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História da Fisioterapia em Minas Gerais

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  • Vol. 10 No. 2, 2006 A Profissionalizao da Fisioterapia em Minas Gerais 241ISSN 1413-3555Rev. bras. fisioter. Vol. 10, No. 2 (2006), 241-247Revista Brasileira de Fisioterapia

    A PROFISSIONALIZAO DA FISIOTERAPIA EM MINAS GERAIS

    NASCIMENTO MC, SAMPAIO RF, SALMELA JH, MANCINI MC, FIGUEIREDO IMDepartamento de Fisioterapia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

    Correspondncia para: Maria do Carmo Nascimento, Rua Bambu 788, apto 102, CEP 30310-320, Belo Horizonte, MinasGerais, e-mail: [email protected]

    Recebido: 15/06/2005 Aceito: 30/11/2005

    RESUMO

    Objetivo: Com base em estudo qualitativo, utilizando a histria oral e a anlise de documentos, procurou-se identificar as razesda fisioterapia em Minas Gerais, a fim de discutir o processo de profissionalizao e o desenvolvimento da identidade dofisioterapeuta neste Estado. Metodologia: O foco do estudo foi dirigido principalmente a Belo Horizonte, no perodocompreendido entre 1950 e 1980. O referencial terico utilizado foi a sociologia das profisses, e teve como guia os cinco passosde profissionalizao descritos por Wilensky1 que so a necessidade da ocupao tornar-se de dedicao exclusiva, o esta-belecimento de procedimentos de instruo e seleo, a formao de uma associao profissional, a regulamentao da profissoe a adoo do cdigo de tica. Na pesquisa de campo, foram utilizadas entrevistas do tipo semi-estruturada para colherdepoimentos de pessoas consideradas chave, mediante amostragem em srie, e o mtodo escolhido foi a anlise de contedo.Resultados: Avalia-se que o processo de profissionalizao da fisioterapia em Minas Gerais marcado pela hegemonia mdicana sade e que a indefinio das atribuies e competncias foram os fatores que motivaram os conflitos internos e externos.Concluses: Conclui-se que, para a afirmao efetiva da fisioterapia como profisso, torna-se necessria a delimitao dasespecificidades do seu saber e do seu fazer (teoria e prtica), identificando o papel do fisioterapeuta na equipe multidisciplinarde sade.

    Palavras-chave: fisioterapia, histria da fisioterapia, histria oral, profissionalizao.

    ABSTRACT

    Professionalization of physical therapy in Minas Gerais

    Objective: To identify the roots of physical therapy in Minas Gerais, in order to understand the professionalization process andthe development of identity among physiotherapists in this state, based on a qualitative approach, oral histories and analysisof documents. Methods: The focus of this study was primarily Belo Horizonte between 1950 and 1980. The theoretical referencepoint utilized was the sociology of professions and the five steps towards professionalization described by Wilensky (1964)were taken as the guide. These were: the need for exclusive dedication to the profession; the establishment of education andselection procedures; the creation of a professional association; professional regulation; and the adoption of a code of ethics.A survey was conducted, utilizing semi-structured interviews to gather statements from key leaders, based on serial samplingand content analysis. Results: It was found that the process of professionalization within physical therapy in Minas Gerais wasinfluenced by medical hegemony within the health field. Lack of definition regarding functions and competencies were factorsthat had led to both internal and external conflicts. Conclusions: To ensure effective affirmation of physical therapy as a pro-fession, it is necessary to define the specific limits of its knowledge and skills (theoretical and practical), so as to better identifythe role of the physiotherapist within multidisciplinary health teams.

    Key words: physical therapy, history of physical therapy, oral history, professionalization.

  • 242 Nascimento MC, Sampaio RF, Salmela JH, Mancini MC, Figueiredo IM Rev. bras. fisioter.

    INTRODUO

    No Brasil, estudos pioneiros sobre profisses foramdesenvolvidos entre as dcadas de 1960 e 1970, propiciadospela intensa expanso que o sistema universitrio viveu nesseperodo2. A estruturao multidisciplinar da rea de sade vemfavorecendo espao para as discusses dos conceitos deprofisso3.

    A princpio, qualquer atividade humana no mundo dotrabalho pode ser considerada uma atividade profissional.No entanto, a sociologia enfatiza alguns elementos queconstituem uma profisso: autonomia, adeso ao ideal deservio, forte identidade profissional traduzida pelo cdigode tica, e a demarcao do territrio profissional4.

    Wilensky1 preconiza que, para uma ocupao exercerautoridade profissional, ela deve encontrar uma base tcnicaprpria e uma jurisdio exclusiva, atrelando habilidade ejurisdio a padres de treinamento, e deve, ainda, convencero pblico de que seus servios so confiveis. Enfatiza queo grau de profissionalizao medido no s pelo grau decompetncia tcnica exclusiva, mas tambm pelo grau deaderncia ao ideal de servio e s normas de condutaprofissional.

    Segundo Noronem et al.3, o debate em torno dospressupostos filosficos e tericos para o desenvolvimentorelevante da prtica e da pesquisa em fisioterapia tem sidoencorajado por vrios autores. A fim de definir sua identidadee entender a cultura da fisioterapia fazem-se necessriasinformaes sobre seu desenvolvimento ao longo do tempo.

    A produo cientfica brasileira na rea de fisioterapiatem apontado algumas iniciativas acerca da discusso sobrea profisso, como por exemplo, o trabalho de Rebellato etal.5. Mas a escassez quanto produo tem repercutido nadificuldade de se ter disposio informaes que incluamna histria da fisioterapia, a discusso do processo deprofissionalizao e o desenvolvimento da identidade doprofissional dessa rea.

    Pelo percurso da fisioterapia no Brasil, decidiu-se pelautilizao do socilogo Wilensky1, como referncia tericapara a discusso da profissionalizao da fisioterapia no Estadode Minas Gerais. Com base em um estudo com 18 profissesnos Estados Unidos, este autor identificou cinco passos noprocesso de profissionalizao: ocupao de dedicaoexclusiva, estabelecimento de procedimentos de instruoe seleo, formao de uma associao profissional, regu-lamentao da profisso, elaborao e adoo de um cdigoformal de tica.

    Neste contexto, este estudo buscou na sociologia dasprofisses subsdios tericos para discutir a organizao eo processo de profissionalizao da fisioterapia em MinasGerais, por meio do resgate histrico da profisso. Resgatara histria da fisioterapia recuperar sua organizao enquantocategoria profissional, e o desenvolvimento de sua identidadeenquanto profisso. Em virtude da dificuldade encontrada

    para reunir dados sistemticos sobre a fisioterapia em MinasGerais, o foco deste estudo foi dirigido principalmente paraa capital e maior cidade do Estado, Belo Horizonte, numperodo compreendido entre os anos de 1950 a 1980. Essareconstituio parcial, orientada pelos interesses jdemarcados para a abordagem que aqui se faz desse campoprofissional.

    A inteno deste trabalho que a anlise dos fatosocorridos em Belo Horizonte possa contribuir para oentendimento da profissionalizao da fisioterapia em MinasGerais. Cabe destacar que a compreenso das questeslevantadas no caso de Belo Horizonte (micro) s pode seralcanada levando-se em conta o processo estadual e nacional(macro), e que essa diviso da realidade s tem pertinnciapara uma anlise mais aprofundada do tema reconhecendo-se que a vida das profisses, assim como a de qualquerorganizao social, no pode ser desconectada de fatores maisgerais que as moldam e a limitam.

    METODOLOGIA

    A metodologia escolhida foi a qualitativa, por serfreqentemente utilizada quando se prope compreenderprocessos que ocorrem em dada instituio, grupo oucomunidade6. A metodologia qualitativa tem a possibilidadede utilizar uma variedade de procedimentos e instrumentosde coleta de dados. Neste estudo, foram utilizadas a anlisede documento e a histria oral.

    Os documentos utilizados foram as Leis e AtosNormativos das profisses do fisioterapeuta e do terapeutaocupacional, publicao do Conselho Regional de Fisioterapiae Terapia Ocupacional da 4 regio (CREFITO-4); as atasda Associao Mineira de Fisioterapeutas (AMF); fotografiase matrias de jornais da poca.

    A forma de entrevista escolhida foi a semi-estruturadaou entrevista com roteiro, por ser considerada apropriadapara a coleta de depoimentos pessoais7. O roteiro foi organizadocom tpicos ou temas orientadores, seguindo os passos doprocesso de profissionalizao de Wilensky1.

    A princpio, foram selecionadas duas pessoas consi-deradas chave, pessoas que tiveram atuao no surgimentodo primeiro curso de Fisioterapia de Minas Gerais. A anlisedessas primeiras entrevistas levou a incluso de outrosparticipantes, a fim de explorar novos aspectos relevantesou outros temas do roteiro, caracterizando uma amostragemem srie ou em cadeia6,8. Dessa forma, a anlise acompanhoutoda a coleta, identificando novas questes que emergiam.

    O nmero de entrevistas encerrou quando as informaesalcanadas foram consideradas suficientes e atingiram achamada saturao ou exausto ou ponto de redundncia6,sendo 12 os entrevistados: 8 fisioterapeutas (E2, E3, E4, E5,E6, E7, E9, E11), 2 mdicos (E1, E8), 1 enfermeiro (E10)e 1 auxiliar de fisioterapia (E12). As entrevistas foram re-gistradas em gravador e posteriormente transcritas, de forma

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    a recuperar a integralidade dos relatos. Com base na trans-crio, essas se tornaram documento e base de dados paraa anlise9.

    O mtodo de anlise escolhido foi a anlise decontedo10,11. O processo de categorizao, possibilitado pelautilizao das entrevistas semi-estruturadas, com oagrupamento de respostas por afinidade especfica, permitiua organizao temtica dos resultados das entrevistas12, tendocomo grandes temas os passos de profissionalizao deWilensky1. Essa anlise facilitou a utilizao do recurso detriangulao ou da prtica de confrontar variadas evidnciassobre o mesmo fenmeno, permitindo a comparao dosrelatos uns com os outros e estes com os documentos e asobras existentes sobre a histria da fisioterapia13.

    RESULTADOS

    O percurso dos cinco passos para a profissionalizao,considerada por Wilensky1, pde ento ser identificado aoser reconstituda a histria da fisioterapia em Minas Gerais,no perodo compreendido entre 1950 e 1980.

    A necessidade da ocupaoNa dcada de 1940, as termas mineiras capacitavam

    e absorviam pessoal com experincia em massagem e hidro-terapia. Nessas termas, a concepo de sade ainda estavainterligada com a aparncia fsica das pessoas, os hbitossaudveis e a higiene pessoal: 1945. O grande era massagem.As termas recrutavam pessoas com aparncia saudvel.Era uma exigncia E2. Nesse incio, os recursos queposteriormente seriam identificados como especficos da fi-sioterapia eram utilizados mais para a manuteno da sadedo que propriamente para o tratamento das doenas.

    Em 1952, foi criado um servio direcionado ao aten-dimento criana com tuberculose ssea e com poliomieliteem Belo Horizonte, o Hospital da Baleia: O professor MataMachado foi levado pelo professor Baeta Viana, que apro-veitou os conhecimentos que ele adquiriu na Amrica, eimplantaram a ortopedia na Baleia E8. Este novo servioaumentou a necessidade, principalmente por parte dos mdicosortopedistas, de recurso humano qualificado para o atendimentoem reabilitao. As madres da Congregao FranciscanaMissionrias de Maria, que j trabalhavam na rea de enfer-magem, foram treinadas para realizar o trabalho: As irmsaprenderam a lidar com estes pacientes. Eram treinadas eorientadas por ortopedistasE8.

    Durante a dcada de 1950, o grupo de ortopedistas doHospital da Baleia passou a liderar a rea de reabilitao emBelo Horizonte, com um modelo de reabilitao ps-guerra,importado dos Estados Unidos, em que o foco do trabalhoera a recuperao de leses traumticas14 : - Os residentesde ortopedia americanos estavam todos servindo exrcito,na ocasio da guerra. E o Jos Henrique [da Mata Machado],

    ele e alguns outros [...] fizeram aprendizado na Amrica evoltaram operando tudo E8.

    Dada a necessidade de que aquela ocupao, exercidapor irms de caridade e prticos, passasse a ser desempenhadapor pessoal mais qualificado, quem tinha alguma experinciacom massagem ou com hidroterapia era aproveitado para asatividades de reabilitao. Pode-se perceber pelas entrevistasque a relao entre os mdicos e os que seriam os primeirosfisioterapeutas mineiros era de cooperao: - Os mdicosentravam na piscina de igual para igual E2.

    Apesar das dificuldades, o servio de reabilitao doHospital da Baleia passou a ser reconhecido e consideradocomo referncia no Estado de Minas Gerais. Valendo-se dessereconhecimento, os mdicos da rea idealizaram um hospitalespecializado para o atendimento aos portadores de deficinciafsica, o Hospital Arapiara, e organizaram a capacitao depessoal de maneira padronizada, mediante os cursos deFisioterapia e de Fisiatria da Faculdade de Cincias Mdicasde Minas Gerais FCMMG. Entrevistados informaram quea criao do curso de Fisioterapia por esse grupo de mdicosque liderava a rea de reabilitao no Estado foi motivada pelanecessidade de mo-de-obra para os servios por elescoordenados. Eles fizeram fisiatria nos Estados Unidos evoltaram para Belo Horizonte. Sentiram a necessidade decriar um curso para suprir a necessidade principalmente doshospitais que atuavam E5.

    Tambm pode ser percebido nas entrevistas que houveum momento em que mdicos e futuros fisioterapeutasidealizaram um trabalho em equipe. A idia de Mrcio deLima Castro era de que o Arapiara fosse um hospital ondetodos trabalhassem de mos dadas E2. Outro ponto a destacar que, desde o incio, a proposta era que o curso de fisioterapiacriado pelo Hospital Arapiara estivesse vinculado a umafaculdade. A exigncia legal de que houvesse uma fundaopor trs do convnio entre o Arapiara e a FCMMG queretardou o processo. Com a idia do curso, simultaneamenteformaram a Fundao Arapiara. Era uma exigncia ser ligadoa uma fundao E2. Fato importante, uma vez que demonstraque, apesar de o primeiro curso de Fisioterapia ter sido criadopor necessidade dos mdicos do Hospital Arapiara, a idiano era manter o curso atrelado ao hospital. Cabe entodestacar a importncia do Arapiara para o desenvolvimentoda reabilitao e para o processo de profissionalizao dafisioterapia no Estado.

    Pode-se ento notar que o surgimento da ocupao defisioterapia no Estado de Minas Gerais deu-se pela necessidadede mo-de-obra especializada para atender a uma demandados profissionais mdicos, principalmente ortopedistas, fisiatrase reumatologistas. Parece que, medida que se investe emdeterminada rea ou ocupao, cria-se um espao social paraela e, a partir da, a demanda pelo profissional comea acrescer; no caso da profisso aqui estudada, no foi diferente.Esses mdicos mineiros, dimensionando a falta do profissional

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    de reabilitao trouxeram um modelo americano de reabilitao,uma vez que se especializaram em ortopedia ou fisiatria nosEstados Unidos da Amrica, sendo alguns, como Mrcio deLima Castro, no Instituto de Reabilitao da Universidadede New York, dirigido por Howard Rusk14 E1, E5, E8. Napoca, tais mdicos dominavam todos os grandes serviosde sade que tinham algum vnculo com reabilitao,passando, assim, a controlar a formao dos futurosprofissionais.

    A formao profissionalEm 1962, teve incio o curso de Fisioterapia com a

    parceria entre o Hospital Arapiara e a FCMMG. O modelode sade curativo e reabilitador do ps-guerra influencioua cultura do fisioterapeuta, sendo esse o eixo central doprocesso de formao e instruo da categoria no Estado.Embora a escola representasse o incio da profissionalizao,quase todos os professores ainda eram mdicos e investiu-se em um treinamento de cunho mais prtico, mesmo porque,como apontado em entrevistas: no tinha muita coisa pravoc estudar E3. A formao desse profissional atravessadapela medicina parece ter dificultado a autonomia e a vinculaodo fisioterapeuta com a comunidade, transformando-o emum profissional auxiliar, subordinado s regras emitidas pelosmdicos: Ficava o mdico especializado para prescrevero tratamento do fisioterapeuta. Voc [fisioterapeuta] s podiaatuar, no podia mudar uma vrgula E2.

    A partir de 1969, a formao profissional passa a serorientada por parmetros mais definidos para a fisioterapia,como a ampliao do curso para quatro anos, a contrataode professores fisioterapeutas e a busca por locais de estgiono controlados por mdicos, como a Santa Casa deMisericrdia. Apesar do avano, as dificuldades encontradasna definio das atribuies se complicaram, somando-se hierarquizao externa das aes mdicas uma hierarquizaointerna, indicando um conflito entre a formao tericainstitucionalizada e o saber prtico adquirido. Os conflitosentre fisioterapeutas e mdicos, principalmente fisiatras, eentre fisioterapeutas e auxiliares foram salientados: Tevecoisa braba, de rixas, de no aceitao E4.

    De acordo com o desenvolvimento profissionalcaracterizado por Wilensky1, em outras profisses, comoa fisioterapia em Minas Gerais o processo foi semelhante,a saber: os primeiros professores eram os que lideravam areabilitao no Estado; o primeiro curso comea vinculadoa uma faculdade; o treinamento padronizado passa a serrequisito para ingressar na ocupao e, com base no curso, criada uma associao profissional. Cabe ressaltar aimportncia das primeiras turmas desse curso nodesenvolvimento da identidade profissional do fisioterapeutamineiro, quando:as primeiras turmas tm o grande mritode ter conseguido a independncia da profisso e arespeitabilidade dela E4.

    A associao profissionalMobilizados principalmente pelos conflitos internos e

    externos, em 1968 os profissionais se uniram em umaassociao Associao Mineira de Fisioterapeutas (AMF), considerando que essa seria uma forma de auto-regulao,que serviria para preservar ou melhorar o padro dos serviosprestados, aumentar o prestgio profissional e diminuir acompetio externa (mdicos) e interna (prticos e auxiliares).Mas a associao mineira era frgil, tinha dificuldades queiam do financeiro pouca clareza de seus objetivos, noconseguindo cumprir, na maioria das vezes, com o papelesperado para entidades com essas caractersticas.

    Alguns autores 1,15 consideram que a fase de formaode uma associao representa a busca de identidadeprofissional. Um fator que contribui para a formao dessaidentidade o profissionalismo, que compreende atitudescomo o uso da organizao profissional, a crena na auto-regulao, o sentido de vocao e de autonomia16. A idia decorporativismo, referida por Machado4, como fator tambmimportante para o profissionalismo, pde ser identificado nasentrevistas, como ao ser citado que naquela poca: a genteabraava mesmo ou a gente se dava muito as mos E4.

    Segundo Noronem et al.3a autonomia pode ficarcomprometida se no houver a definio da especificidadeda fisioterapia e uma apropriao por parte do fisioterapeuta.Neste estudo, foi verificado que a autonomia do fisioterapeutaesteve prejudicada pela medicina em vrios momentos.Inicialmente, pelo monoplio dos saberes e das condutas nocontrole e no gerenciamento dos servios de reabilitao, naprescrio do tratamento, e, mais recentemente, nadependncia do encaminhamento para o tratamentofisioteraputico.

    Questes relacionadas denominao parecem terdificultado a identificao profissional, como a rejeio dofisioterapeuta ao rtulo de massagista, denominao percebidacomo menos profissional: ns comeamos a mudana dahistria de deixar de ser massagista pra ser fisioterapeutaE4.

    A definio das competncias tambm trouxe conflitosinternos e externos, mesmo porque no existia clareza quantoao modelo a seguir. O desenvolvimento dessas competnciasfoi-se dando ao longo do tempo pelos prprios conflitos entreos profissionais. A diviso do trabalho foi-se estruturandode forma hierrquica, ou seja, as atividades foram transferidasem funo da complexidade para os profissionais de acordocom a sua qualificao: Um procedimento que era maisespecfico, era a gente [fisioterapeuta] mesmo que fazia.Mas a coisa mais corriqueira normalmente eles [auxiliar]faziam E3.

    As entrevistas apontaram que o ideal de servio erafocado no bem-estar do paciente. Era valorizada a viso doindivduo como um todo E3, o poder de cura relacionadoao toque, e o fisioterapeuta que tivesse uma excelente relaoterapeuta/paciente E5. Nesse perodo, o contato prximo

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    do fisioterapeuta com o paciente, transmitindo aquelavibrao que se tem em trabalhar com ele E2, proporcionadapelo instrumento de cura da fisioterapia - a mo dofisioterapeuta E9 e pelo acompanhamento do processo dereabilitao, geralmente longo, que valorizava mais a relaoterapeuta paciente que a tcnica empregada E9 - , foiconsiderado especificidade e vantagem da fisioterapia.

    A proteo do territrio ocupacionalSegundo Wilensky1 a regulamentao da profisso vem

    assegurar o monoplio do saber e da prtica profissional. Paratanto, a especificidade da fisioterapia deveria estar melhordefinida, para que tal regulamentao viesse ao encontro dareal necessidade da categoria.

    De acordo com Rebelatto et al.5, um dos primeirosdocumentos oficiais que definem a ocupao do fisioterapeuta o Parecer n 388/63 do Conselho Federal de Educao. Esseparecer representa a fora do papel reabilitador do fisioterapeutana poca; embora tivesse formao de nvel superior, ele aindaera denominado tcnico. O termo tcnico vem marcar acompetncia de auxiliar do mdico. Esse parecer serviu deguia at 1969, quando a fisioterapia reconhecida comoprofisso de nvel superior. Usando das atribuies em atosinstitucionais, os Ministros da Marinha de Guerra, do Exrcitoe da Aeronutica Militar, em 13 de outubro de 1969, por meiodo Decreto-Lei n 93817, reconheceram os fisioterapeutasdiplomados por escolas e cursos reconhecidos pelo MECcomo profissionais de nvel superior e tornaram exclusivaa execuo de mtodos e tcnicas especficas categoria18.

    Pode-se observar o quanto a legislao era vaga, quandono se tem a definio dos mtodos e tcnicas especficasao fisioterapeuta, como apresentado no artigo 3 do Decreto-Lei n 938:

    atividade privativa do fisioterapeuta executar mtodose tcnicas fisioterpicas com a finalidade de restaurar,desenvolver e conservar a capacidade fsica do paciente17.Segundo Wilensky1, quando o conhecimento geral e vago,ou muito estreito e especfico, traz uma base fraca para ajurisdio exclusiva.

    Em 3 de dezembro de 1971, reconhecido o Curso deFisioterapia da FCMMG, por meio do Decreto-Lei n 69.68719,com importante participao da AMF e dos alunos: - Passavafins de semana fazendo levantamento de biblioteca, tratandodos bichos no biotrio pra quando viesse a comisso do MECE4. Aps o reconhecimento da profisso no Brasil e do primeirocurso em Minas Gerais, o prximo passo foi o deregulamentao da profisso. Em 17 de dezembro de 1975,por meio da Lei n 6.31620, decretada pelo Congresso Nacionale sancionada pelo Presidente da Repblica, General ErnestoGeisel, foram criados o Conselho Federal de Fisioterapia eTerapia Ocupacional COFFITO - e os Conselhos Regionaisde Fisioterapia e Terapia Ocupacional - CREFITOs.

    Como apontado em algumas entrevistas, a legislaose mostrou mais como uma troca de favor obtida mediante

    articulaes polticas A gente sempre usa dasoportunidades E5, -A gente procurava algum que pudesseajudar, influenciar l em cima. Influncia poltica, umainfluncia militar E3.

    A indefinio de suas atribuies levou os fisioterapeutasa lutar por uma legislao que reduzisse a competio interna,por meio da excluso dos prticos e auxiliares - a gente [ofisioterapeuta] acabou excluindo estas pessoas [auxiliaresde fisioterapia e prticos] E5 -; mas que pouco asseguroucom relao autonomia profissional e ao monoplio do sabere das condutasA profisso realmente t mais conhecida,mais divulgada. [...]O fisioterapeuta ainda depende muitodo mdico E6.

    O cdigo de ticaA aderncia a um conjunto de normas profissionais, por

    meio do cdigo de tica, vem assumir um aspecto de controlee de organizao do trabalho, acrescentando um critrio distintoao trabalho tcnico do profissional, baseado no conhecimentoadquirido por um longo treinamento1. Essas regras moraisvm com o intuito de eliminar os no qualificados e de reduzira competio interna, protegendo os clientes e enfatizandoo ideal de servio. A criao do cdigo de tica profissionaldo fisioterapeuta no Brasil deu-se em 197821, com aparticipao das associaes profissionais regionais, dentreelas a AMF22. Esse cdigo centrado na auto-identidade doprofissional e no ideal de servio, caractersticas consideradascomuns naquelas profisses que procuram certo grau deautonomia. Wilensky1 considera que, na maioria das profissesem processo de consolidao, o estabelecimento de um cdigode tica aparece como o ltimo passo.

    Esse cdigo21 contm seis captulos, quais sejam: DasResponsabilidades Fundamentais, Do Exerccio Profissional,Do Fisioterapeuta Perante as Entidades de Classe, DoFisioterapeuta Perante os Colegas e Demais Membros daEquipe de Sade, Dos Honorrios Profissionais e DisposiesGerais. Nesses captulos, pode-se observar o enfoque noprofissional indo ao encontro da auto-identidade, e o enfoqueno cliente indo ao encontro do ideal de servio, como tambmobservou Purtilo23.

    Quanto ao enfoque no profissional, so apontados avalorizao da honra, o prestgio e as tradies da profisso. afirmada a atribuio de fazer o diagnstico fisioterpicoe elaborar o programa de tratamento, e colocado como umdever pertencer a uma entidade associativa de classe. Comodireito, a justa remunerao, como necessidade, aconcorrncia leal e o tratamento com respeito entre oscolegas21.

    Quanto ao enfoque no cliente, so colocados como devera proteo, o respeito vida e intimidade, o poder de decisoe o sigilo profissional. Como proibies, negar ou abandonarassistncia, divulgar terapia cuja eficcia no seja publicamentereconhecida ou prescrever tratamento sem examinar21.

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    O cdigo de tica vem afirmar a necessidade de adernciado profissional ao ideal de servio, ao enfocar o cliente atmesmo o protegendo. Vem penalizar ou at eliminar os no-qualificados, com penas disciplinares, e vem reduzir acompetio interna. Apesar de que, no captulo DisposiesGerais, o art. 3421 trata da possibilidade de alterao do cdigopelo COFFITO, no houve nenhuma alterao desde que foicriado.

    Purtilo22 considera que, da dcada de 1950 at aatualidade, a tica do profissional fisioterapeuta se encontraem um perodo da identidade focada no paciente, e apontaum perodo futuro emergente quando se estabelecer umaparceria mais ampla com cidados e instituies.

    CONSIDERAOES FINAIS

    Segundo Wilensky1 o futuro do profissionalismodepende do desenvolvimento na organizao do trabalho eno conhecimento especfico. J para Machado4 o corpoesotrico do conhecimento deve conter os segredos e astcnicas prprias de cada profisso, assim como visibilidadesocial. Para a afirmao efetiva da fisioterapia, comoprofisso, torna-se ento necessria a delimitao dasespecificidades do seu saber e do seu fazer (teoria e prtica),com instrumentos prprios de apropriao e interveno. Assimcomo em outras profisses24, tambm no caso da fisioterapiadeve existir um esforo de se repensar sobre o objeto detrabalho e a metodologia que delimita sua ao, levando aoafastamento e diferenciao do modelo mdico de trabalho.

    indiscutvel o quanto a fisioterapia tem avanado, tantona produo de conhecimento especfico e na implementaodesse conhecimento na clnica, a chamada prtica baseadaem evidncias, quanto em programas de ps-graduao latosensu e stricto sensu; porm, a socializao necessria parao reconhecimento pblico ainda no foi alcanada.

    Autores como Noronem3 acreditam que, enquanto ofisioterapeuta no identificar o seu papel e ser capaz de falarclaramente sobre ele nas equipes multidisciplinares de sade,a profisso no ir avanar. Machado25 refora essa questoquando coloca que, apesar de o fisioterapeuta ter tradiode trabalho, essa uma profisso nova, com poucaparticipao nas equipes do Sistema nico de Sade.

    Por fim, cabe destacar a importncia de entender eteorizar sobre a histria da estruturao do campo dafisioterapia, dando visibilidade ao processo ininterrupto dastransformaes impostas pelos condicionantes de cadamomento histrico de sua profissionalizao. Compreenderas razes da fisioterapia torna-se ento fundamental paradefinir quem esse profissional e para traar os rumos daprofisso no Pas.

    Para finalizar, algumas questes importantes devem serapontadas em pesquisas que utilizam fontes como entrevistas,atas de reunies, leis e outros documentos para reconstruire entender fatos histricos, no que se refere ao alcance desse

    material para tal fim. Considerando que grande parte domaterial utilizado neste trabalho foi obtida por meio deentrevistas, pertinente lembrar que esta informaorepresenta uma percepo social dos fatos, portanto estsujeita as presses sociais do contexto em que so obtidas.Por outro lado, destaca-se tambm que um volume extensoda cincia social moderna em antropologia, sociologia,psicologia e educao baseado na utilizao de entrevistascomo dado cientfico26,27.

    Ao acompanhar como se deu a profissionalizao dafisioterapia em Minas Gerais, pde-se perceber certascaractersticas tambm encontradas em outras profisses1.A compreenso de como foi definida a necessidade dafisioterapia no estado, de como ela se organizou, e de comose deu a construo da identidade do profissional podercontribuir para o entendimento da importncia de se definira especificidade da fisioterapia. A continuidade de estudoscom esse enfoque poder colaborar para o entendimento dafisioterapia nas Cincias da Sade, e para a sua participaointegrada na equipe multidisciplinar.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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