelo ostinato rtmico do piano, que vai ganhando espao na cano e se tornando protagonista juntamente com o cantor.

    Notas de programa elaboradas por Gisele Pires de Oliveira.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM MSICA

    RECITAL2

    GISELE PIRES DE OLIVEIRA, piano 1/04/2005 s 9:20 h

    Auditrio da EMAC/UFG

    Bela Bartk (1881-1945) Allegro Brbaro

    Sergei Rachmaninoff (1873-1943) Preldio, p. 23, no. 4, em R Maior

    tude-Tableaux, Op. 39, no. 5, em Mi b m

    Sergei Prokofiev (1891-1953) Piano Concerto no. 3, em D Maior. 1. Movimento: Andante/Allegro*

    *2. Piano: Lcia Barrenechea - UFG

    2 Recital apresentado por Gisele Pires de Oliveira ao Curso de Mestrado em Msica da Escola de

    Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois como requisito parcial da disciplina Estudo Individual Orientado Instrumento, sob orientao da Prof Dr Lcia Barrenechea.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM MSICA

    RECITAL3 11/12/2003, s 13:00 h.

    Auditrio da EMAC/UFG

    Heitor Villa-Lobos (1887 1959) Capricho para violoncelo e piano

    Assobio jato 1. Allegro non troppo 2. Adagio 3. Vivo

    Carl Maria Von Weber (1786 1826) Trio em Sol menor, op. 63 1. Allegro moderato 2. Allegro vivace 3. Andante expressivo 4. Finale: Allegro

    Norma Parrot, cello Larena Franco Arajo, flauta Gisele Pires de Oliveira, piano

    3 Recital apresentado ao Curso de Mestrado em Msica da Escola de Msica e Artes Cnicas da

    Universidade Federal de Gois como requisito parcial da disciplina Performance Musical na Contemporaneidade. Orientador: Prof. Dr. Paulo Csar Rabelo.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM MSICA

    RECITAL4 12/12/2003, s 9:30 h.

    Johannes Brahms (1833 1879) Liebestreu, op. 3, no. 1

    Valdenora Pereira, canto Gisele Pires, piano

    Geistliches Wiegenlied, op. 91, no. 2

    Valdenora Pereira, canto Gisele Pires, piano

    Sergei Prokofiev (1891-1953) Sonata para viloncello e piano, op. 119 I. Andante grave

    Norma Parrot, cello Marlia de Alexandria, piano

    Joseph Haydn (1732 1809) Trio em Sol Maior I. Adgio non tanto II. Allegro III. Allegro

    Consuelo Quireze, piano Othaniel Alcntara, violino

    Norma Parrot, cello

    4 Recital apresentado ao Curso de Mestrado em Msica da Escola de Msica e Artes Cnicas da

    Universidade Federal de Gois como requisito parcial da disciplina Tpicos Especiais em Prticas Interpretativas. Orientao: Prof. Luiz Medalha Filho.

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    PARTE B: ARTIGO

    QUATRO LRICAS (1938) DE FRANCISCO MIGNONE COM TEXTO DE MANUEL BANDEIRA:

    MSICA, POESIA E PERFORMANCE

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    1. Introduo

    A pesquisa sobre a cano erudita brasileira um campo muito vasto, cuja investigao est ainda em seu comeo. Recentes estudos como os de Carvalho (2001), Farid (1996), Castro (2001), Chaves e Nunes (2003) e Gonalves (2004) apontam para uma rea praticamente inexplorada e aberta aos mais diversos tipos de abordagens.

    Castro, Borghoff e Pdua (2003) detectam que

    publicaes acadmicas mais recentes sobre cano da cmara brasileira so escassas e muitas vezes de difcil acesso, sendo os bancos de dados disponveis ainda deficientes. Alm disto, so ainda restritos os cursos de ps-graduao em msica no pas e poucos os intrpretes, cantores e pianistas, que se especializam em msica brasileira (p. 75).

    Sabe-se que na rea do acompanhamento de canes ao piano a referncia literria tambm escassa (Ibid, p. 75). Octavio Maul (1977) salienta as diversas habilidades necessrias a um pianista no acompanhamento de instrumentos e de msica vocal, dentre elas, a capacidade de produzir efeitos tmbricos e gerar vrias intensidades sonoras, o conhecimento dos diferentes estilos musicais, e o equilbrio sonoro diferenciado para o acompanhamento de variados tipos de instrumentos e vozes. O mesmo autor ressalta que a

    atuao do pianista no acompanhamento da msica vocal diferente da prtica pianstica na msica instrumental. O texto potico deve ser compreendido e tal ao declamatria,

    atravs da msica, influencia fortemente na interpretao da mesma. Uma grande contribuio do Romantismo, percebida especialmente nas canes de

    Schubert e Schumann, foi a mudana no papel do acompanhamento nos Lieder. Agora o piano no se limita mais a acompanhar o canto, porm comentador psicolgico e ambientador, s vezes descritivo, do texto (Andrade, 1987, p. 137). Tal mudana representa um redimensionamento de postura interpretativa do pianista diante de tal repertrio:

    A cano de cmara, como um todo bastante difcil como execuo, entendimento, realizao. um grande desafio para ambos os lados, o cantor e o pianista, especialmente considerando que o piano, de Schubert para frente, no se limita simplesmente a acompanhar com esquemas tonais acordais, mas suporte de multifacetadas idias e funes: psicolgico, ambiente, dialogal, contrastante, dialtico, irnico... (Achille Pichi Apud Porto, 2004, p. 41).

    Hadson HuanRealce

    Hadson HuanRealce

    Hadson HuanRealce

    Hadson HuanRealce

    Hadson HuanRealce

    Hadson HuanRealce

    Hadson HuanRealce

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    A especificidade do gnero musical cano e a crescente importncia histrica do papel do acompanhamento tornam ainda mais necessrio o aprofundamento da pesquisa sobre a cano de cmara brasileira. Aps um breve levantamento foram encontrados significativos estudos sobre canes de Dinor de Carvalho (Carvalho, 2001), as de Osvaldo Lacerda (Gonzaga, 1997) e sobre a cano Crepsculo de Outono de Helza Camu (Castro, 2001), nos quais alguns aspectos piansticos foram observados. Tais pesquisas so apenas o comeo de uma investigao j discutida por Mrio de Andrade, Vasco Mariz e pesquisadores, tanto da rea musical quanto da rea literria.

    Observa-se que a maioria das canes de cmara escritas no Brasil nos sculos XIX e XX dedicada formao voz e piano, j solidificada no Romantismo. Sabendo que o pianista representa um papel significativo na performance de tal gnero musical, decidiu-se por pesquisar o gnero cano de uma maneira mais ampla, de forma a entender a relao entre piano e voz. Este trabalho tem como foco principal a parte pianstica, porm, os subsdios interpretativos fornecidos sero tambm de grande valia para o cantor.

    A presente pesquisa investiga canes de Francisco Mignone, por ser um

    compositor que foi pianista solista, maestro, professor e um acompanhador que cantores e violinistas disputavam a honra de ter ao piano como colaborador, pois o requinte de sua arte

    nesse terreno era incomparvel (Azevedo apud Mariz, 1997, p. 11). Ronaldo Miranda afirma que Mignone um mestre em msica dramtica - sabe contar uma estria em msica... (Miranda apud Andrade M. H., 1984, p. 112). O compositor paulista foi um dos compositores brasileiros que mais escreveu canes para voz e piano, aproximadamente 220 (Mignone, 1997), e Manuel Bandeira foi o poeta brasileiro que mais teve seus poemas musicados pelo compositor paulista (Mariz, 1997).

    Segundo Oliveira (2003), Manuel Bandeira o mais musical de nossos poetas do sculo XX (p. 22). No poema Evocao de Recife patente a inteno musical no uso das duas formas Capiberibe - Capibaribe, explicitada por Bandeira (1990) em seu Itinerrio de Passrgada:

    (...) a primeira vez com e, e a segunda com a, me dava a impresso de um acidente, como se a palavra fosse uma frase meldica dita na segunda vez com bemol na terceira nota. De igual modo, em Neologismo, o verso Teadoro, Teodora leva a mesma inteno, mais do que jogo verbal (p. 52).

    Hadson HuanRealce

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    O fato de Mignone explorar poemas variados de Bandeira em suas canes sugere um interesse particular do compositor pela temtica potica e musicalidade dos versos do poeta, aspectos que poderiam ser determinantes na construo musical dessas obras. Portanto, para um maior aprofundamento das discusses e reflexes sobre os aspectos interpretativos e piansticos das obras para canto e piano de Mignone, foram investigadas as

    canes Cantiga, O menino doente, Dentro da noite e D. Janana, compostas em 1938 e reunidas pelo compositor sob o ttulo de Quatro Lricas (1938). Tais canes foram escolhidas por se inserirem no contexto inicial (canes de Mignone com poesia de Bandeira) e por conter duas das canes originadoras do interesse dessa pesquisadora em descobrir o papel do piano nesse gnero musical (Cantiga e O menino doente).

    Partindo do pressuposto que de todos os instrumentos, o piano o melhor ator, pois pode interpretar os papis mais diferentes (Neuhaus, 1987, p. 71), esta pesquisa teve por objetivo investigar a escrita pianstica nas Quatro Lricas (1938) de Francisco Mignone com poesia de Manuel Bandeira, com o intuito de estabelecer qual o papel desempenhado pelo piano em cada cano. Tal investigao de natureza qualitativa, onde os dados

    utilizados nesse estudo tm origem bibliogrfica, documental e no prprio objeto em si, o texto musical. A proposta desta pesquisa , acima de tudo, discutir o papel do piano na

    cano, como gerador da ambientao e pea fundamental para a transposio do texto potico em msica.

    Nas recentes pesquisas sobre as relaes entre msica e texto, como a de Lodato (1999), apontada a inexistncia de uma metodologia j estabelecida para a anlise de canes de forma abrangente e totalizadora, abarcando no s o texto, nem somente a msica, mas a juno dos dois formantes da cano.

    Aps uma extensa anlise musical preliminar baseada no modelo proposto por Jan Larue no livro Guidelines for style analysis, percebeu-se que somente esta abordagem no daria conta do objetivo proposto, ou seja, a busca por elementos poticos e dramticos que servissem de guias para a criao das imagens e funes, tanto do pianista quanto do

    cantor, na performance das canes. Nesse sentido, como ponto de partida para fundamentar as discusses a respeito das

    Quatro Lricas, foi utilizada uma combinao de abordagens diversas. As relaes entre o texto e a msica com objetivos interpretativos foram observados luz dos estudos de Stein

    Hadson HuanRealce

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    e Spillman explicitados no livro Poetry into Song: Performance and Analysis of Lieder (1996). Para investigar os aspectos poticos mais relevantes das canes foram usados os conceitos, transpostos da Literatura para a msica por Edward T. Cone (1974), de Persona e de Modo de Direcionamento e utilizados tambm por Stein e Spillman (1996). Tais conceitos se referem a quem est falando, persona, e para quem est se falando, modo de

    direcionamento. Considerando-se a idia de que a partitura no a verdade (...), a partitura no a pea (...), a pea o que voc efetivamente traduz em som (Baremboim e Said, 2003, p. 43), a utilizao dos conceitos de persona e de modo de direcionamento na investigao do papel do piano em cada cano de Quatro Lricas (1938) proporciona uma abordagem globalizante na busca de subsdios analticos para a fundamentao de sua performance.

    Na parte final deste trabalho so discutidos aspectos relativos a decises interpretativas oriundas do estudo da relao texto-msica, das concluses advindas da utilizao dos conceitos de persona e modo de direcionamento, bem como da prpria experincia de performance das canes, vivida por essa pesquisadora. Em anexo

    encontram-se os poemas originais e as partituras digitalizadas do ciclo Quatro Lricas (1938), alm da transcrio de entrevistas concedidas pela Sra. Maria Josephina Mignone, pianista e viva do compositor, e pelo Sr. Embaixador Vasco Mariz, cantor e musiclogo brasileiro que organizou e escreveu o livro Francisco Mignone: o homem e a obra e A cano brasileira, entre outros. Ao estabelecer as bases para esta investigao, seguiu-se o estudo musical, potico, das relaes texto-msica e interpretativas de cada cano buscando explicitar os aspectos caractersticos de cada uma, o que as torna singular em relao s outras, e como tal singularidade se reflete na performance do ciclo como um todo. Todos os resultados dessa investigao tm como meta a performance musical, ou seja, a fundamentao objetiva das decises interpretativas na execuo musical das Quatro Lricas (1938). Com este estudo espera-se contribuir para a investigao mais sistematizada da cano de cmara brasileira,

    no sentido de oferecer material para o pesquisador da rea, sugerindo uma maneira diferenciada de refletir sobre o processo interpretativo da cano e fornecendo, desse modo, subsdios para decises de performance do cantor e do pianista.

    Hadson HuanRealce

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    2. O Compositor e o Poeta

    Francisco Mignone (1897-1986), paulista filho de italianos, comeou seus estudos musicais ao piano, porm desde cedo estudou tambm flauta e violoncelo. No Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo, se formou em Flauta, Piano e

    Composio. Como compositor, no incio de sua prtica profissional, sob o pseudnimo de Chico Boror, escreveu tangos, maxixes, valsas e outras peas populares (Kiefer, 1983, p. 12). Tal influncia esteve presente durante toda sua carreira musical. Luiz Heitor Corra de Azevedo nos relata que o compositor, no fim de sua vida, voltou a ser o que despreocupadamente tinha sido nos seus primeiros anos de So Paulo. Redescobriu o Brasil das modinhas, das valsas, dos choros (Mariz, 1997, p. 16). Durante um perodo de nove anos (1920-1929) o Mignone estudou na Frana, na Espanha e na Itlia. Ao retornar definitivamente em 1929, j tinha 32 anos, muito havia aprendido e estava, portanto, com a cabea feita (Mariz, 1997, p. 31). Sua formao como msico e compositor j estava consolidada do ponto de vista tcnico, porm tal situao no o impediu de sofrer uma grande influncia de um dos seus amigos de juventude, Mrio de Andrade5. Tendo, a seu ver, conseguido nada de prtico na Europa, Francisco

    Mignone adere aos postulados da Semana Moderna de 1922 e, amparado na cordial e espontnea amizade de Mrio de Andrade embrenhou-se no cipoal da missa nacionalista (Ibid, p. 45). Tal mudana no se deu de uma maneira fcil, pois a converso de Mignone doutrina nacionalista musical teve um approach intelectual muito mais sofisticado e trabalhoso (Ibid, p. 31).

    O compositor das Valsas de Esquina, em entrevista ao Jornal do Brasil, 17/04/1977, declara: Mrio me mostrou a importncia do que nosso, dizendo aquela clebre frase: O compositor brasileiro que no escreve msica brasileira uma reverendssima besta

    (Mignone apud Mariz, 1997, p. 48). O escritor de Macunama, aps ter ouvido alguns trechos da pera O Contratador de Diamantes (1922), j havia mostrado sua desaprovao quanto escrita tipicamente estrangeira e em 1928 reafirma que

    5 Mrio de Andrade estudou piano no Conservatrio Dramtico Musical e era tambm cantor.

    (Mignone, 1991, p. 3).

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    na msica italiana, Francisco Mignone ser mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa, que ele no aumenta. Aqui ele ser um valor imprescindvel (...). O Inocente6 [pera de 1927] pertence Itlia. A msica brasileira fica na mesma, antes e depois dessa pera. E por isso que considero o caso de Francisco Mignone bem doloroso (Andrade apud Kiefer, 1983, p. 17).

    Mesmo reconhecendo a falta de brasilidade desta pera, Mrio de Andrade7

    reconhece que ningum na Amrica pensa sinfonicamente melhor do que Mignone (apud Andrade, 1984, p. 112). Mesmo nas peas para piano solo a referncia a instrumentos orquestrais uma constante como, por exemplo, em Valsa que no de esquina a indicao de cantando como um violoncelo (Andrade, 1984, p. 72); em Temperando, como o rufar de tambores (Ibid, p. 21); em Beliscando Forte, burlesco (fagote) e seco como xilofone (Ibid, p. 49 e 51).

    A busca por uma escrita musical nacional era uma constante inteno do compositor. Na 1. Fantasia para Piano e Orquestra (1929), estreada em 1931, Mignone, comprometido com as novas idias nacionalistas, comea a explorar ritmos brasileiros como o maxixe. Entretanto, tal explorao composicional no era exclusiva: sua grande

    influncia italiana explicitada pela Sra. Josephina Mignone ao afirmar que corria nas veias dele o sangue italiano... Sempre na vida dele, durante o tempo que eu convivi com

    ele, 22 anos, sempre senti as tendncias dele italianas... Aquelas rias todas, at nas valsas a gente sente... (2005). Outra influncia observada por Martins ao afirmar que Mignone sempre teve admirao por Debussy. O autor observa que o estilo do compositor era profundamente timbrstico e este gosto pelo som inusitado vem prioritariamente de Debussy (apud Mariz, 1997, p. 76). Tal admirao tambm corroborada por Mrio de Andrade ao enfatizar uma atrao [de Mignone] permanente por Debussy e Ravel (apud Mariz, 1997, p. 20).

    A versatilidade e domnio composicional adquiridos pelo compositor declarado

    pelo prprio Mignone, aos 82 anos:

    6 Mignone reconhece que O Inocente no tinha nada de brasileira e s escreveu essa pera, que tem

    um argumento espanhol, por uma motivao amorosa: me apaixonei por uma escritora espanhola (Mignone, 1991, p. 5). 7 Para se ter uma idia de amizade que unia Mrio de Andrade e Francisco Mignone, Bandeira afirma

    que para avaliar a falta que Mrio de Andrade deve ter feito a Mignone preciso ter visto os dois conversarem, discutirem, brigarem, como eu os vi no apartamento da Praia do Flamengo (Bandeira apud Mariz, 1997, p. 25).

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    Na idade a que cheguei, posso afirmar que sou senhor e dono, de direito e fato, de todos os processos de composio e decomposio que se fazem e usam hoje e amanh. Nada me assusta e aceito qualquer empreitada desde que possa realizar msica. (...) Posso escrever uma pea em d maior, sem dor nem pejo, assim como elaborar conceitos de msica tradicional, impressionista, expressionista, dodecafnica, serial, cromtica, atonal, bitonal, politonal, e qui, se me der na telha, de vanguarda com toques concretos, eletrnicos, desfazedores de multiplicadas faixas sonoras. Tudo se pode realizar em arte, desde que a obra traga uma mensagem de beleza e deixe no ouvinte a vontade de querer ouvir mais vezes as obras (apud Mariz, 1997, p. 48).

    Uma amostra de tamanha versatilidade ser posteriormente observada nas ponderaes sobre as Quatro Lricas (1938), assim como a influncia j mencionada de Mrio de Andrade, que o fez pesquisar melodias e ritmos brasileiros. Sendo muito ligado aos grandes poetas da poca, comea, em 1938, a utilizar-se de textos de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira em suas canes.

    Manuel Bandeira (1886-1968), poeta pernambucano, escreveu ensaios crticos, trabalhos de histria literria universal e nacional alm da famosa autobiografia literria Itinerrio de Passrgada. Em So Paulo, aos 18 anos (1904), contrai tuberculose pulmonar. Abandona seus estudos e volta para o Rio de Janeiro, onde j morava desde 1890 e comea uma peregrinao por cidades serranas em busca de casas de repouso e bom clima para os pulmes (Fonseca, 2002, p. 110-111). A doena lhe traz o senso da presena da morte, e esta se torna uma das temticas mais constantes em sua poesia.

    Norma Goldstein (Apud Lopez, 1987) afirma que os trs primeiros livros de Manuel Bandeira (A Cinza das Horas, Carnaval, e Ritmo Dissoluto), fariam parte da primeira fase do poeta, relacionada poesia parnasiana e penumbrista8. Ritmo Dissoluto, de 1924, aparece como obra de transio porque permanecem caractersticas do primeiro conjunto - penumbrista - e acentuam-se gradativamente os traos modernistas que dominam a poesia de Bandeira aps 1930, analisa Goldstein (Ibid, p. 18). Tal afirmao corroborada pelo

    8 Caracterstica da poesia simbolista que gira em torna da esttica da atenuao: atenuao psicolgica

    (sentimentos de languidez, indeciso, atitude contemplativa, ambigidade); atenuao da captao sensorial (meia-luz: crepsculo ou penumbra, meio-tom: murmrio, nasalizao, movimentos suaves e lentos); atenuao no plano da sintaxe funde-se com o nvel semntico; atenuao do ritmo, o que j prepara o caminho para o modernismo; atenuao da temtica com o uso de temas banais, ao invs dos temas nobres, em direo temtica do cotidiano, freqente na poesia modernista (Goldstein apud Lopez, 1987, p. 9).

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    prprio escritor ao declarar: a mim me parece bastante evidente que o Ritmo Dissoluto um livro de transio entre dois momentos da minha poesia (Bandeira, 1990, p. 67). justamente neste livro de transio, Ritmo Dissoluto, que est o poema de uma das Quatro Lricas, O menino doente. Sobre esse poema, Moraes (1962) afirma que

    (...) em Ritmo Dissoluto, esse um dos poemas que so mais representativos da potica de Manuel Bandeira, aqueles que revelam integralmente a alma do poeta diante dos fatos do mundo. (...) Neste poema acham-se alguns dos principais motivos da poesia de Manuel Bandeira: a criana, a doena, a me, e as cantigas que sua memria reteve (p. 102).

    A partir de Libertinagem (1930), Manuel Bandeira entra definitivamente no movimento Modernista Brasileiro. Seguem-se ento os livros Estrela da Manh9 (1936), Opus 10 (1952), Lira dos cinquentanos e Belo-Belo, editadas em Poesias Completas (1944) e Mafu do Malungo (1948). Nota-se uma reviravolta na escrita potica do autor com o uso de humor e ironia sem perder a alma amargurada e solitria que a cada instante reconduz o poeta nostalgia10.

    O escritor era efetivo conhecedor da melhor tradio da literatura portuguesa, (...) literatura e artes do perodo colonial ou do romantismo alm de ter exercido um papel significativo na divulgao da arte e da literatura modernas e na modificao da forma de

    apreci-las. O poeta, que tocava violo, era tambm um amador de msica e artes plsticas (Guimares, 1997, p. 7).

    A msica, em especial, exerceu uma profunda atrao em Bandeira. No h nada no mundo que eu goste mais do que de msica. Sinto que na msica que conseguiria exprimir-me completamente (Bandeira, 1990, p. 51). Essa atrao pode ser claramente percebida em sua poesia. Franklin de Oliveira (apud Bandeira, 1990) afirma que a musicalidade da poesia de Bandeira resulta da natureza intrnseca da emoo potica: (...) msica que comea onde a palavra acaba (p. 31). O mesmo autor descreve dois tipos de musicalidade na poesia banderiana: uma musicalidade latente e recndita, que a mais freqente em Bandeira e outra mais audvel, como em Berimbau em que o verso, pela

    vibrao de suas clulas, atinge os limites da msica pura (Ibid).

    9 Neste livro esto os poemas Cantiga e D. Janana, cano I e IV das Quatro Lricas (1938).

    10 Dicionrio de Literatura Brasileira, 1976, p. 85-86.

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    Oliveira ainda constata que

    nenhum poeta brasileiro tem servido mais do que Bandeira necessidade de expresso artstica dos grandes compositores brasileiros: Villa-Lobos, Camargo Guarnieri. Justamente porque descobrem a musicalidade latente de Bandeira, nela nossos compositores sentem que podem inserir a sua musicalidade propriamente musical (Ibid, p. 31).

    Bandeira confirma suas intenes musicais declarando que o texto ser um como que baixo-numerado contendo em potncia numerosas melodias (Bandeira, 1990, p. 69). Tal interesse musical foi grandemente explorado atravs de parcerias com compositores.

    As colaboraes do poeta com os msicos ocorriam de trs formas: ou estes forneciam melodias para que Bandeira colocasse os versos, ou os compositores escolhiam poesias de textos j publicados, ou encomendavam ao poeta a poesia sobre um determinado tema para uma obra intentada. Escrever o texto para uma melodia j composta era tido pelo escritor com algo de amargar pela necessidade de conhecer as dificuldades caractersticas vocais da disposio de algumas vogais em determinadas alturas. Compositores como Villa-Lobos, Radams Gnatalli e Francisco Mignone foram alguns que lhe encomendaram

    poesias para canes.

    Mignone e o poeta desfrutavam de uma prxima amizade e tal fato fica claro em

    algumas declaraes de Bandeira sobre o compositor, como a na palestra realizada no Teatro Municipal de Rio de Janeiro, em 1955, por ocasio do Festival Francisco Mignone:

    amigo que tanto estimo, o msico que tanto admiro. (...) Mignone deu voz de meia dzia de meus poemas um timbre de eternidade que eles no tinham; ps toda a noite dentro da minha noite, igualou em doura a mo amada naquele carinho em minha testa, reduplicou as graas e sortilgios de dona Janana, ungiu de grave religiosidade, ele que se confessa no-catlico, o texto das Alegrias de Nossa Senhora (Bandeira apud Mariz, 1997, p. 23) 11.

    Em Correspondncia Mrio de Andrade e Manuel Bandeira (Moraes, 2001) as citaes a Francisco Mignone so de carter bem familiar e ntimo, como o recebimento de algum pagamento (p. 665), a leitura do libreto Caf, de Mrio de Andrade, na casa de Mignone (p. 666), desenhos de Mignone enviados num bilhete de Bandeira, ou simplesmente Bandeira comunicando que Hoje vou jantar com Mignone (p. 671). Tal

    11 Nessa declarao Manuel Bandeira se refere a duas das quatro canes do ciclo que objeto de

    estudo do presente artigo: Dentro da noite e D. Janana.

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    amizade foi amistosamente confirmada pela viva de Mignone, Sra. Maria Josephina, ao declarar que

    (Bandeira) freqentava a nossa casa, (...) jantava conosco, tomava lanche conosco, eu tive muito contato com Manuel Bandeira, ele era uma figura encantadora. O relacionamento com Mignone era o mais amigo possvel, o mais de afinidade, (...) um grande poeta e um grande msico. O Mignone chamava ele de Man, e ele chama o Mignone de Chico. Era Chico e Man! (Mignone, M.J., 2005).

    Mrio de Andrade observava com muita satisfao que a corrente nacionalista j tinha envolvido os dois artistas e menciona a composio de ciclos de canes, em 1938, por parte de Mignone, utilizando poemas de escritores modernos (Andrade, 1963). Esse referido ano exatamente o de composio do ciclo Quatro Lricas (1938), objeto de estudo da presente pesquisa. Mignone enfeixa quatro poemas de Manuel Bandeira, Cantiga, O menino doente, Dentro da noite e D. Janana e compe ento algumas das mais representativas obras do repertrio camerstico cancional brasileiro. O

    compositor utilizou, ao todo, treze poemas de Bandeira em canes que se encontram listadas na Tabela 1.

    Canes Editoras e data de publicao A estrela Mangione, 1942. Berimbau Impressora Moderna, 1942. Cantiga Ricordi Brasileira, 1938 Dentro da noite Ricordi Brasileira, 1938. Desafio Impressora Moderna, 1942. Dona Janana Ricordi Brasileira, 1938. Embolada de Brigadeiro FBN/DIMAS (1998), 1943. Imagem Mangione, 1943. O anjo da guarda Manuscrito, 1942. O menino doente Ricordi Brasileira, 1938. Outro improviso Carlos Wehrs, 1943 Pousa a mo na minha testa Impressora Moderna, 1942 Solau do desalmado Impressora Moderna, 1943

    Tabela 1: Canes de Francisco Mignone com texto de Manuel Bandeira.

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    Todas estas canes foram compostas antes da dcada de 50, fase anterior s experimentaes e ao afastamento das tinturas nacionalistas. Com exceo de O anjo da guarda, todas as canes j foram editadas. A parceria entre compositor e poeta revelou-se profcua e fluente, evidenciando uma afinidade artstica significativa entre dois amigos que nutriam uma admirao mtua. As Quatro Lricas (1938) de Francisco Mignone com poesia de Manuel Bandeira representam um pequeno universo de composies bem construdas e de grande substncia dramtico-musical, o que poder ser observado nas

    anlises que seguem.

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    3. Quatro Lricas (1938)

    Francisco Mignone foi um dos compositores brasileiros que mais escreveu canes, totalizando mais de 220 obras. Sobre elas o compositor comenta:

    Realmente eu tenho muita facilidade para escrever para vozes, porque, alm de ter trabalhado com vozes, dei tambm algumas aulas de canto. Em Milo fui acompanhador de vrias professoras de canto para ganhar dinheiro. Eu estava muito perto da maneira de ensinar, conhecia o canto, suas possibilidades. Ento quando escrevo estou trabalhando bem, sei o que o canto pode fazer. Mesmo as canes, talvez elas no sejam muito originais, mas que esto bem escritas para canto, disso eu tenho certeza (Mignone, 1991, p. 12).

    Diferentemente de Camargo Guarnieri, outro compositor muito influenciado pelas idias nacionalistas de Mrio de Andrade, quase a metade de sua produo vocal [de Mignone] tem textos em espanhol, em francs e em italiano (L.H.Corra apud Mariz, 1997, p. 15), prtica que nunca abandonou, talvez por sua vasta cultura e sua grande facilidade de compor. Muitas destas canes encontram-se entre as mais populares do

    repertrio de canto erudito brasileiro, sendo que nenhum cantor as ignora no Brasil. E no estrangeiro muitos, de reputao internacional, as fazem ouvir em seus concertos (Ibid). Mrio de Andrade ressalta que

    as canes de Francisco Mignone so de uma vocalidade rara, e vrias vezes tenho ouvido de cantores a confisso de serem elas as nicas brasileiras que no exigem esforos falsos, nada compensadores musicalmente e as nicas que no fatigam. Desde o ano passado [1938] Francisco Mignone vem se dedicando a pr em msica pequenos ciclos de poemas dos nossos melhores poetas modernos (Andrade, 1963, p. 311).

    Mignone comps as Quatro Lricas12, justamente no ano de 1938, utilizando quatro poemas de Manuel Bandeira. Cada uma das quatro canes tem sua especificidade e uma temtica diferente. Em Cantiga v-se o eu lrico do poeta absorto nas imagens do mar e na sua representao; j em O menino doente percebe-se a preocupao dramtica na delineao de distintas personagens como o narrador, a me, a santa e o menino que no

    12 O ttulo de Quatro Lricas tambm utilizado pelo compositor em outras obras: Quatro Lricas de

    1942, com outros versos tambm de Manuel Bandeira e Quatro Lricas Brasileiras de 1950, com versos de Gabriel de Lucena.

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    participa no dilogo, mas est representado na cena; na cano Dentro da noite a escrita musical seresteira descreve a paisagem do poema trazendo uma sensao de atmosfera noturna; e, concluindo o ciclo, v-se claramente D. Janana ao som de tambores e envolta numa ambientao musical de inspirao ritualstica africana. Alguns aspectos, tanto musicais quanto poticos, permeiam as Quatro Lricas (1938), ou seja, so utilizados de maneira recorrente a ponto de se constiturem em elementos estruturais e determinantes na construo de cada cano. Dentre os aspectos

    musicais, destacam-se: o uso do 1 grau com funo de dominante; utilizao sistemtica da escrita de acordes na mo direita em 1 inverso; o emprego de harmonia quartal; o uso de nota pedal; e a presena de linha meldica descendente atuando como terminao ou ligao entre perodos. No que tange os aspectos poticos, pode-se observar que em todas as canes encontram-se figuras sobrenaturais do gnero feminino: em Cantiga, aparece a Estrela dAlva13, Rainha do Mar; em O menino doente, uma santa que continua o ninar da me; em Dentro da noite, a alma penada de uma criana, e uma santa; e, em D. Janana14, o prprio ttulo j uma referncia a Iemanj, Rainha do Mar. No se percebe, por parte do compositor, uma preocupao na construo de temas

    musicais que perpassem todas as canes no sentido de criar uma estruturao cclica tpica do estilo romntico do sculo XIX. Porm, tais aspectos acima relacionados demonstram uma preocupao na seleo dos elementos, tanto poticos como musicais, para a composio de Quatro Lricas (1938) no sentido de unio de diferentes estilos musicais e poticos.

    13 Outra designao de Iemanj. Ver Cmara Cascudo: Dicionrio do Folclore Brasileiro. Ed. Global,

    2000, 9. Ed. 14

    Orix da religio afro-brasileira candombl que se manifesta nas guas. Tambm referida como Ina, Janana, Princesa do Aroc, Princesa do Mar, Rainha do Aroc, Rainha do Mar e Me d`gua. Ver Cmara Cascudo: Dicionrio do Folclore Brasileiro. Ed. Global, 2000, 9. Ed.

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    3.1. Relao texto-msica

    A identificao das relaes de analogias e figuras, tanto literrias quanto musicais nas canes, reclama uma conceituao esttica sobre a natureza mesma da msica. No artigo de Ilza Nogueira (2004) o modelo semitico adotado para o estudo das relaes texto-msica nas canes de Oswaldo de Souza aponta para a necessidade do entendimento do contedo imaginativo, a natureza potica do discurso musical (p. 8) e a utilizao de termos como figuras de linguagens musicais envolvendo metforas15 e metonmias16. J no artigo de Marcos Nogueira (2003) v-se no uma abordagem semitica, mas um enfoque advindo da teoria literria fundamentada principalmente nos estudos de W. Iser (1996) sobre fico e imaginao. Nos dois casos fica clara a necessidade de uma outra linguagem, que no a musical, para traduo da experincia musical. A metfora, segundo Marcos Nogueira, se torna uma

    tradutora indispensvel na experincia esttica com a msica, um mecanismo lingstico com o qual expressamos a produo do imaginrio quando ativados pelos recursos ficcionais dos sons (2003, p. 2).

    Caznok (2003), provendo uma abordagem sinestsica17 do fazer musical, corrobora a colocao ao afirmar que sem dvida, em um repertrio vocal a viso cumpre um papel quase to significativo quanto o da audio. A simples presena de um texto pode servir como estmulo imaginao visual e essa questo j era evidente desde os madrigais do renascimento (p. 25).

    Dessa forma, na enumerao de relaes entre a poesia e a msica nas Quatro Lricas (1938), imagens sero evocadas e analogias construdas com base na investigao das construes poticas utilizadas e na abordagem interpretativa sugerida por Stein e

    Spillman. Aspectos relativos ao material compositivo das canes - dentre eles a melodia, o

    15 Uma comparao abreviada, ou seja, da qual se retirou a expresso como ou similar (Goldstein,

    2003, p. 65). 16

    Emprego de um termo pelo outro, numa relao de ordem: causa efeito; sinal pela coisa significada; continente pelo contedo; possuidor pela coisa possuda (Ibid, p. 66). 17

    Sinestesia: Do grego sn, reunio, a ao conjunta + asthesis, sensao, a sinestesia definida como a mistura espontnea de sensaes. E considerado um fenmeno perceptivo pelo qual as equivalncias, os cruzamentos e as interaes sensoriais se expressam (Caznok, 2003, p. 110).

    Hadson HuanRealce

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    ritmo e a harmonia - e todas as mudanas significativas advindas desse material sero abordadas e analogicamente relacionadas com o texto. Investigando as Quatro Lricas (1938) pde-se notar que cada cano tem seu estilo musical bem definido: em Cantiga, a escrita profundamente impressionista cria atravs da harmonia uma escrita diferenciada, uma pintura musical ambientadora do texto e

    individualizante do acompanhamento; j em O menino doente, Mignone explora todas suas habilidades dramticas, sendo ele mesmo um compositor de pera, mostrando diversas

    personagens e criando uma ambientao ora soturna, ora sobrenatural; Dentro da noite traz tona toda a influncia seresteira das famosas Valsas de Esquina, por meio de uma base harmnica relativamente simples (VII-I-V-I; II-I-V-I) e contracantos meldicos elaborados que perpassam as vozes instrumentais desenhando uma trama contrapontstica facilmente identificvel com o gnero musical chro; fechando o ciclo, toda a fora rtmica e de carter ritualista das religies africanas ganham vida em D. Janana, numa busca de representao da figura de Iemanj e suas aventuras amorosas. Seguir-se-, ento, a identificao de analogias criadas entre a poesia de Manuel Bandeira e a leitura musical da

    mesma por Francisco Mignone.

    Cantiga se inicia com uma textura relativamente complexa, com contraponto

    formado entre a escrita homofnica das vozes externas e a figurao rtmica na voz intermediria, escrita que se repete no posldio (Fig. 1).

    Figura 1: Cantiga, c. 1-3.

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    Certa tenso j criada pela presena de uma melodia calma sobre o ritmo constante e inquieto do trmulo gerando uma dubiedade de sensaes. Essa escrita escolhida por Mignone para iniciar a cano que evoca o mar, pode ser entendida como uma tentativa de representar o movimento das ondas, o que corroborado por Caznok (2003) ao afirmar que na representao de guas e ondas, trmulos, trinados, figuraes com repetidos

    movimentos ascendentes e descendentes so procedimentos musicais comuns na histria da msica ocidental (p. 99).

    Porm, entendendo a introduo e o posldio no s como uma coreografia musical do texto, mas como uma adio de informao, percebe-se que o compositor cria, musicalmente, uma ambientao para o poema que comear a ser cantado apenas oito compassos depois. Essa ambientao seria de carter psicolgico, visto que os elementos musicais acima descritos geram uma tenso intrnseca e tambm se relacionam ao estilo potico de Manuel Bandeira ao procurar quebrar uma expectativa com palavras que deixam dvida sobre a primeira idia colocada. Mignone captou a falsa impresso de tranqilidade contida na poesia. O texto comea com versos aparentemente felizes: Nas ondas da praia /

    Nas ondas do mar / Quero ser feliz. Porm, patenteada a ambigidade de sentimentos de paz/angstia, tranqilidade/inquietude no verso Quero me afogar. Ora, quem quer se afogar no vivencia exatamente uma sensao de tranqilidade e paz. A esse respeito, Holanda (Apud Bandeira, 1990) afirma que

    justamente a imagem do movimento da queda dgua, que sobrevive longamente fase inicial, a esse respeito caracterstica. Em algumas ocasies, seu canto mgoa da gua da fonte, gua do oceano, gua de pranto, gua do rio, gua da chuva, gua cantante das nevadas - apenas uma companhia docemente nostlgica para o desencanto do poeta, e ento pode tornar-se seu Afvel refrigrio (p. 16).

    Atravs da dinmica em pianssimo, com a indicao de muito leve, Mignone utiliza recursos timbrsticos de carter impressionista como a utilizao de vrios planos

    meldicos, a necessidade de se exprimir atravs de intervalos no habituais como o suceder de quartas e quintas em pp, e o uso de blocos de acordes se movimentando

    paralelamente, ou em sentido contrrio, criando clima timbrstico especial (Martins, 1982, p. 43-46), para tentar transmitir a sutileza e ambigidade de sentimentos. Apesar de Mignone ter indicado a armadura de Mi menor, a cano comea no modo drico de mi e a

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    primeira polarizao que remete a uma ambientao tonal ocorre no c. 9, com o acorde F # menor (Fig. 2).

    Figura 2: Cantiga c. 9.

    A tenso de elementos em Cantiga j surge desde a escolha do andamento e do carter da cano. Stein e Spillman observam que poemas com versos curtos tendem a ser mais vvidos18 (p. 33). Entretanto, Mignone escolheu um andamento calmo, sem figuras rtmicas curtas na linha vocal para o poema escrito em redondilha menor19, tido como um verso curto. Outro dado importante que o compositor utilizou recursos expressivos musicais diferentes em cada estrofe, gerando assim, durante a pea, uma ambientao prpria para cada seo. Na seo I (c. 9-12), com a entrada da voz, a tenso gerada pela harmonia e pelos ritmos contrastantes da introduo j imediatamente estabelecida. A primeira estrofe sugere a tonalidade de F # menor e a melodia de vocalizao silbica. A linha meldica do piano, cromtica e descendente (Fig. 4) secunda e contrasta com a vocal, de carter ondulante (Fig. 3). A parte do piano no se limita a dobrar a linha meldica e apresenta uma nova melodia. Ambas possuem movimentao descendente, porm a forma como fazem esse movimento diferenciada.

    18 Ver poema completo no Anexo I.

    19 Verso com cinco slabas poticas.

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  • 2

    Figura 3: Cantiga, c. 8-10.

    Figura 4: Cantiga, c. 9-11.

    O encadeamento harmnico dos acordes de Si m 7 9 (IV) D# 9 (V) gera uma tenso, atravs tambm do crescendo, que culmina com a palavra afogar (c. 12), na nota mais aguda da cano e justamente na palavra que contrasta com a palavra chave anterior feliz (Fig. 5).

    Figura 5: Cantiga, c. 11-12.

    A partir do comeo da segunda estrofe, seo II (c. 13-17) ocorre uma mudana de atmosfera significativa na msica. O crescendo dos c. 11-12 acaba num piano, o que gera um anticlmax. A textura, antes com o trmulo incessante, muda para acordes homorrtmicos, e a tenso criada at ento interrompida por uma pretensa calma rtmica

  • 2

    no acompanhamento ao surgir a pergunta: Nas ondas da praia / Quem vem me beijar? (Fig. 6).

    Figura 6: Cantiga, c. 13-14.

    Tal pergunta enfatizada ritmicamente das seguintes maneiras: com o uso da maior

    pausa, na parte do canto (c. 14-15), gerando um suspense; pelo acorde do piano no c.15 que durante a cano o de durao mais longa; e pelas notas ornamentais de curta durao que

    so executadas aps a indagao, podendo representar tanto a pergunta que acabou de ser feita quanto como uma antecipao da resposta, no caso, tentando j evocar a localizao da estrela dalva. A resposta pergunta feita enfatizada com uma mudana na escrita pianstica: pode-se dizer que no c. 15 -17, pela primeira vez, Mignone utiliza uma escrita idiomtica pianstica ao no evocar o timbre de cordas, mas, buscar atravs da utilizao do pedal de sustentao, uma abertura da ressonncia do instrumento, explorando os harmnicos do piano. Por cima dessa trama harmnica que a linha vocal se desenha com o verso Quero a estrela dalva / Rainha do mar (Fig. 7).

  • 2

    Figura 7: Cantiga c. 15-17.

    Toda essa nfase dada musicalmente por Mignone se d justamente quando surge, no poema, uma figura sobrenatural. A estrela dalva a que Manuel Bandeira se refere uma das designaes da figura mtica de Iemanj, tida como rainha do mar. Pode-se tambm entender as notas ornamentais de curta durao do c. 15 como uma representao da estrela dalva, por seu aspecto ascendente e de timbre delicado, como citando uma estrela que aparece.

    Poeticamente, de suma importncia a observao da pontuao para a criao do rtmico dos versos. Stein e Spillman (1996) afirmam que as pontuaes determinam o tempo e a forma das linhas poticas dentro das frases vocais (p. 34). Esta a nica estrofe que tem uma pontuao no 2 verso. Todas as outras s possuem pontuao no 4 e ltimo verso. Pode-se observar que Mignone respeitou claramente a pontuao da poesia de

    Bandeira, pois uma interrogao quebra a fluncia dos quatro versos da 2 estrofe e tal suspenso reforada na msica.

    Na terceira e ltima estrofe, seo III (c. 18-21), pela primeira vez, a linha vocal no assume contornos ondulantes, mas se caracteriza por uma melodia descendente e cromtica (Fig. 8).

    Figura 8: Cantiga, c. 18-19.

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    Segundo Goldstein (apud Lopez, 1987) a repetio do verso inicial no significa pura cpia, mas sim uma ampliao do sentido (p. 14). Sendo assim, existe uma mudana musical importante feita por Francisco Mignone, contrastando o incio e o fim. O verso quero ser feliz (c. 11) do inicio, devido s mudanas harmnicas e pelo movimento ascendente da linha vocal, causa um sentimento de continuidade, de prosseguimento (Fig. 9).

    Figura 9: Cantiga, c.11-12.

    J no verso quero ser feliz do c. 18, a indeterminao harmnica causada pelo encadeamento quartal, cromtico e descendente mais a nota-pedal do baixo sugerem um

    sentido de cansao e resignao (Fig. 10).

    Figura 10: Cantiga, c. 18-19.

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  • 2

    A indicao de mudana na temporalidade de mais devagar e retard. refere-se perda de contato com a realidade por parte por narrador como que se deixando levar pelo acompanhamento, formado pela passagem cromtica. A linha meldica da mo esquerda no c. 19 soa, nesse contexto, como uma confirmao da frase da linha vocal, denotando consentimento e concordncia (Fig. 11).

    Essa a nica estrofe em que o acompanhamento dobra inteiramente a linha vocal. Entretanto, observando-se o trecho sob outra perspectiva, o mais coerente seria dizer o contrrio, que a linha vocal est dobrando o acompanhamento, pois, desde a entrada da voz, o piano vem delineando uma linha meldica descendente enquanto a voz desenha uma melodia ondulante.

    Uma imagem possvel para a compreenso da ambientao da cano a de que o piano retrata o mar, evocando essa imagem na abertura da cano sendo que aps a participao do cantor s resta novamente o mar. Como j mencionado, uma repetio no mera retomada de algo, mas uma ampliao do significado dessa informao (Goldstein, apud Lopez, 1987, p. 14); tem-se a sensao de que o narrador fica em suspenso, como que flutuando numa sonoridade modal (Mi frgio) e sem resoluo do encadeamento dos acordes, pois termina no II grau desse modo. Sabendo que a morte uma temtica constante da poesia de Manuel Bandeira, poderia se pensar numa suspenso da vida do

    narrador, tanto como uma morte real ou como uma morte metafrica, uma fuga da realidade. Caznok (2003) identifica que, sinestesicamente, os sons agudos so experimentados como claros, e os graves como escuros (p. 111). Pode-se entender a parte pianstica dessa cano como uma gradao de um registro claro para um registro escuro,

    Figura 11: Cantiga, c. 18-20.

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    atravs de um movimento ondulante, caracterizando um direcionamento do pathos da cano para uma fuga da realidade ou viso pessimista para a resoluo dos problemas que supostamente seriam afogados no mar.

    A pea ento atinge seu ponto culminante grave nos versos Quero ser feliz/ Nas ondas do mar/ Quero esquecer tudo/ Quero descansar (c.17-21) onde se encontram as notas mais graves da pea. Chega-se ento ao ponto mais escuro da cano, novamente podendo sugerir o descanso da morte conotativa ou denotativa (Fig. 12).

    Figura 12 Cantiga, c.17.

    Essa relao sinestsica de agudo/claro e grave/escuro utilizada em Cantiga de

    maneira a dar sustentao construo da atmosfera emocional do poema, sem, contudo, interferir na dubiedade de sentido dos versos.

    A temtica da morte tambm se encontra em O menino doente. Neste poema acham-se alguns dos principais motivos da poesia de Manuel Bandeira: a criana, a doena, a me, e as cantigas que sua memria reteve (Moraes 1962, p. 102). A entrada de cada uma dessas temticas na cano retratada por Mignone de uma maneira especfica e precisa, pois a relao daquele que compe com o texto potico feita de escolhas de elementos musicais que o compositor pensa serem mais adequados quele tema ou poesia.

    Na cano O menino doente, Mignone escolheu como sonoridade inicial para o texto o modo lcrio de sol bemol. Persichetti (1985, p. 33) afirma que os modos, como objeto de trabalho do compositor, podem ser ordenados por suas caractersticas tensionais.

    O maior nmero de bemis que pode ser aplicado a uma escala modal em um tom particular produzir o modo mais sombrio, o Lcrio. Tirando bemis (e ento, acrescentando sustenidos) na ordem diatnica de escritura se produzir uma ordenao dos modos do mais sombrio ao mais brilhante. O modo drico o ponto mdio e fixa a norma (p. 33). Trad. Gisele Pires, 2005.

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    Fundamentado nessa afirmao, pode-se estabelecer a relao entre o modo lcrio, tido como o mais sombrio, e a escolha do mesmo por Mignone e inferir que o compositor tenha escolhido essa escala justamente para criar a ambientao necessria para a estria dramtica contida no poema. O modo lcrio raramente utilizado, e como a poesia fala de um menino doente, tal escolha pode refletir a busca por um ambiente de tristeza como, por

    exemplo, um quarto num ambiente sombrio ou de penumbra. Na seo I (c. 1-7), o piano comea com o que se pode chamar de motivo (c. 1) formado por um intervalo de tera maior descendente (Fig. 13). Tal desenho meldico recorrente e evoca cantigas de ninar, referindo-se ao poema que mostra a me embalando o menino e tentando faz-lo dormir20. Daqui em diante tal desenho meldico ser referido como motivo do ninar21.

    Figura 13: O menino doente, c. 1.

    A linha meldica desenhada na fala do narrador (c. 1-7), atravs de notas repetidas se baseia fortemente na fala, num estilo recitativo, pois o narrador est introduzindo o contexto do drama que se desenrolar ao longo da cano (Fig. 14). O acompanhamento d apoio ao recitativo vocal mediante quintas paralelas que se movimentam ondulatoriamente podendo retratar o embalar do menino pela me. Tambm se pode considerar tais quintas

    paralelas como uma referncia escrita musical sacra polifnica do Sc. IX, o organum paralelo. Mignone, deste modo, antecipa o aparecimento da personagem sobrenatural, uma

    santa, na cano, atravs de tal referncia musical religiosidade (Fig. 15).

    20 O intervalo de 3 descendente ou descendente muito utilizado em canes de ninar (Lullaby,

    Dorme nenm...). 21

    Tal motivo tambm aparece em O menino doente com o intervalo de 4 ou de 2.

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    Figura 14: O menino doente, c. 3-6.

    Figura 15: O menino doente, c. 4-6.

    Na seo II (c. 8-12), com a entrada da me, a melodia se transforma assumindo contornos mais desenhados e aumento das distncias intervalares. O modo se modifica para jnico (sol b maior) Tal escrita enfatiza o carter emocional da cano maternal e de sua relao com o menino (Fig. 16).

    Figura 16: O menino doente, c. 8-9. A parte do piano e a linha vocal retornam novamente ao motivo do ninar. Quando a me fala Dorme... Dorme... (c. 10-11) tal palavra musicada com o motivo do ninar que at ento s havia sido feito pelo piano. Um acorde suspensivo, inconcluso, utilizado no c. 12 para denotar o adormecimento da me interrompendo sua fala. O sono da me tambm retratado pela direo descendente da linha meldica (Fig. 17).

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    Figura 17: O menino doente, c. 10-12.

    A regio tanto do piano quanto da voz modificada na seo III (c. 13-15) para a entrada do narrador e o desenho descendente tambm mantido, fazendo ainda referncia sonolncia e o adormecer da me. O acompanhamento novamente volta s quintas paralelas

    e apenas sustenta o recitativo do narrador (Fig. 18).

    Figura 18: O menino doente, c. 13-15.

    No comeo da seo IV (c. 16-21) um novo tom escolhido, R M. como se a mudana tonal trouxesse a luz, contrastando dessa forma com a escurido do lcrio, (bemis). O ritmo da parte do piano sofre um adensamento e a escrita do acompanhamento

  • 3

    remete ao som de cordas22. Esse trecho narrativo acompanhado por acordes, porm, desta vez, com figuras de menor durao (colcheias) e com a articulao em staccatos durante a apresentao da santa. A inteno de cordas, atravs da escrita, utilizada para marcar uma diferena no acontecimento a seguir: o aspecto celestial da santa23. O procedimento de mudana de ritmo, andamento e carter enfatiza o carter sobrenatural desse evento (Fig. 19).

    Figura 19: O menino doente, c. 16.

    Na Seo V (c. 22-27), volta cantiga de ninar e, por conseguinte, seu motivo meldico, que embala O menino doente. Continuando a cantiga que a me no terminou, a santa entoa Dorme, meu benzinho... (c. 25), e a palavra benzinho, que aparece somente essa vez na pea, musicada com o maior intervalo meldico da cano, uma 7 maior, descendente (Fig. 20). Tal diferenciao pode ser entendida como uma nfase a tal palavra, porm, talvez sua maior importncia resida no portamento indicado entre as duas notas do intervalo. possvel pensar esse intervalo portato, um tanto sombrio, em pp, simbolizando a possvel morte da criana.

    Figura 20: O menino doente, c. 24-25.

    22 Como se fossem golpes decididos e curtos com o meio do arco, fazendo com que este ricocheteie

    levemente nas cordas. 23

    Na Paixo segundo S. Mateus de J.S.Bach a orquestra circunda as aparies de Cristo com um halo ou aurola, por meio do naipe de cordas. (Caznok, 2003, p.88).

  • 3

    Nos c. 26 e 27, Mignone introduz na escrita do piano uma nova idia, ainda no utilizada na cano: um arpejo em tercinas de semicolcheias que conduzem a uma tera de longa durao (Fig.21). Essa escrita pode ser interpretada como um clich composicional para dar o sentido de finalizao da pea, ou, do ponto de vista metafrico, ser considerada

    como a confirmao da idia de morte delineada pela linha vocal no compasso anterior (c. 25), de que realmente houve um descanso da criana, um descanso final.

    Figura 21: O menino doente, c. 25-26.

    J em Dentro da noite, Mignone escolheu uma escrita musical evocativa da seresta, msica tocada pelos chores da primeira parte do sculo XX24, podendo-se perceber a clara inteno de reproduzir a escrita violonstica na parte do piano. Essa representao musical se deve tanto ao verso Sinto no meu violo vibrar, como a relao entre o clima noturno do poema e a prtica das antigas serenatas pelos chores. A textura contrapontstica do acompanhamento sugere uma representao das figuras citadas no poema, como a santa e a

    infanta mortas que no falam explicitamente, mas que, de alguma forma, esto presentes na cano.

    24 Com o surgimento da chamada msica dos chores, o violo, juntamente com o cavaquinho,

    formou uma base rtmico-harmnica que recebia os solistas: flauta, clarinete e outros; e os contrapontistas, inicialmente bombardino, trombone e um outro instrumento hoje em desuso, o oficleide. (...) O quarteto formado por dois violes, flauta e cavaquinho surgiu naturalmente da busca de um melhor equilbrio acstico entre o volume da flauta e um cavaquinho, instrumentos que atuam do mdio para o agudo, com as freqncias mdias e graves do violo (Cazes, 1998, p. 47).

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  • 3

    Na primeira estrofe (c. 20) a terminao ascendente da linha vocal no verso E espalha nvoas ao luar (c. 12) pode relacionar-se com a ao de espalhar tal nebulosidade para o alto, em direo lua (Fig. 22). J no c. 14, como se a lua estivesse devolvendo a nvoa em forma de magia e encanto atravs das quilteras de colcheia em movimento descendente escritas no piano (Fig.23).

    Figura 22: Dentro da noite, c. 11-12.

    Figura 23: Dentro da noite, c. 13-14.

    No final da Seo II, c. 27, encontra-se grande salto intervalar em comparao ao que havia sendo feito e, assim como em O menino doente, tambm com direcionamento descendente e com indicao de portamento (Fig. 24). Novamente, tal procedimento sugere o ambiente sombrio e fantasmagrico que at ento estava implcito e que na seo III se tornar totalmente explcito.

  • 3

    Figura 24: Dentro da noite, c. 27-28.

    A seo III j comea se referindo alma penada de uma infanta e, logo aps, h uma voz, de origem indeterminada, que suplica tristemente a soluar. Mignone representa

    esse estranho acontecimento com uma escrita igualmente estranha em relao que estava sendo construda anteriormente: a linha vocal e a melodia na regio de tenor do piano

    estabelecem uma dissonncia atravs do intervalo de 9, possivelmente representando o estranhamento causado pelo aparecimento de um fantasma (alma da infanta) que comea a vibrar no violo do narrador (Fig. 25).

    Figura 25: Dentro da noite, c. 29-31.

    Ao se referir ento a uma voz ouvida naquele ambiente noturno, a linha vocal

    desenha curtos motivos meldicos entrecortados por pausas (c. 36-39), com uma indicao de andamento animando muito, como que representando os soluos tristes e desesperados

    de algum, no explicitado pelo texto, a suplicar algo, tambm no mencionado (Fig. 26).

  • 3

    Figura 26: Dentro da noite, c. 36-39.

    A cano termina com uma reduo do andamento que se desenvolveu nos c. 37-38,

    e, como que perdendo as foras aps a splica triste e os soluos, o narrador vai voltando a si. Novamente, como em O menino doente, h uma repetio do verso inicial, dentro da noite, porm agora com uma modificao de sentido, muito mais misterioso que da primeira vez, pois toda uma carga emocional e dramtica da cano j modificou esse verso da poesia. Dentro da noite parece terminar mais sombria do que comeou, pois voz e piano se encontram rapidamente no mesmo registro (c. 42), como se o narrador e as personagens do poema, a santa e a infanta, por um pequeno instante quase se encontrassem ou se tornassem um s (Fig. 27).

    Figura 27: Dentro da noite, c. 40-42.

  • 3

    A utilizao potica de figuras sobrenaturais que se observa em Dentro da noite o tema para a construo do texto de D. Janana. Janana uma palavra de origem africana e tal designao fornece inspirao para Francisco Mignone compor uma cano com um forte elemento rtmico, com efeitos piansticos percussivos e linha vocal calcada nos aspecto declamatrio da fala.

    Na introduo pianstica a referncia percusso atravs da escrita sincopada e de notas repetidas da melodia, tambm de carter percussivo, j cria a ambientao para a escrita potica que se seguir (Fig. 28).

    Figura 28: D. Janana, c. 1-3.

    Na seo I, durante os compassos 6-8, ocorre uma mudana significativa de registro, visto que neste trecho se d a entrada do narrador. Pode-se notar uma gradao potica acerca da personagem principal da poesia, D. Janana. Na primeira estrofe ela descrita como uma sereia, o que lhe d uma natureza mtica. Tal personagem sobrenatural conhecida por atrair os navegantes com seu canto suave e encantado. Esse carter pode ser percebido musicalmente pela mudana de registro no piano dando mais leveza ao

    acompanhamento, agora sem acordes na regio grave, com notas cromticas de forte apelo colorstico (Fig. 29).

    Figura 29: D. Janana, c. 6-7

  • 4

    A seo II (c. 9-15) comea com o retorno do ostinato percussivo, na regio grave do piano e com melodia de notas repetidas, como um interldio para a prxima estrofe do poema. Nessa parte do poema Janana uma princesa. Novamente ocorre uma mudana de registro pianstico (Fig. 30), dessa vez numa regio mais prxima do ostinato, e a harmonia se torna mais tradicional (I IV II V I).

    Figura 30: D. Janana, c. 13-14.

    Como princesa a personagem tem muitos amores, e a enumerao de seus amores pela linha vocal acompanhada de uma linha meldica secundria no acompanhamento que confirma a afirmao (Fig. 31).

    Figura 31: D. Janana, c. 16-18.

    Na enumerao do ltimo dos amores de D. Janana, a linha vocal, que tinha citado os amores de D. Janana repetindo a mesma melodia ttica em colcheias, muda para uma

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    frase acfala e com semicolcheias, dando mais movimento e nfase ao nome Sarav 25. Uma mudana tambm se observa na linha meldica do piano, pois esta delineia uma melodia descendente como que repetindo o nome Sarav26 (Fig. 32):

    Figura 32: D. Janana, c. 19-20.

    Na seo IV (c. 22-32), o narrador agora descreve Janana como Rainha do mar, e pela primeira vez o ostinato da introduo, que era repetido entre as estrofes, executado junto com o narrador, dando mais fora e carter afirmativo frase musical de movimento descendente, como que concluindo a gradao Sereia Princesa Rainha (Fig. 33).

    Figura 33: D. Janana, c. 22-23.

    25 Expresso que significa Salve!, usada nos cultos afro-brasileiros.

    26 Na partitura editada pela G. Ricordi & Cia., Editores Milo, c. 19, esta palavra est com um

    pequeno erro de digitao: Salav. No poema original e no manuscrito de Francisco Mignone da mesma msica, com arranjo para 3 vozes e na tonalidade de R Maior, bem como na partitura digitalizada do Anexo II, a palavra est corretamente escrita: Sarav.

  • 4

    O narrador volta a descrever Janana como uma princesa e ao dizer Dai-me licena pr eu tambm brincar no vosso reinado tm-se, pelo menos, duas relaes com a msica: a primeira o ostinato que continua caracterizando, atravs da escrita com forte inteno percussiva, um carter festivo ao poema, se referindo tanto juventude da princesa quanto ao provvel folguedo que existe em seu reino; a segunda, que a linha meldica escrita em

    graus disjuntos estabelece um contraste ao que vinha se desenhando na linha vocal at ento, como uma tentativa de dar um aspecto de diverso, de uma dana com saltos e pulos

    (Fig. 34).

    Figura 34: D. Janana, c. 26-29.

    O poema original de Manuel Bandeira termina aqui, porm Francisco Mignone escolheu repetir o verso Sarav, Sarav mais trs vezes. Tal escolha pode dever-se

    busca, consciente ou inconsciente, de um equilbrio entre as partes. Observando apenas a

  • 4

    disposio do poema na cano, conforme a Tabela 2, a relao de proporo entre as estrofes exata:

    Poema - D. Janana N. de compasso Proporcionalidade

    Estrofe I 1-12 1/3

    Estrofe II 13-24 1/3 Estrofe III Estrofe IV 25-36 1/3

    Tabela 2: Disposio do poema na cano D Janana.

    Entretanto, relacionando a forma da cano ao poema, na parte A (c. 1-21), o compositor utilizou duas das quatro estrofes do poema, mais um verso da terceira estrofe. primeira vista pode parecer coerente, visto que duas a metade das quatro estrofes do poema. Porm, as duas primeiras estrofes possuem 13 versos enquanto as estrofes III e IV, juntas, possuem 8 versos. Observando que na parte A Mignone usa ainda mais um verso da estrofe III, a parte B possuiria apenas 7 versos, sendo que o compositor teria ento apenas os dois ltimos versos da terceira estrofe (D. Janana / Rainha do Mar) e a quarta estrofe. Em virtude disso, o mecanismo que o compositor empregou para construir uma cano mais equilibrada do ponto de vista formal, foi o de repetir, como j mencionado, o verso Sarav, Sarav trs vezes e ainda acrescentar uma Coda para o piano com cinco compassos. Desta forma, a relao de proporo entre as partes se equilibra um pouco mais,

    como pode ser observado na Tabela 3:

    Cano - D. Janana Proporcionalidade Parte A 21 compassos (2/3) Parte B + Coda 15 compassos. (1/3)

    Tabela 3: Relao de proporo entre as partes da cano D. Janana

    3.2. Aspectos poticos

  • 4

    3.2.1. Conceito de Persona

    O conceito de persona tem origem no domnio da Literatura e se preocupa com a questo de quem est falando numa obra de fico. Essa viso sugere que o poeta sempre

    assume um papel - a persona potica - mesmo quando est falando de si mesmo. Mesmo na prosa, no o autor que fala com o leitor diretamente, mas sua persona. Edward T. Cone

    (1974) transps o conceito de persona para a msica:

    [...] o que eu quero sugerir algo mais fundamental: que toda msica, como toda a literatura, dramtica; que toda composio uma declarao dependente do ato de personificao que o dever (obrigao) do intrprete ou intrpretes deixar claro (p. 5). Trad. Gisele Pires, 2005.

    Para essa transposio o autor comea pesquisando a msica vocal, pois v nesse

    gnero composies nas quais as palavras podem dar algumas pistas sobre as intenes do compositor (1974, p. 5), definindo cano de arte como uma cano na qual o poema (em qualquer lngua) musicado para uma linha vocal precisamente composta, unida com um completo desenvolvimento do acompanhamento instrumental (ibid).

    Cone ento identifica o cantor com a persona vocal, ou protagonista numa cano. O cantor tambm carrega o contedo potico, ou seja, a voz do poeta. Porm, faz-se necessrio pontuar que o poema apenas um dos elementos na cano. O compositor no usa o poema e sim uma leitura do poema, isto , uma performance especfica, pois

    mesmo uma leitura silenciosa um tipo de performance. (...) O que ouvimos numa cano, ento, no a persona do poeta, mas a do compositor (ibid, p. 19). O compositor lida ento com a completa persona musical, com os dois elementos, a letra e o instrumento; ele administra tanto as palavras como a msica. As palavras, por assim dizer, se tornaram parte da mensagem do compositor, declarao de sua prpria voz. De certo modo, ele comps seu prprio texto (ibid, p. 18), o que faz do compositor um re-criador e re-leitor da mensagem contida no texto do poeta. Para a compreenso do papel do piano nas Quatro Lricas de Francisco Mignone com texto de Manuel Bandeira, se faz necessrio o entendimento da participao do acompanhamento em uma cano. Segundo Cone (1974) o acompanhamento um desses

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    elementos constituintes da persona musical. O autor denomina de cano simples uma cano totalmente sem acompanhamento ou com um acompanhamento simples, ou seja, um acompanhamento que no tem individualidade (Ibid, p. 58-59). Nesse caso, a parte instrumental por sua caracterstica de total dependncia, no deveria ser chamada de persona e poderia ser tocada pelo prprio cantor sem prejuzo aos papis dramticos da cano, ou seja, personas do cantor e do pianista. Sendo tocada por um instrumentista, esse acompanhador, se sensvel, far seu melhor em minimizar sua prpria presena e

    criar o efeito de sozinho, simples intrprete (Ibid). Assim sendo, a performance de uma cano supostamente seria percebida como dotada de um s intrprete, ou melhor, cantor e pianista fundidos numa s persona.

    A ausncia de uma persona independente na parte pianstica pode ser mais bem percebida ao observar-se a cano O menino doente. O acompanhamento no assume uma nova persona na maior parte da cano. Porm, ele est longe de ser visto como um simples apoio harmnico, visto que o mesmo fornece toda a ambientao necessria para o desenrolar do poema dramtico e estabelece uma forte relao texto-msica. A parte do

    piano est, praticamente durante a cano inteira, subordinada linha do canto e ao poema. O acompanhamento est submisso s emoes e descries da persona do cantor.

    Uma vez que essas partes so primordialmente funcionais, ajudando o cantor a achar o tom e permitindo a ele (cantor) descansar aps cada estrofe, elas devem ser consideradas como natural extenso da parte vocal (Cone, 1974, p. 58-59) Trad. Gisele Pires, 2005.

    A transformao do acompanhamento de ambientador, subordinado totalmente

    poesia, em uma persona independente no se concretiza em O menino doente. Na seo I (c. 1-7), mesmo desenhando o motivo do ninar, ele est fazendo apenas a ambientao do poema, servindo de apoio harmnico e na maior parte das vezes dobra a nota cantada pela persona vocal (Fig. 35).

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    Figura 35: O menino doente, c. 1-3.

    O piano nos c. 4-7 continua dobrando algumas notas da linha vocal e dando suporte harmnico (Fig. 36):

    Figura 36: O menino doente, c. 4-6.

    Na seo II (c. 8-12), mesmo com a linha vocal assumindo contornos mais meldicos, em cantabile, o piano continua dando o suporte harmnico e dobrando algumas notas (Fig. 37):

    Figura 37: O menino doente, c. 8-9.

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    Na seo III (c. 13-15), o piano d a primeira nota para o cantor na mudana de harmonia, e segue apoiando a linha vocal (Fig. 38):

    Figura 38: O menino doente, c. 13-15.

    Quando ocorre a mudana de figurao rtmica, na seo IV (c. 16-21), o acompanhamento prov mais movimento cano e ao texto potico, porm ainda continua totalmente subordinado persona vocal, dobrando a maior parte das notas cantadas, e criando uma ambientao celestial, reproduzindo o som de cordas, ao introduzir a persona da santa (Fig. 39).

    Figura 39: O menino doente, c. 16-18.

    Quando na seo V (c. 22-27), a santa canta a mesma cantiga da me, na mesma voz dela, o piano volta ao acompanhamento do incio da pea, reforando a similaridade entre a ao da me e da santa (Fig. 40).

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    Figura 40: O menino doente, c. 22-23.

    No entanto, nos c. 26-27, observa-se que o acompanhamento se separa da linha vocal pela primeira vez na cano. Pode-se dizer que esse o nico trecho em que o

    acompanhamento realmente adiciona uma nova informao, diferente da do cantor, e assume uma persona distinta. Este trecho pode ser analisado como o mais importante do ponto de vista comunicativo do acompanhamento, pois o pianista assume uma nova e inusitada persona, a do compositor.

    Sabe-se que Francisco Mignone e Manuel Bandeira eram amigos prximos27, e certamente o msico conhecia a importncia da temtica da morte na obra do poeta ou tenha percebido esta inteno na poesia do amigo. Faz-se importante notar que Francisco Mignone poderia ter repetido o motivo do ninar utilizado no acompanhamento do c. 1 (mesmo