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Janeiro/Fevereiro/Março 200 I Artigo Original/Original Article INFLUÊNCIA DA INFECÇÃO PELO VIR NA ABSORÇÃO DA LACTOSE 27 INFLUÊNCIA DA INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA NA ABSORÇÃO DA LACTOSE PEDRO PINTO MARQUES (I), JOÃO FREITAS (2), MARIA JOÃO ÁGUAS (3\ FRANCISCO DA CUNHA LEAL (4) Resumo Introdução: A sintomatologia gastrointestinal é frequente nos doentes infectados pelo vírus da imunodeficiência hu- mana (VIH), sendo em muitos casos atribuída à enteropa- tia associada a esse agente viral. O objectivo deste trabalho foi avaliar a prevIDência de má absorção de lactose em doen- tes infectados pelo VIH. Material e Métodos: Realizou-se um estudo prospectivo com uma população de 20 adultos infectados pelo VIH e 10 voluntários saudáveis que foram submetidos ao teste respi- ratório de hidrogénio, após ingestão de 50 gr de lactose. Resultados: Observou-se uma maior prevalência de má absor- ção de lactose no grupo de doentes infectados (P ::::0.044), com uma tendência para um agravamento nos estádios mais avançados da doença (P :::: 0.07, NS). Conclusões: Verificou-se que a infecção pelo VIH está asso- ciada a um impacto negativo na absorção da lactose. As- sim, num subgrupo destes doentes medidas dietéticas tal- vez possam contribuir para o alívio de sintomas gastroin- testinais. Summary Introduction: Gastrointestinal symptoms are frequent in human immunodeficiency vírus (HIV) iufected patients, and in a high proportion of cases these symptoms may be related to virus-associated enteropathy. The aim of this study was to evaluate the prevalence of lactose malabsorp- tion in HIV infected patients. Material and Methods: A prospective study was carried out with a population of 20 HIV-infected adult patients aud 10 healthy volunteers alI of whom were submitted to a hydro- gen breath test after ingestion of 50 gr lactose. Results: The prevalence oflactose malabsorption was high- er in the infected group (P::::0.044), with a trend to a high- er degree of lactose malabsorption in more advanced dis- ease stages (P::::0.07, NS). (I) Interno do Internato Complementar, Serviço de Gastrenterologia, Hospital Garcia de Orla, Almada. (2) Assistente Hospitalar Graduado, Serviço de Gastrenterologia, Hospital Garcia de Orta, Almada. (3) Assistente Hospitalar Graduada, Serviço de Infecciologia, Hos- pital Garcia de Orla, Almada. (4) Director do Serviço de Gastrenterologia, Hospital Garcia de Orla, Almada. Recebido para publicação: 19/07/2000 Aceite para publicação: 15/12/2000 Conclusions: HIV infection has a negative impact on lac- tose absorptive capacity. In some patients dietetic mea- sures may help to relieve gastrointestinal symptoms. GE - Jornal Português de Gastrenterologia 2001, 8: 27-33 INTRODUÇÃO A diarreia crónica, a má absorção, o emagrecimento ea dor abdominal são alguns dos sintomas gastrointestinais mais frequentes em doentes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH). Não obstante o tubo digestivo destes doentes ser frequentemente atingido por infecções oportunistas e neoplasias, numa proporção apreciável não se identifica causa dos sintomas, tendo-se desde cedo colocado a hipótese da existência de um efeito enteropático associado ao VIR (1-5). O VIR foi identificado em macrófagos e linfócitos da lâmina própria e em fases precoces da infecção o VIH é detec- tável no enterócito (4,6,7), onde é responsável por alte- rações estruturais e funcionais progressivas associadas à evolução da doença. Esse facto traduz-se nomeadamente em déficits enzimáticos (ex: déficit de lactase) ou em di- minuição da capacidade de absorção (ex: alteração do teste da d-Xilose) (5,7-11). As biópsias intestinais realizadas em doentes infectados pelo VIH (após exclusão da existência de outros agentes infecciosos) evidenciaram atrofia das vilosidades com redução da superfície de absorção, diminuição das crip- tas e do índice mitótico - hipoproliferação -, diminuição dos linfócitos CD4+ na mucosa e defeitos de maturação, com redução da actividade enzimática e aumento dos núcleos dos enterócitos (6-9,12). O defeito enzimático na bordadura em escova é não selectivo (5), não estando elucidado o mecanismo na sua génese. Julga-se que re- sulta do efeito do vírus na maturação das células epi- teliais, por acção directa ou mediado por citoquinas (5,10). A lactose é um dissacárido constituído por glucose e ga- . lactose. Após a sua ingestão é digerida, a nível do intes-

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Janeiro/Fevereiro/Março 200 I

Artigo Original/Original Article

INFLUÊNCIA DA INFECÇÃO PELO VIR NA ABSORÇÃO DA LACTOSE 27

INFLUÊNCIA DA INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIAHUMANA NA ABSORÇÃO DA LACTOSE

PEDRO PINTO MARQUES (I), JOÃO FREITAS (2), MARIA JOÃO ÁGUAS (3\FRANCISCO DA CUNHA LEAL (4)

Resumo

Introdução: A sintomatologia gastrointestinal é frequentenos doentes infectados pelo vírus da imunodeficiência hu-mana (VIH), sendo em muitos casos atribuída à enteropa-tia associada a esse agente viral. O objectivo deste trabalhofoi avaliar a prevIDência de má absorção de lactose em doen-tes infectados pelo VIH.Material e Métodos: Realizou-se um estudo prospectivocom uma população de 20 adultos infectados pelo VIH e 10voluntários saudáveis que foram submetidos ao teste respi-ratório de hidrogénio, após ingestão de 50 gr de lactose.Resultados: Observou-se uma maior prevalência de má absor-ção de lactose no grupo de doentes infectados (P ::::0.044),com uma tendência para um agravamento nos estádiosmais avançados da doença (P ::::0.07, NS).Conclusões: Verificou-se que a infecção pelo VIH está asso-ciada a um impacto negativo na absorção da lactose. As-sim, num subgrupo destes doentes medidas dietéticas tal-vez possam contribuir para o alívio de sintomas gastroin-testinais.

Summary

Introduction: Gastrointestinal symptoms are frequent inhuman immunodeficiency vírus (HIV) iufected patients,and in a high proportion of cases these symptoms may berelated to virus-associated enteropathy. The aim of thisstudy was to evaluate the prevalence of lactose malabsorp-tion in HIV infected patients.Material and Methods: A prospective study was carried outwith a population of 20 HIV-infected adult patients aud 10healthy volunteers alI of whom were submitted to a hydro-gen breath test after ingestion of 50 gr lactose.Results: The prevalence oflactose malabsorption was high-er in the infected group (P::::0.044), with a trend to a high-er degree of lactose malabsorption in more advanced dis-ease stages (P::::0.07, NS).

(I) Interno do Internato Complementar, Serviço de Gastrenterologia,Hospital Garcia de Orla, Almada.

(2) Assistente Hospitalar Graduado, Serviço de Gastrenterologia,Hospital Garcia de Orta, Almada.

(3) Assistente Hospitalar Graduada, Serviço de Infecciologia, Hos-pital Garcia de Orla, Almada.

(4) Director do Serviço de Gastrenterologia, Hospital Garcia de Orla,Almada.

Recebido para publicação: 19/07/2000

Aceite para publicação: 15/12/2000

Conclusions: HIV infection has a negative impact on lac-tose absorptive capacity. In some patients dietetic mea-sures may help to relieve gastrointestinal symptoms.

GE - Jornal Português de Gastrenterologia 2001, 8: 27-33

INTRODUÇÃO

A diarreia crónica, a má absorção, o emagrecimento e a

dor abdominal são alguns dos sintomas gastrointestinais

mais frequentes em doentes infectados pelo vírus daimunodeficiência humana (VIH). Não obstante o tubo

digestivo destes doentes ser frequentemente atingido por

infecções oportunistas e neoplasias, numa proporção

apreciável não se identifica causa dos sintomas, tendo-se

desde cedo colocado a hipótese da existência de um

efeito enteropático associado ao VIR (1-5). O VIR foi

identificado em macrófagos e linfócitos da lâmina

própria e em fases precoces da infecção o VIH é detec-

tável no enterócito (4,6,7), onde é responsável por alte-

rações estruturais e funcionais progressivas associadas à

evolução da doença. Esse facto traduz-se nomeadamenteem déficits enzimáticos (ex: déficit de lactase) ou em di-

minuição da capacidade de absorção (ex: alteração doteste da d-Xilose) (5,7-11).

As biópsias intestinais realizadas em doentes infectados

pelo VIH (após exclusão da existência de outros agentesinfecciosos) evidenciaram atrofia das vilosidades com

redução da superfície de absorção, diminuição das crip-

tas e do índice mitótico - hipoproliferação -, diminuiçãodos linfócitos CD4+ na mucosa e defeitos de maturação,

com redução da actividade enzimática e aumento dosnúcleos dos enterócitos (6-9,12). O defeito enzimático

na bordadura em escova é não selectivo (5), não estando

elucidado o mecanismo na sua génese. Julga-se que re-

sulta do efeito do vírus na maturação das células epi-

teliais, por acção directa ou mediado por citoquinas (5,10).

A lactose é um dissacárido constituído por glucose e ga-

. lactose. Após a sua ingestão é digerida, a nível do intes-

28 PEDRa PINTO MARQUES ET AL

Figura 1 - Mouitor portátil de H2, modelo "Bedfout EC60".

tino delgado, pela enzima lactase (B-glucosidase) locali-zada na bordadura em escova. Nos humanos a sua acti-

vidade varia com a idade e com o grupo étnico (13), carac-terizando-se, como em todos os mamíferos, por um de-

clínio genéticamente determinado (não persistência on-

togenética) após a suspensão do aleitamento, não sendouma condição patológica nem sendo evitável com a ma-

nutenção da ingestão de lactose (14). Assim, o déficit delactase é a forma mais frequente de má absorção de car-bohidratos no adulto, sendo variável com o grupo étnico

(Asiáticos e Negros: 80-100%; EUA: 5-10%; Brasil: 45-95%; Itália: 39-100%; Espanha: 30%) (14-16). É de sa-

lientar aqui que a deficiência em lactase não pode ser

diagnosticada só com base na sintomatologia pois mui-tos doentes não valorizam as queixas e outros perma-necem assintomáticos. A deficiência em lactase repre-

senta um déficit bioquímico, o que difere da intolerância

à lactose, que só pode ser confirmada com provas de

provocação após ingestão de lactose (17).A utilização diagnóstica do teste respiratório de hidrogé-

neo (H2) surgiu em 1969 (18) tendo-se generalizado a

sua utilização, e tendo substituído testes sanguíneos de

tolerância à lactose pois é um método não invasivo, sen-

sível e reprodutível (17-20). A aplicação do teste respi-ratório baseia-se na libertação de H2 por metabolismo

bacteriano (cólon) dos hidratos de carbono existentes no

lúmen. Sendo uma molécula lipofílica, o H2 é trans-

portado pelo sangue e eliminado pelo pulmão de acordo

com o gradiente de concentração (17,20,21). Embora o

diagnóstico definitivo de deficiência em lactase neces-

site da demonstração da baixa actividade enzimática na

biópsia intestinal, geralmente opta-se por métodos nãoinvasivos. O H2 expirado pode ser medido por croma-

tografia gasosa ou por um detector electroquímico (22).O objectivo deste trabalho foi avaliar a prevalência de

GE VaI. 8

má absorção de lactose numa população de adultosinfectados com o VIR, procurando correlacionar os re-sultados obtidos com os diversos estádios das doença.

MATERIAL E MÉTODOS

População

Entre 1998 e 1999 foram seleccionados 20 doentes sero-

positivos (SP) para o VIH e 10 contJ;olos. '

No grupo de SP (19 VIRl; 1VIH2}14 er~mdo sexo mas-culino e 6 do sexo feminino, tom uma'idade média de40,2 anos (24-58 anos); 17 eram caucasianos e 3 de raçanegra. De acordo com a classificação do "Centers forDisease Control" (CDe) (23) os doentes foram divididosem classes. Dois doentes tinham história de intolerânciaao leite.

O grupo de controlo consistiu em 10 voluntários sau-dáveis (VS), 5 do sexo masculino e 5 do sexo feminino,caucasianos, com uma idade média de 38.7 anos (18-60anos), sem factores de risco associados à infecção peloVIR. Não havia história de intolerância ao leite.

Protocolo

Critérios de exclusão: Queixas gastrointestinais nas duassemanas anteriores ao teste, cirurgia abdominal (excep-to apendicectomia), terapêutica farmacológica com re-percussão no trânsito oro-cecal, uso de citostáticos ou an-tibióticos (excepto co-trimoxazol como profilaxia da in-fecção por P carinii ou anti-retrovíricos) (17).O teste iniciou-se entre as 08:00 e as 09:00 horas, após

um jejum de 12 horas. A ultima refeição na véspera erapobre em resíduos, com hidratos de carbono de fácil fer-mentação (15). Não foi permitido fumar no próprio diaou realizar exercício físico antes do teste.

Após de lavagem bucal com 20 cc de soluto de clorhexi-dina a 0.05%, foi obtido um valor basal de H2 no ar

expirado. Depois cada indivíduo ingeriu uma solução de50 gramas de lactose em 400 cc de água. Procedeu-seem seguida ao registo do H2 expirado de 20 em 20 mi-nutos durante 3 horas (2 horas se o teste fosse persisten-temente negativo) (19). A presença de sintomas intesti-nais (diarreia, vómitos, dôr abdominal, meteorismo, fla-tulência) foi registada durante o teste.

Análise do H2 Respiratório

A concentração de H2 (expressa em partes por milhão -

Janeiro/Fevereiro/Março 2001 INFLUÊNCIA DA INFECÇÃO PELO VIR NA ABSORÇÃO DA LACTOSE 29

300

200

100

ê=-~o'='111~o...

'1:1

=~

o

Voluntários VIR si SIDA VIH cl SIDA

Figura 2 - Eliminação de H2 respiratório (AH2 ppm) após inges-tão de lactose,

ppm) no ar expirado, foi avaliada com recurso a um

monitor portátil de H2, provido de um sensor electro-

químico - modelo "Bedfont EC60" - Bedfont TechnicalInstrument, Sittingbourne, UK - (Figura 1) (23), com

uma resposta linear à concentração de H2 (0-1999 ppm).Foi utilizada metodologia préviamente descrita (24), con-

siderando-se o teste positivo no caso de se verificar umasubida na concentração de H2 ~ 20 ppm acima do valor

basal (ilH2 (ppm) ~ 20) (7,15,18), Para cada indivíduo

300

o

200

*

o~,....--

N = 10 13 6Voluntários VIR si SIDA VIR cl SIDA

Figura 3 - Comparação do AH2 entre os diferentes grupos (VS, SPsi SIDA e SP cl SIDA),

300

200

100

ê=-~o'='111~o...

'1:1

==~

O

CD4 <200 CD4 200-499 CD4 ~500

Figura 4 - Distribuição do H2 respiratório (AH2 ppm) nos doentes

infectados pelo VIR, de acordo com os CD4+,

foi considerado o ilH2 máximo obtido durante o perío-

do de medição (5).

Análise Estatística

Nível de significância estatístico definido P :5 0,05. Fo-ram utilizados na análise estatística o teste Chi quadrado

(X2), métodos não paramétricos (Mann- Whitney e Krus-

kal-Wallis) e o coeficiente de correlação (Pearson).

Métodos Laboratoriais

Diagnóstico de infecção pelo VIH: ELISA e Western-Elot.

Carga viral VIHl: Quantiplex HIV RNA 30 (bDNA).Limite de detecção: 50 cp / m1.Carga viral VIH2: RT-PCR.Limite de detecção: 500 cp / m1.Contagem de CD4+: Citometria de fluxo (cytometerFACscan).

Este estudo foi aprovado pela Comissão Ética do Hos-pital Garcia de Orta, tendo os doentes dado o seu con-sentimento informado.

RESULTADOS

Dos 20 doentes SP, um não colaborou no teste, sendo

100

ê=-

o O'='111

o...'1:1

=

30 PEDRa PINTO MARQUES ET AL

300

o

200

o100

o o§

o

o@liJJ D o D

8'~~N~-<!j

o 60.000 80.00020.000 40.000

Carga Viral (cp/ml)

Figura 5 - Correlação entre a AH2 e a carga vira!.

excluído do estudo. Agrupando os doentes segundo oscritérios do CDC (23), estes foram divididos em dois

grupos (8): 12 não tinham critérios de SIDA (classes Ae B) e 7 tinham critérios de SIDA (classe C). No respei-tante à imunidade celular, os CD4+ variaram entre 37-

1171 cél./fll (média 484.3 cél./fll; normal: 600-2360

cél./fll). A carga viral era indetectável em 9 doentes. Nos

300

200

o

DD D ~ DdJD

800 1.000 1.200200 400 600

CD4 (cél.!f1l)

Figura 6 - Correlação entre os CD4+ (cél.!f1l)e o AH2.

GE VaI. 8

Quadro I - Teste Respiratório de Hidrogénio (H2). Comparaçãodos resultados positivos entre VS e SP.

SeropositivosVIR (SP) Voluntários(VS)

Teste +

Teste --

1

9

9

10

p", 0.044 X2

Quadro 11 - H2 no ar expirado após ingestão de lactose. Compa-ração entre os diferentes grupos.

D

(1)

(1)

(1)

(2)

I-_mp,;0.62(NS) I

I-_m m_m__p,;0.07(NS) I

I P,; 0.33 (NS) I

1 m ml-_mm__m__m__m_IP,;0.59(NS)

(1) Mann-Whitney(2) Kruska/-Wallis

restantes, a média era de 12.830 cp/ml (66-77.437 cp/

ml). Não se encontrou correlação entre a carga viral e a

excreção de hidrogénio (r =0.02, Figura 5), observando-

-se uma correlação positiva entre a contagem de CD4+

e a excreção de H2 (r = 0.53, Figura 6). Comparando os

grupos SP e VS no respeitante à prevalência de testes

respiratórios positivos, obteve-se um número mais ele-

vado no primeiro (47% vs 10% respectivamente; P :5

0.044) (Quadro I). Considerando os valores de H2 (AH2

ppm) nos diferentes grupos estudados (Figuras 2 e 3),não se observaram diferenças estatisticamente significa-tivas entre os VS, SP sem critérios de SIDA e SP com

critérios de SIDA (Quadro 11). No entanto salienta-se

que a maior diferença observada foi entre os VS e os SPcom critérios de SIDA (P :5 0.07).

A análise da imunidade celular (contagem de CD4+)

também não evidenciou diferenças entre os diversos

grupos (Quadro m, Figura 4). A existência de sintoma-

tologia sugestiva de intolerância à lactose durante o testefoi observada em 7 indivíduos (1 VS, 4 SP sem SIDA e

2 SP com SIDA). Neste grupo de 7 elementos, 2 tinham

teste respiratório negativo (AH2 < 20 ppm). As manifes-

Quadro 111- Comparação do AH2 do grupo de infectados pelo VIH,segundo os CD4+.

(1) I P,; 0.26 (NS) I

(1) Mann-Whitney

100

o

O

8'

N==<1

Ó

Voluntários (VS) SP si SIDA SP cl SIDA

N 10 12 7

Teste +1- 1/9 6/6 4/3

Media f.H2 (ppm) 19,1 40,7 44,0

CD4 (cél/lI) <200 200 -499 500

N 1 13 5

Teste +/- 1/0 5/8 3/2

Media AH2 (ppm) 71 26.6 75.2

JaneirolFevereiro/Março 2001 INFLUÊNCIA DA INFECÇÃO PELO VIR NA ABSORÇÃO DA LACTOSE 31

250 - m - - u- - uu - uu-

200

5' 150~8== 100

50

Ow ~ W W - ~ ~ ~ -

Tempo (minutos)

Figura 7 - Produção de H2 respiratório (ppm) ao longo do tempo(Seropositivos ).

tações clínicas mais frequentes foram dór abdominal ediarreia (4 doentes), distensão abdominal e meteorismo

(2 doentes), e flatulência (1 doente). Por fim, o tempo

em que foi atingido o diferencial de Hidrogénio (~H2 ::::

20 ppm) variou entre 40 e 120 minutos no grupo de SP

e foi de 40 minutos no único VS positivo (Figuras 7 e 8).

DISCUSSÃO

No presente estudo 19 adultos infectados com o VIH emdiferentes estádios de doença, e 10 voluntários saudá-veis, foram avaliados quanto á existência de má absor-ção de lactose utilizando o teste respiratório de H2, apósingestão de 50 gr de lactose. O estudo da prevalência demá absorção de lactose em doentes infectados pelo VIHfoi anteriormente realizado em adultos (7) e em crianças(5,11,25), tendo-se encontrado uma prevalência supe-rior nos doentes em relação aos controlos, o que está deacordo com os resultados obtidos no presente estudo (P::50.044). Nos voluntários saudáveis o valor de 10% cor-responde ao esperado em caucasianos adultos; é no en-tanto um valor bastante variável (14,15), tendo-se obtidoo valor de 32% numa população próxima da nossa (16).Confirmou-se assim o impacto negativo da infecçãoVIH na absorção de lactose, sobretudo em doentes comcritérios de SIDA, conforme descrito na literatura (7,11). O facto de não haver diferenças de excreção de H2(~H2) entre VS e SP sem SIDA (P:5 0.62, NS) está deacordo com o publicado em estudo anterior no qual ograu de excreção de H2 foi idêntico entre o grupo con-trolo e seropositivos assintomáticos (7). Não se detec-taram diferenças na excreção de H2 no grupo SP dividi-do com base na contagem de CD4+ (Quadro 111).Houveuma correlação positiva (r = 0.53) entre a excreção de

H2 e os CD4+ no sangue periférico, Figura 6). Sendoum resultado inesperado, e não se encontrando na lite-

ratura qualquer referência ao estudo destas duas variá-

veis, deve-se sublinhar a pequena dimensão da amostra.

Investigações futuras poderão confirmar ou não este

resultado. Dos 7 indivíduos que desenvolveram sinto-

mas durante o teste, 5 (71 %) tiveram teste positivo. Por

outro lado, dos 22 que permaneceram as sintomáticos 5

(23%) tiveram o teste positivo. Estes valores confirmam

a importância de não basear o diagnóstico de má absor-ção de lactose apenas nas manifestações clínicas e mos-

tram a ausência de uma boa concordância entre as quei-

xas digestivas e resultado do teste respiratório (11).Pode-se concluir assim que apesar da disfunção gas-

trointestinal ser multifactorial, é possível que alguns dos

sintomas estejam relacionados com um déficit secun-

dário de lactase, podendo eventualmente ser reversíveis

com manipulações dietéticas, com beneficio sintomático

para os doentes (26-28). Poder-se-ia optar nesses casos

por reduzir o aporte de leite substituindo-o por produtos

lácteos fermentados como o iogurte ou o queijo, conten-

do Lactobacillus bulgaricus ou Streptococcus thermo-

philus; poder-se-ia também prescrever lactase per os an-

tes da ingestão de produtos lácteos, com suplementação

em cálcio se necessário (15,29).

Como críticas a este trabalho salienta-se que embora fos-

se um estudo prospectivo baseado em doentes seguidos

em consulta externa, não foi possível avaliar todos os

potenciais candidatos, havendo uma selecção involun-

tária dos mais colaborantes. A utilização de 50 gramas

de lactose (correspondente à quantidade existente em 1

litro de leite) é útil se se pretende avaliar pequenas alte-

rações da actividade enzimática (por exemplo num teste

de provocação com glúten na doença celíaca), mas pode

ser considerada uma dose não fisiológica na avaliação

de intolerância à lactose (7,13). Outro aspecto não con-trolado foi o potencial de produção de H2, por parte da

180 _uu uu - uu - uu u um u uuu - uu

160

140

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O 160 18060 80 100 120

Tempo (minutos)

Figura 8 - Produção de H2 (ppm) ao longo do tempo (controlos).

20 40 140

32 PEDRa PINTO MARQUES ET AL

flora bacteriana do cólon (risco de falsos negativos)(21), embora tal factor não varie entre grupos controlo edoentes com infecção pelo VIH (7). Não foi tambémrealizado, de forma sistemática, exame microbiológicodas fezes (risco de falsos positivos). Pode igualmente sercriticável não ter sido aplicado o mesmo período demedição de H2 a todos os participantes (180' ou mesmo4 h) ou a utilização do cut-off ilH2 "'=20 ppm, com boaespecificidade mas baixa sensibilidade (22). Face à pre-valência da infecção pelo VIH na população em geral,também se optou por não realizar o teste ELISA nogrupo controlo de 10 elementos que não apresentavamfactores de risco para a infecção pelo VIR. Por fim, nal-guns protocolos o registo de queixas de intolerância éprolongado, podendo estas surgir só depois do períodoem que decorre o teste (18).Em suma, vários factores podem estar na origem da máabsorção de lactose na infecção pelo VIR. Tanto asinfecções oportunistas, como o vírus só por si, podemser responsáveis pela diminuição da cinética do enteró-cito com o consequente defeito de maturação nas enzi-mas da bordadura em escova. O facto de estar descrito

um agravamento da má absorção de lactose nos estádiosfinais da doença sugere que factores como a carga viral,o grau de má nutrição ou a deplecção de linfócitos T damucosa possam estar envolvidos (7,30). Demonstrou-seque a introdução de Zidovudina reduz o número de célu-las infectadas pelo VIH na mucosa, originando um au-mento da actividade enzimática na bordadura em esco-

va, podendo reflectir uma melhor maturação do enteró-cito, o que pode contribuir para a melhoria c1inica (1).De futuro seria interessante verificar se as novas tera-

pêuticas anti-retrovíricas(HAART - Highly Active Anti--Retroviral Iherapies) podem ter algum contributo nes-ta área.

Correspondência:

Df. João Freitas

Serviço de Gastrenterologia - Hospital Garcia de Orta2800 AlmadaFax: 212957004

E.mail: [email protected]

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