Artigo Sobre Historia

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A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança?* The constitution of history as science in the nineteenth century and their older models: end of an illusion or a future inheritance? Pascal Payen Professor Université de Toulouse II - Le Mirail [email protected] 5 allées Antonio Machado 31058 Toulouse Cedex 9 França Resumo O objetivo do artigo é o de analisar a relação entre a constituição da história como disciplina científica no século XIX e os modelos antigos da historiografia. Nesse sentido, serão abordados as diferentes concepções de história do século XVI ao XVIII, as mutações historiográficas do início do século XIX, e, por fim, a importância de Tucídides para a constituição da ciência histórica, sobretudo, na Alemanha do século XIX. Palavras-chave Historiografia antiga; Historiografia moderna; Ciência. Abstract The purpose of this article is to analyze the relationship between the constitution of history as a scientific discipline in the nineteenth century and the old models of historiography. In this sense, this article will discussed the different conceptions of history sixteenth to the eighteenth century, the historiography of mutations early nineteenth century, and finally, the importance of Thucydides to the constitution of historical science, particularly in nineteenth-century Germany. Keyword Ancient historiography; Modern historiography; Science. Enviado em: 05/07/2010 Autor convidado 103 história da historiografia • ouro preto • número 6 • março • 2011 • 103-122 * Tradução: Gustavo de Azambuja Feix; revisão: Emanuella Gonçalves Santos; revisão de tradução: Patrícia Chittoni Ramos Reuillard; revisão técnica: Temístocles Cezar.

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  • A constituio da histria como cincia no sculo XIX eseus modelos antigos: fim de uma iluso ou futuro de umaherana?*

    The constitution of history as science in the nineteenth century and theirolder models: end of an illusion or a future inheritance?Pascal PayenProfessorUniversit de Toulouse II - Le [email protected] alles Antonio Machado31058 Toulouse Cedex 9Frana

    ResumoO objetivo do artigo o de analisar a relao entre a constituio da histria como disciplinacientfica no sculo XIX e os modelos antigos da historiografia. Nesse sentido, sero abordadosas diferentes concepes de histria do sculo XVI ao XVIII, as mutaes historiogrficas doincio do sculo XIX, e, por fim, a importncia de Tucdides para a constituio da cincia histrica,sobretudo, na Alemanha do sculo XIX.

    Palavras-chaveHistoriografia antiga; Historiografia moderna; Cincia.

    AbstractThe purpose of this article is to analyze the relationship between the constitution of history asa scientific discipline in the nineteenth century and the old models of historiography. In thissense, this article will discussed the different conceptions of history sixteenth to the eighteenthcentury, the historiography of mutations early nineteenth century, and finally, the importance ofThucydides to the constitution of historical science, particularly in nineteenth-century Germany.

    KeywordAncient historiography; Modern historiography; Science.

    Enviado em: 05/07/2010Autor convidado

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    histria da historiografia ouro preto nmero 6 maro 2011 103-122

    * Traduo: Gustavo de Azambuja Feix; reviso: Emanuella Gonalves Santos; reviso de traduo:Patrcia Chittoni Ramos Reuillard; reviso tcnica: Temstocles Cezar.

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    IntroduoGabriel Monod (1844-1912), um dos fundadores da Revue historique,

    em 1876, e da histria positiva, aluno e amigo de Michelet um dos historiadoresfranceses que tomou, muito rapidamente, conscincia, aps a derrota de 1870,na guerra franco-prussiana, da superioridade das cincias histricas alems, domodo como elas se construram, se organizaram e se institucionalizaram apartir do comeo do sculo XIX , escreveu, em um artigo em forma de balano,publicado em 1889:

    O desenvolvimento dos estudos histricos um dos traos distintivos domovimento intelectual do sculo XIX. Tal desenvolvimento a manifestao,na rea das cincias morais, do esprito cientfico ao qual pertence doravantea direo da sociedade moderna (MONOD 1889, p. 587).

    A histria era definida como cincia e essa cincia nova se inscrevia, deacordo com a ideologia herdada das Luzes e da Revoluo Francesa, na linhade um progresso. Este, de acordo com Monod, estava situado em uma duplaperspectiva: por um lado, o progresso desinteressado, na medida em queilustrava o esprito cientfico prprio s cincias morais diramos, hoje,cincias humanas e sociais ; por outro, o progresso til, e mesmo utilitrio, namedida em que no podia ser separado de sua contribuio direo dasociedade moderna.

    J em 1756, na obra Ensaio sobre os costumes e o esprito das naes,dedicada filosofia e ao mtodo da histria, Voltaire insistia sobre a necessidadede se delimitar e escolher para se ter uma ideia geral das naes que habitame desolam a terra (VOLTAIRE 1878, p. 157). Certamente, tal concepogeneralista do trabalho e da pesquisa histrica foi, com frequncia,acompanhada de uma rejeio erudio, caracterstica do esprito francsdas Luzes. No entanto, ela evidenciava o problema das relaes entre histriae sociedade e entre histria e poltica, relaes necessrias e obrigatrias. Defato, a forma de investigao que os gregos chamaram de historia nasceu e sedesenvolveu, a partir do sculo VI a. C., no contexto das cidades-Estado (polis/poleis) da sia Menor. Herdoto determinou para si a tarefa aquela que Voltaireambicionaria, em seu programa para a histria, mas a adaptando a seu presente de percorrer as plis dos homens, todas as plis, grandes e pequenas,sem exceo (HERDOTO I, 5). Tucdides, em A Guerra do Peloponeso, analisoucomo o flagelo da guerra alastrou-se, em quase todas as plis gregas, e seestendeu at uma parte do mundo brbaro, por meio do conflito que seapoderou das plis dos peloponsios e dos atenienses (TUCDIDES I, 1,1).

    Nossa inteno no , portanto, apresentar um balano da formao dosestudos histricos, na Europa, durante o sculo da histria, o XIX, como propsMonod para a Frana. De maneira mais limitada e mais precisa, pretendemosanalisar qual foi o aporte dos historiadores antigos para a constituio da histriacientfica ao longo do sculo XIX. Faremos isso com base em algumas questes,que retomam o problema das relaes cruzadas entre histria, poltica, mtodoe cincia. Por que a Alemanha ocupada pelos exrcitos de Napoleo constituiu

  • um contexto favorvel elaborao de uma nova cincia histrica? Por que oshistoriadores antigos da Grcia, sobretudo, e de Roma serviram de modeloprivilegiado? Por que a histria que se tornou cientfica confundiu-se com acincia da Antiguidade, com a Altertumswissenschaft em plena formao?Tratou-se da persistncia dos modelos antigos, que jogavam sua ltima cartadaantes que a iluso tivesse fim? Ou a herana dos historiadores clssicos permitiaformular questes pertinentes na fbrica da histria? Tal herana tinha aindaum futuro?

    Por isso, necessrio definir, primeiramente, quais foram a importncia ea funo dos historiadores antigos na herana que a modernidade constituiuentre os sculos XVI e XVIII. Analisaremos, em um segundo momento, semprepelo mesmo.vis o dos modelos antigos , as mutaes que conduziram constituio da histria como cincia no incio do sculo XIX. Em uma terceiraetapa, fixar-nos-emos em um exemplo particular, o mais importante, o aportede Tucdides nesse processo, com sua ambiguidade principal: um Antigo comomodelo para os Modernos, no momento da grande mutao que transformouo gnero histrico em disciplina, com sua ambio de ser uma cincia.

    Os historiadores antigos e as concepes da histria: sculos XVI-XVIIIOs modelos antigos moldaram a herana que a poca moderna legou,

    entre os sculos XVI e XVIII, em relao s concepes da histria. Trs grandescorrentes, nas quais os historiadores antigos ocuparam uma funo essencial,formaram-se, coincidindo, parcialmente, de modo sincrnico: a histriahumanista, a histria erudita e a histria filosfica. No momento em que ahistria constituiu-se como cincia, nenhuma dessas heranas seria esquecida.Quais foram os seus principais traos? Que lugar nelas ocuparam as obras, osmtodos, os princpios dos historiadores antigos? Entre eles, quais foramreconhecidos como modelos?

    1. A histria humanistaA primeira a tomar forma, desde a redescoberta da literatura antiga, foi a

    histria humanista, essencialmente, de inspirao ciceroniana. As obrascompletas de Ccero foram editadas, a partir de 1465, na Itlia, pouco depoisdo aparecimento da tipografia (1436). Ccero foi o autor antigo mais lido, maisestudado e mais editado at a Revoluo Francesa. A histria humanista, queele inspirou, abrangia dois aspectos, estreitamente, ligados.

    1.1. A histria mestra da vidaA histria era, antes de mais nada, percebida como provedora de modelos

    de comportamentos. Ela deveria servir instruo do leitor: era magistra vitae,mestra da vida, de acordo com a clebre mxima do De Oratore.1 A histria

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    1 Em Ccero (De Oratore, II, 36) a histria definida como testis temporum, lux veritatis, vita memoriae,magistra vitae, muntia vetustatis.

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    antiga era ento considerada como uma reserva de exempla destinada instruo e edificao dos leitores. O modelo humanista conciliou-se com aperspectiva moral, crist, segundo a qual s existe verdade no bem. CharlesRollin, autor de Histoire ancienne, uma vasta obra publicada em treze volumes,entre 1731 e 1738, citou e glosou, simultaneamente, a clebre mxima deCcero, na introduo seo do livro 27, que ele reservou aos historiadores:

    Com razo, a histria foi chamada de testemunha dos tempos, de tochada verdade, de escola da virtude, de guardi dos acontecimentos e, sefosse permitido falar assim, de fiel mensageira da Antiguidade. (ROLIN1821-1825, livro 27, tomo IX, p. 208)

    Rollin citou ainda o De Oratore e o glosou, longamente, em uma passagemterica importante, anterior Histoire ancienne: o prefcio ao livro 5 do Traitdes tudes (tomo III), intitulado De lutilit de lhistoire (ROLIN 1726-1728, t.3, pp. 7-14; citao do De Oratore, II, 36, p. 7). Assim a histria, quando bem ensinada, torna-se uma escola de moral para todos os homens (Ibidem,p. 11), escreveu Rollin. Ora, para Rollin no havia nenhuma dvida de que oshistoriadores gregos e latinos serviam de autoridade para escrever a histriaprofana: Como tive o cuidado de cit-los precisamente em minha Histoireancienne e como me servem de garantia para os fatos que aqui afirmo. (ROLLINHistoire ancienne..., loc. cit., p. 209).

    Ccero e Plutarco eram os dois sustentculos da historia magistra vitae.Vidas paralelas, obra traduzida para o francs, a partir de 1559, por Amyot,surgiu sob o ttulo, modificado, Vies parallles des hommes illustres, Grecs etRomains.2 A perspectiva do paralelo, fundadora do projeto de Plutarco, apagou-se frente inteno do tradutor de propor uma srie de modelos, endereadospelos Antigos aos Modernos. Essa concepo da histria guiou a leitura doshistoriadores antigos, subentendida pelos princpios ciceronianos e pelo imensosucesso que conheceram as Vidas, de Plutarco, seja na traduo de Amyot,constantemente, reeditada, seja nas novas tradues, por toda a Europa, comoaquelas, na Frana, de Andr Dacier, em 1724, e do abade Ricard em 1798.

    Essa permanncia da concepo humanista da histria dominou a grandesntese de Rollin, como mostram os trs excertos abaixo, e se estendeu at ocomeo do sculo XIX.

    (1) O gosto pela verdadeira glria e pela verdadeira grandeza perde-se,gradualmente, todos os dias entre ns. Homens novos, embriagados desua sbita fortuna, e cujas despesas insanas no conseguem esgotar osbens imensos, nos acostumam a nada ver de grande e de estimvel senonas riquezas, e riquezas enormes; a olhar, no somente, a pobreza, masat uma honesta mediocridade como uma vergonha insuportvel; a fazercom que todo o mrito e toda a honra consistam na magnificncia dasconstrues, dos mveis, das vestimentas, das mesas. Que contraste ahistria antiga ope a esse mau gosto? [...] Por [seus] exemplos,acostumam-se os jovens a sentir o belo, a provar a virtude, a estimar e a

    2 Vidas paralelas dos homens ilustres, gregos e romanos. (N.T.)

  • admirar apenas o verdadeiro mrito, a julgar, judiciosamente, homens,no pelo que parecem, mas pelo que so, a no seguir os preconceitospopulares e, sobretudo, a no se deixar cegar por um intil esplendor deaes brilhantes que, frequentemente, no fundo, nada tm de slido e degrande(ROLLIN Trait des tudes, Discours prliminaire, 1726).

    (2) No apenas pelas aes blicas que a histria da Grcia nos fornecergrandes modelos. Nela encontraremos famosos legisladores, habilssimospolticos, magistrados nascidos para governar, homens que se distinguiramem todas as artes e cincias, filsofos que levaram suas investigaesto longe quanto se podia naqueles tempos longnquos e que nos deixarammximas de moral capazes de fazer enrubescer os cristos (ROLLIN Histoireancienne, livro 5, vol. 2, p. 278.).

    (3) A Grcia [...] escola do gnero humanoDe todos os pases conhecidos, na Antiguidade, no h nenhum to clebrequanto a Grcia, nem que fornea histria monumentos to preciosos efatos to esplendorosos. Por qualquer ngulo que for considerada, sejapela glria das armas, seja pela sabedoria das leis, seja pelo estudo dascincias e das artes, tudo nela foi levado a um alto grau de perfeio e possvel dizer, em relao a todos esses aspectos, que a Grcia tornou-se, de certo modo, a escola do gnero humano(ROLLIN Histoire ancienne, livro 5, p. 188).

    1.2. A histria como gnero retricoFoi ainda, atravs dos tratados de Ccero, que se imps, sempre dentro

    da tradio humanista, uma concepo da histria considerada como um gneroretrico, do duplo ponto de vista da narrao (narrare) e do estilo (ornare,exornare).3

    A histria dominava ento a busca da perfeio de uma arte oratria querepousava sobre um ideal de simplicidade. Tratava-se de um ideal culturalproveniente da Antiguidade e, para a histria, essencialmente, de Ccero (esseideal exprimia-se tambm com nuances que no vamos analisar aqui emDionsio de Halicarnasso e em Quintiliano). Cada um designava ento, comofaziam os prprios Antigos, um historiador que lhe parecia melhor correspondera esse ideal (Herdoto, na obra de Dionsio, por exemplo; numerosos foramos debates acerca do estilo de Tucdides no sculo I a. C.). Dessa mesmamaneira, os tericos definiram a escrita da histria desde a metade do sculoXV. Assim, Tucdides apareceu como um mestre de eloquncia, no prefcio traduo de sua obra, feito por Nicolas Perrot dAblancourt em 1662:

    Com efeito, se quisermos acreditar em Ccero, ele [Tucdides] superoutodos os outros em eloquncia, Thucydides, omnes discendi [na verdade,dicendi] artificio mea sententia facile vicit4 [...] uma eloquncia apropriadaao assunto que ele aborda, no qual, somente, fala de grandes polticos ede grandes capites, cujo carter retm perfeitamente. No deve, portanto,

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    3 Ccero, De Oratore, II, 55 : Herodotum illum, qui princeps genus hoc ornavit. Os historiadores soexornators rerum, narratores: ibid., II, 53-54. O historiador deve se dedicar a escrever a histria(historiam scribere, scripsit historiam) como os gregos, os maiores (ut Graeci scripserunt, summi:II, 51).4 Tucdides ultrapassa todos facilmente, na minha opinio, por sua eloquncia.

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    causar estranheza que Demstenes, para se familiarizar com ele, o tenhatranscrito oito vezes de seu prprio punho. Mas no da eloquncia queele tira seu principal ornamento. da histria, da qual deu um pressgiodesde sua infncia, chorando, publicamente, ao ouvir o relato das histriasde Herdoto. Assim, o modelo sobre o qual toda a Antiguidade formou-se e, particularmente, Tcito, que pode ser chamado de o Tucdides doslatinos, como este de o Tcito dos gregos [...] Ambos tiveram magnificnciae grandeza, com um discurso conciso e repleto de sentido, mesclado dealguma obscuridade por terem negligenciado os termos e os modos defalar ordinrios, com a finalidade de realar seu estilo, que , desse modo,viril e vigoroso, como seus pensamentos so fortes e slidos. isso queressalta mais seu tema, que estril e desagradvel, valorizado mais peloesprito dos historiadores do que por seu mrito[...] Tcito propagou suapoltica em sua histria, mas Tucdides a enclausurou em seus discursos,nos quais as sentenas so muito abundantes: Ut verborum propenumerum, Sentiarum numero consequator.5

    Alguns anos mais tarde, em 1677, o padre Rapin tomou, novamente,Tucdides como modelo nas suas Instructions pour lhistoire:

    Para conhecer a fundo essa simplicidade to necessria ao grande estilo, preciso notar que existem trs tipos delas: uma simplicidade nas palavras,como a de Csar; uma simplicidade nos sentimentos, como a de Salstio euma simplicidade na meta e na organizao, como a de Tucdides.

    Mesmo em um terico poltico como Mably (1709-1785), a histriaretrica conserva seu atrativo. Em seu tratado de 1782, De la manire dcrirelhistoire, ele fez de Tucdides, simultaneamente, um historiador poltico e umhistoriador criador de modelos de comportamento e de escrita:

    Jamais [...] haver histria, ao mesmo tempo, instrutiva e agradvel semdiscursos. Tente suprimi-los em Tucdides e ter-se- apenas uma histriasem alma. Essa obra, que todos os prncipes e os seus ministros deveriamler todos os anos, ou, melhor, saber de cor, perderia seu interesse, porqueno se conheceria nem a genialidade, nem as paixes, nem as aventurasdos gregos, privados de sua antiga virtude. (MABLY 1782)

    Essa ideia de que o contedo da histria passava, em grande parte, pelaprpria escrita, constituiu um dos grandes ganhos da Antiguidade e foi,amplamente, retomado a partir do Renascimento e durante a poca moderna.

    2. A histria eruditaA segunda grande concepo da histria a histria erudita , que se

    desenvolveu a partir do sculo XV, tambm era inseparvel da redescobertados Antigos. Ler suas obras implicava um conhecimento erudito da lngua e dostextos. Desde a primeira metade do sculo XV, Leonardo Bruni e Lorenzo Vallaestavam entre os primeiros a insistir sobre esse aspecto e a testar os seuslimites (Valla traduziu Herdoto e Tucdides para o latim). Sem os instrumentos

    5 to abundantes que ele consegue ter quase tantas palavras quantas ideias. N. Perrot dAblancourt,Prface de sua traduo: LHistoire de Thucydide, de la guerre du Ploponnse, continue parXnophon, Paris, A. Courb, 1662.

  • de trabalho, os dicionrios, as gramticas, como avanar? Esses aspectos dahistria da erudio so bem conhecidos, mas lembremos que Amyot traduziuo conjunto das Vidas paralelas, de Plutarco aps diversas tentativas infrutferaspor parte de outros helenistas , sem dispor do Thesaurus linguae graecae,publicado por Henri Estienne em 1572 (seu pai, o grande editor Robert Estienne,publicara o Thesaurus linguae latinae em 1531).

    Aps os pioneiros do Quattrocento e a gerao de Erasmo (1467-1536)e de Guillaume Bud (1468-1540), que trabalhou, ao lado do rei Francisco I,em favor da fundao do Collge des lecteurs royaux6 (1530), a concepo detrabalhos histricos fundados sobre o domnio da erudio tomou corpo como que se convencionou chamar de humanismo erudito no fim do sculo XVI eno comeo do sculo XVII. Essa corrente foi dominada pelos trabalhos deJoseph-Juste Scaliger (1540-1609), Isaac Casaubon (1559-1614), Juste Lipse(1547-1606), Claude Saumaise (1588-1653) que fizeram, dos anos 1560aos anos 1620, a glria da universidade de Paris.

    Os trabalhos de erudio sem que tratassem, exatamente, da histria tiveram um segundo perodo de grande desenvolvimento, no fim do sculoXVII e no incio do sculo XVIII, com os antiqurios. Estes, em sua maioria,eram beneditinos de Saint Maur, que coletaram, sistematicamente, tudo o quediz respeito aos usos, aos costumes, s leis, s artes e a mil outrosconhecimentos curiosos (ROLLIN Trait des tudes, IV, p. 192), como osquinze volumes de LAntiquit explique et reprsente en figures, de Bernardde Montfaucon, publicados em 1719 e, novamente, em 1724, durante osanos nos quais Rollin trabalhava no seu Trait des tudes.7 Os antiqurios,elaborando mtodos de anlise crtica das fontes o De re diplomatica, deMabillon, de 1681, a Paleografia graeca, de Montfaucon, foi publicada em1708 , produziram, de acordo com a frase de Momigliano, uma obra quesalvou a histria do ceticismo. Neste texto, remetemos-nos apenas aostrabalhos de Blandine Kriegel e de Arnaldo Momigliano sobre os chamadoshistoriadores antiqurios. (MOMIGLIANO 1955, p. 285; KRIEGEL 1988, pp.23-159; pp. 135-217).

    preciso, porm, observar que a tradio da histria erudita no sedesenvolveu de maneira uniforme na Europa. Ela foi estimada, nos pases doNorte, de tradio protestante, como Alemanha, Pases Baixos e Inglaterra.Contudo, a Frana manteve-se distante dessa vasta corrente por duas razes.Por um lado, os protestantes, ameaados pelo poder real no sculo XVII,tomaram o caminho do exlio, um exlio obrigatrio a partir da revogao dodito de Nantes em 1685. Estima-se, atualmente, que cerca de 200 mil adeptos

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    6 O Collge des lecteurs royaux foi criado inicialmente com o intuito de oferecer disciplinas que noeram dadas na Universidade de Paris, como Grego e Hebreu. Em pouco tempo, porm, expandiu seudomnio para o ensino de Latim, Direito, Matemtica, Medicina. Atualmente, chamado de Collge deFrance. (N.T.)7 Cf. A. Momigliano, 1955, pp. 67-106 ; traduo francesa, 1983, pp. 244-293, sobretudo p. 244-276 ;B. Kriegel, 1988, p. 98-100.

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    da Reforma abandonaram o reino, criando um dficit jamais recuperado emcertos setores de atividade, como a erudio histrica. Por outro, os homensdas Luzes assimilaram a erudio apenas como o trabalho da memria e nocomo o exerccio da razo e do esprito crtico. Por isso, erudio e histria sforam, muito raramente, associadas na Frana. Um dos nicos exemplos oestudo de Louis de Beaufort, Dissertation sur lincertitude des cinq premierssicles de lhistoire romaine (Utrecht, 1738).

    A histria deveria ser reconhecida como um gnero literrio que pertence rea das belas-letras ou como uma cincia que teria seu lugar na rvore dossaberes? Os historiadores humanistas jamais decidiriam. Como resultado disso,a histria seria, ao menos na tradio francesa, por muito tempo, confundidacom uma arte retrica. Contudo, disso tambm resultaria a permanncia daquesto da escrita no horizonte da reflexo dos historiadores, mesmo quandoa histria tivesse a pretenso de se tornar uma disciplina cientfica nas primeirasdcadas do sculo XIX.

    3. A histria filosficaOs trabalhos dos antiqurios, os mestres da histria erudita,

    encontraram como obstculo, a partir da segunda metade do sculo XVII, osprimrdios do esprito filosfico. De acordo com essa corrente de pensamento,se a histria merecia ser acompanhada, era para encontrar nos fatos umaordem racional e um progresso na sucesso cronolgica dos tempos. Noseria o seu nico fim acumular dados, o que pertencia, unicamente, memria.Por isso, DAlembert, um dos arquitetos do grande projeto da Enciclopdia,classificou, no Discours prliminaire, a erudio no ltimo lugar dos saberes,acusando-a de fazer intervir apenas a memria (GRELL 1993, pp. 27-29, 125-142). Do mesmo modo, Voltaire, no artigo Histoire, renunciou aos perodosque exigiam a consulta de arquivos como sendo o labirinto tenebroso da IdadeMdia e pediu que, em relao Antiguidade, nos contentssemos com orelato dos historiadores (VOLTAIRE 1765, pp. 221, 223). Tratava-se de conciliara crtica histrica, a dvida metdica e a escolha dos documentos. Por essarazo, Voltaire s mencionou Herdoto e Tucdides entre os primeiroshistoriadores gregos que seriam confiveis. No entanto, ele conservou deHerdoto apenas o que comea com as guerras Mdicas, de modo a no levarem conta os dados que sua obra fornece sobre o Egito e a Babilnia conhecidospelos judeus no perodo de exlio:

    medida em que Herdoto, em sua histria, aproxima-se de sua poca, mais bem instrudo e mais verdadeiro. preciso reconhecer que sua histrias comea, para ns, nos conflitos entre os persas e os gregos. Encontram-se, antes desses grandes acontecimentos, apenas relatos vagos,entremeados de contos pueris (Ibidem, p. 222).

    O breve julgamento sobre Tucdides rebaixa tanto quanto seria possvel aimportncia do aporte dos gregos: pequeneza do territrio abrangido,dominao absoluta da guerra civil, portanto, de um flagelo:

  • Tucdides, sucessor de Herdoto, limita-se a nos detalhar a histria daguerra do Peloponeso, pas que no maior que uma provncia da Franaou da Alemanha, mas que gerou homens dignos de uma reputao imortalem todos os domnios. E como se a guerra civil, o mais horrvel dos flagelos,acrescentasse um novo ardor e novas foras ao esprito humano, foinesse tempo que todas as artes floresciam na Grcia. Eis como elescomearam a se aperfeioar, em seguida, em Roma, em outras guerrascivis do tempo de Csar, e como eles renasceram ainda em nossos sculosXV e XVI da era vulgar, entre as revoltas da Itlia (Ibidem, pp. 222-223).

    Sem antecipar nem jogar com o anacronismo o artigo Histoire datade 1765 , necessrio repetir que a Frana encontrava-se, particularmente,tocada pelo declnio dos modelos humanistas e, cada vez mais, em dficit deerudio em relao a seus vizinhos ingleses, holandeses e, em particular,alemes.

    As trs modalidades da prtica da histria que acabam de ser lembradasno se cruzam, quase nunca, em estado puro. No prefcio de sua Histoireancienne, que se apoia na autoridade conferida aos historiadores da AntiguidadeClssica, Rollin ofereceu uma surpreendente simbiose e uma sntese dapermanncia da histria humanista, dos aportes metdicos da histria eruditaou, ao contrrio, de sua rejeio, e das ambies da histria filosfica:

    O estudo da histria profana no mereceria que se lhe devotasse umaateno cuidadosa e um tempo considervel, caso se limitasse ao estrilconhecimento dos fatos da Antiguidade e sombria busca das datas edos anos em que cada acontecimento ocorreu. Importa-nos pouco saberque existiu no mundo um Alexandre, um Csar, um Aristides, um Cato eque eles viveram neste ou naquele tempo; que o imprio dos assrios foisucedido pelo dos babilnios e, este ltimo, pelo imprio dos medos edos persas, que foram, por sua vez, subjugados pelos macednicos, eestes pelos romanos. de grande importncia, porm, conhecer como esses impriosestabeleceram-se, por quais etapas e por quais meios eles chegaram aesse ponto de grandeza que admiramos, o que fez sua slida glria e suaverdadeira ventura e quais foram as causas de sua decadncia e de suaqueda.No menos importante estudar, com cuidado, os costumes dos povos,seu gnio, suas leis, seus usos, seus hbitos e, sobretudo, observar bema personalidade, os talentos, as virtudes, os prprios vcios daqueles queos governaram e que, por suas boas ou ms qualidades, contriburam paraelevar ou afundar Estados que os tiveram por condutores e soberanos.Eis os grandes objetos que nos apresenta a histria antiga, fazendo desfilar,aos nossos olhos, todos os reinos e todos os imprios do universo e, aomesmo tempo, todos os grandes homens que neles se distinguiram dealguma maneira e instruindo-nos, menos por lies do que por exemplos,sobre tudo o que abrange a arte de reinar, a cincia da guerra, os princpiosdo governo, as regras da poltica e as mximas da sociedade civil e daconduta da vida para todas as idades e todas as condies.Com ela, aprende-se tambm, e no deve ser algo indiferente para quemquer que tenha gosto e disposio para os belos conhecimentos, como ascincias e as artes foram inventadas, cultivadas, aperfeioadas; com ela,reconhece-se e segue-se de perto, como com o olhar sua origem e seuprogresso. Vemos com admirao que, quanto mais nos aproximamos dos

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    lugares onde os filhos de No viveram, mais se encontram as cincias eas artes em sua perfeio, ao invs de parecerem esquecidas ounegligenciadas, na medida em que seus povos tiveram um maiordistanciamento delas de modo que, quando se quis restabelec-las, foinecessrio remontar origem de onde tinham partido. (p. 23-24)

    [...]

    Portanto, preciso olhar como um princpio incontestvel. Este deve servirde base e de fundamento para o estudo da histria profana, que foi aProvidncia divina quem, imemoravelmente, regulou e ordenou oestabelecimento, a durao, a destruio dos reinos e dos imprios, sejaem relao ao plano geral de todo o universo, conhecido apenas por Deus,que pe uma ordem e uma harmonia maravilhosa em todas as partes que ocompe, seja, particularmente, em relao ao povo de Israel e, aindamais, em relao a Messias e ao estabelecimento da Igreja, que suagrande obra e meta permanente de todas suas outras creaes, semprepresentes a sua vista .

    [...]

    Como escrevo, principalmente, para os jovens e para as pessoas que nopensam em fazer um estudo profundo da histria antiga, no carregareiessa obra de uma erudio que, naturalmente, poderia a constar, masque no convm ao objetivo que me proponho. Minha inteno , dandouma histria ordenada da Antiguidade, tomar dos autores gregos e latinoso que me parecer mais interessante para os fatos e mais instrutivo paraas reflexes (ROLLIN Histoire ancienne, vol. 1, p. 23-48, p. 41).

    Essa herana concede um lugar, ao mesmo tempo, importante eambivalente aos historiadores antigos. Importante em razo do seu pesodocumental; ambivalente, pois so, muito frequentemente ou quase sempre,suas qualidades retricas e estilsticas que os impem nos programas de ensino.As mutaes que afetaram o estatuto da histria, no final do sculo XVIII e noincio do sculo XIX, iriam modificar, profundamente, a relao com essas obrasno campo das disciplinas histricas. Mais estranhamente ainda, os historiadoresantigos alguns, pelo menos, ocuparam um importante papel na constituioda histria como cincia.

    As mutaes do comeo do sculo XIX: a constituio da histria comocincia e o estatuto dos historiadores antigos

    Pelo vis que propusemos desde o incio deste artigo o dos modelosantigos , quais foram as mutaes que levaram constituio da histriacomo cincia no comeo do sculo XIX?

    1. A reestruturao da universidade prussianaO primeiro elemento que deve ser levado em conta o contexto que

    produziu a reestruturao da universidade prussiana. Em 14 de outubro de1806, a derrota dos exrcitos prussianos, em Iena, permitiu a Napoleo entrarem Berlim. A prestigiosa universidade perdeu toda sua aura nesse momento.

  • A ocupao francesa provocou, igualmente, a perda da universidade de Halle,na Vestflia, fundada em 1694 pelo eleitor8 Frederico III de Brandeburgo. Ora,na luta contra o invasor e na obra de recuperao, imediatamente, empreendidassob o nome de guerras de liberao (Freiheitskriege), a reconstruo dauniversidade ocupou um lugar importantssimo. Essa escolha, que pode causaradmirao, haja vista a cultura militar das elites prussianas, proveio do fato deque os fundadores da universidade eram altos funcionrios e muito cultos,produtos do Estado e da Aufklrung, estabelecidos na Prssia. Vanguardainstruda e erudita, atenta ao pensamento dos filsofos, esses altosfuncionrios, na falta de uma forte burguesia urbana, eram o nico grupo socialcapaz de ocupar um lugar de posio dirigente frente nobreza. Esse fenmenosocial e poltico foi comum a toda a Alemanha, mas, particularmente, Prssia.Essa regio, desprovida de fortes tradies urbanas, permaneceu, de fato,dominada pela aristocracia rural dos junkers.

    Nessa obra, extremamente, favorecida pelo rei Frederico Guilherme III,Wilhelm von Humboldt (1767-1835) desempenhou um papel muito relevante.Em torno dele, os especialistas da Antiguidade eram os mais ativos. FriedrichAugust Wolf (1754-1824), o autor da obra Prolegomena ad Homerum, publicadaem 1795, exortou, publicamente, os alemes, a partir de 1807, a defenderemos estudos clssicos como um palladium da ptria contra mos mpias leia-se: contra a dominao napolenica. Para marcar essa funo e organizaonovas, ele criou o termo altertumswissenschaft (originalmente, grafadoalterthumswissenschaft), que substituiu a expresso filologia clssica(classische philologie). Barthold Georg Niebuhr (1776-1831), autor de umaHistoire romaine, mas que foi, primeiramente, um alto funcionrio do governoprussiano, foi a outra figura eminente entre os classicistas que se engajaramna resistncia. Em uma carta de 1808 ao ministro Altenstein, ele afirmou que anova organizao dos estudos filolgicos era uma prioridade para o governoprussiano.9 A partir de 1810, foi fundada, por iniciativa de Humboldt, a novauniversidade de Berlim (seguiram-se a de Breslvia e a de Bonn) e reaberta aAcademia. Berlim tornou-se ento, em alguns anos, o centro mais importantedos estudos filolgicos na Europa. Por filologia, entendiam-se todas asdisciplinas dedicadas Antiguidade Clssica.

    O esprito neo-humanista que animava os criadores da nova universidadealem repousava sobre um universalismo da razo que se opunha aos antigoscorporativismos, particularmente, o nobilirio, e ao novo utilitarismonapolenico. A bildung formao no sentido da educao e da cultura quese forjou, no fim do sculo XVIII e no comeo do sculo XIX, e, sobretudo,aps Iena, definia-se, em reao cultura francesa, como uma capacidadepara ser e, no somente, para poder e para ter. As universidades criadas no

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    8 Ttulo de prncipe ou bispo que participava da eleio do imperador. (N.T.)9 Cf. B. Bravo, 1988, p. 68, carta de 4 de janeiro de 1808, sobre a importncia conjunta de Wolf eNiebuhr como conciliadores entre a velha tradio da erudio e o racionalismo das Luzes atradopara o romantismo e a filosofia especulativa, cf. p. 71-72.

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    eram mais as dos lnder, mas as da Alemanha inteira. As cincias ali ensinadastinham, igualmente, valor universal. Um Estado da razo liberto de todoparticularismo, como se quer a Prssia atravs de sua universidade (NIPPERDEY1992, p. 204 e ss.). Nesse contexto, a erudio antiquria no foi abandonada,mas sim integrada, absorvida em um projeto intelectual e poltico inspirado naAufklrung e que respondia urgncia do presente.

    Nos anos que seguiram, imediatamente, fundao da nova universidadede Berlim, o estudo da Antiguidade passou por trs mudanas importantes. Emcontato com os recursos cruzados da filologia e da histria, renovou,profundamente, seus mtodos; institucionalizou-se e adquiriu um grandeprestgio na sociedade alem; enfim, foi concebido de incio com a finalidade decolaborar para a recuperao da Prssia, aps a dissoluo do Sacro ImprioRomano-Germnico, em 1806, e, por essa razo, foi considerado uminstrumento que deveria contribuir para se pensar os problemas polticos dopresente.

    Antes de analisar as consequncias dessa nova paisagem intelectual sobrea obra dos historiadores antigos, necessrio indicar, luz das trs profundasmodificaes que acabam de ser mencionadas, as principais transformaesque abrangeram a organizao e a constituio dessa nova cincia daAntiguidade.

    2. A implantao da AltertumswissenschaftAps as teorias de Wolf, a ideia essencial era de que era preciso reunir as

    diferentes disciplinas relativas Antiguidade em um conjunto orgnico, paraintroduzir a Antiguidade grega e romana dentro de uma cincia filosfico-histricabem-ordenada. A essa enciclopdia filolgica Wolf deu o nome dealtertumswissenschaft. Eis um termo novo que figurou no ttulo do manifestode 1807, Darstellung der Alterthums-Wissenschaft, para a inaugurao doMuseum der Alterthums-Wissenschaft. A histria da Antiguidade fazia parte, noprograma de Wolf, das disciplinas filolgicas da altertumswissenschaft. No de espantar, portanto, que os historiadores antigos fossem, particularmente,estudados e que, nesse momento, nascessem as primeiras histrias dahistoriografia, a de Georg Friedrich Creuzer (1771-1858) para a tradio gregaa partir de 1803 (CREUZER 1803, 1845).

    O desenvolvimento da cincia da Antiguidade dependeu, em seguida, daelaborao sistemtica de grandes corpora documentais. Em 1815, Niebuhrlanou o projeto de um corpus inscriptionum (gregas e latinas). Em um primeiromomento, s foi publicada a parte grega, sob o ttulo de Corpus inscriptionumgraecarum o primeiro volume foi lanado em 1828, por iniciativa de AugustBckh (1785-1867), amigo de Wolf (BRAVO 1988, pp. 78-96) , que se tornouInscriptiones graecae em 1903. No prefcio, datado de 10 de outubro de 1827,Bckh apresentou a filologia como antiquitatis cognitio historica et philosopha(BRAVO, 1988, p. 89), ou seja, como o conhecimento histrico e filosfico daAntiguidade. Theodor Mommsen (1817-1903), em 1847, retomou o projeto

  • para as inscries latinas. O primeiro volume do CIL, financiado pela Academiade Berlim, foi publicado em 1863. Em 1837, houve a primeira edio do que foio monumento da cincia alem da Antiguidade: a Realencyclopdie derclassischen altertumswissenschaft nummorum, sob direo de Pauly, apsrevista e ampliada, em 1894, sob a direo de Wissowa. Seria necessriomencionar tambm o Corpus nummorum de Mommsen, em 1860...

    Foi atravs desses instrumentos e das edies crticas das fontes literrias,de uma erudio, ento sem igual, que se desenvolveu um conhecimento dosmundos antigos associado a um modelo do conhecimento histrico: ohistorismus ou historicismo. Ora, o historicismo, mesmo afirmando o carter,fundamentalmente, histrico da condio e das produes humanas, propunha,em relao ao mtodo, a necessidade de uma anlise crtica das fontes primriastransmitidas pelos Estados, que eram apreendidos como individualidades,personagens que a anlise deveria privilegiar. Um historiador antigo era, porconsequncia, menos um literato mais ou menos genial ou hbil do que umhomem que escrevia para e em relao sua ptria, quer se tratasse de suaplis, em sentido restrito, ou do mundo grego, da Repblica ou do ImprioRomano, em sentido amplo. As obras de Herdoto e de Tucdides, de Polbio ede Tito Lvio e de Tcito encontravam-se, assim, em sintonia com o contextopoltico do presente e com a questo que obcecava todos os historiadoresmodernos: a constituio e o fortalecimento dos Estados-naes na Europa.Esse trao foi percebido como uma caracterstica da cincia histrica do sculoXIX por Gabriel Monod. Existe uma poltica da histria e a histria antes detudo poltica:

    [...] A histria do passado acaba por adquirir uma influncia sobre aprpria poltica, pois preside a esse movimento das nacionalidades quedomina a poltica contempornea. pela histria que os povos tomamconscincia de sua personalidade. O movimento nacional alemo, omovimento nacional italiano, o movimento nacional tcheco, o movimentonacional hngaro, o movimento nacional eslavo, embora no tenham sidocriados pela erudio histrica, nela encontraram, ao menos, um poderosoauxiliar, um ncleo de excitao, um ativo instrumento de propaganda[...] (MONOD 1889, t. XVIII, p. 587)

    Os historiadores antigos contribuam ento para levantar questes. Poder-se-ia criar uma unidade alem em torno da Prssia ou em torno da ustria?Dever-se-ia estar atento a reivindicaes particularistas das regies, os lnder,especialmente, no momento das revolues de 1848, a Primavera dos Povos?Nesse momento, numerosos foram os historiadores que, como Droysen,participaram do Parlamento de Frankfurt, com o intuito de elaborar uma novaconstituio, e pensaram o presente atravs dos problemas encontrados pelosAntigos, antes de regressarem ao passado, para propor uma interpretaorenovada dele. Tal era a abordagem de Droysen, quando ele apresentou umainterpretao nova da formao dos reinos helensticos, em seu Alexandre leGrand, publicado em 1833, seguido, em 1836 e em 1843, dos dois primeiros

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    volumes da Histoire de lHellnisme. Contra os particularismos das cidades-Estado gregas, ele se mostrava favorvel unidade poltica realizada dentrodos grandes reinos. Contra a estreiteza da percepo que atribuiu a Demstenes,privilegiou a viso unitria de Alexandre e de seus sucessores, Ptolomeu, noEgito, e Seleuco e Antoco na sia.

    A refundao da universidade de Berlim e a implementao daaltertumswissenschaft so dois contextos que modificariam, profundamente,o estatuto e o regime de autoridade que os historiadores antigos detinham, ataquele momento, na elaborao do saber histrico. Quais foram as principaismudanas produzidas?

    3. As mudanas no estatuto e no regime de autoridade dos historiadores antigosA maior consequncia dos dois grandes contextos assinalados acima foi

    os historiadores antigos deixarem o domnio das belas-letras, exceto, em parte,na tradio francesa. Eles foram considerados como fontes que tinham o mesmostatus do que os outros documentos. O seu valor prprio vinha das informaesque forneciam para analisar a natureza e o desenvolvimento dos Estados. Essaapreciao estava ligada dimenso, ao mesmo tempo nacional e universal,reconhecida histria escrita pelos Modernos, mas tambm quela que, porum jogo de espelhos e de trocas, eles liam nos Antigos. Tucdides dava a entender,no livro III, o flagelo da diviso e da discrdia civil (stasis) em Corcira. Descreveu,no livro II, os sintomas da guerra (polemos) na Atenas doente com apestilncia (TUCDIDES II, pp. 47-58), mas, em virtude do carter humano(Idem, I, 22, p. 4) de todos os acontecimentos ocorridos, ele falava paratodas as plis e para todos os homens ou para quase todos (Idem, I, 1, 2).

    A confiana no historiador antigo, no entanto, no era mais total. Aocontrrio do que fez Rollin, citar exatamente um historiador antigo noautorizaria fazer dele uma garantia para os fatos que [o historiador moderno]afirma (ROLLIN Histoire ancienne, Livro 27, t. 9, p. 209). Ainda que Tucdidespretendesse dedicar-se, inteiramente, busca da verdade (TUCDIDES I, 20,3), ainda que toda uma tradio fizesse dele o iniciador e o mestre da histriaverdadeira de Dionsio de Halicarnasso (Sobre Tucdides, VIII, 1). a Lucianode Samsata (Como se deve escrever a Histria, 42), de David Hume a Gomme, o testemunho do historiador, que pde presenciar os acontecimentos dosdois lados (TUCDIDES V, 26, 5) para melhor se dar conta, de certo modo,das coisas (Idem, ibidem), tambm deveria ser submetido anlise crtica. Ahistria verdadeira, a histria de acordo com a verdade de Tucdides, no eratoda a histria.

    Outra mutao foi produzida em um plano diferente, que abrangeu oaporte dos historiadores antigos na construo da cincia histrica. A implantaode uma cincia da Antiguidade que ilustrasse, ou melhor, que equivalesse,perfeitamente, ao que deveria ser uma cincia da histria era o principal desafiono qual se encontrava engajada a histria da Antiguidade e, mais particularmente,as obras que chegaram at ns dos historiadores antigos. Nesse captulo da

  • histria da historiografia, que foi escrito na universidade prussiana, mas, emsua dimenso europeia, sob o olhar admirativo das outras universidades, afrancesa, em particular, Tucdides ocupou um lugar singular: nem aquele quedava lies, nem aquele que fazia discurso do mtodo, mas, de modosimultneo, uma fonte e uma referncia que eram reverenciadas.

    O aporte de Tucdides para a constituio da cincia histrica na Alemanhado sculo XIX

    Qual foi o aporte exato reconhecido a Tucdides no momento da grandemutao que transformou o gnero histrico em disciplina cientfica?Lembremos, muito rapidamente, em primeiro lugar, em que consistia a tradioa seu respeito, que vinha da Antiguidade.

    1. Tucdides: a herana dos Antigos e sua sobrevivncia nos ModernosDesde o sculo IV a. C., Tucdides era admirado e imitado pelos seus

    sucessores Xenofonte, Cratippos, Teopompo, Philistos 10 , que se atriburama tarefa de levar a cabo o relato que a morte o impediu de terminar. Ele eralido, reproduzido e memorizado, dizia-se, por Demstenes. Sobre a pocahelenstica, um precioso artigo de Simon Hornblower (HORNBLOWER 1995,pp. 47-68) mostrou que Tucdides no deixou de ser lido e discutido. Ccero,no De Oratore, o mais completo de seus tratados de retrica, escrito em 55 a.C., fez de Tucdides um mestre de eloquncia e de estilo conciso, tenso, difcil:

    [56] Depois dele, para mim, Tucdides ultrapassou, facilmente, todos porsua cincia da linguagem (dicendi artificio). Ele to rico em numerososdomnios que consegue ter quase tantas palavras quantas ideias. Alm domais, sua expresso to harmoniosa e tensa que no se sabe se osfatos do o brilho ao estilo ou a expresso ao pensamento. No entanto,ainda que se tenha dedicado poltica, ele tambm no fez parte, segundoa tradio que nos chegou, daqueles que passaram seu tempo a contestare, de seus prprios livros, diz-se que ele s os escreveu aps ter ficadodistante das circunstncias e de ter sido expulso e exilado, o queaconteceu, frequentemente, em Atenas, a todos os grandes homens.(CCERO De Oratore, II, 56)

    Dionsio de Halicarnasso, alguns anos depois, ainda fez de Tucdides oprimeiro (prton) dos historiadores, mas no por seu estilo, cujo vocabulrio figurado, incomum, ultrapassado, estranho sua poca e cuja composio austera, densa, dura ao ouvido (DIONSIO DE HALICARNASSO Tucdides,XXIV, 1-2). Se ele triunfou sobre todos os seus predecessores, foi por ter,perfeitamente, delimitado um assunto, afastando-se da monografia limitada(Helnico de Lesbos) e da crnica com intenes muito abrangentes(Herdoto), e, mais ainda, talvez, porque Tucdides se preocupouessencialmente com a verdade (altheias), da qual,, acrescenta Dionsio, nsdesejamos que a histria seja sacerdotisa (hiereian einai tn historian)

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    10 Nenhum desses autores pronuncia, no entanto, o nome de Tucdides entre os textos conservados.

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    (Ibidem, VIII, 1). Esta se apoia em dois fundamentos: o afastamento domaravilhoso, da fbula (muthdes) e a imparcialidade (que permite se protegerde todo dio e de toda complacncia (Ibidem, VI, 5 e VIII, 1).

    Luciano perseguiu essa tendncia e condensou a tradio, no nico tratadosobre a teoria da histria que nos chegou da Antiguidade, Como se deve escrevera Histria, que possvel datar dos anos 165 a. C.. Tucdides foi um mestrehistoriador, em primeiro lugar, porque transcreveu a verdade dosacontecimentos com imparcialidade e o fez, afastando-se da fbula. Quanto aseu estilo, Luciano hesita: ele no deveria ser muito duro, muito complicadocomo o de Tucdides. Disso resultou, como em Dionsio, uma hesitao naanlise ou, antes, um dilema que se instaurou. Era possvel aceitar a epistemologiade Tucdides, subordinar tudo exigncia da verdade, obrigao de relatar averdade do que aconteceu, sem admirar e, muito menos, gostar do seu estilo.Foi sobre esse distanciamento que repousou de acordo com a hiptese aquidefendida uma parte da escolha dos Modernos em seu favor. A exignciamoderna da verdade podia e devia se despojar de todos os artifcios do estilo.O que aparecia aqui, desde as escolhas de Dionsio e Luciano, eram as regrasda histria positiva: A tarefa nica do historiador narrar os fatos como elesse passaram (hs eprakhth eipein).11

    42. Tucdides, portanto, teve razo quando postulou o princpio da histriae distinguiu uma maneira boa e uma ruim de escrev-la, inspirado nissopela grande admirao que tinha por Herdoto, admirao tal que deu aseus livros o nome de Musas. Ele declarou erguer um monumento eterno eno um objeto de ostentao para o momento presente, repudiar as fbulase querer deixar para a posteridade o relato verdadeiro dos acontecimentos(tn altheian tn gegenmenn). Falou, em seguida, de sua utilidade edo objetivo que um homem sensato deveria atribuir histria: casoacontecimentos semelhantes se repetissem, seria possvel, dizia,reportando-se queles que foram relatados anteriormente, tirar um bomproveito dos acontecimentos presentes.43. O historiador que compartilha essa maneira de ver aquele de quepreciso. Quanto ao estilo e fora da expresso, no quero que, parainiciar seu trabalho, ele se tenha preparado muito para esse estilo violento,mordaz, constantemente, peridico, para essas argumentaes tortuosase para a todas as finezas da retrica. Peo-lhe disposies mais serenas,um pensamento culto e sucinto, uma dico clara e apropriada scircunstncias, feita para expor o assunto com toda a nitidez desejvel.(LUCIANO Como se deve escrever a Histria, pp. 42-43)

    A tradio que vai de Ccero a Luciano , portanto, muito matizada arespeito do estilo de Tucdides. Ela se prolonga nos Modernos, tal como vimos, nosculo XVII, com Perrot dAblancourt e Rapin e, depois, com Mably s vsperas daRevoluo Francesa. Nos anos 1820, enquanto se instalavam os fundamentos daaltertumswissenschaft, a historiografia francesa ainda no tinha renunciado a abordara questo tucididiana segundo essa tradio o que no de espantar , comodemonstra o curso que Daunou deu no Collge de France (de 1819 a 1830):

    11 Luciano, 39, bem como 42, 47, 49, 51, semelhana de Tucdides II, 48, 3.

  • Dentre as relaes originais, h aquelas em que o trao e a beleza desuas formas as situam entre as grandes produes da arte escrita. Assim,so as obras de Tucdides sobre a guerra do Peloponeso, de Xenofontesobre a expedio de Ciro, o Jovem, os comentrios de Csar sobre aguerra Glica, o relato da conjurao de Catilina por Salstio e as descriesdos livros de Tcito que abrangem acontecimentos ocorridos quando elevivia (DAUNOU 1842, t. VII, p. XXX ).

    No se tratava, todavia, de considerar que a obra histrica devesse ser,acima de tudo, uma obra-prima da prosa, nem de confundir historiografia ebelas-letras. Daunou, estabelecendo a lista das relaes originais, quis destacara superioridade de certos relatos histricos. Tratava-se daqueles em que oprprio autor foi protagonista ou observador dos acontecimentos o grandeprincpio da autopsia , e, por essa razo, produziu-se uma adequao perfeitaentre o contedo e o estilo, entre os fatos e as palavras.

    Constata-se assim que a tradio relacionada obra de Tucdides noera monoltica e que o historiador ateniense fez sua entrada, no sculo XIX,munido de interpretaes que continham algumas das virtualidades fundadorasdas grandes escolhas historiogrficas desse perodo. Que escolhas foram essasque os Modernos, para construrem a histria como cincia, wissenschaft,recorreram s prescries do mtodo de um Antigo e ao peso da herana queacompanhava as leituras feitas de sua obra? Nossa inteno no fazer umbalano dos numerosos estudos nessa rea, mas propor algumas hipteses.

    2. A histria como cincia: pontos de encontro com TucdidesDesde o comeo do sculo XIX, Tucdides foi lido, com muita ateno,

    como historiador poltico, pelos fundadores da universidade de Berlim,particularmente, por Niebuhr, que, por sua vez, influenciou Ranke e o alunodeste, Wilhelm Roscher, autor de um livro importante, Leben, Werk und Zeitalterdes Thukydides, publicado em Gttingen em 1842. Para esses eruditos,Tucdides foi o historiador de Atenas na poca de Pricles (ROSCHER 1842,prefcio, p. X ), amante da verdade (TUCDIDES I, 20, 3; 22, 1.), dessa forma,superior em rigor e em exatido, a akribeia (Idem, I, 22, 1 ; 22, 3). Talvez, elefosse, mais ainda, o fundador de uma histria contempornea, antes de tudopoltica, que esclarecia os desafios do seu presente. Assim, Eduard Meyerpronunciou, em 15 de outubro de 1919, menos de um ano aps o fim daPrimeira Guerra Mundial, um discurso intitulado Preussen und Athen. ArnaldoMomigliano notou, com perspiccia, que Meyer se sentia como o Tucdides deuma Atenas vencida e Luciano Canfora mostrou, a respeito do mesmo discurso,que paz imposta a Atenas em 404 se sobrepunham a imagem e a experinciada rude paz de Versalhes (Cf. SILVESTRE 1994, p. 341). Esses elementoseram bem conhecidos e foram destacados por obras importantes. Pensamos,particularmente, em Tucidide nella storiografia moderna, do qual foram extradosos textos e as referncias que acabamos de mencionar.

    Preferimos destacar dois elementos de encontro entre Tucdides e a cinciaalem da Antiguidade, quando ela pensada, simultaneamente, como cincia da

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    histria em geral. O primeiro ponto diz respeito autonomia da obra histrica,ligada questo da escrita. Afirmando, de incio, que seu primeiro gesto consistiuem reunir por escrito (xunegrapse) a guerra dos peloponsios e dos atenienses,Tucdides introduziu uma mudana radical em relao aos dois predecessoresde que se apresentava como rival: Homero e Herdoto. Para Tucdides, no setratava, somente, de mostrar que sua guerra era maior do que aquelas doperodo anterior e das pocas mais antigas ainda, isto , as guerras Mdicas ea guerra de Troia (TUCDIDES I, 1, 2). Com Tucdides, o importante no era, ouno era somente, a preservao do passado ou o passado na medida em queera preservado, de modo que ele no desaparea com o tempo, assim comotambm estabelecia o projeto de Herdoto desde a primeira frase de sua obra.O que merecia ser preservado era a obra histrica mesma, em razo do prpriofato de que foi escrita. Uma vez que o passado precisava da mediao doescrito para permanecer nas memrias, era a obra escrita que devia, em primeirolugar, ser preservada. E, por isso mesmo, ela se tornaria um instrumento deinteligibilidade transmitido s geraes futuras, a fim de que essas pudessemcompreender melhor o seu presente. Era por ser escrita que a obra tornar-se-ia um conhecimento adquirido para sempre. Disso resultava a escolha e aafirmao de Tucdides, na primeira frase de sua obra, que anunciava o ktmaes aiei. O sempre (aiei) envolvia a obra que Tucdides de Atenas escreve edestacava a ruptura com os registros anteriores de discurso. O que deveriasubsistir para sempre, em sua autonomia, em sua completude, no erammais as faanhas e os grandes feitos, os erga, dos heris da epopeia; tampouco,eram os acontecimentos (genomena) que sobrevm atravs dos homens(HERODOTO 1, 1) em Herdoto, ambos dependentes de uma forma de renome,de glria, de kleos. O que permanecia, mesclada com a escrita, era a obrahistrica, designada como ktma, como um conhecimento adquirido, resultadodo conjunto das operaes intelectuais que redundaram na obra escrita, essaobra que valia para sempre, a guerra dos peloponsios e dos atenienses. Oacontecimento desaparecia por trs da obra, na obra.

    Autonomia da obra histrica mesclada com a operao da escrita:12 essefoi o aporte maior de Tucdides, exposto, imposto desde sua primeira frase(LORAUX 1986, pp. 139-161). E eis uma das razes essa era essencial pelas quais a universidade alem conservou Tucdides, e no Herdoto, comopai e sustentculo de uma cincia que iria produzir monumentos da historiografia,catedrais de prosa histrica. A instituio do seminrio mereceria ser analisadanesse sentido.

    O segundo ponto de encontro essencial, na nossa opinio, diz respeito dimenso poltica da operao tucididiana. Recusando inscrever-se, no sentidoda histori de Herdoto, e, portanto, no desejando limitar-se nem aos acontecimentos

    12 Existe uma escrita da histria, uma historiografia, que faz agora parte, com Tucdides, do queMichel de Certeau nomeou de operao historiogrfica, ou seja, o conjunto do processo histrico emsua prpria elaborao.

  • que sobrevm do comportamento dos homens, verso ampla do projeto,nem s plis dos homens, verso mais restrita, Tucdides destacou que notinha por ambio fazer histria, mas, na realidade, transformar o caso exemplarda guerra dos peloponsios e atenienses em ferramenta de cincia polticapara a direo das plis. Seu objetivo era fazer da histria de um conflito umaferramenta para o futuro e, portanto, para o historiador continuar a agir poresse meio. Foi isso tambm o que descobriram todos os grandes especialistasda Antiguidade no sculo XIX. Para Niebhur, Droysen, Mommsen, a histria eraum instrumento de inteligibilidade do presente e fazer histria era fazer poltica,era agir no presente, para o presente. Disso, Tucdides foi o modelo. Tucdidesera um Antigo... moderno!

    Tucdides era um historiador do presente, um historiador poltico, umhistoriador de um rigor sem igual, imposto pelos mtodos de escrita e, desdesua origem grega, pelas regras da escrita em prosa. Tucdides era idealista,construtor da operao historiogrfica. Esses pontos de convergncia com acincia histrica alem inscreveram-se, tambm, no interior da histria darelao privilegiada que os alemes, pelo menos desde Winckelmann, pensarammanter com a Grcia antiga. O lugar que ocupou Tucdides na constituio dahistria como cincia, na universidade prussiana, depois em toda Europa,deveria, igualmente, ser analisado como parte do que se chamou de mitogreco-alemo. Seria preciso ento recomear das palavras de Niebuhr: AGrcia a Alemanha da Antiguidade. Em outros termos, Tucdides, revisitadoassim pelos Modernos, teria ainda seu lugar entre os Antigos?

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    histria da historiografia ouro preto nmero 6 maro 2011 103-122

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