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    alvez vocs estejam esperando

    que eu diga que saberes tra-

    dicionais so semelhantes ao

    saber cientfico. No: eles so

    diferentes, e mais diferentes do

    que se imagina. Diferentes no

    sentido forte, ou seja, no apenas

    por seus resultados. s vezes se

    acha que so incomensurveis

    na medida em que, por exemplo,

    um permite a uma expedio da

    Nasa (finalmente) tentar con-

    sertar o telescpio Hubble em

    plena rbita e o outro, no. De minha

    parte, eu tambm acho que conhecimen-

    to cientfico e conhecimento tradicional

    so incomensurveis, mas que essa inco-mensurabilidade no reside primordial-

    mente em seus respectivos resultados.

    As diferenas so muito mais profundas.

    Poderamos comear notando que, de

    certa maneira, os conhecimentos tradicio-

    nais esto para o conhecimento cientfico

    como as religies locais para as univer-

    sais. O conhecimento cientfico se afirma,

    por definio, como verdade absoluta at

    que outro paradigma o venha sobrepujar,como mostrou Kuhn. Essa universalidade

    do conhecimento cientfico no se aplica

    aos saberes tradicionais muito mais tole-

    rantes que acolhem freqentemente com

    igual confiana ou ceticismo explicaes

    divergentes cuja validade entendem seja

    puramente local. Pode ser que, na sua

    terra, as pedras no tenham vida. Aqui elas

    crescem e esto, portanto, vivas.

    A pretenso de universalidade da cincia

    talvez seja herdeira das idias medievais

    de uma cincia cuja misso era revelar o

    plano divino. Desde o sculo XVII, ao se

    instaurar a cincia moderna, ela foi delibe-

    radamente construda como una, atravs de

    protocolos de pesquisa acordados por uma

    comunidade. Um exemplo sintomtico:

    colocada diante do escndalo lgico que a

    coexistncia de uma mecnica quntica e de

    uma mecnica newtoniana, a fsica levada

    a uma esperana quase messinica em umacompatibilizao futura entre ambas. Mas

    essa uma distino conceitual. Quando

    se passa da fsica como disciplina para as

    fsicas e os fsicos e no que eles acreditam,

    no que pensam e como agem, tudo muda.

    Estes se acomodam bem com trabalhar de

    manh com fsica quntica, de tarde com a

    newtoniana e de noite consultar um pai-de-

    santo ou rezar numa igreja. A Napoleo, que

    lhe perguntava: Sr. Laplace, o que que o

    senhor faz de Deus na sua teoria?, Laplace

    respondeu: Majestade, no necessito dessa

    hiptese. No disse que Deus no existia

    nem que existia, disse que a teoria se sus-

    tentava sem admitir Sua existncia. Laplace

    poderia perfeitamente acreditar em Deus.

    Vrios fsicos famosos eram e so testas

    ou acreditam concomitantemente em vrios

    sistemas. Newton, como sabido, era ao

    mesmo tempo fsico e alquimista. Conheooutros exemplos, contemporneos.

    Bruno Latour chamou a ateno para

    esse problema. A cincia no passa ao lar-

    go de seus praticantes, ela se constitui por

    uma srie de prticas e estas certamente no

    se do em um vcuo poltico e social. H

    tambm um problema de saber se a com-

    parao entre saberes tradicionais e saber

    cientfico est tratando de unidades em si

    mesmas comparveis, que tenham algumgrau de semelhana. A isso, uma resposta

    genrica mas central que sim, ambos so

    formas de procurar entender e agir sobre o

    mundo. E ambas so tambm obras abertas,

    inacabadas, sempre se fazendo.

    curioso que o senso comum no as

    veja assim. Para o senso comum, o conhe-

    cimento tradicional um tesouro no sentido

    literal da palavra, um conjunto acabado

    que se deve preservar, um acervo fechado

    transmitido por antepassados e a que no

    vem ao caso acrescentar nada. Nada mais

    equivocado. Muito pelo contrrio, o conhe-

    cimento tradicional reside tanto ou mais

    nos seus processos de investigao quanto

    nos acervos j prontos transmitidos pelas

    geraes anteriores. Processos. Modos de

    fazer. Outros protocolos.

    Essas semelhanas genricas no podem

    nos cegar sobre profundas diferenas na sua

    definio e no seu regime. H pelo menostantos regimes de conhecimento tradicional

    quanto existem povos. s por comodida-

    de abusiva, para melhor homogeneiz-lo,

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    para melhor contrast-lo ao conhecimento

    cientfico, que podemos usar no singular

    a expresso conhecimento tradicional.

    Pois enquanto existe, por hiptese, um

    regime nico para o conhecimento cient-

    fico, h uma legio de regimes de saberes

    tradicionais. Em cada sociedade, inclusive

    na nossa, contempornea, o que vem a ser,

    s de incio de conversa, conhecimento

    ou saber? Em que campo se enquadra?

    Quais so suas subespcies, seus ramos,

    suas especialidades? E como se produz? A

    quem atribudo? Como validado? Como

    circula? Como se transmite? Que direitos

    ou deveres gera? Todas essas dimenses

    separam j de sada o conhecimento tradi-

    cional e o conhecimento cientfico. Nadaou quase nada ocorre no conhecimento

    tradicional da mesma forma como ocorre no

    conhecimento cientfico. No h dvida, no

    entanto, de que o conhecimento cientfico

    hegemnico. Essa hegemonia manifesta-se

    at na linguagem comum em que o termo

    cincia no-marcado, como dizem os

    lingistas. Isto : quando se diz simples-

    mente cincia, cincia tout court, est

    se falando de cincia ocidental; para falarde cincia tradicional, necessrio acres-

    centar o adjetivo.

    Se estamos de acordo em que saberes

    tradicionais e saber cientfico so diferentes,

    o passo seguinte se perguntar sobre quais

    so as pontes entre eles. H vrias maneiras,

    novamente, de se colocar essa questo. Uma

    perguntar se as operaes lgicas que

    sustentam cada um deles so as mesmas

    ou no e, caso sejam, de onde provm suas

    diferenas. Sobre isso, os antroplogos

    Evans-Pritchard, no final dos anos 30 do

    sculo passado, e Claude Lvi-Strauss, no

    incio dos anos 60, deram respostas inci-

    sivas. No h lgicas diferentes, mostrou

    Evans-Pritchard com seu estudo sobre a bru-

    xaria e orculos entre os azandes do Sudo,

    o que h so premissas diferentes sobre o

    que existe no mundo. Dada uma ontologia

    e protocolos de verificao, o sistema

    de uma lgica impecvel a nossos olhos.Quanto a Lvi-Strauss, ele tambm afirma,

    em seu livro O Pensamento Selvagem, de

    1962, que saber tradicional e conhecimento

    cientfico repousam ambos sobre as mesmas

    operaes lgicas e, mais, respondem ao

    mesmo apetite de saber. De onde vm ento

    as diferenas patentes nos seus resultados?

    As diferenas, afirma Lvi-Strauss, provm

    dos nveis estratgicos distintos a que se

    aplicam. O conhecimento tradicional opera

    com unidades perceptuais, o que Goethe de-

    fendia contra o iluminismo vitorioso. Opera

    com as assim chamadas qualidades segun-

    das, coisas como cheiros, cores, sabores

    No conhecimento cientfico, em contraste,

    acabaram por imperar definitivamente

    unidades conceituais. A cincia moderna

    hegemnica usa conceitos, a cincia tradi-

    cional usa percepes. a lgica do conceito

    em contraste com a lgica das qualidadessensveis. Enquanto a primeira levou a gran-

    des conquistas tecnolgicas e cientficas, a

    lgica das percepes, do sensvel, tambm

    levou, afirma Lvi-Strauss, a descobertas

    e invenes notveis e a associaes cujo

    fundamento ainda talvez no entendamos

    completamente. Lvi-Strauss, portanto, sem

    nunca negar o sucesso da cincia ocidental,

    sugere que esse outro tipo de cincia, a

    tradicional, seja capaz de perceber e comoque antecipar descobertas da cincia tout

    court. Reflexo profunda que encontra eco

    em posies de cientistas contemporneos,

    como veremos adiante.

    Note-se que as reflexes que precedem

    so elas prprias puramente conceituais: ao

    contrastarem cincia e cincias tradicionais,

    esquecem a prxis dessas atividades e fazem

    abstrao das dimenses institucionais,

    legais, polticas, econmicas, alm de boa

    parte das idias de si mesmos e de outros que

    esto no imaginrio das pessoas. Ora, cin-

    cia, j se viu, no se faz em um vcuo.

    Voltando s pontes: o que as cincias

    tradicionais podem aportar cincia? A

    questo, utilitarista, antiga e muito con-

    trovertida. Na farmacologia, um sub-ramo

    de uma controvrsia maior, a que ope a

    pesquisa baseada em produtos existentes

    na natureza quela que parte de combina-

    es sintticas. Com efeito, h um ramoforte da farmacologia que nega qualquer

    vantagem em se partir de produtos naturais,

    sobretudo desde que mtodos de testes em

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    laboratrio (high through put screening)

    foram exponencialmente acelerados.

    verdade, admitem os desse ramo, que os

    produtos naturais so fruto de adaptaes

    que j se provaram viveis e eficientes, mas

    a possibilidade de simplesmente testar, em

    tempo curtssimo, a atividade de milhes

    de combinaes inventadas em laboratrio

    teria reduzido se no anulado a vantagem

    comparativa de produtos naturais.

    Passando-se agora para produtos na-

    turais conhecidos da cincia tradicional,

    verificou-se que a diferena de rendimento

    entre etnomedicina e produtos naturais em

    geral est na ordem de centenas, ou seja, no

    mnimo, se se partir da etnomedicina, ganha-

    se um rendimento de vrias centenas de vezesmais acertos em mdia, dependendo do tipo

    de afeco. Isso partindo-se de produtos natu-

    rais em geral, no de molculas sintticas. Se

    se partir de molculas sintticas, a diferena

    aumenta exponencialmente. Mas, argumenta

    a grande indstria, essa diferena de rendi-

    mento entre produtos usados na etnomedicina

    e molculas sintticas tornou-se negligvel

    diante da velocidade dos mtodos atuais de

    testes. H, portanto, um argumento tecno-lgico aqui presente. No entanto, h fortes

    indcios passados sob silncio porque se

    reverencia a tecnologia e a cincia de que

    problemas polticos, jurdicos e econmicos

    esto em ao aqui.

    Mesmo de farmaclogos brasileiros que

    partem de substncias existentes na natu-

    reza ouvem-se juzos extraordinariamente

    arrogantes. Geralmente argumentam que os

    conhecimentos tradicionais em nada contri-

    buem para o progresso da cincia porque

    a atividade que eles apontam, os seus usos

    tradicionais, no coincide necessariamente

    com a atividade que a cincia descobre. H

    muitos contra-exemplos dessa assertiva e

    mencionarei alguns, embora isso nem me

    parea ser uma questo central. Artigos

    cientficos recentes sobre plantas amaz-

    nicas e do cerrado, por exemplo, mostram

    que o sangue de drago (Croton lechleri),

    usado por ndios amaznicos no Peru comocicatrizante, contm um alcalide, taspina,

    precisamente com esse efeito; vrias plantas

    medicinais usadas como antidiarricos na

    medicina tradicional brasileira tm efeito no

    combate aos rotavrus que causam diarria

    e so o maior fator de mortalidade infantil;

    o barbatimo realmente contm molculas

    com efeitos cicatrizantes, etc. Portanto,

    dizem esses farmaclogos refratrios aos

    conhecimentos tradicionais, mesmo que

    os conhecimentos tradicionais tenham

    mostrado a existncia de princpios ativos,

    eles raramente so teis para os mesmos fins

    para que foram tradicionalmente usados. A

    atividade tradicional no a que acaba sendo

    a verdadeira ou a mais importante.

    A isso outros farmaclogos retrucam

    que, mesmo que assim fosse, a existncia

    de princpios ativos em si mesma uma

    contribuio importante a ser valorizada. Oexemplo clssico disso uma planta nativa

    de Madagascar e que chamamos no Brasil

    de beijo. Usada em diferentes partes do

    mundo como medicina tradicional, em 1950

    passou a ser objeto de pesquisa cientfica.

    Por um lado, confirmaram-se as proprie-

    dades antidiabticas que eram conhecidas,

    por exemplo, na Jamaica e na Europa. Por

    outro, descobriram-se vrias substncias

    com propriedades anticancergenas quedesembocaram em drogas para tratar leu-

    cemia infantil e mal de Hodgkins. Como o

    cncer no constava entre as aplicaes do

    beijo na medicina tradicional, farmaclogos

    em geral no reconheceram a dvida que

    tinham em relao medicina tradicional.

    Outra forma ainda de diminuir a cin-

    cia tradicional dizer que, contrariamente

    cincia tout court, ela no procede por

    inveno, somente por descoberta e at,

    quem sabe, por imitao de outros prima-

    tas, macacos que usam plantas medicinais.

    Bastaria lembrar o ayahuasca, uma mistura

    de duas plantas, em que uma s tem efeito

    por via oral na presena da outra, para

    desmontar esse argumento. H vrios ou-

    tros argumentos e estudos que sustentam

    a utilidade e valor econmico da cincia

    tradicional (por exemplo, o fato de que o

    uso tradicional prolongado de uma substn-

    cia d indicaes quanto sua toxicidade)mas, como veremos adiante, o x da questo

    outro. Mais interessante a posio de

    etnofarmaclogos como a da professora

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    gacha Elaine Elizabetsky (2004), que v

    na cincia tradicional um potencial de re-

    novao dos prprios paradigmas de ao

    das substncias ativas. De fato, escreve ela,

    a compreenso dos conceitos de medicina

    tradicional em geral, e de suas prticas m-

    dicas em particular, pode ser til na gnese de

    verdadeira inovao nos paradigmas de uso

    e desenvolvimento de drogas psicoativas.

    Essa postura particularmente importante:

    no se trata aqui, como muitos cientistas

    condescendentemente pensam, de simples

    validao de resultados tradicionais pela

    cincia contempornea, mas do reconheci-

    mento de que os paradigmas e prticas de

    cincias tradicionais so fontes potenciais de

    inovao da nossa cincia. Um dos corolriosdessa postura que as cincias tradicionais

    devem continuar funcionando e pesquisando.

    No se encerra seu programa cientfico quan-

    do a cincia triunfante a nossa recolhe

    e eventualmente valida o que elas afirmam.

    No cabe a esta ltima dizer: daqui para a

    frente, podem deixar conosco.

    Um exemplo em outra rea elucidati-

    vo. Costuma-se chamar de saber ecolgico

    tradicional ao conhecimento que populaeslocais tm de cada detalhe do seu entorno, do

    ciclo anual, das espcies animais e vegetais,

    dos solos, etc. A relevncia desse saber em

    geral no disputado. Mais controverso o

    problema da validade dos modelos locais. O

    que tenho visto bilogos mesmo aqueles

    que se dispem a ouvi-los ensinarem a

    seringueiros e ndios qual o modelo cien-

    tfico. Vejam o modelo de sustentabilidade

    da caa (estou me baseando em Mauro

    Almeida, Glenn Shepard Jr. e Rossano Ra-

    mos e simplificando o exemplo): no incio

    da dcada de 90, dois bilogos importan-

    tes, Redford e Robinson, produziram um

    modelo largamente aceito de produo

    sustentvel que previa quantos indivduos

    de cada espcie poderiam ser caados de

    forma sustentvel baseado nas suas taxas de

    reproduo. Os seringueiros do Alto Juru

    tinham um modelo diferente: a quem lhes

    afirmava que estavam caando acima dosustentvel (dentro do modelo Redford e

    Robinson), eles diziam que no, que o nvel

    da caa dependia da existncia de reas de

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    refgio em que ningum caava. Ora, esse

    acabou sendo o modelo batizado de fonte-

    ralo (source-sink) proposto dez anos aps

    o primeiro por Novaro, Bodmer e o prprio

    Redford e que suplantou o modelo anterior.

    Em suma, os seringueiros no somente ti-

    nham uma prtica sustentvel como tambm

    um modelo terico adequado, ou pelo menos

    to bom quanto o estado da arte hoje.

    Qual o ambiente legal que rege essas

    questes? At 1992, tal qual o que acon-

    tecia em relao aos recursos genticos, o

    conhecimento tradicional era considerado

    patrimnio da humanidade. Com o advento

    da Conveno da Diversidade Biolgica,

    aberta para adeses em 1992, no Rio de

    Janeiro, e hoje com quase 200 pases ade-rentes, instaurou-se um escambo. A Con-

    veno, no seu artigo 8j, reza que cada parte

    contratante deve, na medida do possvel e

    conforme o caso,

    Em conformidade com sua legislao nacio-

    nal, respeitar, preservar e manter o conheci-

    mento, inovaes e prticas das comunidades

    locais e populaes indgenas com estilos de

    vida tradicionais relevantes conservaoe utilizao sustentvel da diversidade

    biolgica e incentivar sua mais ampla apli-

    cao com a aprovao e a participao dos

    detentores desse conhecimento, inovaes e

    prticas; e encorajar a repartio eqitativa

    dos benefcios oriundos da utilizao desse

    conhecimento, inovaes e prticas.

    O Brasil foi um dos primeiros a assina-

    rem, em 5 de junho de 1992, a Conveno

    ratificada pelo Congresso em 28/2/1994.

    na regulamentao, no entanto, que os

    conflitos aparecem. Em conseqncia,

    apesar de vrios projetos de lei tramitarem

    no Congresso desde 1994, inspirados pela

    ministra Marina Silva, at hoje, a regula-

    mentao continua se dando atravs de me-

    dida provisria datada de 2001 e reeditada

    sucessivamente.

    Depois de vrios anos de debates e de

    impasses, a Casa Civil tomou a matria parasi e tenta costurar com vrios ministrios e

    a SBPC um projeto de lei a ser enviado ao

    Congresso. Esse anteprojeto de lei, entre

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    outras coisas, quer conciliar as posies

    da Embrapa e as do Ministrio do Meio

    Ambiente promovendo uma diviso que

    se quer salomnica: a agrobiodiversidade

    no estar sujeita s mesmas regras da

    biodiversidade em geral.

    Tem-se dado muita importncia nos

    debates ao valor financeiro potencial dos

    aportes da cincia tradicional para a far-

    macologia. Mas to ou mais significativo

    o aporte da cincia tradicional para a

    agronomia, em particular no que se refere

    a defensivos naturais e variedade de es-

    pcies cultivadas ou semicultivadas pelas

    populaes tradicionais in situ. Na verso

    atual do projeto de lei, a contribuio das

    populaes tradicionais para a agrobiodi-versidade ter um reconhecimento mais

    restrito do que em outras reas.

    Em relao ao conhecimento tradicional,

    o Brasil encontra-se, como vrios pases

    megadiversificados, entre dois fogos. O

    Brasil dos membros mais ativos, para

    no dizer o lder do chamado Disclosure

    Group, ou seja, o grupo de pases mega-

    diversificados (Brasil, China, Colmbia,

    Cuba, ndia, Paquisto, Peru, Tailndia,Tanznia, Equador, frica do Sul e, agora,

    desde junho de 2007, contando tambm com

    Venezuela, o grupo africano e o grupo dos

    pases menos desenvolvidos) que postulam,

    junto Organizao Mundial do Comrcio,

    que a origem e a legalidade do acesso aos

    recursos genticos e/ou ao conhecimento

    tradicional sejam um requisito internacional

    para patentes. Ou seja, que no se possam

    obter patentes em lugar algum sem fornecer

    a prova de que o eventual acesso aos recursos

    genticos ou ao conhecimento tradicional

    foi feito de forma legal. Da mesma forma,

    o Brasil tem se destacado junto a rgos da

    ONU, por exemplo, a Organizao Mundial

    para a Proteo Intelectual (Ompi), na de-

    fesa dos direitos intelectuais que resultam

    de conhecimentos tradicionais. Essa a

    posio do Brasil no mbito internacional.

    Mas, internamente, o governo est dividido,

    e um dos mais ferrenhos opositores a que sereconheam direitos intelectuais aos saberes

    tradicionais , curiosamente, o Ministrio

    de Cincia e Tecnologia.

    As populaes indgenas e tradicionais

    em geral (entendam-se ribeirinhos, caia-

    ras, seringueiros e extrativistas em geral,

    por exemplo) esto para o Brasil como o

    Brasil est para os pases do G-8, os pases

    mais completamente industrializados. Ou

    seja, enquanto o Brasil protesta, com razo,

    contra a biopirataria, o acesso indevido

    a recursos genticos e ao conhecimento

    tradicional, enquanto ele arregimenta as

    populaes tradicionais para serem vigi-

    lantes contra os biopiratas, estas, por sua

    vez, depois de serem por cinco sculos

    desfavorecidas, no percebem grande dife-

    rena entre biopirataria por estrangeiros e o

    que consideram biopirataria genuinamente

    nacional. Estamos (mal-)habituados emnosso colonialismo interno a tratar os n-

    dios e seringueiros no Brasil como nossos

    ndios, nossos seringueiros, sem nos

    darmos conta de que isso um indcio de

    que os consideramos como um patrimnio

    interno, comum a todos os brasileiros (exa-

    tamente aquilo contra o que protestvamos

    quando nossos recursos eram patrimnio

    da humanidade).

    O Brasil se encontra em uma situaomuito especial: se por um lado um pas

    megadiversificado em recursos genticos

    e conhecimentos tradicionais, tambm,

    contrariamente a vrios outros desses pases,

    suficientemente equipado cientificamente

    para desenvolver e valorizar esses recur-

    sos internamente. Em suma, encontra-se

    em uma posio privilegiada. Mas est

    perdendo uma oportunidade histrica, a

    de instaurar um regime de colaborao e

    intercmbio respeitoso com suas populaes

    tradicionais.

    sabido que a tecnologia que foi desen-

    volvida pela Embrapa dirigiu-se sobretudo

    ao setor agropecurio. O avano desastroso

    em termos ecolgicos da soja valeu-se dessa

    tecnologia. Est mais do que na hora, con-

    forme Bertha Becker e Carlos Nobre tm

    insistido, de se desenvolver uma cincia e

    tecnologia para a floresta em p. A valoriza-

    o dos recursos genticos e conhecimentostradicionais uma oportunidade-chave

    dentro desse programa. Mas, para que ele

    deslanche, algumas coisas so necess-

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    rias, entre elas encontrar uma forma para o

    conhecimento cientfico e o conhecimento

    tradicional viverem juntos. Viverem juntos

    no significa que devam ser considerados

    idnticos. Pelo contrrio, seu valor est jus-

    tamente na sua diferena. O problema, ento,

    achar os meios institucionais adequados

    para, a um s tempo, preservar a vitalidade

    da produo do conhecimento tradicional,

    reconhecer e valorizar suas contribuies

    para o conhecimento cientfico e fazer

    participar as populaes que o originaram

    nos benefcios que podem decorrer de seus

    conhecimentos. Essa trplice condio parece

    mais fcil de dizer do que fazer, sobretudo a

    primeira. A confidencialidade e o monoplio,

    por exemplo, que fazem parte do sistemaocidental contemporneo de direitos de

    propriedade intelectual, se estendidos a todos

    os regimes de conhecimentos tradicionais,

    podem ser causa de srias distores. No

    que estes, por definio, sejam considerados

    coletivos, muito pelo contrrio. Os sistemas

    tradicionais tm suas prprias regras de

    atribuio de conhecimentos, que podem ou

    no ser coletivos, esotricos ou exotricos.

    Mas essas regras freqentemente entram emconflito com exigncias de confidencialida-

    de ou de monoplio. Introduzi-las pode ter

    conseqncias srias, e o uso e desenvol-

    vimento dos resultados do conhecimento

    tradicional no pode se dar de forma que o

    paralise e destrua.

    As outras duas condies so relativa-

    mente mais fceis de ser implementadas,

    desde que se abandone o arraigado paterna-

    lismo do colonialismo interno e a arrogncia

    da cincia ocidental. preciso tambm

    encarar as dificuldades de implementao,

    como por exemplo a de se estabelecer a

    legalidade (sem falar da legitimidade) de

    contratos com populaes tradicionais.

    Um dos problemas que se colocam de

    sada, com efeito, a ausncia, nos siste-

    mas costumeiros, de representantes com

    autoridade sobre toda a populao. Nas

    sociedades indgenas no Brasil, a regra ,

    antes, que cada chefe de aldeia tenha alguma

    autoridade sobre sua aldeia e que, havendo

    dissenses, as aldeias se cindam. Criam-se,

    para atender ao problema da legalidade de

    contratos, associaes civis cuja legitimi-

    dade pode ser freqentemente contestada.

    Nessas condies, entende-se que poucas

    indstrias queiram se expor aos riscos parasua imagem pblica de se ver confrontadas

    com acusaes de biopirataria e que poucos

    cientistas queiram ter de negociar acesso e

    repartio de benefcios com populaes

    que, alm do mais, se tornaram extrema-

    mente desconfiadas, entre outras coisas,

    pela sua arregimentao na luta contra a

    biopirataria. Por sua parte, as sociedades

    tradicionais, bombardeadas que foram

    por campanhas que as acautelavam contraqualquer pesquisador, suspeito a priori

    de biopirataria, foram levadas a alimentar

    expectativas muitas vezes excessivas em

    relao ao potencial econmico de seus

    conhecimentos tradicionais, expectativas

    que s podem provocar desapontamentos.

    H, em suma, muitos obstculos a trans-

    por, mas, se no soubermos construir novas

    instituies e relaes eqitativas com as po-

    pulaes tradicionais e seus saberes, estaremos

    desprezando uma oportunidade nica.

  • 7/21/2019 Artigo. Manuela Cunha.

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