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    Arthur C. Clarke

    2001 ODISSIA NO ESPAO

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    NDICE

    PRLOGO ..................................................................................................................................... 31 - ESTRADA PARA A EXTINO............................................................................................... 32 - A NOVA PEDRA....................................................................................................................... 63 - ACADEMIA ............................................................................................................................... 94 - O LEOPARDO ........................................................................................................................ 125 - REENCONTRO NA MADRUGADA!....................................................................................... 156 - ASCENSO DO HOMEM....................................................................................................... 177 - VOO ESPECIAL ..................................................................................................................... 188 - ENCONTRO ORBITAL ........................................................................................................... 2310 - BASE CLAVIUS .................................................................................................................... 3111 - ANOMALIA ........................................................................................................................... 3512 - JORNADA............................................................................................................................. 3813 - TELEFONE! .......................................................................................................................... 4013 - A LENTA MADRUGADA ......................................................................................................42

    14 - OS OUVINTES ..................................................................................................................... 4515 - DISCO ................................................................................................................................... 4616 - HAL ....................................................................................................................................... 5017 - CRUZEIRO ........................................................................................................................... 5218 - ATRAVS DOS ASTERIDES ............................................................................................5519 - JPITER ............................................................................................................................... 5720 - O MUNDO DOS DEUSES .................................................................................................... 6121 - FESTA DE ANIVERSRIO................................................................................................... 6322 - EXCURSO.......................................................................................................................... 6623 - DIAGNSTICO..................................................................................................................... 7124 - CIRCUITO CORTADO..........................................................................................................7325 - O PRIMEIRO HOMEM EM SATURNO ................................................................................ 7626 - DILOGO COM HAIA ........................................................................................................... 78

    27 - NECESSIDADE DE SABER................................................................................................. 8128 - NO VCUO ........................................................................................................................... 8229 - SOZINHO.............................................................................................................................. 8730 - O SEGREDO ........................................................................................................................ 8831 - SOBREVIVNCIA................................................................................................................. 9032 - A PROPSITO DE EXTRATERRESTRES..........................................................................9333 - EMBAIXADOR...................................................................................................................... 9634 - GELO EM RBITA ............................................................................................................... 9835 - O OLHO DE JAPETUS....................................................................................................... 10036 - IRMO MAIS VELHO ......................................................................................................... 10137 - EXPERINCiA.................................................................................................................... 10238 - A SENTINELA..................................................................................................................... 10439 - DENTRO DO OLHO ........................................................................................................... 105

    40 - SADA ................................................................................................................................. 10741 - ESTAO CENTRAL ......................................................................................................... 10742 - O CU ALIENGENA.......................................................................................................... 11043 - INFERNO............................................................................................................................ 11244 - RECEPO........................................................................................................................ 11445 - RECAPITULAO.............................................................................................................. 12047 - CRIANA ASTRAL............................................................................................................. 122EPLOGO: DEPOIS DE 2001 .................................................................................................... 122

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    As duas crias j estavam a choramingar pedindo comida, mas calaram-sequando Sentinela-da-Lua lhes rosnou. Defendendo o beb que no podia alimentarem condies, uma das mes devolveu-lhe um rugido zangado; mas ele nem sequertinha energia para a espancar pelo seu atrevimento.

    J fazia luz suficiente para partir. Sentinela-da-Lua pegou no cadverenrugado e, inclinando-se, arrastou-o para l do baixo beiral da caverna. Uma vezno exterior, atirou o corpo para cima das costas, e endireitou-se-o nico animal domundo capaz de o fazer.

    Entre os da sua espcie, Sentinela-da-Lua era quase um gigante. Tinha cercade um metro e meio de altura, e, embora extremamente subalimentado, pesava maisde quarenta e cinco quilos. O seu corpo peludo e musculado estava a meio caminhoentre o macaco e o homem, mas a sua cabea encontrava-se j muito mais prximado homem do que do macaco. A testa era baixa, e apresentava salincias por cimados olhos, mas transportava inegavelmente nos seus genes a promessa de

    humanidade. Quando contemplava o hostil mundo do plistoceno, o seu olharcontinha j algo que ultrapassava as capacidades de um macaco. Naqueles olhosescuros e profundos lia-se o despertar de uma conscincia - os primeiros sinais deuma inteligncia que no poderia cumprir-se ainda por muito tempo, e que em brevetalvez se extinguisse para sempre.

    Como no havia sinal de perigo, Sentinela-da-Lua, ligeiramente embaraadapelo seu fardo, comeou a descer a encosta quase vertical que dava para a caverna.Como se houvessem estado espera do seu sinal, os outros membros da tribosaram dos seus lares, bastante mais abaixo na superfcie rochosa, e dirigiram-separa as guas lamacentas do rio, para a primeira bebida da manh.

    Sentinela-da-Lua observou o outro lado do vale, tentando descortinar osoutros, mas eles no estavam vista. Talvez no tivessem ainda sado dascavernas, ou j estivessem a comer ervas nalgum sitio mais afastado da encosta.Como no se viam, Sentinela-da-Lua esqueceu-os; era incapaz de se preocuparcom mais de uma coisa ao mesmo tempo.

    Primeiro, tinha de se desembaraar do Velho - no era problema em queprecisasse de pensar muito. Houvera muitas mortes naquela estao, uma delas nasua prpria caverna; bastar-lhe-ia abandonar o corpo no sitio onde pusera o novobeb, no ltimo quarto da lua, e as hienas fariam o resto.

    Estas j estavam espera, no local onde o valezinho se abria e entrava na

    savana, quase como se soubessem que ele vinha ai. Sentinela-da-Lua deixou ocorpo debaixo de um pequeno arbusto, - todos os ossos anteriores j haviamdesaparecido -, e regressou apressadamente para junto da tribo. Nunca maispensou no pai.

    As suas duas companheiras, os adultos das outras cavernas e quase todosos jovens, comiam erva entre as rvores definhadas pela seca, vale acima, eprocuravam bagas, razes suculentas, folhas e ddivas inesperadas constitudas porlagartos ou roedores pequenos. S os bebs e os velhos mais fracos eram deixadosnas cavernas; se sobrasse alguma comida ao fim do dia, talvez fossem alimentados.Se no, as hienas teriam mais um dia de sorte.

    Mas aquele dia foi bom - embora, claro, Sentinela-da-Lua no possusse umaverdadeira memria do passado, e no pudesse, portanto, comparar um tempo como outro. Encontrara uma colmia no tronco de uma rvore morta, e saboreara a

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    iguaria mais deliciosa que o seu povo jamais conhecera; tardinha, conduzindo oseu grupo para casa, ainda lambia os dedos de tempos a tempos. Claro quetambm recebera um razovel nmero de picadelas, mas mal reparara nelas.Estava o mais perto que podia esperar da satisfao - pois embora ainda tivesse

    fome, no se sentia realmente debilitado por ela. E isso era o mximo a que umhomem-macaco podia aspirar.

    A sua satisfao desapareceu quando chegou ao rio. Os Outros estavam l.Iam l todos os dias, mas isso no tornava as coisas menos aborrecidas.

    Eram cerca de trinta e no se distinguiam dos membros da tribo do prprioSentinela-da-Lua. Quando o viram chegar, comearam a danar, a abanar os braose a guinchar, no seu lado do rio, e o povo de Sentinela-da-Lua respondeu-lhes domesmo modo.

    E isso foi tudo o que aconteceu. Embora os homens-macacos lutassem vriasvezes entre si, muito raramente as suas disputas resultavam em ferimentos graves.Como no possuam garras nem dentes caninos adaptados luta, e estavam bemprotegidos com o plo, quase nunca infligiam golpes srios uns aos outros. Almdisso, pouca energia lhes sobrava para comportamento to improdutivo; rosnadelase ameaas constituam um modo muito mais eficiente de afirmarem os seus pontosde vista.

    A confrontao durou cerca de cinco minutos; a exibio acabou ento todepressa como comeara, e todos se puseram a beber copiosamente na gualamacenta. A honra fora satisfeita; cada um dos grupos frisara bem o direito quetinha ao seu prprio territrio. Depois de tratado assunto to importante, a triboafastou-se pelo seu lado do rio. A pastagem mais prxima ficava a mais de um

    quilmetro e meio das cavernas, e tinham de a partilhar com uma manada degrandes animais parecidos com antlopes, que aceitavam muito mal a sua presenae no podiam ser combatidos, pois possuam ferozes punhais nas cabeas. Asarmas naturais de que os homens-macaco no dispunham.

    Portanto, Sentinela-da-Lua e os seus companheiros mastigavam bagas, frutose folhas, e combatiam os espasmos da fome enquanto sua volta, combatendopelos mesmos pastos, estava uma potencial fonte de mais comida que a que algumavez poderiam esperar comer. No entanto, os milhares de toneladas de carnesuculenta, que deambulavam pela savana e atravs dos matagais, no seencontravam apenas fora do seu alcance; estavam tambm para alm da sua

    imaginao. No meio da abundncia, morriam lentamente fome.A ltima luz do dia viu a tribo regressar s suas cavernas sem incidentes. A

    fmea ferida que ficara arrulhou de prazer quando Sentinela-da-Lua lhe deu o ramocoberto de bagas que trouxera, e atacou-o avidamente. No era l grande alimento,mas ajud-la-ia a sobreviver at a ferida que o leopardo lhe fizera estar sarada, e elapoder voltar a procurar comida por si prpria.

    Uma lua cheia erguia-se por cima do vale, e um vento gelado soprava dasmontanhas distantes. Ia ser uma noite muito fria- mas o frio, tal como a fome, noera assunto para grandes preocupaes; fazia parte da vida.

    Sentinela-da-Lua mal se mexeu quando os guinchos e gritos vindos de umadas cavernas mais baixas ecoaram pela encosta, e no precisou de ouvir o rugidodo leopardo para saber exatamente o que estava a acontecer. L em baixo, o velhoPlo Branco e a sua famlia combatiam e morriam na escurido, e o pensamento de

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    que talvez pudesse ajudar nunca atravessou o esprito de Sentinela-da-Lua. Adesapiedada lgica da sobrevivncia exclua tais fantasias, e nem uma voz deprotesto se levantou da encosta atenta. Todas as cavernas ficaram silenciosas, poisno queriam por sua vez atrair o desastre.

    O tumulto foi morrendo; Sentinela-da-Lua ouviu ento o som de um corposendo arrastado por cima das pedras. Mas durou apenas alguns segundos; depois,o leopardo abocanhou a sua presa. Sem mais rudos, afastou-se silenciosamente,carregando a sua vtima nos dentes.

    O leopardo no representaria qualquer perigo durante um dia ou dois, maspodia haver outros inimigos por a, tirando partido do Pequeno Sol frio que sbrilhava noite. As vezes, e desde que fosse dado o alerta, os gritos e berroschegavam para pr em fuga os predadores mais pequenos. Sentinela-da-Luarastejou para fora da caverna e trepou para um pedregulho que estava ao lado daentrada, onde se agachou vigiando o vale.

    De todos os seres que alguma vez haviam caminhado na Terra, os homens-macacos eram os primeiros a olhar de frente para a lua. E, embora no pudesselembrar-se, quando era pequeno Sentinela-da-Lua costumava esticar-se todo etentar tocar naquela face fantasmagrica que se erguia acima das montanhas.

    Nunca o conseguira, e agora j era suficientemente crescido para saberporqu. Era mais que bvio que primeiro teria de subir a uma rvore muito alta.Contemplava o vale, observava a lua, e estava permanentemente escuta.Dormitou uma ou duas vezes, mas sempre com os sentidos alerta - despertaria aomenor som. Apesar de j ter vinte e cinco anos, continuava na posse de todas assuas faculdades; se tivesse sorte e evitasse acidentes, doenas, predadores e

    inanio, talvez sobrevivesse mais dez anos.A noite ia-se arrastando, fria e clara, sem mais alarmes, e a lua erguia-se

    lentamente por entre constelaes equatoriais que os olhos humanos nuncacontemplariam. Nas cavernas, entre perodos de sono irregular e viglias temerosas,geravam-se os pesadelos de geraes futuras.

    Erguendo-se at ao znite e descendo para leste, um ofuscante ponto de luz,mais brilhante que qualquer estrela, atravessou lentamente o cu.

    2 - A NOVA PEDRASentinela-da-Lua acordou subitamente a meio da noite. Exausto pelos

    esforos e desastres do dia, adormecera mais profundamente que o habitual, masacordou imediatamente com o primeiro leve arranhar que ouviu l em baixo no vale.Com os sentidos todos alerta, sentou-se na ftida escurido da caverna, e o medoentrou-lhe lentamente na alma. Nunca na sua vida, j duas vezes mais longa que ada maioria dos membros sua espcie, ouvira um som como aquele. Os grandesgatos faziam a sua aproximao em silncio, e a nica coisa que os traa era umraro escorregamento de terras, ou o ocasional estalido de um ramo. Mas aquele eraum rudo contnuo de triturao, cada vez mais alto. Parecia que um bicho enorme

    se movia atravs da noite, sem procurar esconder-se, e ignorando todos osobstculos. Sentinela-da-Lua ouviu uma vez o som inconfundvel de um arbusto a

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    ser arrancado; os elefantes e os dinotrios faziam-no frequentemente, mas, de resto,moviam-se to silenciosamente como os gatos.

    Chegou-lhe ento aos ouvidos um som que Sentinela-da-Lua no podiaidentificar, pois nunca fora produzido na histria do mundo: o rudo de metalchocando na pedra.

    Sentinela-da-Lua encontrou-se frente a frente com a Nova Pedra quando, primeira luz da manha, conduziu a tribo at ao rio. J praticamente esquecera osterrores da noite, pois nada acontecera aps aquele rudo inicial; portanto, nemsequer associou aquela estranha coisa com perigo ou medo. Afinal de contas, nohavia nada de alarmante nela.

    Tratava-se de uma lmina retangular de uma altura trs vezes superior sua,mas suficientemente estreita para poder abarc-la com os braos, feita de ummaterial completamente transparente; na verdade, s era fcil v-la porque o sol-nascente cintilava nas suas arestas. Como Sentinela-da-Lua nunca vira gelo, oumesmo gua lmpida, no podia comparar aquela apario com quaisquer objetosnaturais. Era muito atraente e, embora desconfiasse prudentemente de quase todasas coisas novas, no hesitou muito em aproximar-se timidamente. Como noaconteceu nada, estendeu a mo, e tateou uma superfcie fria e dura.

    Aps vrios minutos de uma meditao profunda, chegou a uma explicaobrilhante. Era uma pedra, claro, que devia ter crescido durante a noite. Muitasplantas faziam-no umas coisas brancas e carnudas, semelhantes a seixos, quepareciam despontar durante as horas de escurido. Claro que eram pequenas eredondas, e aquilo mostrava-se largo e com arestas... mas filsofos mais sbios eposteriores a Sentinela-da-Lua, viriam a ignorar excees igualmente gritantes das

    suas teorias.Este realmente soberbo pensamento abstrato, levou Sentinela-da-Lua a fazer

    - em apenas trs ou quatro minutos- uma deduo que imediatamente testou. Asplantas brancas e redondas como seixos eram muito saborosas (embora houvessealgumas que provocavam doenas violentas); e se esta to alta...?

    Umas poucas lambidelas e tentativas de a morder, cedo o desiludiram. Aquilono era comida; portanto, mostrando ser um homem-macaco sensato, continuou oseu caminho at ao rio, e esqueceu o monlito cristalino durante a rotina diria deque faziam parte os gritos dos Outros.

    A comida estava mais escassa, e a tribo teve de se afastar vrios quilmetrosdas cavernas para encontrar alguma coisa. Durante o impiedoso calor da tarde, umadas fmeas mais frgeis desmaiou longe de qualquer abrigo. Os seus companheirosjuntaram-se sua volta, agitando-se e remexendo-se solidariamente; mas ningumpodia fazer nada. Se estivessem menos exaustos, talvez a carregassem com eles,mas no tinham energia que chegasse para tais atos de piedade. Ela ficaria paratrs, e recuperaria ou no por si s.

    A tardinha, quando regressaram a casa, passaram pelo local onde ela haviaficado; nem um s osso se via.

    A ltima luz do dia, olhando ansiosamente em volta, no fossem surgir

    caadores apressados, beberam rapidamente no rio, e comearam a escalada ats cavernas. Estavam ainda a cem metros da Nova Pedra quando o som se fezouvir. Era muito baixinho, mas f-los estacar, paralisados, as suas bocas abertas

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    sem energia. Uma vibrao simples e exasperantemente repetitiva emanavaritmicamente do cristal, e hipnotizava todos os que entravam no seu raio mgico.Pela primeira vez e pela ltima, por mais de trs milhes de anos o som dostambores foi ouvido em frica.

    A pulsao tornou-se mais alta, mais insistente. Como sonmbulos, oshomens-macaco comearam a avanar em direo fonte daquele som tocompulsivo. As vezes, quando o sangue lhes respondia a ritmos que os seusdescendentes ainda levariam muito tempo a criar, davam passinhos de dana.Totalmente em transe, esquecendo as privaes do dia, os perigos do anoitecer e afome que sentiam nas barrigas, reuniram-se em volta do monlito.

    O bater dos tambores aumentou de volume, e a noite tornou-se mais escura.As sombras iam-se alongando e a luz desaparecendo do cu; o cristal comeou abrilhar. Primeiro, perdeu a sua transparncia, e foi iluminado por uma luminescnciaplida e leitosa. Fantasmas apetecveis e indefinidos atravessavam-lhe a superfcie

    e moveram-se nas suas profundezas. Coalescendo em barras de luz e sombra,transformaram-se depois em padres entrelaados, com raios, que comearamlentamente a rodar.

    As rodas de luz giravam cada vez mais depressa e a pulsao dos tamboresacelerava-se com elas. Profundamente hipnotizados, os homens-macaco fitavamboquiabertos tal estonteante exibio de pirotecnia. Haviam j esquecido os instintosdos seus antepassados e as ligaes de uma vida; normalmente, nem um delesficaria to longe da sua caverna at to tarde. Os arbustos circundantes pululavamde formas imveis e olhos atentos - as criaturas da noite suspendiam as suasandanas para verem o que aconteceria a seguir.

    As rodas de luz comearam a unir-se, e os raios fundiram-se etransformaram-se em barras luminosas, que, sempre rodando nos seus eixos, seforam lentamente perdendo na distncia. Dividiam-se ento em pares, e osconjuntos de linhas da resultantes deram incio a oscilaes que as faziam cruzar-se, mas sempre segundo ngulos de interseco diferentes. Fantsticos, efmerospadres geomtricos brilhavam e desapareciam medida que as fulgurantesgrelhas se entrelaavam e desentrelaavam; hipnotizados cativos do cristalbrilhante, os homens-macacos limitavam-se a olhar.

    No podiam adivinhar que os seus crebros estavam a ser analisados, osseus corpos examinados, as suas reaes estudadas, os seus potenciais avaliados.

    ao princpio, toda a tribo permaneceu meia inclinada, formando um quadro imvelque parecia petrificado. Depois, o homem-macaco que estava mais prximo dalmina, recuperou lentamente os sentidos.

    No se mexeu, mas o seu corpo perdeu aquela rigidez de transe, e animou-secomo uma marionete comandada por fios invisveis. A sua cabea virou-se para umlado e para o outro; a boca abriu-se-lhe e fechou-se-lhe; entrelaou e desentrelaouos dedos. Depois, baixou-se, arrancou um caule comprido, e tentou dar-lhe um ncom os dedos desajeitados.

    Parecia estar possesso, lutar contra algum esprito ou demnio que seapoderara do seu corpo. Arquejante, com os olhos perpassados de terror, tentava

    obrigar os dedos a movimentos mais complexos do que os que estes jamais haviamfeito.

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    Apesar dos seus esforos, s conseguiu partir o caule em bocados. Ospedaos caram no cho, e a influncia que o controlava deixou-o; mergulhounovamente na imobilidade.

    Outro homem-macaco despertou e cumpriu a mesma rotina. Tratava-se deum espcime mais jovem e adaptvel; teve xito onde o mais velho falhara. Emboragrosseiramente, acabava de ser dado o primeiro n do planeta Terra...

    Outros fizeram coisas ainda mais estranhas e sem sentido. Alguns, esticaramos braos e tentaram unir as pontas dos dedos - primeiro com os olhos abertos,depois com um fechado. Outros, limitaram-se a observar atentamente as pautas quese formaram no cristal, e que se dividiram cada vez mais finamente, at as linhas sefundirem num borro cinzento. E todos ouviram sons destacados e puros, deintensidade varivel, que rapidamente ultrapassavam o nvel de audio.

    Quando chegou a sua vez, Sentinela-da-Lua no teve muito medo. Sentiasobretudo um vago ressentimento, pois os seus msculos contraiam-se e os seusmembros obedeciam a comandos pelos quais no era inteiramente responsvel.

    Sem saber porqu, baixou-se e apanhou uma pedrinha. Quando seendireitou, viu uma nova imagem na lmina de cristal. As grelhas e os padresmveis e danantes haviam desaparecido. Substitua-os uma srie de crculosconcntricos, que rodeavam um pequeno disco preto.

    Obedecendo s ordens silenciosas que lhe vinham do crebro, levantou obrao acima do ombro, e arremessou-a desajeitadamente. Falhou o alvo por vrioscentmetros.

    Sentiu-se impelido a tentar outra vez. Procurou em volta, e encontrou mais

    um seixo. Daquela vez atingiu a lmina com um tinido como o de uma campainha.Embora ainda precisasse de muito treino, a sua pontaria estava a melhorar.

    A quarta tentativa, ficou a milmetros do disco central. Um sentimento de umprazer indescritvel, de uma intensidade quase sexual, inundou-lhe o esprito. Ocontrolo afrouxou ento; no se sentiu compelido a fazer nada a no ser ficarsentado espera.

    Um a um, todos os membros da tribo foram possudos durante um certotempo. Alguns tiveram xito, mas a maioria falhou no cumprimento das tarefas quelhe haviam sido impostas; todos foram recompensados com espasmos de prazer, oucastigados com sensaes de dor.

    A enorme lmina adquiriu ento apenas um fulgor uniforme e incaracterstico;parecia uma chapa de luz rodeada de escurido. Subitamente despertos, oshomens-macaco abanaram as cabeas, e comearam a seguir o carreiro que levavaaos seus refgios. No olharam para trs, nem se interrogaram sobre a estranha luzque os guiava para casa e para um futuro ainda desconhecido at das prpriasestrelas.

    3 - ACADEMIA

    Sentinela-da-Lua e os companheiros no se lembravam do que haviam vistoaps o cristal deixar de projetar o encantamento hipntico sobre as suas mentes ecessar de fazer experincias com os seus corpos. No dia seguinte, quando saram

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    para procurar comida, passaram por ele e mal se detiveram a olh-lo; o cristal faziaagora parte do indiferente pano de fundo das suas vidas. No podiam com-lo e eleno podia com-los; portanto, no era importante.

    No rio, os Outros fizeram as suas habituais e ineficazes ameaas. O seuchefe, um homem-macaco a quem faltava uma orelha, do tamanho e idade deSentinela-da-Lua, mas em pior estado que ele, chegou mesmo a dar uma rpidacorrida em direo ao territrio da tribo, guinchando alto e agitando os braos natentativa de assustar a oposio e de reforar a sua prpria coragem. A gua do riono tinha mais de meio metro de profundidade, mas quanto mais Uma-Orelhaavanava, mais inseguro e infeliz se tornava. Em breve abrandou o passo e parou;depois, com exagerada dignidade, recuou e juntou-se aos seus companheiros.

    De resto, no houve mais alteraes rotina normal. A tribo conseguiualimento suficiente para sobreviver por mais um dia e ningum morreu.

    E nessa noite, a lmina de cristal, envolta numa aurola pulsante de luz esom, continuou espera. O programa que magicara, no entanto, mostrava-sesutilmente diferente.

    Ignorou completamente alguns dos homens-macacos, como se quisesseconcentrar-se apenas nos sujeitos mais prometedores. Um destes era Sentinela-da-Lua, que mais uma vez sentiu sondas inquiridoras desbravando-lhe os caminhosvirgens do crebro. E comeou a ter vises.

    Podiam ser imagens encerradas na lmina de cristal, ou talvez proviessemtotalmente do seu crebro. Fosse como fosse, eram completamente reais paraSentinela-da-Lua. No entanto, o costumeiro impulso automtico de afastar os

    intrusos do seu territrio, fora acalmado e aquietado.Contemplava um tranquilo grupo familiar, que s diferia num aspecto das

    cenas que j conhecia. O macho, a fmea e as duas crianas que haviammisteriosamente aparecido sua frente, mostravam-se fartos e saciados, eenvergavam peles macias e lustrosas - e esta era uma vida que Sentinela-da-Luanunca imaginara. Inconscientemente, sentiu as suas prprias costelas salientes; ascostelas daquelas criaturas estavam envoltas em pregas de gordura. Refesteladosperto da entrada de uma caverna, aparentemente em paz com o mundo, mexiam-sepreguiosamente de tempos a tempos. De vez em quando, o grande macho soltavaum monumental arroto de satisfao.

    No se via mais nenhuma atividade; aps cinco minutos, a cena desvaneceu-se repentinamente. O cristal transformou-se novamente numa silhueta brilhante naescurido; Sentinela-da-Lua estremeceu, como se acordasse de um sonho, deu-seabruptamente conta de onde estava, e conduziu a tribo de volta s cavernas.

    No possua qualquer memria consciente do que vira; mas quando, naquelanoite, de ouvidos alerta para os rudos do mundo que o rodeava, se sentou a cismar entrada da sua toca sentiu as primeiras e quase imperceptveis picadas de umanova e poderosa emoo: uma sensao vaga e difusa de inveja - de insatisfaocom a sua vida. No fazia idia do que a causara, e muito menos do que poderiacur-la, mas a insatisfao entrara-lhe na alma, fazendo-o assim dar um pequenopasso em direo humanidade.

    O espetculo dos quatro rechonchudos homens-macaco foi repetido noiteaps noite, tornando-se uma fonte de exasperao fascinada, e servindo para

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    aumentar a eterna e torturante fome de Sentinela-da-Lua. A evidncia do que osseus olhos viam no chegaria para produzir tal efeito; precisava de reforopsicolgico. Sentinela-da-Lua nunca se lembraria das lacunas existentes na suavida, mas at os tomos do seu crebro simples eram torcidos e obrigados a adquirir

    novas formas. Se sobrevivesse, essas formas tornar-se-iam eternas, pois os seusgenes passa-las-iam s geraes futuras.

    Era um processo lento e tedioso, mas o monlito de cristal tinha pacincia.Nem ele, nem as suas rplicas espalhadas por metade do globo, esperavam terxito com todos os grupos envolvidos na experincia. Cem falhanos no teriamimportncia, se apenas um nico xito conseguisse mudar o destino do mundo.

    Na lua nova seguinte, a tribo j vira um nascimento e duas mortes. Umadestas ficara a dever-se inanio; a outra ocorrera durante o ritual noturno, quandoum homem-macaco se deixara repentinamente ir abaixo a meio da tentativa dejuntar delicadamente dois fragmentos de uma pedra. O cristal escurecera de

    imediato, e a tribo fora libertada do encantamento. Mas o homem-macaco cado nose mexera; de manh, claro, o corpo havia desaparecido.

    Na noite seguinte no houvera qualquer sesso; o cristal ainda estava aanalisar o seu erro. A tribo desfilara sua frente ao escurecer, ignorandocompletamente a sua presena. Uma noite depois, j estava novamente pronto paraeles.

    Os quatro homens-macacos rechonchudos continuavam l, mas faziam agoracoisas extraordinrias. Sentinela-da-Lua comeou a tremer de um modoincontrolvel; sentia-se como se o crebro lhe fosse rebentar, e quis desviar o olhar.Mas aquele implacvel controlo mental no afrouxava o seu abrao; foi competido a

    seguir a lio at ao fim, embora todos os seus instintos se revoltassem contra ela.Tais instintos haviam servido bem os seus antepassados, nos dias de chuvas

    quentes e de luxuriante fertilidade, quando a comida abundava. Dias os temposhaviam mudado, e a sabedoria herdada do passado tornara-se disparatada e intil.Os homens-macacos tinham de se adaptar ou morrer como os grandes animais quehaviam desaparecido antes deles, e cujos ossos jaziam enterrados nas colinascalcarias.

    Portanto, Sentinela-da-Lua deixou-se ficar a olhar o monlito de cristal sempestanejar, com a mente aberta s suas ainda incertas manipulaes. Sentianuseas frequentemente, e sempre fome; de vez em quando, as suas mos

    agarravam inconscientemente as formas que iriam determinar o seu novo modo devida.

    Fungando e soltando grunhidos, a fila de javalis movia-se atravs do carreiro;Sentinela-da-Lua estacou. Javalis e homens - macacos sempre se haviam ignoradomutuamente, pois entre eles no existia qualquer conflito de interesses. Como amaioria dos animais que no competem pela mesma comida, limitavam-se a manter-se fora do caminho uns dos outros.

    No entanto, Sentinela-da-Lua ficou a olhar para eles, balanando-sehesitantemente para a frente e para trs, esbofeteado por impulsos que no podiacompreender. Depois, como num sonho, comeou a vasculhar o cho - embora notivesse podido explicar para qu, mesmo que possusse o dom da palavra.Reconheceria o que procurava quando o visse.

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    Era uma pedra pesada e pontiaguda, de cerca de quinze centmetros decomprimento, e embora no se ajustasse perfeitamente sua mo, serviria bem osseus fins. Quando fez a mo rodar, espantou-o o seu peso subitamente maior, mas,ao mesmo tempo, teve uma agradvel sensao de poder e autoridade. Comeou a

    andar na direo do javali mais prximo.O animal era jovem e descuidado, at para os pouco exigentes padres da

    inteligncia dos javalis. Embora observasse Sentinela-da-Lua pelo canto do olho, so levou a srio demasiado tarde. Por que haveria de atribuir intenes maldosasquelas criaturas inofensivas? O javali continuou a escavar a erva at o machado depedra de Sentinela-da-Lua lhe escurecer a obscura conscincia. O resto da manadacontinuou a pastar calmamente, pois o assassnio fora rpido e silencioso.

    Todos os outros homens-macacos do grupo haviam parado a observar;maravilhados, juntaram-se ento volta de Sentinela-da-Lua e da sua vtima. Umdeles apanhou a arma manchada de sangue, e comeou a bater no javali morto.

    Juntaram-se-lhe outros, munidos dos paus e pedras que conseguiram encontrar; oalvo dos seus ataques comeou a desintegrar-se.

    Acabaram por aborrecer-se; alguns vaguearam por ali, outros ficaramhesitantemente em volta do cadver irreconhecvel. o futuro de um mundoesperando pela sua deciso. S aps um perodo de tempo surpreendentementelongo, uma das fmeas grvidas resolveu lamber a pedra ensanguentada que tinhanas mos.

    E, apesar do que tinha visto, passou-se ainda mais tempo at Sentinela-da-Lua perceber bem que nunca mais fome precisaria de ter.

    4 - O LEOPARDO

    Os instrumentos que haviam sido programados para usar eram muito simples,mas podiam mudar o mundo e tornar os homens-macacos os seus senhores. O maisprimitivo era a pedra que se arremessava, que multiplicava muitas vezes o poder deum golpe. Havia tambm a maa de osso, que aumentava o alcance e podiaproteger das presas ou garras de animais zangados. Com estas armas, era deles ainfindvel comida que deambulava pelas savanas.

    Mas precisavam de outras ajudas, pois os seus dentes e unhas nochegavam para desmembrar rapidamente animais maiores que coelhos. Felizmente,a Natureza pusera-lhes disposio os instrumentos perfeitos - para osconseguirem s precisavam de alguma coragem.

    Primeiro foi uma faca ou serra grosseira, mas muito eficiente, de um modeloque serviria muito bem durante trs milhes de anos. Era simplesmente o maxilarinferior - com todos os dentes - de um antlope; este instrumento no sofreriaqualquer melhoramento substancial at descoberta do ao. Veio depois umasovela ou punhal, feito de um chifre de gazela, e finalmente uma raspadeira, obtida apartir das mandbulas completas de praticamente quase todos os animais pequenos.

    A maa de pedra, a serra denteada, o punhal de chifre, a raspadeira de osso -eis os maravilhosos inventos de que os homens-macacos precisavam parasobreviver. No tardariam a reconhec-los como smbolos de poder que eram, mas

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    No foi um assalto muito eficaz ou coordenado; quando o desgraado bichoacabou por expirar, j escurecera quase completamente e os chacais recomeavama ganhar coragem. Dividido entre o medo e a fome, Sentinela-da-Lua foi lentamentepercebendo que talvez todo aquele esforo tivesse sido em vo. Era

    demasiadamente perigoso ficar ali mais tempo.Ento, provou mais uma vez que era um gnio. Com um esforo imenso de

    imaginao, visualizou o antlope morto na segurana da sua caverna. Comeou aarrast-lo para o penhasco; os outros compreenderam as suas intenes eajudaram-no.

    Se soubesse partida como a sua tarefa seria difcil, nem chegaria a tent-la.S a enorme fora e a agilidade herdada dos antepassados aborgines lhepermitiram puxar a carcaa pela ngreme encosta acima. Chorando de frustrao,quase abandonou o seu trofu por vrias vezes, mas uma teimosia to profundacomo a sua fome f-lo continuar. Os outros, ora o ajudavam, ora o embaraavam;

    mas o mais frequente era estorvarem-no. Finalmente, conseguiu; o despedaadoantlope foi arrastado por cima da borda da caverna quando os ltimos matizes deluz desapareciam do cu; e o banquete comeou.

    Horas depois, cheio at mais no poder, Sentinela-da-Lua acordou. Semsaber porqu, endireitou-se na escurido, entre os corpos estendidos dos seusigualmente saciados companheiros, e escutou os rudos da noite.

    O nico som que se ouvia era a respirao pesada dos outros; o mundointeiro parecia adormecido. Banhadas pela brilhante luz da lua, naquele momentobem alta, as rochas que ficavam para l da entrada da caverna, mostravam-seclaras como ossos. Perigo era coisa que parecia infinitamente remota.

    Ento, o som de um seixo caindo chegou-lhe de muito longe. Temeroso, masainda interrogando-se, Sentinela-da-Lua rastejou at ao rebordo da caverna eperscrutou o penhasco.

    O que viu deixou-o to paralisado de terror que, por longos momentos, foiincapaz de se mover. Seis metros abaixo dele, dois olhos dourados e cintilantesfitavam-no diretamente; aquele olhar hipntico fez-lhe tanto medo que mal deu peloseu corpo gil e listrado que se movia flexvel e silenciosamente de rocha em rocha.O leopardo jamais trepara at to alto. Ignorava as cavernas mais baixas, emboradevesse ter-se dado bem conta de que elas eram habitadas. Agora o seu jogo eraoutro; perseguia o rasto do sangue, subindo o penhasco banhado pela lua.

    Segundos mais tarde, a noite foi atravessada pelos gritos de alarme doshomens-macacos da caverna superior. O leopardo rugiu de fria quando percebeuque perdera o elemento de surpresa. Mas no parou, pois sabia que no tinha nadaa temer. Chegou ao rebordo, e descansou um momento no estreito espao aberto.O cheiro de sangue que o rodeava enchia-lhe o crebro feroz e minsculo de umdesejo irresistvel. Sem hesitar, esgueirou-se silenciosamente para dentro dacaverna.

    E cometeu o seu primeiro erro, pois, apesar de possuir uns olhossoberbamente adaptados noite, ao deixar de ser iluminado pela lua, colocou-senuma desvantagem momentnea. Os homens-macaco viam a sua silhuetadesenhada contra a abertura da caverna, com mais nitidez do que o leopardo os viaa eles. Embora aterrorizados, j no eram indefesos.

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    Rugindo e agitando a cauda numa confiana arrogante, o leopardo avanouem busca da tenra comida por que suspirava. Se houvesse encontrado a sua presaao ar livre, no teria tido problemas; mas o desespero de se verem encurraladosdera aos homens-macacos coragem para tentar o impossvel. E, pela primeira vez,

    possuam os meios para o fazer.O leopardo soube que algo ia mal quando sentiu um golpe formidvel na

    cabea. Atacou com a pata da frente, e ouviu um guincho de agonia quando as suasgarras despedaaram carne macia. Sentiu ento uma dor penetrante quando algoafiado se lhe cravou nos flancos uma, duas vezes, e ainda uma terceira vez. Virou-se para lutar contra as sombras que gritavam e danavam sua volta.

    Outro golpe violento atingiu-o no focinho. Os seus dentes morderam umamancha branca que no parava de se mover - e abocanharam apenas um osso.Numa indignidade final, em que mal podia acreditar, sentiu puxarem-lhe a caudacom toda a fora.

    Deu meia volta, e atirou o seu louco e ousado atormentador contra a parededa caverna. No entanto, fizesse o que fizesse, no conseguia furtar-se chuva degolpes que Lhe eram infligidas por armas grosseiras empunhadas por mosdesajeitadas, mas poderosas. Os seus rugidos passaram da dor ao alarme, e doalarme ao mais puro terror. O implacvel caador era agora a vtima, e tentavadesesperadamente escapar.

    E comeou ento o seu segundo erro, pois a surpresa e o medo haviam-nofeito esquecer-se de onde estava. Ou talvez houvesse sido cegado e confundidopelos golpes que lhe choviam na cabea; fosse o que fosse, o certo que correuabruptamente para fora da caverna. Ouviu-se um guincho horrvel quando o

    leopardo se viu sem apoios e comeou a cair. Sculos depois - era o que parecia -um baque surdo indicou que se despenhara num afloramento que ficava a meio dopenhasco; depois, o som do deslizar de pedras soltas, e a noite ficou novamente emsilncio.

    Intoxicado pela vitria, Sentinela-da-Lua danou e balbuciou durante muitotempo entrada da caverna. Tinha toda a razo ao pressentir que o seu mundomudara, e que deixara de ser uma vtima impotente das foras que o rodeavam.

    Voltou depois para dentro da caverna, e, pela primeira vez na sua vida,dormiu ininterruptamente durante toda a noite.

    De manha, encontraram o corpo do leopardo no sop do penhasco. O inimigoestava morto, mas passou-se algum tempo at que algum ousasse aproximar-sedo monstro vencido; finalmente avanaram, munidos das suas facas e serras deosso. Foi uma tarefa difcil; naquele dia no foram caa.

    5 - REENCONTRO NA MADRUGADA!

    Quando guiava a tribo para o rio, luz difusa da madrugada, Sentinela-da-Lua parou hesitantemente num local que lhe era familiar. Faltava qualquer coisa,

    mas no se lembrava de qu. No entanto, no fez qualquer esforo mental a pensarno problema, pois, naquela manh, tinha coisas mais importantes a tratar.

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    Tal como o trovo, o relmpago, as nuvens e os eclipses, a grande lmina decristal partira to misteriosamente como chegara. Tendo desaparecido no inexistentepassado, nunca mais voltou a assombrar os pensamentos de Sentinela-da-Lua.

    Este, jamais saberia o que o cristal lhe fizera; e, reunindo-se volta dele naneblina matinal, nenhum dos seus companheiros tentou saber por que parara ali acaminho do rio.

    Do outro lado do rio, na inviolada segurana do seu prprio territrio, osOutros visualizaram Sentinela-da-Lua e uma dzia de machos da sua tribo, comoum friso que se recortava contra o cu da manh. Comearam imediatamente agritar, cumprindo assim o desafio dirio; mas daquela vez no houve resposta.

    Firmemente, premeditadamente - sobretudo silenciosamente - Sentinela-da-Lua e o seu bando desceram o outeiro sobranceiro ao rio; medida que seaproximavam, os Outros calaram-se. A sua raiva ritual desapareceu, e foi substitudapor um medo cada vez maior. Sentiam confusamente que algo acontecera, e queaquele reencontro no era igual aos anteriores. No se alarmaram com as maas efacas de osso empunhadas pelo grupo de Sentinela-da-Lua, pois no compreendiampara que serviam. Sabiam apenas que os movimentos dos seus rivais estavamimbudos de determinao e ameaa.

    O grupo parou beira d'gua; por um momento, os Outros retomaramcoragem. Chefiados por Uma-Orelha, retomaram indiferentemente o seu cnticomarcial. Mas fizeram-no apenas durante alguns segundos, pois logo ficaram mudospor uma viso de terror.

    Sentinela-da-Lua levantou os braos bem alto, revelando assim o fardo que

    at ali estivera escondido pelos corpos hirsutos dos seus companheiros. Seguravaum ramo resistente, onde estava espetada a cabea ensanguentada do leopardo.Um pau mantinha a boca aberta, e os primeiros raios do sol-nascente emprestavams grandes presas uma cintilao branca e terrvel.

    A maioria dos Outros ficaram demasiado paralisados de medo para semoverem; mas alguns comearam a retirar lenta e tropegamente. E esse era todo oencorajamento de que Sentinela-da-Lua precisava. Mantendo o dilacerado trofuacima da cabea, deu inicio travessia do rio. Depois de um momento de hesitao,os seus companheiros entraram na gua atrs dele.

    Quando Sentinela-da-Lua chegou ao outro lado, Uma-Orelha continuava

    firmemente no seu lugar. Talvez fosse corajoso ou estpido demais para correr; outalvez no conseguisse acreditar que aquele ultraje era mesmo real. Cobarde ouheri, foi coisa que acabou por interessar pouco, pois, no final, o rugido gelado damorte desceu-lhe sobre o crebro estupefato.

    Guinchando de medo, os Outros espalharam-se pelo matagal; mas voltariam,e cedo esqueceriam o seu chefe desaparecido.

    Por alguns segundos Sentinela-da-Lua permaneceu hesitantemente de p aolado da sua nova vtima, tentando perceber bem que, estranha e maravilhosamente,o leopardo morto ainda era capaz de matar. Agora era senhor do mundo, e nosabia bem o que fazer a seguir. Mas acabaria por descobrir alguma coisa.

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    6 - ASCENSO DO HOMEM

    Um novo animal andava pelo planeta e, partindo do corao de frica,espalhava-se lentamente. Era ainda to raro, que um censo apressado talvez no

    desse por ele, rodeado como estava por bilhes de criaturas deambulando pela terrae pelo mar. Por enquanto, ainda no havia a certeza se prosperaria ou at sesobreviveria: num mundo em que tantos animais muito mais poderosos haviamdesaparecido, o seu destino ainda no estava decidido.

    Nos cem mil anos que se seguiram descida dos cristais sobre frica, oshomens-macacos no inventaram nada. Mas comearam a mudar, e desenvolveramaptides que mais nenhum animal possua. As maas de osso haviam aumentado oseu poder de alcance e multiplicado a sua fora; deixaram de estar indefesosperante os predadores com quem tinham de competir. Quanto aos carnvoros maispequenos, podiam-nos matar; aos maiores, conseguiam, pelo menos, desencorajar

    e, por vezes, pr em fuga.Os seus dentes macios, estavam cada vez mais pequenos, pois j no eram

    essenciais. As pedras afiadas usadas para escavar razes ou para cortar e serrarcarne ou fibras duras comearam a substitu-los, com enormes consequncias. Oshomens-macacos j no tinham de enfrentar a morte por inanio quando os seusdentes se estragavam ou se gastavam; at mesmo os instrumentos mais grosseirospodiam prolongar-lhes a vida. medida que as suas presas diminuam, a forma dosseus rostos comeava a alterar-se; o focinho recuou, o maxilar tornou-se maisdelicado, a boca adquiriu a capacidade de produzir sons mais subtis. Faltava aindaum milho de anos para a fala, mas haviam sido dados os primeiros passos na suadireo.

    E ento o mundo comeou a mudar. Em quatro grandes vagas, com duzentosmil anos entre os seus picos, as Idades do Gelo chegaram e partiram, deixando assuas marcas em todo o globo. Fora dos trpicos, os glaciares liquidaram os quehaviam prematuramente abandonado o lar ancestral; e por toda a parte eliminaramas criaturas que no conseguiram adaptar-se.

    Quando o gelo desapareceu, levou com ele muita da vida primitiva do planeta- incluindo os homens-macacos. Mas estes, ao contrrio de muitos outros, haviamdeixado descendentes; no se tinham meramente extinguido-mas sim transformado.Os construtores de instrumentos haviam sido recriados pelos seus prpriosutenslios.

    Pois, ao usarem maas e slex, as suas mos haviam desenvolvido umadestreza nunca antes encontrada no reino animal, o que lhes permitia construirutenslios ainda melhores, fazendo, por sua vez, evoluir ainda mais os seusmembros e crebro. Era um processo acelerado e cumulativo; no fim da linha,estava o Homem.

    Os primeiros verdadeiros homens possuam utenslios e armas poucomelhores que as dos seus antepassados de havia um milho de anos, mas erammuito mais hbeis no seu manejo. E algures nas eras sombrias que haviampassado, tinham inventado um instrumento que, embora no pudesse ver-se nemtocar-se, lhes era absolutamente essencial. Haviam aprendido a falar, ganhandoassim a primeira grande batalha contra o Tempo. Agora, a sabedoria de umagerao podia ser passada para a prxima, e cada idade lucrava com osensinamentos das anteriores.

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    Ao contrrio dos animais, que conheciam apenas o presente, o Homemadquirira um passado; e comeava a tatear em direo a um futuro.

    Aprendera tambm a controlar as foras da natureza; com o domnio do fogo,lanara as fundaes da tecnologia e deixara para trs a sua origem animal. A pedradeu lugar ao bronze e depois ao ferro. A caa sucedeu a agricultura. A tribotransformou-se em aldeia, e a aldeia em cidade. A palavra tornou-se eterna, graasa certas marcas em pedra, barro e papiro. Depois, inventou a filosofia e a religio. Epovoou o cu, nem sempre incorretamente, de deuses.

    Os seus meios de ataque tornaram-se mais e mais assustadores na medidaem que o seu corpo ia perdendo defesas. Com a pedra, o bronze, o ferro, o ao,percorrera a gema de tudo o que furava e dilacerava; e bem cedo aprendera aabater as suas vtimas distncia. A espada, o arco, a pistola e, finalmente, o mssiltelecomandado, haviam-lhe dado armas de um alcance infinito, mas no um poderinfinito.

    Sem estas armas, que, frequentemente, usara contra si prprio, o Homemnunca teria conquistado o seu mundo. Empenhara-se de alma e corao, e elashaviam-no servido bem.

    Mas agora, enquanto existissem, vivia sempre um tempo emprestado.

    7 - VOO ESPECIAL

    Por mais vezes que deixasse a Terra, a excitao nunca abandonava o Dr.

    Heywood Floyd. Estivera uma vez em Marte, trs vezes na Lua, e j nem selembrava de quantas nas vrias estaes espaciais. No entanto, medida que seaproximava o momento do lanamento, sentia uma tenso crescente, uma maravilhae um temor - sim, e um nervosismo - que o punham ao mesmo nvel de qualquerlabrego terrestre prestes a receber o seu batismo do espao.

    O jacto que o transportara de Washington, aps aquela reunio meia-noitecom o presidente, descia agora em direo a uma das paisagens mais familiares,mas mais excitantes do mundo. Abrangendo trinta quilmetros da costa da Flrida,encontravam-se a as duas primeiras geraes da Idade do Espao. A sul,contornadas por luzes de aviso vermelhas, que acendiam e apagavam, ficavam as

    torres gigantescas dos Saturnos e Netunos, que haviam posto o homem no caminhodos planetas, passando depois histria. Perto do horizonte, uma cintilante torreprateada, inundada por luzes artificiais, durante quase vinte anos monumentonacional e lugar de peregrinao, erguia-se em honra de Saturno V. No muitolonge, agigantando-se no cu como uma montanha feita pela mo do homem,encontrava-se o incrvel Edifcio de Montagem de Veculos, que continuava a ser amaior estrutura simples da Terra.

    Mas todas aquelas coisas pertenciam ao passado, e ele voava em direo aofuturo. Quando o avio fez uma viragem inclinando-se para o lado de dentro, o Dr.Floyd viu por baixo dele um labirinto de edifcios, depois uma faixa de ar, e a seguiruma cicatriz larga e direita, feita no solo plano da Flrida. Os carris mltiplos de umalinha gigante de lanamento. No fundo desta, rodeado de veculos e torres, via-seum avio espacial inundado de luz, a ser preparado para o seu salto at s estrelas.Com a sbita mudana de perspectiva provocada pela rpida mudana de

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    Muito embora uma cooperao internacional fosse mais urgente que nunca,as fronteiras ainda existentes eram tantas como as de pocas anteriores. Apesar deterem passado um milho de anos, a raa humana perdera poucos dos seusinstintos agressivos; ao longo de linhas simblicas visveis apenas por polticos, as

    trinta e oito potncias nucleares vigiavam-se mutuamente, com uma ansiedadebeligerante. Entre eles, possuam uma megatonelagem suficiente para destruir todaa crosta do planeta. Ainda ningum usara - milagrosamente - armas atmicas, masera pouco provvel que a situao se mantivesse assim infinitamente.

    E agora, por razes s compreensveis para eles, os Chineses ofereciam snaes mais pequenas uma capacidade nuclear completa, de cinquenta ogivas erespectivos sistemas de lanamento. O custo total era inferior a 5.200.000.000 edavam-se facilidades de pagamento.

    Talvez estivessem apenas a tentar aguentar uma economia em declnio,transformando obsoletos sistemas de armamento em dinheiro sonante, como alguns

    observadores haviam sugerido. Ou, se calhar, tinham descoberto mtodos de guerrato avanados, que j no precisavam de tais brinquedos; falara-se da rdio-hipnosea partir de satlites transmissores, vrus compulsivos, e de chantagem com doenassintticas, para as quais s eles possuam o antdoto. Estas idias encantadoraseram quase de certeza produto de propaganda ou pura fantasia, mas, pelo sim pelono, era melhor no as pr de parte. De cada vez que saa da Terra, Floydperguntava-se a si prprio se ela estaria no mesmo stio quando regressasse.

    Entrou na cabine. - Bom dia, Dr. Floyd. Sou Miss Simmons... em nome docomandante Tynes e do nosso co-piloto, primeiro oficial Ballard, bem-vindo a bordo.

    - Obrigado - disse Floyd com um sorriso, perguntando-se por que razo as

    hospedeiras haviam de falar sempre como robots tursticos.- Levantaremos daqui a cinco minutos - informou ela, fazendo um gesto para

    a vazia cabine de vinte passageiros. - Pode sentar-se onde quiser, mas, se estinteressado em ver as manobras de atracagem, o comandante Tynes diz que melhor instalar-se na cadeira da frente, esquerda, ao p da janela.

    - Vou fazer isso - retorquiu ele, abeirando-se do mencionado lugar. Ahospedeira ainda andou volta dele por algum tempo, encaminhando-se depoispara o seu cubculo, que ficava na parte de trs da cabine.

    Floyd instalou-se no seu lugar, apertou o arns de segurana volta do peito

    e ombros, e prendeu a mala ao assento adjacente. Um momento depois, o alto-falante produziu um leve estalido.

    - Bom dia - disse a voz de Miss Simmons. - Este o Vo Especial 3, deKennedy para a Estao Espacial Um. Parecia determinada a cumprir toda a rotinacom o seu passageiro solitrio; Floyd no resistiu a esboar um sorriso quando aouviu continuar inexoravelmente:

    - Estaremos em trnsito durante cinquenta e cinco minutos. A aceleraomxima ser de duas vezes a gravidade normal, e no teremos peso por um perodode trinta minutos. Por favor no saia do seu lugar at o sinal de segurana seracendido. Floyd olhou por cima do ombro, e disse:

    - Obrigado. - Deu com os olhos num sorriso ligeiramente embaraado, masencantador.

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    Recostou-se no assento e descontraiu-se. Segundo os seus clculos, aquelaviagem custaria aos contribuintes um pouco mais de um milho de dlares. Se, nofim, se provasse no ser justificada, perderia o emprego; mas podia sempre voltar universidade, e dedicar-se aos seus no concludos estudos sobre formao

    planetria.- Autocontagem decrescente a funcionar - informou pelo alto-falante a voz do

    comandante, naquele tom montono e calmo usado nas transmisses rdio.Descolagem dentro de um minuto. Como sempre, o minuto pareceu-se mais comuma hora. Floyd pensou nas foras gigantescas que, rodeando-o em espiral,estavam a espera de ser libertadas. Nos tanques de combustvel do veculo espaciale no sistema de acumulao de energia da pista de lanamento, estava contido opoder de uma bomba nuclear. E tudo seria usado apenas para o levar a uns merostrezentos quilmetros da Terra.

    No houve aquela histria antiquada dos CINCO-QUATRO-TRS-DOIS-UM-

    ZERO, to penosa para o sistema nervoso humano.- Lanamento daqui a quinze segundos. Sentir-se- melhor se comear a

    respirar profundamente.

    Eis o que se chamava de boa psicologia e boa fisiologia. Floyd sentiu-se bemcheio de oxignio e pronto a enfrentar qualquer coisa; a pista de lanamentopreparou-se para arremessar a sua carga de mil toneladas por sobre o Atlntico.

    Era difcil precisar o momento em que levantaram da pista e comearam avoar, mas, quando o rugido dos foguetes redobrou de fria e Floyd deu por si aafundar-se cada vez mais nas almofadas da sua cadeira, soube que os motores

    principais haviam entrado em funcionamento. Gostaria de poder olhar pela janela,mas at virar a cabea era um esforo. No entanto, no se sentia desconfortvel; apresso da acelerao e os troves ensurdecedores dos motores, produziam atuma euforia extraordinria. Com os ouvidos a retinir e o sangue pulsando-lhe nasveias, havia anos que Floyd no se sentia to vivo. Era jovem de novo, apetecia-lhecantar alto - o que, sem dvida, no faria mal a ningum, pois ningum poderia ouvi-lo.

    Mas tal disposio passou-lhe logo que percebeu que ia deixar a Terra e tudoo que alguma vez amara. L em baixo estavam - os seus trs filhos, rfos de medesde que a sua mulher embarcara naquele vo fatal para a Europa, havia dezanos. (Dez anos? Impossvel! Mas era...) Se calhar teria sido um bem para eles

    haver voltado a casar...J quase perdera a noo do tempo, quando a presso e o rudo afrouxaram

    subitamente, e o alto-falante da cabine anunciou: -Vamos separar-nos do mduloinferior. Agora. Houve um ligeiro solavanco; de repente, Floyd recordou uma citaode Leonardo da Vinci, que uma vez vira afixada num gabinete da NASA:

    O Grande Pssaro voar s costas do grande pssaro, trazendo glria aoninho onde nasceu.

    Bem, o Grande Pssaro estava a voar - Da Vinci nunca sonharia uma coisadaquelas -, e o seu exausto companheiro regressava naquele momento Terra.

    Num arco de quinze mil quilmetros, o mdulo inferior vazio deslizaria para aatmosfera, trocando a velocidade pela distncia, medida que se aproximasse deKennedy. Dentro de poucas horas, verificado e novamente cheio de combustvel,

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    estaria pronto para erguer outro companheiro em direo ao brilhante silncio quenunca alcanaria.

    Agora, pensou Floyd, estamos sozinhos, e a mais de meio caminho darbita. Quando sentiu de novo a acelerao provocada pela entrada emfuncionamento dos foguetes do mdulo superior, notou que o impulso foi muitomais suave: alis, pouco mais sentiu que uma gravidade normal. Mas teria sidoimpossvel andar, visto que Para cima ficava mesmo na parte da frente da cabine.Se houvesse sido suficientemente louco para se levantar, teria embatidoimediatamente no lado de trs. Era um efeito um tanto desconcertante, pois pareciaque a nave se erguia apoiada na cauda. Floyd, sentado frente, tinha a impressode que todas as outras cadeiras estavam fixadas a uma parede que se erguiaverticalmente debaixo dele. Estava ele a envidar os seus melhores esforos paraignorar esta iluso, quando a madrugada explodiu no interior da nave.

    Numa questo de segundos, atravessaram mantos carmesins, cor-de-rosa,

    dourados, azuis, e penetraram no branco ofuscante do dia. Embora as janelasfossem muito foscas, de modo a reduzir o brilho, os vivos raios de sol que varriam acabine, deixaram Floyd meio cego durante alguns minutos. Encontrava-se noespao, mas nem pensar em ver as estrelas.

    Protegeu os olhos com as mos, e tentou espreitar pela janela que tinha aolado. L fora, o leme de trs da nave luzia como metal quente luz refletida do sol:rodeava-o uma escurido total que, possivelmente, estava cheia de estrelas - masno podiam ver-se.

    O peso decaa lentamente; os foguetes diminuam de potncia medida quea nave entrava em rbita. O trovo dos motores passou a um rugido abafado, depois

    a um assobio suave, e acabou por se silenciar. Se no fossem as tiras que oapertavam, Floyd teria flutuado para fora do seu assento: bem, sentia o estmagoto embrulhado, que parecia que ia faz-lo, de qualquer forma. Esperava que oscomprimidos que lhe haviam dado meia hora e quinze mil quilmetros atrs, dessemo resultado que se afirmava nos folhetos. Sentira o enjo do espao apenas umavez em toda a sua carreira, mas essa chegara-lhe bem.

    Firme e confiante, a voz do piloto fez-se ouvir atravs do alto-falante da cabine:- Pede-se o favor de respeitar todos os regulamentos respeitantes

    gravidade nula. Atracaremos na Estao Espacial Um dentro de quarenta e cincominutos.

    A hospedeira apareceu no estreito corredor que ficava direita das cadeiraspouco espaadas. Havia uma ligeira flutuabilidade nos seus passas, e os ps saiam-lhe do cho to relutantemente como se patinhassem em cola. Caminhava pela tiraamarela viva do tapete Velcro que cobria o cho e o teto. Mirades de minsculosganchos cobriam o tapete e as solas das suas sandlias, o que os fazia prenderem-se uns aos outros como rebarbas. Este truque, que permitia caminhar em quedalivre, era imensamente tranquilizante para passageiros desorientados. -Quer caf ouch, Dr. Floyd? - perguntou ela alegremente.

    -No, obrigado. - Sorriu. Sentia-se sempre como um beb, quando tinha dechupar um daqueles tubos de plstico que continham as bebidas. Quando Floyd

    abriu a pasta e se preparou para tirar os seus apontamentos reparou que ahospedeira continuava a pairar ansiosamente volta dele.

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    - Dr. Floyd, posso fazer-lhe uma pergunta? -Claro - respondeu ele, olhandopor cima dos culos.

    - O meu noivo gelogo em Clavius, comeou Miss Simmons, medindocuidadosamente cada palavra, e h mais de uma semana que no sei nada dele.

    - Isso aborrecido; se calhar est longe da base, e no conseguem contat-lo. Ela abanou a cabea.

    - Sempre que isso acontece, ele diz-me. Imagine como estou preocupada...com todos os boatos que correm. mesmo verdade que h uma epidemia na Lua? -Se , no h motivos para alarme. Lembra-se? Houve uma quarentena em 98, porcausa daquela mutao no vrus da gripe. Muita gente esteve doente... masningum morreu. tudo o que posso dizer-lhe - concluiu firmemente. Miss Simmonsesboou um sorriso agradvel, e endireitou-se.

    - Bem, de qualquer forma, obrigado, Dr. Floyd. Desculpe t-lo incomodado.

    - No foi incomodo nenhum - respondeu ele galantemente mas com poucaconvico. Depois, concentrou-se nos infindos relatrios tcnicos, numadesesperada tentativa final de se pr em dia. No teria tempo para leituras quandochegasse Lua.

    8 - ENCONTRO ORBITAL

    Meia hora mais tarde, o piloto anunciou:-Estabeleceremos contacto dentro de dez minutos. Por favor verifique o seu

    arns.

    Floyd obedeceu, e guardou os apontamentos. J lhe chegara bem haverestado a ler durante o malabarismo celestial que tivera lugar nos ltimos 450quilmetros; era melhor fechar os olhos e descontrair-se enquanto o veculo espacialfosse empurrado para trs e para diante por breves exploses dos foguetes.

    Alguns minutos depois, avistou a Estao Espacial Um, apenas a uns poucosquilmetros de distncia. A luz do Sol reverberava e cintilava nas polidas superfciesmetlicas do disco de trezentos metros de dimetro, que girava lentamente. A poucadistncia dele, na mesma rbita, encontrava-se um avio espacial Titov-V, de asasinclinadas para trs, e ali perto, um ries-lB quase esfrico - o burro de carga doespao -, com os seus quatro atarracados absorsores de choque de aterragem lunarsaindo-lhe de um dos lados.

    O veculo espacial Orion III teve de descer de uma rbita mais alta,proporcionando, assim, um espetacular panorama da Terra, visvel por trs daEstao. A uma altitude de 300 quilmetros, Floyd via quase toda a frica e ooceano Atlntico. Apesar de o cu se encontrar consideravelmente coberto denuvens, ainda conseguia descortinar as linhas azuis-esverdeadas da Costa do Ouro.

    O eixo central da Estao Espacial, com os seus braos de atracagemestendidos, vagava lentamente em direo a eles. ao contrrio da estrutura que o

    sustentava, no estava a girar - ou melhor, rodava para o outro lado, a umavelocidade que anulava exatamente a rotao da Estao. Assim, podia ser-lheacoplada qualquer nave visitante, para a transferncia de pessoal ou carga, sem terde andar desastrosamente volta.

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    Com um baque surdo muito suave, nave e Estao estabeleceram contacto.Ouviram-se rudos metlicos, parecidos com arranhes, vindos do exterior, e umbreve assobio de ar, que indicava o nivelamento das presses. Alguns segundosmais tarde, a escotilha abriu-se, e um homem de calas claras e apertadas e camisa

    de manga curta - praticamente o uniforme do pessoal da Estao Espacial -, entrouna cabine.

    -Muito prazer em conhec-lo, Dr. Floyd. Sou Nick Miller, da Segurana daEstao; vou acompanh-lo at o vaivm se ir embora. Deram um aperto de mo;depois Floyd sorriu para a hospedeira, e disse:

    -Por favor, apresente os meus cumprimentos ao comandante Tynes, eagradea-lhe por esta viagem sem incidentes. Talvez volte a v-la quando regressar.

    Muito cautelosamente, passara-se mais de um ano desde que estivera sempeso pela ltima vez, e precisava de algum tempo para se acostumar novamente.Arrastou-se atravs da escotilha, e entrou na grande cmara circular que ficava noeixo da Estao Espacial. Era uma sala toda acolchoada, com as paredes cobertasde apoios para as mos; Floyd agarrou-se firmemente a um deles, e esperou que acmara comeasse a girar at atingir a rotao da Estao.

    A medida que esta ganhava velocidade, suaves e fantasmagricos dedosgravitacionais comearam a agarrar-se-lhe, e Floyd flutuou lentamente em direo parede circular. Viu-se ento de p, balanando docemente para a frente e paratrs, como algas ao sabor das ondas, no que magicamente se transformara numcho curvo. A fora centrfuga gerada pela rotao da Estao tomara conta dele;embora muito fraca ali, perto do eixo, aumentaria medida que se afastasse dele.Seguiu Miller para fora da cmara central de trnsito, e ambos desceram uma

    escadaria curva. Ao princpio o seu peso era to pouco que teve quase de searrastar para baixo agarrando-se ao corrimo. S quando chegou sala de esperados passageiros, no nvel externo do grande disco em rotao, adquiriu pesosuficiente para se mexer quase normalmente.

    A sala de espera fora redecorada desde a sua ltima visita, e adquirira vriosservios de que antes no dispunha. Alm das costumeiras cadeiras, mesinhas,restaurante e correio, havia agora uma barbearia, uma farmcia, um cinema e umaloja de lembranas, que vendia fotografias e slides de paisagens lunares eplanetrias, e miniaturas genunas de Luniks, Rangers e Surveyors, todas muito bemmontadas em plstico, e marcadas com preos exorbitantes.

    -Quer tomar alguma coisa enquanto esperamos? - perguntou Miller. -Embarcaremos daqui a cerca de trinta minutos.

    -Um caf preto sabia-me bem... dois quadradinhos de acar... gostariatambm de telefonar para a Terra. -Muito bem. Eu vou buscar-lhe o caf; ostelefones so ali.

    As pitorescas cabines ficavam apenas a alguns metros de uma barreira comduas entradas, cada uma das quais com os seguintes dizeres: BEM-VINDO AESTAO DOS E.U.A. e BEM-VINDO A SECO SOVITICA. Por baixo, letreirosescritos em ingls, russo, chins, francs, alemo e espanhol, anunciavam: PORFAVOR TENHA A MO O SEU: Passaporte Visto Certificado Mdico Licena deCirculao Declarao de Peso

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    Depois de atravessarem as barreiras, em ambas as direes, os passageiroseram livres de se misturar novamente, o que no deixava de constituir um agradvelsimbolismo. A diviso tinha puramente fins administrativos.

    Floyd verificou se o Cdigo de Zona dos Estados Unidos ainda era 81, premiuos doze botes do nmero da sua casa, enfiou na ranhura o carto de crdito paratodos os fins de plstico, e conseguiu a ligao em trinta segundos.

    Washington estava a dormir, pois ainda faltava muito para a madrugada, masele no perturbaria o sono de ningum. A governanta receberia a mensagem dogravador logo que acordasse.

    -Miss Flemming... sou o Dr. Floyd. Desculpe ter partido to pressa. Se nose importa, telefone para o meu escritrio e pea a algum para ir buscar o meucarro... est no Aeroporto Dulles, e o Sr. Bailey, Oficial Superior do Controlo de Vo,tem a chave. Depois, telefone por favor para o Clube de Caa e deixe umamensagem ao secretrio. No vou mesmo poder jogar no torneio de tnis doprximo fim-de-semana. Pea-lhe desculpa por mim... acho que estava a contarcomigo. Fale tambm para a Eletrnica da Baixa, e diga-lhes que se o vdeo do meugabinete no ficar pronto na... oh, quarta-feira, podem ficar com ele. - Fez umapausa para respirar, e tentou lembrar-se de mais problemas que poderiam surgir nosdias que se seguiriam.

    Se o dinheiro comear a faltar, fale para o escritrio; de l podem mandar-memensagens urgentes, mas talvez eu esteja demasiado ocupado para responder. Dsaudades minhas s crianas, e diga-lhes que regressarei logo que puder. Oh,raios... est aqui uma pessoa com quem no quero falar... telefonarei da Lua sepuder... adeus.

    Floyd tentou esgueirar-se da cabine sem ser visto, mas era demasiado tarde;fora j localizado. Aproximando-se rapidamente pela sada da Seco Sovitica,vinha o Dr. Dimitri Moisevitch, da Academia de Cincias da U. R. S. S.

    Dimitri era um dos melhores amigos de Floyd; e, exatamente por essa razo,a ltima pessoa com quem ele gostaria de falar naquela altura.

    O astrnomo russo era alto, elegante e louro e a sua face sem rugas fazia-ono aparentar cinquenta e cinco anos - dos quais os ltimos dez haviam sidopassados a construir o gigantesco observatrio rdio no lado mais afastado da Lua,onde trs mil quilmetros de rocha o protegeriam do rudo eletrnico da Terra. -Olha

    o Heywood - disse ele, apertando-lhe firmemente a mo. - O universo pequeno.Como ests tu... e as tuas encantadoras crianas?

    -Bem - replicou Floyd calorosamente, mas com um ar um tanto distrado. -Falamos muitas vezes das maravilhosas frias que passamos contigo no ltimoVero. Sentia-se mal por no poder parecer mais sincero; haviam realmenteapreciado a semana que tinham passado em Odessa com Dimitri, durante uma dasvisitas do russo Terra. -E tu... vais l para cima? - inquiriu Dimitri.

    -H... sim... O meu vo daqui a meia hora - respondeu Floyd. - Conheces oSr. Miller?

    O Oficial de Segurana aproximara-se, mas no muito; guardando uma

    distncia respeitosa, esperava, com um copo de plstico cheio de caf na mo.

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    -Claro que sim. Mas, por favor, largue isso, Sr. Miller. Esta a ltimaoportunidade que o Dr. Floyd tem de tomar uma bebida civilizada... no adesperdicemos. No... insisto.

    Saram com Dimitri da sala de espera principal e seguiram-no at ao sectorde observao; em breve estavam sentados a uma mesa banhada por uma luzdifusa, observando o panorama das estrelas. A Estao Espacial Um perfazia umarotao por minuto, e a fora centrfuga assim lentamente gerada produzia umagravidade artificial igual da Lua. O que, como fora descoberto, constitua um meiotermo entre a gravidade da Terra e uma gravidade nula; alm disso, dava aospassageiros que se dirigiam para a Lua uma boa oportunidade de se aclimatizarem.

    Para l das janelas praticamente invisveis, Terra e estrelas marchavam emprocisso silenciosa. Aquele lado da Estao estava, nessa altura, inclinado eprotegido do sol; se no fosse assim, teria sido impossvel olhar l para fora, pois asala de espera estaria inundada de luz. Apesar de tudo, o brilho da Terra, que

    preenchia metade do cu, s no apagava as estrelas mais brilhantes.Mas a Terra diminua medida que a Estao girava para o lado noturnos do

    planeta; dali a minutos, seria apenas um enorme disco preto, coberto das luzes dascidades. Depois, o cu pertenceria s estrelas.

    -Bem - disse Dimitri, depois de tragar rapidamente a primeira bebida, ebrincando com a segunda -, que histria essa de uma epidemia no sector dos E.U. A.? Eu quis l ir nesta viagem, mas disseram-me assim: No, Professor.Lamentamos muito mas, at nova ordem, vigora l uma quarentena muito estrita.Mexi todos os cordelinhos que pude, mas no me valeu de nada. Diz-me l o que sepassa.

    Floyd gemeu de si para si. C vou eu outra vez, pensou. Quanto maisdepressa estiver no vaivm, a caminho da Lua, melhor.

    - A... h... quarentena simplesmente uma precauo de segurana -replicou ele cuidadosamente. - Nem sabemos bem se mesmo necessria, masno queremos arriscar-nos.

    -Mas o que a doena... quais so os sintomas? Ser extraterrestre?Querem ajuda dos nossos servios mdicos?

    -Desculpa, Dimitri, mas pediram-nos para no dizermos nada por enquanto.Obrigado, mas ns tratamos da situao.

    -Hum, - disse Moisevitch, obviamente pouco convencido. - Acho muitoestranho que tu, um astrnomo, venha Lua observar uma epidemia.

    -Sou apenas um ex-astrnomo; h anos que no fao investigao a srio.Agora tenho a categoria de especialista cientfico, o que significa que no sei nadade absolutamente nada. - Ento no sabes o que quer dizer AMT-1

    Miller quase se engasgou com a bebida, mas Floyd era feito de material maisduro. Olhou o seu velho amigo de olhos nos olhos, e disse calmamente: - A MT-I?Que expresso to estranha! Onde a ouviste?

    -Deixa l - retorquiu o russo. - A mim no me enganas. Mas, olha, se vos

    aconteceu alguma coisa que no conseguem domar, espero que no gritem porajuda demasiado tarde. Miller consultou expressivamente o relgio.

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    -Tem de embarcar daqui a cinco minutos, Dr. Floyd - anunciou. - Acho que melhor irmos embora.

    Embora soubesse que ainda dispunham de uns bons vinte minutos, Floydlevantou-se apressadamente. Demasiado apressadamente, pois esquecera-se que agravidade era apenas de um sexto da normal. Agarrou-se mesmo mesa a tempode evitar levantar vo.

    Foi timo encontrar-te, Dimitri. - disse ele com pouco entusiasmo. - Esperoque faas uma boa viagem para a Terra... eu telefono-te logo que regressar.

    Quando deixaram a sala de espera e passaram pela barreira de trnsito dosE. U. A., Floyd comentou: - Fiuu... por pouco. Obrigado por ter vindo em meusocorro.

    -Sabe, Doutor - disse o Oficial de Segurana -, espero que ele estejaenganado. -Enganado sobre qu?

    -Sobre acontecer-nos alguma coisa que no podemos dominar.

    -Isso, replicou Floyd com determinao - o que eu tenciono descobrir.

    Quarenta e cinco minutos mais tarde, o transportador lunar Aries-lB afastou-se da Estao. No houve nada do poder e fria de uma deslocagem da Terra - sum assobio longnquo e quase inaudvel, quando os jactos de plasma de baixapresso lanaram os seus raios eletrificados para o espao. A suave compressodurou mais de quinze minutos, e a acelerao moderada no impediu ningum dese mover livremente na cabine. Mas quando tudo acabou, a nave j no estava nadireo da Terra, como fora o caso enquanto ainda acompanhava a Estao.Quebrara os laos da gravidade, e era agora um planeta livre e independente,girando volta do sol numa rbita prpria.

    A cabine que Floyd tinha por sua conta, fora concebida para trintapassageiros. Era estranho, e fazia-o sentir-se s, ver todos aqueles lugares vazios, eter s para ele as atenes do comissrio e da hospedeira - isto para no falar dopiloto, e dois engenheiros. Duvidava de que algum homem na histria houvessealguma vez tido direito a tal servio exclusivo, e era muito pouco provvel que issoviesse a acontecer no futuro. Recordou um comentrio cnico de um dos pontficesmenos respeitveis: Agora que temos o papado, aproveitamo-lo bem. Pois eleaproveitaria bem aquela viagem, e a euforia da imponderabilidade. A perda dagravidade fizera-o esquecer - pelo menos por momentos muitas das suas

    preocupaes. Algum dissera uma vez que era bem possvel que nos sentssemosaterrorizados no espao, mas nunca preocupados. Era perfeitamente verdade.

    Ao que parecia, o comissrio e a hospedeira estavam determinados a faz-locomer durante as vinte e cinco horas que durava a viagem; passou muitas delas arecusar refeies que no pedira. ao contrrio dos maus pressgios dos primeirosastronautas, comer NO ESPAO em gravidade zero no constitua qualquerproblema. Floyd dispunha de uma mesa vulgar, qual os pratos eram amarrados talcomo num barco navegando no meio de uma tempestade. Para no levantarem voe no andarem a passear pela cabine, todos os constituintes da ementa tinhamalgum elemento pegajoso. Assim, as costeletas eram coladas ao prato por meio de

    um molho grosso, e controlavam-se as saladas atravs de temperos adesivos. Comum pouco de habilidade e cuidado, no eram muitos os pratos que no se podiamcomer com segurana; as nicas coisas proibidas eram sopas quentes e pastis

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    excessivamente quebradios. As bebidas, claro, constituam um assunto diferente;todos os lquidos tinham que ser guardados em tubos plsticos.

    Uma gerao inteira de hericos, mas desconhecidos voluntrios, acabarapor conceber as casas de banho, que eram, naquela altura, consideradas mais oumenos prova de distraes. Floyd investigou a da sua nave pouco depois dehaverem entrado em queda livre. Entrou num cubiculozinho com todos os acessriosde um vulgar sanitrio de avio, mas iluminado por uma luz vermelha muitopenetrante e desagradvel. Afixado em grandes letras, lia-se: MUITOIMPORTANTE! PARA SUA PRPRIA SEGURANA, LEIA CUIDADOSAMENTEESTAS INSTRUES! Floyd sentou-se (mesmo sem peso era-se levado a faz-lo)e leu o aviso vrias vezes. Quando se certificou de que no houvera modificaesdesde a sua ltima viagem, premiu o boto que indicava COMEAR.

    Ali perto, um motor eltrico desatou a roncar, e Floyd sentiu-se a mexer-se.Obedecendo ao conselho do aviso, fechou os olhos e esperou. Passado um minuto,

    uma campainha tocou suavemente, e ele olhou em volta.A luz mudara para um calmo tom branco-rosado; mas, mais importante que

    tudo, estava novamente sob a influncia da gravidade. S uma vibrao muito ligeiradava a entender que se tratava de uma gravidade simulada, provocada pelas voltasde carrossel de todo o compartimento. Floyd pegou num sabonete, e observou-ocaindo em cmara lenta; calculou que a fora centrfuga fosse de um quarto dagravidade normal. Mas chegava; era suficiente para se ter a certeza de que tudo semoveria na direo certa - isto, no nico sitio onde era mesmo importante que assimacontecesse. Depois, premiu o boto que dizia PARAR PARA SAIR, e tornou afechar os olhos. O peso desapareceu medida que a rotao foi cessando, a

    campainha tocou duas vezes, e a luz vermelha de aviso acendeu-se de novo. Ofecho da porta abriu-se, e ele deslizou para a cabine, onde aderiu o maisrapidamente possvel carpete. Esgotara havia muito a novidade daimponderabilidade, e sentia-se grato por poder dispor das chinelas Velcro, que lhepermitiam caminhar quase normalmente.

    Mesmo que s estivesse sentado a ler, tinha muito em que ocupar o esprito.Quando se cansava de relatrios oficiais, memorandos e minutas, ligava o seucapacete Bloco-de-Notcias ao circuito de informao da nave, e examinava osltimos comunicados da Terra. Um por um, fazia aparecer como por encanto osrelatrios eletrnicos mais importantes do mundo; sabia de cor os cdigos dos maissonantes, no precisando, portanto, de consultar a lista que tinha na parte de trs dobloco. Passando depois memria do visor, fazia aparecer a pgina da frente, eexaminava rapidamente os ttulos, anotando as informaes que lhe interessavam.Cada uma delas tinha a sua referncia de dois algarismos; quando os premia, oretngulo do tamanho de um selo aumentava at encher nitidamente o visor,permitindo-lhe ler com clareza. Quando acabava, voltava de novo pginacompleta, e escolhia outro assunto para examinar com mais ateno.

    As vezes, Floyd perguntava-se se o Bloco-de-Notcias e a fantsticatecnologia que lhe estava subjacente, seria a ltima palavra na busca decomunicaes perfeitos. Ali estava ele, bem longe no espao, afastando-sevelozmente da Terra a milhares de quilmetros por hora, e, no entanto, bastava-lhe

    alguns milissegundos para ler os ttulos do jornal que lhe apetecesse. (Claro que aprpria palavra jornal constitua uma expresso anacrnica que se arrastara at era da eletrnica). O texto era atualizado automaticamente de hora a hora; mesmo

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    que s se lessem as verses inglesas, podia passar-se uma vida inteira a absorver oeternamente mutvel fluxo de notcias dos satlites informativos.

    Era difcil imaginar como que tal sistema poderia ser melhorado ou tornadomais conveniente. Mas, mais cedo ou mais tarde, pensava Floyd, acabaria por cairem desuso, e por ser substitudo por algo to inacreditvel como o prprio Bloco-de-Notcias teria sido para Caxton ou Gutenberg. O exame daqueles minsculos ttuloseletrnicos, invocava frequentemente um outro pensamento. Quanto maismaravilhosos eram os meios de comunicao, mais triviais, espalhafatosos oudeprimentes pareciam ser os seus contedos. Acidentes, crimes, desastres naturaise provocados pelo homem, ameaas de conflito, editoriais sombrios, eis o quepareciam continuar a ser as principais preocupaes dos milhes de palavrasborrifadas para o ter. No entanto, Floyd tambm se perguntava se, no seu conjunto,isto seria mau; havia muito que chegara concluso que os jornais da Utopiadeviam ser terrivelmente aborrecidos.

    De tempos a tempos, o comandante e os outros membros da tripulao,entravam na cabine e trocavam algumas palavras com ele. Tratavam o seu distintopassageiro com um certo temor respeitoso, e sem dvida que morriam decuriosidade sobre qual seria a sua misso, mas mostravam-se suficientementedelicados para perguntar fosse o que fosse, ou at para fazer comentrios dequalquer natureza.

    S a encantadora hospedeirazinha parecia completamente vontade na suapresena. Como Floyd rapidamente descobriu, ela era natural do Bali, e transportarapara l da atmosfera alguma da graa e mistrio dessa ilha ainda pouco estragada.Uma das suas recordaes mais estranhas e encantadoras de toda a viagem, foi a

    demonstrao, em gravidade nula, de alguns movimentos de dana clssicabalinesa, tendo por fundo o lindo crescente azul-esverdeado da Terra.

    Houve tambm um perodo de sono, quando as luzes principais da cabine seapagaram, e Floyd prendeu os braos e pernas com os lenis elsticos que oimpediriam de deslizar pelo ar. No parecia uma posio l muito recomendvel -mas ali, com uma gravidade nula, o seu sof duro era mais confortvel que o maisluxuoso colcho da Terra.

    Depois de se amarrar, Floyd adormeceu rapidamente, mas acordou uma vez,e, muito sonolento e meio consciente, olhou confusamente tudo o que o rodeava.Por momentos, pensou estar no meio de alguma lanterna chinesa difusamente

    iluminada; o brilho fraco que lhe vinha dos outros cubculos, dava-lhe essaimpresso. Mas depois disse firmemente para si prprio:

    -V l se dormes, rapaz. Isto no passa de um vulgar vaivm lunar. Quandodespertou, viu que a Lua engolira metade do cu; as manobras de travagemestavam prestes a comear. As largas janelas abertas em arco na parede curva daseco dos passageiros, davam para o cu aberto, e no para o globo que seaproximava, o que levou Floyd a encaminhar-se para a cabine de controlo. Ali, nosvisores de TV da retaguarda, pde observar os ltimos estdios da descida.

    As montanhas lunares no eram absolutamente nada parecidas com as daTerra; faltavam-lhes os deslumbrantes picos de neve, as maravilhosas e justas

    roupagens de vegetao, as mveis coroas de nuvens. No entanto, os intensoscontrastes de luz e sombra, emprestavam-lhes uma estranha beleza muito prpria.As leis da esttica terrestre no se aplicavam ali; aquele mundo fora formado e

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    moldado por foras que no as terrestres, que haviam operado ao longo de milniosdesconhecidos da jovem e inexperiente Terra, com as suas efmeras Idades doGelo, as rpidas ascenses e quedas dos seus mares, as suas cordilheirasdissolvendo-se como neblinas antes da madrugada. Ali estava uma idade

    inconcebvel - mas no a morte, pois a Lua nunca vivera, pelo menos at aomomento.

    A nave foi estabilizada quase sobre a linha que separava a noite do dia, e,diretamente por baixo dela, ficou um campo de sombras recortadas e picosbrilhantes e isolados, banhados pela primeira luz da lenta aurora lunar. Mesmo comtodas as ajudas eletrnicas possveis, seria assustador tentar ali uma aterragem;mas estavam a afastar-se lentamente, em direo ao lado noturnos da Lua.

    Quando os olhos se lhe habituaram iluminao mais fraca, Floyd viu que anoite no era totalmente escura. Picos, vales e plancies brilhavam com uma luzavermelhada que os tornava claramente visveis. A Terra, uma lua gigante para a

    Lua, inundava-a com o seu brilho.No painel de pilotagem, luzes acendiam-se e apagavam-se por cima de

    visores de radar, e nmeros apareciam e desapareciam em crans de computador,cronometrando a distncia que os separava da Lua. Ainda a mais de mil quilmetrosdela, os jactos comearam a desacelerar lenta mas firmemente, e o peso voltou. Asoperaes pareceram durar sculos. a Lua foi crescendo no cu, o sol ps-se porbaixo do horizonte, e, por fim, uma nica cratera gigante encheu o campo de viso.O vaivm caa em direo aos seus picos centrais e de repente Floyd reparou que,perto de um deles, uma luz brilhante piscava segundo um ritmo regular. Podiaperfeitamente ser confundida com um farol de aeroporto da Terra; Floyd deixou-se

    ficar a olhar para ela com um aperto na garganta, pois ali estava mais uma prova deque o homem dera outro passo na conquista da Lua.

    Entretanto a cratera expandiu-se tanto que as suas paredes comearam adeslizar abaixo do horizonte, revelando-se assim o verdadeiro tamanho dascraterazinhas mais pequenas que salpicavam o seu interior. Algumas destasminsculas vistas do espao, tinham vrios quilmetros da largura e envergadurasuficiente para conter cidades inteiras.

    Sempre controlado automaticamente, o vaivm foi deslizando pelo cuestrelado, descendo para aquela paisagem rida, que brilhava frouxamente luz dagrande e convexa Terra. Uma voz elevou-se acima do assobio dos jactos e dos

    rudos eletrnicos que perpassavam a cabine.Controlo de Clavius a Especial 14. A entrada est a ser perfeita. Faa a

    verificao manual dos mecanismos de aterragem, presso hidrulica e dilatao daalmofada anti-choque.

    O piloto mexeu em vrios interruptores, e luzes verdes piscaram.

    -Verificaes manuais completas.Mecanismos de aterragem, presso hidrulica, almofada antichoque. O. K.

    -Confirmado - retorquiu a Lua; a descida continuou sem palavras. Conversas,havia-as, mas eram todas entre mquinas, enviando impulsos binrios umas as

    outras, mil vezes mais depressa que os seus lentos construtores conseguiamcomunicar entre si.

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    Alguns dos picos montanhosos agigantavam-se j por cima do vaivm; o soloestava apenas a umas poucas centenas de metros de distncia, e a luz do farolbrilhava como uma estrela, projetando os seus raios intervalados sobre um grupo deedifcios baixos e veculos estranhos. No estdio final da descida, os jactos

    pareceram tocar uma espcie de melodia esquisita; fazendo os ltimos ajustamentosao impulso final, comearam a vibrar em movimentos ritmados.

    De repente, uma rodopiante nuvem de p ergueu-se no ar, os jactos deramum derradeiro arranco, e o vaivm oscilou muito ligeiramente, qual barco a remosembalado pelas ondas. Passaram-se alguns minutos at Floyd tomar verdadeiraconscincia do silncio que o envolvia, e da fraca gravidade que lhe prendia osmembros.

    Sem quaisquer incidentes, e em pouco mais de um dia, fizera a incrvelviagem com que os homens haviam sonhado durante dois mil anos. Aps um vonormal, rotineiro, aterrara na Lua.

    10 - BASE CLAVIUS

    Clavius, de 230 quilmetros de dimetro, a segunda maior cratera da facevisvel da Lua, e fica no meio das Terras Altas Meridionais. muito antiga; milniode vulcanismo e bombardeamento do espao, sulcaram-lhe as paredes e marcaram-lhe o solo. Mas estivera em paz durante meio bilho de anos, desde a ltimaformao de crateras, quando os detritos do cinturo de asterides aindabombardeavam os planetas interiores.

    Mas havia agora estranhos abanes por cima e por baixo da sua superfcie,pois o homem estava a estabelecer l a sua primeira base permanente na Lua. ABase Clavius podia, em caso de emergncia, tornar-se inteiramente auto-suficiente.Todas as necessidades da vida eram produzidas a partir das rochas locais, depoisde estas haverem sido trituradas, aquecidas, e processadas quimicamente.Hidrognio, oxignio, carbono, nitrognio, fsforo - todos estes, e muitos dos outroselementos, podiam ser encontrados na Lua, desde que se soubesse onde osprocurar.

    A Base era um sistema fechado, como um minsculo modelo articulado daprpria Terra, reciclando todos os elementos qumicos da vida. A atmosfera era

    purificada numa vasta estufa - uma sala grande e circular, co