ARTIGO 11I o escolar: Uma relação mediada por ... · a ambiência cultural escolar, torna-se...

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ARTIGO - 11I EDUCAÇÃO EM DEBATE Messias Dieb 1 o curriculo oculto e o fracasso escolar: Uma relação mediada por representações sociais e pela relação com o saberê Resumo o objetivo deste trabalho é discutir a relação entre o currículo, como um objeto que forja identidades, eo fracasso escolar, enfocando, especialmente, o papel das representações sociais e da relação com o saber nessa articulação. De acordo com as discussões aqui empreendidas, as representações que orientam muitas das práticas educativas podem ser reveladoras de um currículo oculto que se desenvolve nas escolas, sem que os professores percebam. Ademais, o artigo sugere que se identiticarmos essas representações sociais, poderemos neutralizar o currículo oculto e desnaturalizar o fracasso escolar. Para isso, propõe, tal como faz Bemard Cbarlot, que o fracasso escolar não existe, o que existe é uma realidade desigual, socialmente construída, distanciando aqueles que encontram dos que não encontram sentido na escola. Palavras-chave: Currículo. Representações sociais. Relação com o saber. Abstract The occult curriculum and schooling failure: a relationship mediated by social representations and knowledge Tliis paper deals witb ttie relation between cutticulum and scbooling failure, focusing especia11y on the role that social representations and knowledge plays in it. According to our findings, the social representations that guide many educational ptectices may reveal an occult cutticulutn genera11y ceitieâ out by schools, even though teachers are not aware of such a reality. In addition, tbis paper suggests that if we identify these social representations, we will be able to reduce the effects of the occult programs of study and tum schooling failure into something unnatural. Consequently, it also considers, as Bemard Charlot does, that schooling failure does not exist. In other words, what exists is a unequal reality wbiot: promotes a long distance between those fOÍ whom schooling makes sense and those for whom it does not. Key-words: Programs of study. Social representations. Relation with knowledge. I Doutorando em Educação pela UFC. Trabalha com a temática da relação com o saber dos professores da educação infantil. Professor da Faculdade de Educação da Uefm. E-mai1: [email protected] 2 Trabalho produzido no Núcleo de Pesquisa em Educação (Nuped), da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do orte (Uem). 18 EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 28 - V I - N°. 51/52 - 2006

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ARTIGO

-11IEDUCAÇÃOEM DEBATE

Messias Dieb1

o curriculo oculto e o fracassoescolar: Uma relação mediadapor representações sociais epela relação com o saberê

Resumo

o objetivo deste trabalho é discutir a relação entre o currículo, como um objeto que forjaidentidades, e o fracasso escolar, enfocando, especialmente, o papel das representações sociaise da relação com o saber nessa articulação. De acordo com as discussões aqui empreendidas, asrepresentações que orientam muitas das práticas educativas podem ser reveladoras de um currículooculto que se desenvolve nas escolas, sem que os professores percebam. Ademais, o artigo sugereque se identiticarmos essas representações sociais, poderemos neutralizar o currículo oculto edesnaturalizar o fracasso escolar. Para isso, propõe, tal como faz Bemard Cbarlot, que o fracassoescolar não existe, o que existe é uma realidade desigual, socialmente construída, distanciandoaqueles que encontram dos que não encontram sentido na escola.

Palavras-chave: Currículo. Representações sociais. Relação com o saber.

AbstractThe occult curriculum and schooling failure: a relationship

mediated by social representations and knowledge

Tliis paper deals witb ttie relation between cutticulum and scbooling failure, focusingespecia11y on the role that social representations and knowledge plays in it. According to ourfindings, the social representations that guide many educational ptectices may reveal an occultcutticulutn genera11y ceitieâ out by schools, even though teachers are not aware of such a reality.In addition, tbis paper suggests that if we identify these social representations, we will be ableto reduce the effects of the occult programs of study and tum schooling failure into somethingunnatural. Consequently, it also considers, as Bemard Charlot does, that schooling failure does notexist. In other words, what exists is a unequal reality wbiot: promotes a long distance betweenthose fOÍ whom schooling makes sense and those for whom it does not.

Key-words: Programs of study. Social representations. Relation with knowledge.

IDoutorando em Educação pela UFC. Trabalha com a temática da relação com o saber dos professores da educação infantil. Professorda Faculdade de Educação da Uefm. E-mai1: [email protected]

2 Trabalho produzido no Núcleo de Pesquisa em Educação (Nuped), da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do RioGrande do orte (Uem).

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Considerações iniciais

Os homens nunca foram histórica nemsocialmente iguais em sua maneira de existir,e, por isso, é compreensível que suas diferençassejam significadas, na grande maioria dasvezes, de forma equivocada. É desse equívocoque surgem as opressões e as tentativas dedominação entre homens, entre sociedades,entre classes socioeconômicas e, sem dúvida,entre culturas. No que diz respeito a todas essastentativas, é quase impossível não pensar queos dominantes assim se posicionam porquerepresentam os dominados como seres inferiorese incapazes de se manter sozinhos, precisandoda sua inteligência privilegiada para guiá-Ios.

Ao transpormos essas reflexões paraa ambiência cultural escolar, torna-se quaseum imperativo pensarmos como Silva (1999)no currículo como um documento através doqual se forjam as identidades. Isso se justificaporque é esse o documento que orienta todasas ações dentro da escola, sejam elas visíveisou camufladas. No primeiro caso, temos o quese chama de currículo explícito e, no segundo, oque se convencionou chamar de currículo oculto.Entretanto, em qualquer um dos dois casos, ocurrículo sempre se configura como um conjuntode ações, idéias e valores que serão repassadosàs crianças, tanto pela linguagem como tambémpela organização da ambiência escolar.

Por essa razão, supomos que muitasrepresentações sociais (MOSCOVICI, 1976)circulam dentro desse documento, haja vistaserem elas também um conjunto organizadode opiniões, de atitudes, de crenças e deinformações referentes a um objeto ou a umasituação (cf.ABRIC,2001), tal como a que ocorreno processo de ensino. Portanto, não é difícilinferir que o fracasso escolar de grande partedas crianças menos favoreci das socialmente,por exemplo, possa ser um produto social dasmuitas relações equivocadas ou preconceituosasque há entre. as condições socioeconômicasdessas críãriças e o seu rendimento no processode aprendizagem mediado pela escola.

Para melhor refletir sobre a suposiçãoacima, traçamos, neste trabalho, o objetivo deinter-relacionar as noções de currículo oculto ede representação social (RS) com vistas a umadiscussão que desnaturalize o fracasso escolar,

afastando do aluno a responsabilidade ou aculpa do insucesso que sempre lhe cai sobreas costas. A escolha dessas duas noções seexplica pela proximidade com que podemostrabalhá-Ias sem, no entanto, nos perdermosem devaneios teóricos que não nos levariam alugar algum.

Falaremos, inicialmente, sobre a idéiade currículo oculto, defendida por Silva (1999),e, em seguida, sobre a definição de RSdada porAbric (2001),por considerarmos que elas nos dãograndes possibilidades de diálogo. Concluiremoso artigo estendendo esse diálogo às reflexões deCharlot (2000) sobre a relação fracassada quecertos alunos têm com o saber escolarizado.

o currículo oculto e asrepresentações sociais: relaçõespossíveis?

Para melhor discutir a noção de currículooculto e relacioná-Ia à de RS, buscaremos apoioem uma pesquisa realizada por Rabelo (2000),na qual esta autora analisou como uma escolade Fortaleza, Ceará, cuja proposta curricularse autodenomina construtivista, participada formação do juízo moral na criança. Paraalcançar seu objetivo, Rabelo se dedicou àstarefas de observar e entrevistar as professorasdessa escola. No final da pesquisa, a estudiosapercebeu que a aparente visão construtivistaque permeava os discursos correntes naquelainstituição não se efetivava na práticapedagógica, desviando-se da proposta curri-cular adotada.

De tal modo, o estudo citado no parágrafoanterior demonstra o quão ainda é contraditóriaa relação entre o dizer e o fazer de muitosprofessoresê, Oensino, que deveria fomentar umaaprendizagem com características colaborativas,críticas e democráticas, passa a assumir, infeliz-mente, contornos opostos, tais como os deconformismo, obediência e individualismo.Assim sendo, a ação pedagógica dos professores,descrita na pesquisa da autora, nos sugere a idéiade uma prática através da qual podemos flagrarindícios de um currículo oculto.

Isso se explica porque os efeitos doprocesso de ensino não se forjam apenas narelação da sala de aula, tampouco centrando-

3 Sempre que utilizarmos a expressão os professores, estaremos nos referindo também aos educadores de um modo geral. aos gestorese aos demais profissionais da educação que atuam dentro ou fora da sala de aula.

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se exclusivamente nos conteúdos estudados.Em qualquer escola, o fazer docente é sempremarcado por representações sociais que nelacirculam. São essas representações (de aluno,de escola, de professor etc.) que na maioria dasvezes contribuem mais para a construção dasidentidades do que os conteúdos curricularespropriamente ditos. Isso ocorre porque, comoasrepresentações são partilhadas no meio social,através delas se propagam também idéias evalores, os quais são repassados às criançassem que as famílias tenham muita gerênciasobre isso.

As representações são, consoan e asexplicações de Bourdieu e Passeron r992),estruturadas pelo bsbitus dos sujeitos. Esseconceito nos remete às estruturas simbó .cas,sociais ou culturais que se' ernalizam ao io goda vida dos indivíduos e lhes predispõem para,entre outras coisas, elaborar as representaçõesque orientarão as suas práticas. Assim sendo,quando tais práticas ocorrem dentro da escola,elas fazem parte do que estamos denominandocurrículo oculto, pois as concepções que aelas são inerentes não estão explicitadas emnenhum momento do fazer pedagógico.

Nesse sentido, pressupomos que osprofissionais da escola aludida na pesquisade Rabelo ainda não tenham se apropriadobem das orientações do construtivismo e,por isso, as ações que eles empreendem, aoinvés de se fundamentarem na vertente dopensamento piagetiano, apóiam-se na RS quedela construíram e compartilham. Por isso, setornarmos o currículo oculto também corno umnorteador das práticas sociais,poderemos, então,interpretar as tornadas de posição simbólica dosagentes educacionais, em relação aos váriosobjetos envolvidos na ação pedagógica, cornomarcas indicadoras das representações que elesconstroem sobre tais objetos.

Segundo Doise (2001), urna tornadade posição simbólica está sempre orientadapor um princípio relacional que estrutura asrelações entre os indivíduos em interação.Logo, a ínter-relação entre o currículo oculto e aRS pode ser, perfeitamente, estabelecida, poisa última pode ser vista corno norte adora doprimeiro. Desse modo, o currículo oculto, maisrelacionado às características da ambiência

educativa, especialmente escolar, do queaos conteúdos científicos preestabelecidos,contribui, implícita e amplamente, para aaprendizagem de diferentes conceitos inerentesà vida social, os quais se organizam na e pelaRS. Esta, configurando-se corno um saber queorienta práticas, certamente, circula por entreos conceitos que são construídos durante asinterações e ajuda na significação da realidadeem que nos inserimos.

Por esse motivo, sugerimos que a Teoriadas Representações Sociais(TRS)pode contribuircom a educação, especialmente com a formaçãodosprofessores,nosentidodeneutralizarosefeitosdo currículooculto e de nos levar à compreensãode que o fracasso escolar é uma construçãosocial Isso é possível porque ela é uma teoriacapaz "de descrever, mostrar uma realidade, umfenômeno que existe, do qual muitas vezes nãonos damos conta, mas que possui grande podermobilizador e explicativo" (OLIVEIRA;WERBA,2001, p. 107). Portanto, ao identificarmos asrepresentações sobre o aluno, por exemplo, queorientam as práticas dos professores, poderemoscompreender em que medida a escola o incluiou o exclui das atividades pedagógicas que sãopensadas para ele.

Embora tenha sido Moscovici (1976)quem elaborou a noção de representação social,consideramos a definição de Abric (2001)4umadas explicações mais claras para o fenômeno.Segundo este último, a representação

[...] é um conjunto organizado de opiniões,de atitudes, de crenças e de informaçõesreferentes a um objeto ou a uma situação. Édeterminada ao mesmo tempo pelo próprio su-jeito (sua história, sua vivência), pelo sistemasocial e ideológico no qual ele está inserido epela natureza dos vínculos que ele mantémcom esse sistema social (p. 156).

Corno podemos perceber, o autordescreve a·emergência da RS e a vincula aocontexto histórico 'e social no qual o indivíduose insere. Se a RS diz respeito a um produtodeterminado, ao mesmo tempo, pelo sujeitoe pelo sistema social e ideológico no qual eleestá inserido, é muito difícil, quiçá impossível,

4 Esse autor elaborou, a partir da TRS, a Teoria do Núcleo Central (TNC). Segundo essa teoria, os elementos mais significativos daRS formam um núcleo cuja função é a de organizar todos os outros elementos e dar significado social ao objeto representado. Abrice seus colaboradores também desenvolveram uma série de procedimentos metodológicos, utilizando uma abordagem experimental,para identificar e descrever os elementos da RS e a sua estrutura organizacional.

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percebê-Ia sem uma imersão nesse sistema. Aimersão se faz necessária para que se capte,segundo a definição de Abric, a natureza dosvínculos que o sujeito mantém com o objetosocialmente construído e comunicado.

Associando essas reflexões ao contextoda ação docente, a noção de RSpossibilita umadesocultação da realidade e dos fenômenosque existem nesse espaço de interação. Essesfenômenos, muitas vezes, não são percebidos,posto que a prática educativa é, sem sombrade dúvida, um território político e ideológico.Sob essa perspectiva, o saber que se encontrano currículo é fruto dos processos de disputase de conflitos sociais, através dos quaiscertos conhecimentos passam a compô-Ia eoutros não, consoante já discutimos acima. É,pois, entre esses processos de disputas e deconflitos sociais que muitas representações sãoconstruídas e/ou transformadas.

A escolha dos conteúdos que compõemo currículo sinaliza também para umaoportunidade de compreensão de como osalunos são representados pelos professores, decomoestes representam a escola e seus espaços,principalmente a sala de aula, e até mesmo oprocesso ensino-aprendizagem (SOUSA;DIEB,no prelo). Entretanto, essas representaçõesmanifestas no currículo nem sempre coincidemcom as verdadeiras representações queorientam a prática da escola. Segundo Guimellie Deschamps (2000), há na RS espécies dezonas mudas que estão relacionadas a normasimportantes para um determinado grupo e quedificilmente são expressas pelos sujeitos emsituações comuns do cotidiano. Assim sendo,inferimos que essa seja a razão pela qual sejustifica a existência de um currículo oculto.

Nesse caso, não podemos negar que éele um dos grandes responsáveis pelo fracassoescolar, aqui entendido como o produto de umaprática excludente e, socialmente, injusta. Deacordo com Trindade (2005), o modo pelo qualconcebemos o significado do fracasso escolarestá intimamente ligado às concepções de vida eda vida escolar,já que a relação dos sujeitos comos objetos que representam vai se construindo,constantemente, através de negociações designificados sociais partilhados. Desse modo, éfulcral que se desvendem as múltiplas relaçõese construções de significados (vínculos) queexistem dentro do espaço escolar.

Por isso, associar o currículo ocultoà noção de RS se justifica dado o consensode que o procedimento mais adequado paraevitar os seus efeitos negativos é tomá-Ia

manifesto, ou seja, é identificar as instânciasnas quais parecem opacas as intenções dequem promove o ensino. De acordo com Silva(1999), "tornar-se consciente do currículooculto significa, de alguma forma, desarmá-10" (p. 80). Por isso, sugerimos que se osprofessores desenvolvesse o hábito de refletirsobre suas ações, seus po de vista sobrea realidade escolar e sobre a . tencionalidadeque está sempre inclusa na ação pedagógica,possivelmente, teríamos uma esco menosfracassada em seus objetivos de . ersalizarvalores humanos.

Isso implica considerar, com óvoa(1995) e Freire (2000), que a escola se constituino lugar mais apropriado para promover aconstrução teórico-prática do trabalho docente.Na construção, dar-se-á uma formação emserviço no verdadeiro sentido do termo,carregada de todas as implicações que essaexperiência possa comportar. Essa maneira dese pensar a formação do professor inaugurauma perspectiva que considera, em especial,duas dimensões: a ação e a reflexão. Essasdimensões estão de tal forma solidárias eem uma interação tão radical que, nessaperspectiva, sacrificada ainda que em parteuma delas, ressente-se imediatamente a outra,pois não há palavra verdadeira que não sejapráxís (cf.FREIRE,2005).

Concordamos, plenamente, com os doisautores citados no parágrafo anterior porqueentendemos a formação dos professorescomo algo que deve ser contínuo. Em adendo,defendemos que os educadores de um modogeral, assim como os alunos, também sofremas influências de um currículo oculto emsua formação. São essas influências que oidentificarão como profissionais, emboraprecisemos ressaltar que as pessoas sãodotadas de uma racionalidade sempre prontaa libertá-Ias de suas amarras ideológicas. Noentanto, também é verdadeiro o pensamentode Sacristán e Gómez (1989) de que "ocomportamento profissional dos professoresestá mais ligado com os efeitos ocultos daspráticas e das instituições em que se formaramdo que comos conteúdos explícitos do currículocom que se pretendeu prepará-Ias" (p. 18).

Por esse mesmo caminho, segue a nossareflexão em relação à formação das crianças.Destarte, na seqüência, vamos discutir comCharlot (2000) a noção de fracasso escolar,apresentando-o como algo que não existe,caso ele seja concebido como um mal que seapodera dos alunos, que pode ser analisado

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externamente à própria dinâmica da salade aula. Bliscaremos, pois, nesta discussão,mostrar a ação mediadora das representaçõessociais entre o currículo e as muitas situaçõesde fracasso em que se encontra uma boa partedas crianças no Brasil.

A desnaturalização do fracassoescolar

Consoante os argumentos do pesqui-sador francês Bernard Charlot, existem pos-turas diferenciadas diante da esoola entre ascrianças de classes médias e as das classesmais populares. Dito de outra maneira, hádiferenças entre o modo de elas atribuíremsignificados à escola e isso não pode deixar deser considerado. Além disso, mesmo que nãohaja uma relação automática de causalidade,o autor sugere a inegabilidade de que ascrianças pobres apresentam um índice maiorde insucesso na escola do que as de classesmais privilegiadas. Porém, Charlot defende quenão se pode determinar a razão do fracasso dacriança unicamente por sua condição social, jáque se constatam também casos de sucessoentre as classes populares e de insucesso entreas classes médias.

Para reverter uma situação de fracasso,Charlot (2000) argumenta que o professor devenegociar significados com o aluno, fazendo-operceber que o que está sendo ensinado temalgo a ver com ele, com suas idéias. Nessesentido, é preciso abrir um espaço para que oaluno considere o novo saber como algo valiosopara ele, através de diferentes tipos de tarefase possibilidades de expressão. Essa iniciativa édenominada pelo autor de mobilização, ao invésdo que muitos chamariam de motivação.

A diferença, segundo ele, é de que "amobilização implica mobilizar-se ('de dentro'),enquanto que a motivação enfatiza o fato de quese é motivado por alguém ou por algo ('de fora')"(p. 55). Entretanto, ele reconhece que essesdois cónceítos acabam se encontrando, pois seé verdade que as pessoas se mobilizam paraatingir um determinado objetivo que as motivea fazer algo, também o é que são motivadas poralguma coisa que pode mobilizá-Ias. Ao finaldessa reflexão, Charlot sinaliza para a idéia demovimento através do qual o sujeito se engajaem uma determinada atividade.

Essa atividade é expressa através deuma categoria que o autor denomina relaçãocom o saber. Esta representa uma forma espe-

cífica de relação com o aprender, um conjuntode relações que um indivíduo ou um grupomantém com o mundo, com os outros e consigomesmo. De acordo com o pesquisador francês,"a relação com omundo depende da relação como outro e da relação consigo" (p. 73). Portanto,para que uma situação de aprendizagemdesperte o interesse e o desejo de aprenderde um aluno, o professor precisa tornar-seinteressante e, desse modo, levar o aluno amobilizar a sua atividade intelectual atravésdo questionamento, conferindo um sentido aonovo saber que se quer ensinar.

Nesse sentido, o que Charlot conclui éque o fracasso escolar

[... ] não passa de um nome genérico, ummodo cômodo para designar um conjunto defenômenos que têm, ao que parece, algumparentesco. O problema é que se tem poucoa pouco reificado esse nome genérico, comose existisse uma coisa chamada "fracassoescolar". [... ] O fracasso escolar não é ummonstro escondido no fundo das escolas eque se joga sobre as crianças mais frágeis, ummonstro que a pesquisa deveria desemboscar,domesticar, abater. O "fracasso escolar" nãoexiste; o que existe são alunos fracassados,situações de fracasso, histórias escolares queterminam mal. Esses alunos, essas situações,essas histórias é que devem ser analisados, enão algum objeto misterioso, ou algum vírusresistente, chamado "fracasso escolar" (p. 16[itálico e aspas no original)).

Compramos também essa idéia, poissabemos que são muitos os fatores quecontribuem para as histórias fracassadas,geralmente, em destaque nos veículos decomunicação sempre que o governo publicaos resultados das avaliações realizadas peloSistema Nacional de Avaliação da EducaçãoBásica (Saeb).

Esse sistema faz parte das reformas doensino brasileiro e foi criado em meados dadécada de 1980, tendo como amparo jurídico aLei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDB(BRASIL,1996). Sua função é a de avaliaro rendimento escolar em nível nacional. Noensino fundamental, por exemplo, através deuma amostragem, o Saeb avalia o desempenhoescolar dos alunos das redes públicas e privadasmatriculados nas últimas séries do segundo edo quarto ciclos. Além dos testes com os alunos,o Saeb aplica questionários que são dirigidos àsescolas, aos diretores e aos professores.

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o índice de desempenho escolarapresentado pelo Saeb tem sido, geralmente,baixíssimo. Para alguns autores, comoPopkewitz e Lindblad (2001), o problema dasestatísticas apresentadas pelas avaliaçõesé que contêm dados que são tomados comosendo a própria realidade. Dessa maneira, "asestatísticas constroem classes de pessoas,inventários ou perfis de pessoas que podem sergeridas" (p. 126). Assim sendo, o Saeb terminapor associar o fracasso escolar à posição socialque ocupa a família, à renda da população e aoacesso das pessoas aos bens culturais.

Do mesmo modo, a avaliação coloca oensino em relação direta com o tamanho dasala de aula, com a formação do professor ecom o material que se encontra disponível nasescolas. Ou seja, para o Saeb, o fracasso escolarexiste e tem cara, levando, assim, a educaçãoa ser administrada com base em seus critériosde avaliação. Ao retomarmos a nossa discussãoanterior sobre a inter-relação entre currículoe representação social, tendo como base asproposições de Charlot e as informações sobreo Saeb, podemos agora entender, de forma maisclara, como se formam as legiões de fracassadose excluídos educacionais. Isso se justifica porconta da "imposição progressiva [de uma]'leitura negativa' do fracasso escolar e, maisgeralmente, da escolaridade das crianças dasfamílias de categorias sociais populares" que aSocioloqía", entre os anos 1960 e 1970, realizou,levando os docentes e a opinião pública ainterpretarem o insucesso dos alunos como algodiretamente dependente da sua origem sociale de suas deficiências pessoais (cf. CHARLOT,2000, p. 19).

Inferimos que, desse momento emdiante, se acentuaram muitas imagens e muitosconceitos sobre as crianças das camadas maispobres da população. Passaram elas a seros mortos de fome que só vêm para a escolamerendar e que, por isso, não aprendem; ospobres sem sorte que não têm muito a esperarda vida, a não ser trabalhar duro para ajudar afamília, éió menos, a se alimentar; os negrinhosfavelados que só conhecem a escola do crimee da droga e que, para eles, a escola tem deser um lugar de reabilitação. Enfim, supomos

BCH-PERIODICOS

que essas representações orientaram, e talvezcontinuem orientando, a prática de muitosprofessores que, ao planejarem suas aulas oumontarem seus currículos, menosprezarama humanidade, a dignidade e a capacidadecriativa de seus alunos.

Imaginamos quantas dessas crianças,ainda hoje, por pertencerem aos segmentos maispopulares, vêem-se como fracassadas, mesmoantes de pensarem em suas potencialidades.Não queremos dizer com isso que elas não sepercebam capazes, mas também não podemosesquecer de que a arnbiência escolar, o currículoocultoque nela se executa e as representações queperpassam esse currículonão as deixam imunes aurna pressão para baixo em sua auto-estima

Isso se explica pelo fato de que não édifícil ouvirmos certas tautologias cínicas, taiscomo a de que a causa ou a culpa da pobreza édos pobres. Esse quadro de pensamento tem sedelineado, de acordo com Fulvia Rosernberg6,como urna concepção culturalista sobre apobreza, cujo eco no senso comum é o de que opobre épobre porque tem baixa escolaridade, épobre porque as famílias são numerosa. épobreporque não recebeu carinho em casa. é pobreporque a família é desorganizada ete. Enfim.é pobre porque é pobre e, por isso, produz ereproduz a pobreza.

Em adendo, juntemos a essas interpre-tações outras manifestações preconceituosasdo tipo das que ocorrem quando, por algumarazão, as crianças não se sintam mobilizadas aparticipar de alguma atividade proposta pe osprofessores. Há, culturalmente, uma grandechance de que elas tenham de ouvir frases dotipo: Eu sei que você não quer nada!; Esse(a)menino( a) parece índio, parece um bicho-do-mato, não participa de nada!. Em casos comoesse, os professores esquecem de que eles têm,conforme nos diz Saviani (1982),

[... ] uma contribuição específica a dar em vistada democratização da sociedade brasileira,

do atendimento aos interesses das camadaspopulares, da transformação estrutural dasociedade. Tal contribuição se consubstanáana instrumentalízação, isto é, nas ferramentas

5 Os autores que mais representam esse momento da Sociologia são: Pierre Bourdieu, ]ean-Claude Passeron, Christian Baudelot,oger Establet, Samuel Bowles e Herbert Gintis.

liObservações retiradas da conferência de abertura do I Seminário do Núcleo de Desenvolvimento, Linguagem e Educação da Criançaude1ec) da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Ceará (UFC), realizado entre os dias 25 e 27 de outubro2004, no auditório da Fiec - Fortaleza - CE.

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de caráter histórico, matemático, científico,literário, etc. que o professor seja capaz decolocar de posse dos alunos (p. 63).

Entretanto, ao buscar empreender essainstrumentalização, a escola precisa, tal comonos adverte Saviani, reconhecer que a suacontribuição deve estar, realmente, a serviçoda emancipação das camadas populares. Umaoutra referência é a de que a escola não cumpreo seu papel de ensinar, além de os professoresnem sempre serem tidos comobons, no sentidode explicar o conteúdo ensinado. Os erros sãotomados como a incapacidade de aprendere não como uma hipótese de construção deconhecimentos e, por isso, os professorestambém são vistos como aqueles que miram osalunos e, ao mirá-Ias, incluem-nos ou excluem-nos da atividade educativa

Isso revela, segundo as pesquisadoras,um imaginário, entre os pesquisados. da nãopossibilidade do erro como um degrau para aaprendizagem e desta como um produto e nãocomoum processo. Portanto, salientamos que aescola necessita acertar o passo entre o dito eo feito, entre o pensado e o ensinado para nãose tornar uma instituição obsoleta e ineficazdentro de pouco tempo.

Algumas considerações finais

Conforme já foi dito antes, as repre-sentações sociais são reveladoras de muitosfenômenos que disfarçam uma grandequantidade de significados, tais como osdo currículo oculto. À guisa de conclusão,podemos tecer algumas considerações finais,reforçar algumas afirmações pertinentes e fazerdeterminadas ressalvas que, por ventura, nãoforam feitas ao longo do texto.

No que concerne ao currículo como umdocumento de identidade, indubitavelmente,não é à toa que, como povo, somos apontadospor muitos como uma massa acrítica à esperade mudãriças que venham pelo alto, quechegarão até nós porque um novo presidentefoi eleito ou alguma nova lei foi aprovada. Estecomportamento nacional parece nos ter sidoforjado e, como bem nos adverte Coutinho(2000),é fruto de uma

[...] determinação histórico-genética essencialda cultura brasileira, gerada dessa feita nãotanto no nível do caráter dependente de nos-

sas relações de produção, mas [...] naquele -articulação entre as classes e o poder polítique foi característica da evolução históricaBrasil. Essa problemática pode ser resumi •na idéia de [...] uma "via prussiana" ou"revolução passiva". [...] As transformações:ocorridas em nossa história não resultaramde autênticas revoluções, de movimentosprovenientes de baixo para cima, envolveno conjunto da população, mas se processaramsempre através de uma conciliação entrerepresentantes dos grupos opositores econo-micamente dominantes, conciliação que seexpressa sob a figura política de reformas "peloalto" (p. 50 [aspas no original]).

Essa constatação histórica não pode sea nosso ver, tomada como um determinismoidentitário para o Brasil, muito emborasaibamos que essa característica da nossaformação cultural possa ter permitido quemuitas representações tenham surgido e aindahoje permaneçam ocultas, orientando, no dia-a-dia das escolas, muitas práticas.

Assim sendo, é possível estabelecermosuma relação entre as representações sociaise o currículo oculto, já que os dois podemse interinfluenciar, reforçando modelos deatuação profissional que se encontram cadavez mais na contramão do que se poderiaesperar de uma educação sociodemocrático-construtivista e libertadora (cf. FREIRE,2000).Como conseqüência, vemos na evasão e nofracasso escolar os resultados da atuação deuma instituição excludente, a qual prefereeximir-se da sua parcela de responsabilidade,direcionando-a, totalmente, para o aluno,ao invés de encarar o desafio de seduzi-Ia aestabelecer uma satisfatória relação com osaber (cf.CHARLOT,2001).

Além disso, antes de finalizarmos,queremos ressaltar duas coisas. A primeiradiz respeito à importância que o estudo da RStem para o desvelamento do currículo oculto.Sugerimos que a pesquisa em educação podebeneficiar-se, amplamente, dos procedimentosteórico-metodológicos da teoria dasrepresentações sociais e encontrar respostassatisfatórias às suas questões, a partir dossubsídios que essa teoria pode fornecer emarticulação com o método etnográfico, porexemplo (cf. DIEB, 2005). Ela permite aopesquisador compreender as interações que seestabelecem entre os indivíduos ao buscaremprocessar, coletivamente, um conjunto de

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informações, de valores e motivações sociaisacerca de um objeto de relevância social, nointerior de sua arnbiência cultural. Portanto,nada melhor do que nos inserirmos nesseespaço de relações para captar os múltiplossignificados que são negociados durante asatividades pedagógicas.

A segunda compreende o reconhecimentoao trabalho sério e ao zelo pela educação quepossuem muitos dos nossos colegas de profissão.Quando a estes nos referimos, certamente, nãopodemos deixar de pensar nas dificuldadesque eles enfrentam e que limitam o seuempreendimento em iniciativas pedagógicasinovadoras. Isso ocorre devido às condiçõesobjetivas e subjetivas em que trabalham e àsmuitas nuances culturais que gravitam em tornodo trabalho desses docentes brasileiros, entreas quais podemos citar: o desprestígio e o não-reconhecimento profissionais, a precariedade nasiniciativas de formação em serviço, a má qualidadeda infra-estrutura física das escolas, a violênciae a insegurança nas comunidades em que estasestão localizadas, a negligência do poder público,a exploração dos educadores, etc.

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