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    Marxismo e

    reconhecimentoJAIR BATISTA DA SILVA*

    A discusso terica e poltica mais recente tem sublinhado que as lutas, os con-flitos e os embates orientam-se por demandas por igualdade efetiva, o que significaconsiderar reivindicaes de natureza material e culturais. At aqui, a polmica tem

    sido travada em torno da questo econmica (redistribuio) e reivindicaes denatureza identitria (reconhecimento). Esquematicamente, pode-se dizer que,de um lado, encontram-se aqueles preocupados com as desigualdades em virtudeda explorao e da dominao de classe; de outro, aqueles atentos s reivindica-es de carter cultural. Tal polmica tem estimulado a produo de teorizaessobre a natureza dos embates no mundo atual. Sero essas lutas definidas apenaspor reconhecimento concebido como modelo identitrio ou como modelo destatus?1E, mais ainda: reconhecimento e redistribuio so termos irredutveis,logo impossveis de serem incorporados a uma teoria abrangente acerca das lutas

    sociais? Haveria possibilidade terica, e poltica, de combinar tais lutas com a lutade classe? Haveria espao na teoria marxista para incorporar essa problemtica?Em caso afirmativo, como isso seria possvel? A discusso a seguir procura oferecerelementos para o entendimento dessas questes para, no final, expor as lacunas pre-sentes nessas teorizaes a partir de um ponto de vista que consideramos marxista.

    * Professor de Sociologia no Departamento de Cincias Sociais/UFPB. Autor de A perverso da ex-perincia no trabalho. Salvador: EDUFBA, 2009. Agradeo as observaes feitas pelo pareceristabem como a Andria Galvo e a Henrique Amorim pelas crticas e sugestes.

    1 Existem dois modelos de reconhecimento nessas teorizaes: um que preconiza a ideia de reco-nhecimento a partir da ideia de identidade; outro que concebe o reconhecimento tomando comoponto de partida a questo do status.

    CRTICA

    marxistaCO

    MENTRIO

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    Uma orientao poltica que tem assumido grande destaque na teoria socialcontempornea diz respeito s lutas por reconhecimento. Essa concepo temsublinhado que as demandas e os embates dos grupos e coletividades, longe deexprimir reivindicaes meramente materiais, so produzidos, na verdade, emnome do reconhecimento da sua identidade de grupo, de seus traos, caractersticase heranas culturais.

    Os tericos das lutas por reconhecimento tm, por causa disso, questionado asbases normativas da sociabilidade e seu padro de cidadania medida que subli-nham que os padres culturais e de justia podem engendrar formas de opresso,desigualdades e sofrimentos, por no reconhecerem as particularidades culturais.Por conseguinte, essas lutas ressaltam ou possuem um acentuado carter moral, pre-cisamente porque colocam em discusso o conceito de justia. Alguns autores tmassumido a linha de frente no interior desse debate. Esse o caso de Charles Taylor

    (Taylor, 1993), Nancy Fraser (Fraser, 2001) e Axel Honneth (Honneth, 2003; 2003a).As lutas por reconhecimento no mundo contemporneo2

    Particularmente preocupado com a situao das minorias nas sociedadesliberais democrticas, Taylor afirma que o carter liberal de uma sociedade sedefine pela forma como esta lida com suas minorias. Por conseguinte, a polticado reconhecimento implica sublinhar as articulaes entre identidade e reconhe-cimento, pois, para ele, uma luta baseada nesta ltima categoria, primordialmente, uma luta pela diferena.3

    Logo, a teoria no deve prescindir do conceito de identidade. Pois identidade ,para Taylor, a interpretao que uma pessoa faz daquilo que ela e de seus traosdefinidores essenciais como ser humano. A tese defendida aqui que a identidadese forma, em parte, pelo reconhecimento ou pela falta dele. De fato, por meiodo falso reconhecimento exercido pelos outros, os indivduos ou coletividadespodem sofrer verdadeiro dano, autntica deformao se o povo ou a sociedadeque os rodeiam lhe mostram, como reflexo, um quadro limitativo, ou degradanteou deprecivel de si mesmo (Taylor, 1993, p.43).

    Por exemplo, na relao entre brancos e negros, sublinha Taylor, estabeleceu-se

    uma imagem depreciada da populao negra projetada pelos brancos durante lon-gos anos e que alguns negros no deixaram de adotar. Dessa forma, autodeprecia-o constitui-se em um dos principais, mais eficazes e mais poderosos instrumentosde sua prpria opresso. Por isso, o falso reconhecimento no apenas evidencia a

    2 A exposio sistemtica e abrangente da teoria do reconhecimento pode ser encontrada em Silva(2008).

    3 Como pode-se ver nesta passagem: a luta pelo reconhecimento tambm uma afirmao dadiferena, uma vez que ela pede o reconhecimento da identidade especfica de grupos. Assim,concomitante valorizao do princpio da dignidade do indivduo, vale dizer, num projeto de

    sociedade em que estava prescrita a dignidade de todos os cidados, surge tambm o reconheci-mento do direito diferena (Mattos, 2001, p.11).

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    ausncia de respeito merecido, mas pode, igualmente, causar uma ferida dolorosa,que provoca em suas vtimas efetivas uma averso mutiladora contra si mesmas.Portanto, conclui Taylor, o devido reconhecimento no somente uma cortesiaque devemos ao outro: uma necessidade humana vital (Taylor, 1993, p.45).

    Para Taylor, uma caracterstica decisiva da vida humana seu aspecto dialgi-co. Com efeito, o indivduo s se transforma em agente humano pleno quando setorna capaz, ressalta o autor, de compreender a si mesmo e definir sua identidadepor meio da aquisio de enriquecedoras linguagens humanas para se expressar.Em outros termos, a identidade se constitui a partir da linguagem4 que ele tomaem sentido bastante amplo e flexvel, incluindo a linguagem da arte, do gestodo amor e semelhantes. A aquisio da linguagem, por sua vez, se d por inter-mdio da interao com os outros. Disso decorre, portanto, que a identidade ,por definio, dialgica (Taylor, 1993).

    bvio que o modelo terico de formao das identidades desenvolvido porTaylor valoriza em demasia esse processo no plano individual, mas infelizmenteno apresentada e teorizada a constituio das identidades coletivas, especial-mente aquelas forjadas a partir da identidade de classe. Por isso ele se detevelongamente sobre a importncia dos conceitos de autenticidade e dignidade naformao da subjetividade individual moderna. Uma abordagem do no reconhe-cimento a partir da ideia abrangente de opresso, na qual a questo da identidadeindividual fosse articulada identidade de classe, talvez permitisse s teorizaesdo reconhecimento fugir das armadilhas subjacentes reificao das diferenas

    que alguns crticos tm apontado. No entanto, se esse for o caminho, seria neces-srio encontrar em outra tradio as ferramentas tericas para uma formulaono reificadora da identidade que orienta as lutas e os embates contemporneos.Ser precisamente a partir da relao entre indivduo e classe que tentaremosevidenciar, a seguir, a limitao dessas teorizaes.

    Para Taylor, o reconhecimento pode ser feito de duas maneiras distintas. Naesfera ntima, a constituio da identidade pode ser bem ou malformada no decorrerdas relaes do indivduo com outros significantes pai, me, familiares, amigosetc., aqueles que o indivduo ama ou so importantes para ele. Na esfera social,

    o indivduo pode levar em conta a poltica no interditada de reconhecimentoigualitrio, pois este no s o modo pertinente a uma sociedade democrticasaudvel. Sua recusa pode causar danos queles a quem se nega [o reconheci-mento] (Taylor, 1993, p.58).5A preocupao fundamental reside em tornar claro

    4 A teoria da linguagem de Taylor est marcada pelo fecundo dilogo que estabelece com o filsofoalemo Herder. Para este, a linguagem assume um papel meramente descritivo. Para Taylor, aocontrrio, a linguagem tem contedo emotivo e expressivo (Mattos, 2006).

    5 De fato, em Taylor, o reconhecimento positivo fundamental para a constituio da identidadedo indivduo: como assinala Taylor, a formao da identidade de uma pessoa est estreitamente

    relacionada com o reconhecimento social positivo a aceitao e o respeito por parte de seuspais, amigos, seres amados e tambm da sociedade em geral (Rockefeller, 1993, p.136).

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    como padres culturais podem engendrar sofrimentos queles indivduos no re-conhecidos. De todo modo, nos efeitos sobre a identidade social que os padresmorais abrangentes impem aos integrantes de uma coletividade que a teoria doreconhecimento busca ancorar seu diagnstico das lutas sociais contemporneas.Ora, na medida em que se negligencia a opresso de classe, a prpria pretenso deabrangncia da teoria fica comprometida. Parece que nesse mesmo compassoanaltico que vo as formulaes de Axel Honneth.

    O reconhecimento como conceito moral abrangente

    Tomando de emprstimo as teses de Hegel, Honneth afirma que, na filosofiamoderna, a vida social definida pela luta pela autoconservao. Isso significaque, especialmente nos escritos de Maquiavel, os indivduos estabelecem umarelao de concorrncia incessante para fazer valer seus interesses. Ora, isso

    informa uma concepo de homem egocntrico, ou seja, atento e direcionadoapenas consecuo de interesses particulares.6

    Nessa perspectiva, e como decorrncia da concepo terica de homem nelasubentendida, a sociedade tomada como em um estado permanente de concor-rncia hostil entre os sujeitos. Por conseguinte, a ao social vista aqui nada mais do que uma constante luta entre os indivduos para preservar sua identidade ouintegridade fsica. Tanto em Hobbes como em Maquiavel, afirma Honneth, a aopoltica levada a efeito pelos indivduos visa primordialmente autoconservao.7

    o dilogo com os textos de Hegel do perodo de Jena que permite a Honneth

    apontar os desenvolvimentos do modelo de reconhecimento presente no autordeA fenomenologia do espritoem trs momentos, para extrair da uma teoriasocial de base normativa: 1) para Hegel, apenas quando dois indivduos se veemratificados em sua autonomia com seu respectivo oponente que eles podemalcanar de modo complementar a compreenso de si como um eu autnomoatuante e individuado; em outras palavras, a constituio do eu est articuladaao pressuposto do reconhecimento entre os dois indivduos; 2) o modelo tericode reconhecimento de Hegel preconiza a existncia de vrias formas de reco-nhecimento recproco, formas que se diferenciam umas das outras pelo grau de

    autonomia que possibilitam ao sujeito (amor, direito e solidariedade); 3) a teoriado reconhecimento hegeliana preconiza que, nas trs formas de reconhecimento,realiza-se a lgica de um processo de constituio que mediado pelas fasesde uma luta moral, ou seja, os indivduos so, de certo modo, impulsionados a

    6 Ser precisamente contra tal concepo que se posicionar Rousseau, pois o seu conceito de von-tade geral pretende, justamente, evitar que o bem comum seja objeto dos interesses e ambiesda vontade particular, cf. (Rousseau, 1989).

    7 Rousseau, na mesma linha de Hobbes, destaca a finalidade da esfera poltica: qual a finalidadeda associao poltica? a conservao e a prosperidade de seus membros. E qual o indcio mais

    seguro de que eles se conservam e prosperam? Seu nmero e populao (Rousseau, 1993, p. 98 Grifos meus).

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    entrar num conflito intersubjetivo, cujo resultado o reconhecimento de suapretenso de autonomia, at ento ainda no confirmada socialmente (Honneth,2003, p.122). Esses desenvolvimentos permitem a Honneth aprofundar sua teoriaa partir de trs padres de reconhecimento: amor, direito e solidariedade e suasformas correlatas de injustia.

    Inicialmente, o amor. Honneth diz que no tomar o amor no limitado sen-tido romntico que recebeu de valorizao da intimidade sexual entre parceiros,mas em uma significao mais ampla. Assim, ele incluir nas relaes amorosastodas as relaes primrias uma vez que seu carter de fora preconiza ligaesemotivas entre pessoas de um crculo de interao restrito.

    As outras formas de reconhecimento recproco que implicam autonomia aosdireitos das pessoas e o reconhecimento da particularidade individual do sujeitotm no amor o fundamento necessrio para a formao de atitudes de autorrespeito.

    A relao jurdica, que informa o outro padro ou a segunda forma de reco-nhecimento, difere do padro de reconhecimento engendrado no amor, apesar deambos fazerem parte do mesmo padro de sociabilidade. Na relao jurdica, osindivduos se veem apenas como portadores de direitos, medida que conhecemquais obrigaes devem obedecer em face do outro. Ora, to somente no interiorde um quadro normativo de um outro generalizado,8situao que j nos permitereconhecer os outros integrantes da comunidade como portadores de direitos, queo indivduo pode ver a si mesmo como portador de direitos, precisamente porqueele estar seguro e confiante do respeito das bases normativas que possibilitam

    suas pretenses.O terceiro padro de reconhecimento, a solidariedade, no depende apenas daexperincia afetiva dada pela relao amorosa ou do reconhecimento jurdico,mas tambm de uma estima social que possibilite aos indivduos representar demodo positivo suas propriedades e capacidades efetivas. A estima social , portanto,uma forma de reconhecimento que necessita de um contexto social que permite aosseus componentes manifestar suas distintas capacidades e propriedades de modouniversal, ou seja, a estima social requer um mdium social que deve expressaras diferenas de propriedades entre sujeitos humanos de maneira universal, isto

    , intersubjetivamente vinculante (Honneth, 2003, p.199).Feita a exposio sumria dos padres de reconhecimento que conduzem aossentimentos correlatos de autoconfiana, autorrespeito e autoestima, necessrio

    8 Honneth toma o conceito de outro generalizado emprestado de George Mead. Ele significa oprocesso de socializao pelo qual o indivduo interioriza as normas de ao, por meio da gene-ralizao das expectativas de atitude, comportamento etc., de todos os membros da comunidade(Honneth, 2003, p.134-5. Os conceitos de Ie Me, junto com o conceito de outro generalizado,oriundos da psicologia social de Mead, servem para Honneth recuperar, segundo ele, de modoemprico, as dimenses do reconhecimento. O Me, na verdade, a representao que o outro faz

    de mim. O I, por sua vez, s se desenvolve quando sou capaz de colocar o meu julgamento sobrequestes prticas na perspectiva do Me (Mattos, 2006, p.88).

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    ainda mostrar, sempre seguindo aqueles padres, as formas de no reconhecimentoou desrespeito engendradas nas interaes sociais; pois possvel tornar patenteque, na vida cotidiana, acredita Honneth, as ofensas, queixas, rebaixamentos ehumilhaes no passam, de fato, de formas de reconhecimentos recusados.

    Honneth comea sublinhando a forma de desrespeito que atenta contra a inte-gridade fsica do indivduo: a tortura ou a violao so os exemplos empregados,pois essa forma de desrespeito no se reduz dor simplesmente corporal, mascompreende sua vinculao sentimental em estar submetido vontade de outro.Por isso, o desrespeito representado e praticado pela violao fsica fere dura-douramente a confiana, aprendida por meio do amor, na coordenao autnomado prprio corpo (Honneth, 2003, p.215). A consequncia disso a perda deconfiana em si mesmo e na sociedade. Assim, quando o indivduo objeto detortura, ele tem denegado o respeito ou o reconhecimento para dispor do prprio

    corpo de modo autnomo.A privao de direitos manifesta-se pelo desrespeito ou reconhecimento de-negado ao indivduo pelo fato de ele permanecer, de modo estrutural, excludoda posse ou usufruto de direitos no interior da sociedade. Essa noo de direitoconsidera que um indivduo tem carncias cuja satisfao social pode reivindicarde modo legtimo. O desrespeito ou reconhecimento denegado pela privao dodireito ou excluso social no se reduz limitao da autonomia individual, masest articulado, simultaneamente, ao sentimento de no possuir o mesmo prestgiooustatussocial do parceiro de interao, ou seja, de no deter o mesmo valor moral

    que outro indivduo, o que o conduziria a uma luta pelo reconhecimento igualitrio.Disso decorre a terceira forma de desrespeito, que afeta diretamente a autoesti-ma do indivduo. A experincia dos maus-tratos, isto , da violao da integridadefsica, da privao de direitos e da excluso caminha junto com os processos queimplicam a desvalorizao social do indivduo. No entanto, a consequncia sobrea subjetividade ainda mais profunda, segundo Honneth, pois ao lado disso ocor-re uma perda de autoestima pessoal, ou seja, uma perda de possibilidade de seentender a si prprio como um ser estimado por suas propriedades e capacidadescaractersticas (Honneth, 2003, p.218). O resultado disso o sofrimento dado

    pelo desrespeito, cujos sintomas podem alertar o indivduo no reconhecido deseu estado e que, ainda, ao lado de indcios fsicos e experincias de emoesnegativas, podem engendrar sentimentos de vergonha social.

    O que se depreende dessa breve exposio que o conceito de reconhecimento tomado como um monismo moral, ou seja, a partir dele que todas as formas delutas so pensadas; e mais do que isso: os embates, conflitos e disputas so vistoscomo questes morais, como problemas de justia. Nesse sentido, as desigualda-des de classes, materiais e todas as outras formas de injustias entre indivduose coletividades so concebidas como formas de reconhecimento denegado. Em

    outros termos, reconhecimento como conceito moral abrangente incluiria todasas formas de opresso, inclusive aquelas de natureza econmica.

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    Se a abordagem de Honneth permite apontar os limites dos padres de justiapresentes em uma sociedade e sublinhar, igualmente, os obstculos sociais aoefetivo usufruto da cidadania, sobretudo em termos culturais, sua teorizao, aosubsumir as questes do trabalho e da classe social ao reconhecimento, o impedede uma crtica mais abrangente ao conceito de cidadania. Ora, justamente essafragilidade terica que Nancy Fraser busca apontar a partir de uma formulaoanaltica que no abdique da economia poltica. Nessa perspectiva, o conceito dereconhecimento que no tomado a partir da ideia de identidade, mas comomodelo destatus estar articulado ao de redistribuio.

    Fraser e o dualismo perspectivo

    As ideias de Nancy Fraser buscam acrescentar e apontar diferenas e discor-dncias com relao s formulaes de uma teoria do reconhecimento baseadas

    no modelo de identidade, especialmente nas elaboraes de Honneth. Frasercompartilha com Honneth o diagnstico de que o reconhecimento se transfor-mou em uma demanda importante dos movimentos sociais, especialmente apsa dcada de 1960, sendo, portanto, um conceito-chave para entender os embatespolticos do nosso tempo. Ela est de acordo que a relao entre redistribuioe reconhecimento no foi, muito menos , devidamente teorizada, ou ainda, queas demandas de reconhecimento no devem estar subsumidas s reivindicaeseconmicas.9Por isso, ela prope um dualismo perspectivo que significa nodissociar redistribuio e reconhecimento.

    A partir desse diagnstico no qual reconhecimento e redistribuio estoarticulados, sendo, porm, analiticamente distintos Fraser sugere que s injus-tias de ordem econmica seja aplicado o remdio da reestruturao poltico--econmica. Por sua vez, as injustias de natureza cultural e simblica devemser remediadas por intermdio de mudanas na esfera cultural-valorativa. Parafundamentar sua proposio terica, Fraser analisa o que ela chama de coletivida-des bivalentes10e ambivalentes.11Aqui, os movimentos sociais analisados so: omovimento feminista e o movimento negro ou movimentos baseados na raa.12No primeiro caso, essas coletividades so ambivalentes precisamente porque com-

    binam aspectos da explorao de classes com traos da sexualidade menosprezada.Por esse motivo, parece bvio, portanto, que sofram injustias de carter cultural

    9 O resumo da polmica terica entre Honneth e Fraser pode ser acompanhado nos seguintes traba-lhos: Josu Pereira da Silva (2008; 2005); Neves (2005); Mattos (2006; 2004); Zurn (2003); Camargo(2006); Pinto (2008).

    10 Por conta da finalidade e dos limites deste texto, no possvel realizar aqui a exposio sistemticadas coletividades bivalentes. Para observar esse ponto, ver Fraser, 2001, p.254-82.

    11 Ambivalncia precisamente porque essas coletividades, ao reivindicar o reconhecimento de suaidentidade (o que acentua, portanto, a diferena), desejam, ao mesmo tempo, a igualdade que umaredistribuio injusta lhes impede de usufruir. Nesse sentido, tais lutas so, simultaneamente, de

    reconhecimento e redistribuio. 12 Neste texto limitar-me-ei a expor o movimento feminista.

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    e de natureza poltico-econmica. Por conseguinte, os remdios aplicados parasolucionar as injustias de reconhecimento e redistribuio, de modo isolado, soineficazes para combater a opresso e a subordinao experimentadas por essascoletividades. Por isso mesmo, tais coletividades necessitam de uma ao combi-nada de reconhecimento e redistribuio para remediar as injustias que as afetam.

    Gnero, afirma Fraser, possui a particularidade de ser um elemento bsico queestrutura a economia poltica. Por um lado, porque estrutura e legitima a divisoessencial para o sistema social entre trabalho produtivo assalariado e trabalhoreprodutivo e domstico quase sempre no remunerado, desvalorizado e desti-nado s mulheres. Por outro lado, gnero fundamenta a diviso no interior dotrabalho remunerado entre profisses bem pagas e providas de reconhecimentosocial positivo e as mal pagas e semstatus; em outras palavras, profisses comprestgio social, destinadas aos homens; e trabalho domstico, desprovido de pres-

    tgio, destinado s mulheres. A consequncia uma estrutura poltico-econmi-ca que gera modelos de explorao, marginalizao e privao especficos degnero. Essa estrutura faz do gnero uma diferenciao poltico-econmicadotada de certas caractersticas de classe (Fraser, 2001, p.260). Simplesmentepor isso, a lgica do remdio aplicado simtrica quela preconizada injustiade classe: vale dizer, busca-se excluir a particularidade de gnero.

    Para Fraser, classe limita-se a uma forma de diferenciao social baseada naestrutura poltico-econmica da sociedade. Assim, a classe pensada como re-sultado da posio que os agentes ocupam nessa estrutura e como, a partir da, se

    relacionam com as outras classes. Por exemplo, a explorao experimentada pelaclasse trabalhadora um caso clssico de injustia de natureza redistributiva, poisos trabalhadores so responsveis pela produo da riqueza necessria reproduosocial, no entanto, recebem as menores recompensas pelo trabalho que realizam.

    Para esse tipo de injustia, que nos termos de Honneth seria vista como desres-peito ou reconhecimento denegado, Fraser afirma que necessrio aplicar remdiosredistributivos e no de reconhecimento, pois a ltima coisa de que necessita [otrabalhador] reconhecimento de sua diferena. Pelo contrrio, a nica forma deremediar a injustia extinguir o proletariado como grupo (Fraser, 2001, p.256)

    No entanto, no basta afirmar que a explorao experimentada pela classe traba-lhadora uma forma de injustia e, como tal, merece ser tratada com remdiosredistributivos.13Com efeito, preciso dar um tratamento terico ao conceito deexplorao, pois essa relao que estrutura a forma de reconhecimento dessaparticular coletividade: a relao entre proprietrios e produtores uma relao

    13 Fraser concebe classe dessa forma: um modo de diferenciao social enraizada na estruturapoltico-econmica da sociedade. Uma classe existe como uma coletividade apenas em virtude desua posio nessa estrutura e de sua relao com outras classes (Fraser, 2001, p.255). Conceber

    a classe dessa forma incorrer em economicismo, risco que Fraser est ciente em correr para darvazo s suas formulaes tericas.

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    de explorao, termo que tem fortssimas conotaes normativas, mas que tambmpode ser usado num sentido tcnico para denotar a apropriao da mais-valia e aalocao do produto excedente por pessoas sobre as quais os produtores tm poucoou nenhum controle (Miliband, 1999, p.474). O passo seguinte seria enfrentara questo da dominao.14Infelizmente, como ser mostrado adiante, Fraser nofaz nem uma coisa nem outra. Todavia, essa limitao analtica decisiva no aimpede de desenvolver seu modelo terico.

    Fraser sublinha que gnero no se reduz a uma categoria ou distino poltico--econmica, mas tambm uma distino de ordem cultural-valorativa. Uma im-portante dimenso da injustia de gnero reside no androcentrismo. Este consiste narepresentao arbitrria de normas e prticas sociais que conferem maior prestgios caractersticas vistas como masculinas. Da decorre o sexismo cultural, que, porsua vez, consiste no desprestgio ou desvalorizao sistemtica de propriedades,

    capacidades ou habilidades representadas como femininas. Essa desvalorizao manifestada em uma srie de injustias sofridas pelas mulheres, que inclui agressofsica, explorao, violncia domstica, humilhaes, alienao, estigmas etc.,reproduzidas cotidianamente, inclusive pela mdia (Fraser, 2001).

    Devido ambivalncia presente na situao de gnero menosprezado, osremdios devem combinar, portanto, a dimenso poltico-econmica, ou seja,uma ao que enfrente as injustias de redistribuio e aes culturais, legais epolticas que impliquem transformaes cultural-valorativas que combatam asinjustias de reconhecimento. Desse modo, afirma Fraser, reparar injustias de

    gnero requer mudanas na economia poltica e na cultura (Fraser, 2001, p.216).Esse tipo de coletividade mobilizado na argumentao de Fraser para res-saltar o limite das teorias do reconhecimento fundadas no modelo identitrio,que concebem o reconhecimento denegado como um dano ao indivduo, poissublinha os efeitos sobre a estrutura psquica em prejuzo das instituies sociais.No limite, esse modelo tende imposio da identidade do grupo em detrimentoda identidade individual (Fraser, 2000), de modo que ele no deixaria de serautoritrio e impositivo, e seu desdobramento seria a reificao da prpria noode identidade e de diferena.

    Para escapar desse modelo preciso tomar o reconhecimento como modelodestatus. Isso implica reconhecer que os membros do grupo so tomados comoparceiros integrais na interao social e no que seu reconhecimento deriva daidentidade especfica de um grupo. Portanto, o modelo de status, ao sugerir aparticipao integral na interao social, implica a participao paritria dessesmembros, ou seja, implica observar os padres de valorao cultural em termosde seus efeitos sobre a posio social dos agentes sociais. Assim, esse modelo

    14 Se a explorao ponto de partida da relao de classe, o que a viabiliza a dominao: a anlise

    de classes est preocupada basicamente com um processo de dominao e de subordinao declasses, o que constitui uma condio essencial do processo de explorao (Miliband, 1999, p.475).

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    tende a acentuar mais os mecanismos sociais de hierarquizao do que as formasde pertena identitria que o modelo anterior preconiza. Contrariamente, o reco-nhecimento denegado implica a participao no paritria nas instituies sociais(Fraser, 2002; 2002a).

    Ao tentar reparar no modelo terico, o que lhe parece insuficiente nas elabora-es sobre reconhecimento, Fraser abre outras brechas a crticas. Por exemplo, suaconcepo de classe , como foi apontado, excessivamente determinista. Classe tomada como lugar do agente na produo. As formas de ao poltica, os embates,as lutas e as formas organizativas que se realizam a partir da classe apareceriamquase como um milagre, para parafrasear Lukcs, pois tudo derivaria desse lugar.Alm disso, estruturar a crtica teoria do reconhecimento colocando a redistri-buio em cena e esquecendo a produo nos parece igualmente insuficiente.

    Classe social e reconhecimento

    No deixa de ser inusitado que, na teoria do reconhecimento, especialmente emHonneth e Taylor, o tratamento dispensado ao conceito de classe social seja des-prezado. Com efeito, existe a pretenso de construir uma teoria social abrangentebaseada na experincia social dos oprimidos. Ocorre que a fundamentao social dateoria no conduz os tericos do reconhecimento formulao consistente daqueleconceito, o que a afastaria da pecha de dficit sociolgico atribuda segundagerao da teoria crtica, notadamente a Adorno e Horkheimer (Honneth, 2003a).De fato, se a pretenso ancorar a teoria na experincia de opresso vivenciada

    pelos indivduos, ento no parece fazer sentido negligenciar a opresso de classe.Essa negligncia permite que a prpria ideia de dficit sociolgico ressurja comopossibilidade de crtica teoria do reconhecimento.

    Nancy Fraser, por exemplo, assinala que, mesmo preferindo uma concepode classe social que incorpore os aspectos culturais, polticos e discursivos, nodeixa de conceber a classe a partir da sua posio na estrutura poltico-econmica.Ora, tal concepo , como reconhece a autora, claramente economicista. Nessestermos, a classe e a luta de classes se direcionam, predominantemente, para sanarinjustias redistributivas mais do que para promover aes que busquem remediar

    o reconhecimento denegado. Disso depreende-se que a conscincia de classederiva muito mais ou tem como ponto de partida da posio dos agentes nasrelaes de produo.

    Especialmente em Fraser, a ideia de uma luta por redistribuio parecedirecionar-se para o terreno do consumo. Em outros termos, no se discute epolemiza sobre a produo e a forma que esta assume na sociedade capitalista. Oargumento parece pressupor que a luta redistributiva deve se preocupar com a for-ma de diviso da riqueza e da renda, e no com a forma de produo dessa mesmariqueza. Por esse motivo, o modelo terico parece sugerir que a transformao da

    produo decorrncia da luta por redistribuio, silenciando acerca das formasde opresso reproduzidas na dimenso poltico-econmica. Esse limite talvez

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    decorra da prpria definio de classe social que Fraser adota, pois a identidade ea conscincia constitudas nas lutas por redistribuio so consideradas capazes deafetar todas as outras dimenses da luta de classes. Ora, a classe e a luta de classes,em sentido marxista, significam uma luta no apenas para repartir de nova formao produto social, mas primordialmente para superar a forma de produzir vigentena sociedade capitalista e engendrar uma nova forma de produo e distribuioda riqueza social, que no derivam automaticamente da luta por redistribuio.

    Tanto em Taylor e Honneth quanto em Fraser, nesta em menor medida do quenaqueles, o diagnstico da sociedade capitalista contempornea no confere aoconceito de explorao e dominao de classe um tratamento terico adequado.Nos dois primeiros autores isso sequer mencionado, ao passo que na terceirao conceito carece de uma abordagem que fuja ao determinismo da posio doagente nas relaes de produo. Com efeito, como lembra, de modo pertinente,

    Miliband (1999), a nfase marxista sobre a extrao da mais-valia uma dimensoessencial nas sociedades capitalistas e isso no pode ser negligenciado, sob penade se menosprezar um aspecto fundamental da vida social, pois, a explorao nassociedades capitalistas significa a apropriao da mais-valia e a distribuio doproduto excedente entre os indivduos sem que os produtores tenham qualquercontrole sobre esse processo. Alm do mais, a explorao componente funda-mental para pensar as classes sociais, mas a dominao que a torna possvel.Desse modo, a nfase sobre a dominao serve de fundamento para algo queest no cerne do pensamento de Marx, a necessidade de criar uma sociedade

    verdadeiramente humana, na qual so abolidas as relaes de dominao e decoero (Miliband, 1999, p.475).

    justamente esse contexto social que est fora do modelo de anlise da teoriado reconhecimento e, por esse motivo, a explorao e a dominao no recebemum tratamento terico substantivo.

    Isso talvez seja decorrncia de um fantasma ou ameaa difusa que os tericosdo reconhecimento querem afastar. Esse risco refere-se ao economicismo queinformou muitas anlises sobre as lutas e movimentos sociais contemporneos. Oefeito terico e poltico disso a desconsiderao ou a negligncia de dimensesou relaes importantes do conceito de classe. Notadamente, a relao entre indi-vduo e classe social, articulao por meio da qual as formas de reconhecimentodenegado podem ser pensadas.

    A relao indivduo e classe

    NaIdeologia alem,Marx e Engels (2007a) afirmam que a classe no existe an-tes dos indivduos que a constituem. Essa ressalva mobilizada contra Bruno Bauer,que parece conceber que o burgus , to somente, um tipo do gnero burgus.

    Nesse debate, Marx e Engels destacam que na formao das burguesias locaisnas cidades foi-se paulatinamente formando a classe burguesa. Quais foram as

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    condies que permitiram essa constituio? As condies de vida semelhantes,a oposio s relaes sociais existentes (particularmente, as relaes feudais),o tipo de trabalho desenvolvido. Condies semelhantes, oposio e interessessemelhantes forjaram hbitos e costumes semelhantes. Esse cenrio social forneceas condies para que a burguesia se desenvolva e incorpore em seu interior todasas classes de possuidores anteriormente preexistentes, processo que no impedea formao de novas divises no seu interior, constituindo, desse modo, novasfraes e camadas.

    Os indivduos como singularidades s se formam, afirmam Marx e Engels,como classe quando tm que realizar uma luta em oposio outra classe. Casocontrrio, suas relaes limitam-se disputa entre concorrentes. O problema,sublinham os autores, que sob a forma burguesa de propriedade, a classe seautonomiza e condiciona a existncia, o desenvolvimento pessoal dos indivduos.

    Nesse sentido, os indivduos recebem, como algo dado, sua posio na vida comodecorrente da diviso da sociedade em classes. Entre os proletrios, suas condiesde vida, o trabalho, ou seja, o conjunto de suas condies de existncia na sociedadeburguesa, aparecem como algo acidental, como um acaso, pois aos indivduossingulares no se apresenta a possibilidade de controlar essas condies. Trata-sede um processo que provoca a contradio entre a personalidade do proletrio ea condio de existncia que lhe imposta pela determinao de classe. Por essarazo a classe se autonomiza, por sua vez, em face dos indivduos, de modo queestes encontram suas condies de vida predestinadas e, com isso, seu desenvol-

    vimento pessoal; so subsumidas a ela (Marx e Engels, 2007a, p.63).Ora, o processo de autonomizao da classe no deve desconsiderar as

    formas de opresso que indivduos ou grupos com traos ou marcas singularesexperimentam: os proletrios se manifestam contra formas injustas presentesna produo, lutam por reconhecimento e redistribuio e contra as formas deopresso reproduzidas pela sociabilidade dominante. Esse pode ser um ponto departida para pensar as questes das lutas por justia no mundo contemporneo.15De fato, a luta de classes, vale sempre lembrar, a luta pela tomada do poderpoltico, pela tomada e esvaziamento do poder do Estado,16que no deixa de serigualmente uma luta por justia. Na medida em que expressa uma concepo debem comum, de bem-estar coletivo, a luta de classes expressa uma concepo

    15 No se conclua da exposio que racismo, sexismo etc., so fenmenos que apenas se explicampor meio do conceito de classe social. Existem expresses do racismo, por exemplo, que no sereduzem questo de classe. Ocorre que a desigualdade e opresso de classe o pano de fundosobre o qual aqueles fenmenos se realizam, e por essa razo precisa ser levada em conta na anlise.

    16 Quando, no curso do desenvolvimento, desaparecerem os antagonismos de classes e toda produofor concentrada nas mos dos indivduos associados, o poder pblico perder seu carter poltico.

    O poder poltico poder organizado de uma classe para opresso de outra (Marx e Engels, 2007a,p.58-9). Ver ainda: (Marx e Engels, 2007b).

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    de justia. Uma luta por justia pode se expressar como luta de classes se peem causa as formas de direito e justia subjacentes sociabilidade dominante.Portanto, no toda e qualquer luta por justia que poder ser considerada lutade classes, mas to somente aquela que, no caso do modo de produo capitalista,questiona o direito burgus. Ocorre que a luta de classes e a ideia de opresso quelhe est subjacente no pretendem, de modo algum, sanar apenas as injustias deordem moral ou limitar-se esfera da distribuio, pois tal luta pretende instituirprecisamente outra ideia de justia e moral. Nesse sentido, preciso tambmestar atento s formas de opresso que os padres sociais valorativos impemsobre os indivduos e coletividades. Isso requer a formulao de um conceito declasse e de opresso suficientemente abrangente e que possa se articular com asformas de injustia sublinhadas pela teoria do reconhecimento. No entanto, taisconceitos no so adequadamente desenvolvidos por Honneth, Fraser ou Taylor.

    A recuperao de algumas pistas fornecidas por Marx e Engels e suas formu-laes sobre o indivduo e classe social j so suficientes para mostrar aquilo quetalvez seja a principal insuficincia da teoria do reconhecimento de Honneth eFraser: refiro-me crtica da economia poltica, particularmente em um contexto decapitalismo mundializado, e isso no tem passado despercebido entre seus crticos:

    Ela [a teoria de Honneth] no me parece fornecer os elementos necessrios parase compreender a sociedade contempornea em toda sua complexidade, princi-

    palmente sua dimenso propriamente econmica. Alm disso, sua valorizao dacategoria trabalho me parece problemtica e leva-o a relacionar solidariedade commrito (Pereira da Silva, 2005, p.21; Ver ainda: Pereira da Silva, 2008).

    Por esse motivo, parece pertinente a preocupao de Fraser (2000, 2001,2002a, 2000b) em articular reconhecimento e redistribuio, com as ressalvasque apontei anteriormente. Ao sublinhar a noo de redistribuio no debateterico, Fraser pode, ao menos, permitir a recuperao do conceito de classe etrabalho, o que lhe abre a brecha para uma reelaborao crtica do conceito decidadania (Pereira da Silva, 2005, p.21), pois possibilita relacionar injustias deordem econmica com desrespeitos de natureza identitria. No entanto, a noode Fraser de paridade de participao, como sugerem seus crticos, parece no seranaliticamente poderosa e, muito menos, ter a capacidade de motivao polticaque eles atribuem ao conceito de luta por reconhecimento formulado por Honneth(Pereira da Silva, 2005).

    Seja como for, tanto para Honneth quanto para Fraser a crtica sociabilidadecontempornea permite desvelar os dilemas que a luta social contempornea tem

    e ter de enfrentar. Porm, no caso particular de Fraser, apesar da brecha no seumodelo analtico para incorporar os conceitos de trabalho e classe social, a no

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    tematizao da produo parece sugerir que os remdios contra injustias redistri-butivas resolveriam o limite de acesso ao consumo e a desigualdade na distribuiode renda. Alm disso, a no incorporao da produo no modelo analtico parecesugerir ainda que a redistribuio v se dar a partir dos parmetros existentes, oque debilitaria a teoria de elementos crticos mais agudos contra o sistema capi-talista, precisamente porque a produo continua a ser capitalista. Tanto Honnethquanto Fraser priorizam em sua teoria a discusso sobre o conceito de justia,afastando-se sobremaneira, cada um a seu modo, do debate poltico-econmico.

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