Arthur C Clarke - 2001 - Uma Odisséia No Espaço

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    2001:UMA ODISSIANO ESPAO

    Arthur C. Clarke

    Ttulo do original ingls: 2001 - A space odysseyTraduo de: Stella Alves de SouzaCopyright 1968 by Arthur C. Clarke and Polaris Productions, Ing.

    Edio em livro de bolso autorizada pela EXPED, Expanso Editorial S.A. - RJCopyright 1975 para edio de bolso: EDITORA EDIBOLSO S.A.

    Impresso e Acabamento: Crculo do Livro S.A.4 Edio

    Idioma: Portugus do Brasil

    Digitalizado por SCSCompletado em 16/07/2010

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    NO PRIMEIRO ANO DO SCULO XXI

    Voc o comandante do Discovery, uma imensa nave espacial viajando amilhares de quilmetros por hora. Seu destino um planeta nos limites maislongnquos do sistema solar. Seus companheiros de viagem so um navegador,

    trs hibernautas congelados, e HAL, um computador muito falante, que estguiando o curso da nave e tambm de sua vida. A misso a cumprir atravs doabismo do espao comeou com o encontro de uma estranha formao mono-ltica numa das crateras lunares. No h a menor possibilidade de ser estemonlito uma formao natural, principalmente porque ele emite sinaisinexplicveis.

    Seria um carto de visitas deliberadamente enterrado na Lua, deixado poruma Inteligncia aliengena h milhes e milhes de anos?

    E voc deve descobrir QUEM, QUAL A MENSAGEM, AONDE e POR

    QUE...

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    Pr logo

    Erguem-se trinta fantasmas atrs de cada homem vivo. esta

    precisamente a proporo entre os que ainda vivem e os que j morreram. Cercade cem bilhes de criaturas humanas j pisaram o planeta Terra desde que omundo existe.

    uma cifra interessante, pois, por coincidncia, h aproximadamente cembilhes de estrelas nesse universo particular, a via-lctea. Portanto, para cadahomem que viveu corresponde uma estrela em pleno brilho.

    Mas cada uma dessas estrelas um sol, freqentemente muito maisbrilhante e resplandecente do que a pequenina e vizinha estrela a que chamamosSol. em torno de muitos deles, da maioria, talvez, desses sis desconhecidos,que giram os planetas. quase certo assim haver no cu terra suficiente para

    proporcionar a cada membro da espcie humana, incluindo o homem-macaco, oseu paraso ou inferno particular, do tamanho do mundo.

    impossvel saber quantos desses parasos ou infernos em potencial sohabitados e por que espcie de criaturas o so. O mais prximo deles est situadoum milho de vezes mais longe que Marte ou Vnus, essas metas ainda remotaspara a prxima gerao. Mas as barreiras dessa distncia desmoronam. Chegaro dia em que haveremos de encontrar entre as estrelas os nossos semelhantes ou os nossos mestres.

    Os homens custaram a enfrentar essa perspectiva. Alguns ainda continuamesperando que ela nunca se torne realidade. Entretanto, cada vez maisfreqente a pergunta: No ser possvel que j tenham acontecido tais encontros,visto ns mesmos estarmos prestes a aventurar-nos ao espao?

    Por que no? Este livro bem pode ser uma resposta para pergunta torazovel. Mas, por favor, lembrem-se de que ele apenas fico.

    A verdade, como sempre, ser muitssimo mais estranha.

    A.C.C.

    S.K.

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    I. NOITE PRIMITIVA

    1. O Caminho da ext in o

    H dez milhes de anos que a seca perdurava e fazia j muito tempo queterminara o reino dos terrveis lagartos. Aqui, no Equador, no continente que umdia seria denominado frica, a luta pela vida atingira um novo clmax deferocidade, no havendo ainda vencedor vista. Na terra seca e desolada, apenasos pequenos, ou os geis, ou os valentes, podiam desenvolver-se ou mesmo teresperana de sobrevivncia.

    Os homens-macaco da savana no eram assim e, portanto, no sedesenvolviam. A verdade era que a sua raa estava a caminho da extino. Uns

    cinqenta desse tipo de homens ocupavam algumas cavernas que dominavam ovale pequeno e ressecado, cortado por modesto riacho cujas guas provinham daneve das montanhas situadas a trezentos quilmetros do norte. Havia ocasiesem que o riacho se evaporava completamente e a tribo vivia ento sob o espectroda sede.

    A fome era constante, estando todos agora famintos. Quando a primeiraclaridade da aurora esgueirou-se para o interior da caverna, Amigo da Lua viuque seu pai morrera durante a noite. No sabia que o ancio era seu pai, pois talrelacionamento estava muito alm da sua capacidade de compreenso. Ao olhar,porm, para aquele corpo magro sentiu certo desassossego, que o ancestral da

    tristeza.Os dois bebs choramingavam de fome, mas calaram-se quando Amigo da

    Lua rosnou para eles. Uma das mes, defendendo a criana que no podia serconvenientemente alimentada, tambm rosnou ferozmente sua volta e ele noteve foras para dar-lhe um bofeto pelo seu atrevimento.

    A claridade tinha aumentado e podia-se sair agora da caverna. Amigo daLua pegou o cadver encarquilhado e o arrastou ao atravessar o teto baixo daentrada. Chegando ao lado de fora, arremessou o corpo sobre os ombros eendireitou-se. Era o nico animal do mundo que podia manter-se ereto.

    Amigo da Lua parecia um gigante junto de seus companheiros. Tinha maisde um metro e meio de altura, e, apesar de subnutrido, pesava mais de qua-trocentos quilos. Seu corpo peludo e musculoso colocava-o entre o macaco e ohomem. Sua cabea, porm, parecia mais com a do homem do que com a domacaco. Tinha uma testa estreita, com salincia acima da cavidade ocular.Possua, indubitavelmente, em seu gene caracterstica de humanidade. Aocontemplar o mundo hostil da era plistocena, havia em seu olhar algo quesuperava a capacidade de qualquer macaco. Os seus olhos fundos e escuroscontinham uma percepo incipiente o primeiro estmulo de uma intelignciaque ainda levaria sculos para se manifestar e que poderia dentro em breveextinguir-se para sempre.

    No vendo qualquer sinal de perigo, Amigo da Lua precipitou-se pelaencosta quase vertical, sem se incomodar com sua carga. Como se estivesse espera de uma senha, o resto da tribo surgiu de suas cavernas, situadas mais

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    abaixo, e apressou-se em direo s guas lamacentas do riacho para o gole ma-tinal. Amigo da Lua examinou o vale para ver se os Outros estavam por perto.No havia sinal deles. Talvez ainda no tivessem deixado suas cavernas, ou entoj haviam comeado a procurar alimentos nas colinas. Como no estivessem vista, Amigo da Lua esqueceu-se deles, pois era incapaz de ocupar-se com duascoisas ao mesmo tempo.

    Ele precisava antes de mais nada livrar-se do ancio. Isso, porm, no eraproblema difcil. Houve muitas mortes durante a estao, uma delas em suaprpria caverna. Bastaria colocar o cadver no mesmo local em que deixara orecm-nascido, na lua minguante, e as hienas fariam o resto.

    Estavam j espera, no lugar em que o vale se transformava em savana,como se soubessem que Amigo da Lua ali viria. Realmente, ele deixou o cadversob um pequeno arbusto no havia mais sinal de quaisquer outros ossos eapressou-se em voltar para junto da tribo. Nunca mais pensou em seu pai.

    Suas duas companheiras, bem como os adultos das outras cavernas e a

    maioria dos jovens procuravam alimentos entre as rvores mirradas e secas dovale, na tentativa de encontrar frutos, folhas e razes suculentas, ou talvezalguma ddiva do cu, como pequenos lagartos e roedores. Apenas os bebs e osvelhos, enfraquecidos, permaneciam nas cavernas. Se sobrasse algum alimentono fim da busca, poderiam comer. Seno, as hienas teriam mais um dia de sorte.

    Mas este era, de fato, um dia bom, se bem que Amigo da Lua, incapaz defixar na memria fatos passados, no pudesse comparar um dia com outro.Encontrara uma colmia de abelhas no oco de uma rvore morta e deleitara-secom o maior prazer que a sua gente conhecia. No fim da tarde, ao guiar o grupode volta para casa, lambia os dedos de vez em quando. Levara naturalmente um

    bom nmero de picadas, mal se apercebendo disso. Fora este o momento maisfeliz que tivera durante toda a sua vida. Se bem que ainda tivesse fome, no sesentia fraco. Significava isso o mximo a que um homem-macaco podia aspirar.

    Sua alegria desapareceu ao chegar ao riacho. Os Outros estavam l.Permaneciam a todos os dias, mas isso no deixava de ser sempre algodesagradvel.

    Eram uns trinta. No podiam ser distinguidos dos membros da tribo deAmigo da Lua. Ao v-los se aproximarem, comearam a agitar os braos, danar egritar do outro lado do rio onde se encontravam, enquanto os de c respondiamda mesma maneira.

    Foi s o que aconteceu. Ainda que os homens-macaco freqentementebrigassem e lutassem entre si, eram raras as vezes em que se feriam gravemente.No possuindo garras ou caninos salientes e estando bem protegidos por grossosplos, no podiam machucar muito o adversrio. De qualquer maneira, sua ener-gia no lhes permitia comportamento to improdutivo. Rosnados e ameaas eramo seu modo bem mais eficiente de afirmarem as suas opinies. O confronto duroucerca de cinco minutos. A exibio terminou to depressa como havia comeado.Depois, cada um bebeu a sua poro de gua lamacenta. A honra estava salva.Cada grupo havia garantido a posse de seu respectivo territrio. Resolvida essaimportante questo, a tribo seguiu para frente pelo mesmo lado do riacho.

    O campo mais prximo estava a mais de dois quilmetros das cavernas.Era necessrio dividi-lo com um bando de grandes animais, parecidos comantlopes, que no suportavam a presena de quaisquer outros grupos. No

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    podiam ser afugentados, pois tinham na testa uma espada ameaadora armanatural que os homens-macaco no possuam.

    Amigo da Lua e seus companheiros mastigavam folhas e frutos, aliviando,assim, a fome, enquanto em torno deles, todos competindo pela mesma comida,havia uma quantidade de alimento muito maior do que jamais haviam sonhado.Mas os milhares de toneladas de carne suculenta, que galopavam pela savana eentre os arbustos, estavam no s fora de seu alcance como, tambm, alm desua imaginao. Em meio fartura, caminhavam, todavia, lentamente para amorte por inanio.

    Ao pr-do-sol, a tribo voltou para as cavernas sem novos incidentes. Afmea machucada, que fora deixada sozinha, grunhiu de satisfao quandoAmigo da Lua lhe deu o ramo coberto de pequenos frutos que trouxera. Devorou-o com voracidade. O alimento era pouco, mas poderia ajud-la a sobreviver, atque a ferida causada pelo leopardo estivesse curada. Ento, poderia cuidar de simesma.

    A lua cheia surgia acima do vale. Um vento frio soprava, vindo dasmontanhas distantes. A noite seria muito fria, mas o frio e a fome no seriammotivo de preocupao. Ambos faziam parte da vida.

    Os guinchos e os gritos que ecoaram pela encosta, vindos de uma dascavernas, no incomodaram Amigo da Lua. No havia necessidade de ouvir osrugidos do leopardo para saber exatamente o que estava acontecendo. Maisabaixo, na escurido, o velho Cabea Branca e sua famlia lutavam e morriam. Aidia de ajud-los nem passou pela cabea de Amigo da Lua. A dura luta pelasobrevivncia no permitia tais fantasias e assim, na encosta vigilante, nenhumavoz se ergueu em sinal de protesto. Todas as cavernas, com medo de atrair a

    desgraa, permaneciam em silncio.O alarde terminou. Ento, Amigo da Lua podia ouvir o barulho de um corpo

    arrastado pelas pedras. Depois de alguns segundos, o leopardo agarrou com maisfirmeza sua vtima. No fez mais qualquer rudo. Ao partir, em silenciosaspassadas, carregava a presa entre as mandbulas, sem o menor esforo.

    O perigo estava afastado por um ou dois dias, mas outros inimigospoderiam surgir, aproveitando-se do Pequeno Sol frio que s brilhava noite. Osanimais menores, se houvesse vigilncia, podiam, s vezes, ser afugentados pormeio de gritos e berros.

    Amigo da Lua arrastou-se para fora da caverna, subiu numa grande pedraque estava ao lado da entrada e acocorou-se para observar o vale. De todas ascriaturas que haviam pisado a Terra, os homens-macaco eram os primeiros aolhar constantemente para a Lua. E, apesar de no se lembrar disso, Amigo daLua costumava, quando era criana, espichar-se na tentativa de tocar aquelerosto fantasmagrico que surgia acima das colinas.

    Jamais conseguira. Agora, tinha idade suficiente para compreender por queno obtivera xito. Era evidente que precisava, antes de mais nada, subir numarvore bem alta.

    Sempre escuta, olhava alternadamente para o vale e para a Lua. Cochilou

    uma ou duas vezes. Mas, tendo sono leve, o menor rudo o despertava. Naavanada idade de vinte e cinco anos, estava em plena posse de todas as suas

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    faculdades. Se continuasse a ter sorte e escapasse de acidentes, doenas,animais ferozes ou da inanio, ainda poderia viver mais uns dez anos.

    A noite foi passando, clara e fria, sem novos alarmas, e a Lua seguialentamente o seu caminho entre constelaes equatoriais que jamais olhos hu-manos chegariam a contemplar. Entre cochilos ocasionais e medrosa expectativanasciam, dentro das cavernas, os pesadelos de geraes que ainda estavam porvir. Por duas vezes, surgindo no znite e desaparecendo a leste, um ofuscanteponto de luz, mais brilhante que qualquer estrela, passou vagarosamente pelocu.

    2. Nova pedr a

    A noite ia avanada quando Amigo da Lua acordou subitamente. Cansadopelas lidas e acidentes do dia anterior, dormira mais profundamente do que de

    costume, mas mesmo assim alertou-se de imediato ao ouvir o tnue rangidovindo do vale.

    Sentou-se na escurido ftida da caverna e aguou os sentidos. O medoinsinuou-se lentamente em seu esprito. Nunca, em toda sua vida duas vezesmais longa do que a da maioria dos membros de sua espcie , ouvirasemelhante rudo. Os grandes felinos aproximavam-se em silncio. O nicobarulho a denunci-los era o ocasional deslize de terra ou o estalar de algumgalho. Mas este barulho era um rangido contnuo, crescendo constantemente.Dava a idia de um enorme animal movendo-se dentro da noite, ignorando todosos obstculos, sem fazer o menor esforo para ocultar-se. Em determinado mo-

    mento, Amigo da Lua ouviu distintamente o barulho de um arbusto que estavasendo arrancado. Os elefantes e os dinotrios freqentemente faziam isso,movendo-se silenciosamente semelhana dos felinos.

    Houve ento um barulho que Amigo da Lua jamais poderia identificar, poisnunca fora ouvido na histria do mundo. Era o retinir de metal sobre pedra.

    Ao descer com a tribo para o riacho, primeira claridade matutina, Amigoda Lua viu-se frente a frente com a Nova Pedra. J havia quase esquecido osterrores da noite, pois que nada acontecera depois do barulho. Por isso, no

    associou ao medo ou temor aquele estranho objeto. Afinal, aquilo nada tinha dealarmante.

    Era uma placa retangular trs vezes mais alta do que ele, suficientementeestreita para ser envolvida por seus braos e feita de um material completamentetransparente. Alis, era difcil perceb-la, a no ser quando a luz do sol se refletiaem suas bordas. Como Amigo da Lua jamais vira gelo, nem mesmo guacristalina, no conhecia nada que pudesse comparar quela apario. Era bonita,sem dvida, e apesar de sua instintiva desconfiana em relao a coisas novas,no hesitou muito em aproximar-se mais. Ao ver que nada acontecera, estendeua mo e verificou que tinha uma superfcie dura e fria.

    Aps vrios minutos de intenso raciocnio, conseguiu brilhante explicao:tratava-se, obviamente, de uma pedra que crescera durante a noite. Acontece issocom muitas plantas. Elas pareciam pequenas pedras brancas e polpudas que

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    surgiam durante as horas de escurido. verdade que, alm de pequenas, eramredondas, enquanto aquele objeto era grande e pontudo. Diversos filsofosposteriores, porm bem maiores que Amigo da Lua, chegaram a desprezaralgumas importantes excees s suas teorias.

    O seu maravilhoso poder de raciocnio abstrato levou Amigo da Lua, apstrs ou quatro minutos, a uma concluso que resolveu testar imediatamente. Asplantas brancas e redondinhas eram muito saborosas (se bem que algumas delascausassem violentos males). Quem sabe se essa planta alta...?

    Algumas lambidas e tentativas para mordiscar encarregaram-se dedesiludi-lo. Aquilo realmente no servia para comer. Ento, como homem-macacoque era, seguiu o seu caminho em direo ao riacho, esquecendo-se do monlitocristalino e entregando-se ao ritual cotidiano de gritar para os Outros.

    Hoje no estavam com sorte e a tribo precisou caminhar vrios quilmetrospara encontrar algum alimento. Sob o impiedoso calor do meio-dia, uma dasfmeas, mais frgil, desmaiou, longe de qualquer abrigo. Seus companheiros

    rodearam-na, alvoroados, soltando gemidos de solidariedade. Mas no havianada a fazer. Se no estivessem to exaustos, poderiam carreg-la. Oscompanheiros, porm, no tinham energia para a prtica de boas aes. Deixa-ram-na para trs, entregue sua sorte. noitinha, na volta para casa, passarampor l: no havia mais nenhum osso vista.

    Aproveitando a ltima claridade do dia e olhando ansiosamente em redor,com medo de algum animal, beberam apressadamente no riacho e iniciaram asubida para as cavernas. Estavam a uns cem metros da Pedra Nova quando orudo se fez ouvir.

    Era quase inaudvel, mas estancaram, como que paralisados, de boca

    aberta. Uma vibrao simples, mas de enlouquecer pela sua repetio, partia docristal e hipnotizava todos os que a ouviam. Pela primeira e ltima vez, em trsmilhes de anos, ouviu-se na frica o som do tambor.

    As batidas cresceram, cada vez mais insistentes. Os homens-macacodirigiram-se, quais sonmbulos, fonte daquele som compulsivo. Faziam, svezes, passinhos de dana, respondendo o seu sangue a ritmos que seusdescendentes ainda levariam sculos para criar. Em verdadeiro transe rodearamo monlito, esquecidos das lutas do dia, dos perigos da noite prxima, da fomeque os dominava.

    As batidas se tornaram mais fortes e a noite mais escura. E, medida queas sombras cresciam e a luz desaparecia do cu, o cristal foi-se tornandobrilhante.

    Comeou por perder a transparncia e parecia banhado em plida e leitosaluminescncia. Fantasmas pavorosos e indefinidos moviam-se na sua superfcie eno interior. Aglutinaram-se em feixes de luz e sombra para depois transformar-seem raios que se entrelaavam, comeando lentamente a girar. As luzes giratriasmoviam-se cada vez mais depressa e o rufar dos tambores acelerava-se ao mesmotempo. Totalmente hipnotizados, os homens-macaco podiam apenas olhar,boquiabertos, aquele espantoso espetculo pirotcnico. J haviam esquecido osinstintos de seus ancestrais e as lies de toda uma vida. Em condies normais,nenhum deles estaria to longe de sua caverna em hora to tardia. Os arbustosvizinhos estavam cheios das sombras paralisadas. Os animais noturnos, de olhosvidrados, haviam interrompido as suas atividades para ver o que aconteceria.

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    As luzes giratrias comearam a mesclar-se e a lanar feixes luminosos querodavam em torno dos eixos ao atingirem o espao. Dividindo-se em pares, osfeixes de luz oscilavam ao se cruzarem, mudando lentamente os ngulos deinterseo. Desenhos geomtricos fantsticos e evanescentes surgiam e desa-pareciam enquanto as malhas luminosas tranavam-se e destranavam-se. Oshomens-macaco, prisioneiros hipnotizados do brilhante cristal, olhavam.

    Jamais poderiam adivinhar que seus crebros estavam sendo estudados,seus corpos postos prova, suas reaes anotadas, seu potencial avaliado. Ini-cialmente, a tribo toda permanecera meio agachada, como que petrificada,formando um quadro imvel. Em seguida, o homem-macaco, que se encontravamais prximo placa, voltou subitamente a si.

    No mudou de posio, mas seu corpo perdeu aquela rigidez de transe emoveu-se como uma marionete controlada por fios invisveis. A cabea virou paraum lado e para outro, a boca abriu-se e fechou-se silenciosamente, as moscruzaram-se e descruzaram-se. Em seguida ele se abaixou, arrancou uma hastecomprida da grama e, com seus dedos desajeitados, fez uma tentativa para dar-lhe um n.

    Parecia um possesso, lutando contra algum esprito ou demnio que setivesse apoderado de seu corpo. No s arfava, como os seus olhos expressavamterror enquanto procurava forar os dedos a executarem movimentos complexosque jamais haviam sido tentados. Apesar de todos esses esforos, conseguiuapenas quebrar o talo. medida que os pedaos iam caindo no cho, o espritoque o dominara o abandonou e ele, mais uma vez, se petrificou.

    Outro homem-macaco voltou a si e comeou a mesma rotina. Era umespcime mais jovem e adaptvel: onde o outro fracassara, ele obteve xito. O

    primeiro n fora dado no planeta Terra...O resto da tribo fez coisas ainda mais estranhas e despropositadas. Alguns

    estenderam os braos para a frente e tentaram encostar as pontas dos dedos dasduas mos, primeiro com os dois olhos abertos, depois com um deles fechado.Outros se empenharam na fixao de determinados desenhos luminosos, cujaslinhas iam-se tornando cada vez mais finas, at se misturarem todas,confundindo-se numa mancha acinzentada.

    Todos eles ouviram sons simples e puros, de intensidades diversas, querepentinamente baixavam aqum do nvel de audio.

    Ao chegar sua vez, Amigo da Lua no teve muito medo. Sua principalsensao era de um surdo ressentimento porque seus msculos se contraam eseus membros se moviam, obedecendo a ordens que no eram apenas suas.

    Sem saber por qu, abaixou-se e apanhou uma pedrinha. Ao erguer-se viuque uma nova imagem surgira na placa de cristal.

    As malhas e os desenhos danantes haviam desaparecido. Sucedera-osuma srie de crculos concntricos em torno de um pequenino disco preto.

    Obediente s silenciosas ordens do seu crebro, atirou desajeitadamente apedra, errando o alvo por grande distncia.

    Tente novamente ordenou o comando.

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    Olhou em redor at encontrar outra pedrinha. Desta vez atingiu a placa,produzindo um som semelhante ao de sino. Ainda faltava muito, mas sua miramelhorava.

    Na quarta tentativa, faltaram apenas alguns centmetros para acertar. Umasensao de prazer indescritvel, quase sexual em sua intensidade, dominou-ocompletamente. Nesse momento, o controle cessou e ele no teve mais vontade decoisa alguma, a no ser de ficar em p e esperar.

    Um por um, todos os membros da tribo tiveram oportunidade de ficar sob amesma possesso. Alguns eram bem sucedidos. A maioria, porm, fracassava nocumprimento das tarefas estipuladas. Cada um era recompensado com sbitasconvulses de prazer ou de dor.

    Havia, ento, apenas um brilho uniforme na grande placa, semelhana deenorme floco de luz na escurido. Como se acordassem de um sonho, os homens-macaco sacudiam a cabea e comearam a caminhar na direo dos seusabrigos. No olharam para trs, nem se impressionaram com aquela estranha luz

    que os guiava para suas casas e para um futuro ainda desconhecido, atmesmo para as estrelas.

    3. Academia

    Depois que o cristal suspendeu a sua atrao hipntica e parou de fazerexperincias com os corpos dos homens-macaco, Amigo da Lua e seus compa-nheiros esqueceram-no. No dia seguinte, ao sarem em busca de alimentos,passaram por ele sem qualquer preocupao. Consideravam-no agora como parteapenas do seu panorama. No era comestvel e, tambm, no podia com-los.Conseqentemente, ele no tinha importncia.

    margem do riacho, os Outros fizeram suas ameaas costumeiras semconseqncias. Seu chefe, um homem-macaco de uma orelha s, da idade deAmigo da Lua e do seu tamanho, porm em piores condies fsicas, chegoumesmo a fazer uma breve investida em direo ao territrio pertencente tribo,gritando alto e agitando os braos, numa tentativa de amedrontar o inimigo e demostrar a si mesmo que era valente. O riacho no tinha mais que algunscentmetros de profundidade, mas quanto mais Uma Orelha avanava, maisinseguro e desventurado se sentia. Em seguida parou, retrocedendo com exa-gerada dignidade, para juntar-se aos companheiros.

    Fora isso, no houve alteraes na rotina normal. A tribo encontroualimento em quantidade estritamente necessria para sobreviver mais um dia.

    Nessa noite, a placa de cristal estava novamente espera, circundada porseu vibrante som e halo de luz. Mas, desta vez, o programa planejado era outro.

    Ignorou completamente alguns dos homens-macaco, como se quisesseconcentrar-se apenas nos indivduos mais promissores. Um deles era Amigo daLua. Mais uma vez ele sentiu algo insinuando-se nos labirintos ainda virgens doseu crebro. E ento comeou a ter vises.

    Talvez essas vises estivessem dentro do bloco de cristal, ou, quem sabe, selocalizassem dentro do seu crebro. De qualquer maneira, eram perfeitamente

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    reais para Amigo da Lua. Mas o impulso instintivo de afugentar invasores de seuterritrio estava, no entanto, adormecido.

    O que ele via era um pacato grupo familiar que diferia apenas em um pontodas cenas que conhecia. O macho, a fmea e as duas criancinhas, surgidasmisteriosamente sua frente, demonstravam fartura e saciedade, e tinham a pelemacia e lustrosa, condies fsicas essas que Amigo da Lua jamais imaginara.Automaticamente, passou a mo pelas suas costelas salientes. Estavam elasescondidas sob camadas de gorduras naquelas criaturas. De vez em quandomoviam-se lentamente, reclinados junto entrada de uma caverna, parecendomuito satisfeitos com o mundo. O grande macho emitia ocasionalmente umarroto de satisfao.

    No houve qualquer outra atividade. Aps cinco minutos a cenadesapareceu subitamente. O cristal tornou-se apenas um brilhante contorno naescurido. Amigo da Lua estremeceu como se acordasse de um sonho, percebeude repente onde estava e seguiu frente da tribo para as cavernas.

    No possua lembrana consciente do que vira, mas, naquela noite, aosentar-se entrada de sua casa, com os ouvidos aguados para o barulho domundo que o cercava, Amigo da Lua sentiu as primeiras picadas de uma nova epoderosa emoo. Era uma vaga sensao de inveja difusa de insatisfao comsua vida. No conhecia a causa, muito menos a soluo, mas odescontentamento entrara em seu esprito, avanando um pequeno passo emdireo humanidade.

    Noite aps noite, o espetculo daqueles quatro homens-macacorechonchudos repetiu-se, at se tornar uma fonte de fascinante exasperao queaumentava a eterna e devastadora fome de Amigo da Lua. Mas o que seus olhos

    viam no era suficiente para provocar essa reao: era necessrio um reforopsicolgico. Houve momentos na vida de Amigo da Lua que ele jamais lembrariae, durante os quais, os tomos de seu crebro simplificado iam sendoacomodados de maneira diferente. Se sobrevivesse, os novos padres setornariam eternos, pois seus genes se encarregariam de transmiti-los s geraesfuturas.

    Era um trabalho lento e fastidioso, mas o monlito de cristal sabia serpaciente. Nem ele nem suas rplicas espalhadas por quase toda a superfcie domundo esperavam ser bem sucedidos com todos os grupos escolhidos para aexperincia. Cem fracassos no tinham importncia, bastava um sucesso para

    modificar os destinos do mundo.Chegara a lua nova, a tribo assistira a um nascimento e a duas mortes.

    Uma delas fora provocada por inanio, a outra ocorrera durante o ritualnoturno, quando um homem-macaco desmoronara subitamente, ao tentar bateruma pedra em outra com delicadeza. No mesmo instante o cristal escurecera ecessara o transe exercido sobre a tribo. Mas o homem cado no se levantou. Pelamanh, naturalmente, o corpo desaparecera.

    Na noite seguinte, no houve espetculo: o cristal ainda estava ocupado emanalisar o seu erro. A tribo passou a seu lado, ao escurecer, sem tomarconhecimento de sua presena. Mas, na noite posterior, estava novamente pronto

    e espera.Os quatro homens-macaco rechonchudos continuavam em seu lugar,

    fazendo coisas extraordinrias. Amigo da Lua comeou a tremer

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    descontroladamente: tinha a impresso de que seu crebro ia explodir. Desejavamuito desviar os olhos. Mas o impiedoso controle mental no relaxava suapresso e ele foi obrigado a assistir aula at o fim, apesar da revolta de todos osseus instintos.

    Aqueles instintos tinham sido de grande utilidade para seus ancestrais, notempo em que as chuvas eram quentes e a fertilidade exuberante. Havia esperaalimento para ser colhido. Agora os tempos eram outros. A sabedoria herdada dopassado tornara-se loucura. Os homens-macaco precisavam adaptar-se, para nomorrer como os grandes animais que haviam existido antes deles e cujos ossosestavam agora encravados nas colinas de pedra calcria.

    Por esse motivo, Amigo da Lua fixou sem pestanejar o monlito de cristal,com o crebro pronto a obedecer s suas manipulaes ainda incertas. Sentiafreqentemente nuseas, mas sempre tinha fome, e de vez em quando suas mosmoviam-se automaticamente, em gestos que viriam a determinar seu novo modode vida.

    Ao ver a manada de porcos selvagens que avanavam grunhindo e fuandopelo caminho, Amigo da Lua estacou subitamente. Porcos e homens-macacohaviam sempre ignorado a existncia uns dos outros, pois seus interesses noentravam em conflito. Como no competiam pela mesma comida, cada um levavasua vida.

    Agora, no entanto, Amigo da Lua, ao olhar para eles, oscilava para a frentee para trs, sentindo impulsos que no compreendia. Em seguida, como numsonho, comeou a vasculhar o cho com os olhos. Ainda que tivesse o dom dapalavra, no poderia explicar o que procurava, mas saberia o que era quandoencontrasse.

    Era uma pedra pesada e pontuda, com alguns centmetros decomprimento, a qual, ainda que no se adaptasse bem palma de sua mo,serviria a seu intento. Ao girar o brao, pasmo ante o sbito aumento de peso desua mo, teve uma agradvel sensao de poder e de autoridade. Deu algunspassos em direo ao porco mais prximo.

    Era um animal novo e bobo, mesmo considerando o que se pode esperar dainteligncia suna. Olhando para Amigo da Lua, no o levou a srio, a no serquando j era tarde demais. Por que haveria de desconfiar das ms intenesdaquela inofensiva criatura? No parou de comer grama at o momento em que ogolpe desferido com a pedra destruiu a sua obscura conscincia. O resto da

    manada continuou pastando, indiferente ao que acontecera, pois a morte forarpida e silenciosa.

    Os outros homens-macaco do grupo haviam parado para olhar. Fizeramento um crculo em torno de Amigo da Lua e sua vtima, tomados de espanto eadmirao. Um deles pegou a arma ensangentada e comeou a golpear o porcomorto. Os outros imitaram-no, usando as pedras e pedaos de pau queencontraram, at que o porco se tornou uma massa disforme e desintegrada.

    Em seguida, sentiram-se como que entediados. Alguns afastaram-se eoutros permaneceram hesitantes junto ao cadver irreconhecvel. O futuro domundo esperava uma deciso. Espao de tempo surpreendentemente longodecorreu at que uma das fmeas, que amamentava, comeou a lamber a pedraensangentada que segurava nas mos.

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    Demorou mais ainda para Amigo da Lua compreender, apesar do que tinhavisto, que nunca mais precisaria sentir fome.

    4. O leopardo

    Os instrumentos que haviam sido planejados para uso dos homens-macacoeram bastante simples, mas, mesmo assim, podiam modificar o mundo e faz-losdominar a Terra. O mais simples deles era a pedra, que multiplicava muitas vezeso poder de uma pancada. Havia, tambm, o cacete de osso, que aumentava o raiode alcance e podia servir de defesa contra os dentes e as garras de animaisferozes. Com essas armas, tinham disposio a ilimitada quantidade dealimento que galopava pelas savanas.

    Precisavam, porm, de mais ajuda, pois suas unhas e dentes no podiamdestrinchar nada que fosse maior do que um coelho. Felizmente, a Natureza

    providenciara outros instrumentos, bastando apenas que os homens-macacotivessem a inteligncia de aproveit-los.

    Havia, em primeiro lugar, uma faca ou serra, tosca, porm eficiente, queserviria durante os prximos trs milhes de anos. Tratava-se simplesmente domaxilar inferior do antlope, com os dentes ainda no seu lugar. At oaparecimento do ferro, esse instrumento no sofreria melhora substancial. Havia,tambm, a espada, feita com chifre de gazela. Finalmente, havia um instrumentoque servia para escavar a mandbula inferior de qualquer animal de pequenoporte.

    O cacete de pedra, a serra dentada, a espada de chifre, a p de osso eram essas as maravilhosas invenes de que necessitavam os homens-macacopara sobreviver. Em breve esses instrumentos seriam conhecidos como ossmbolos do poder que possuam. Vrios meses, porm, ainda decorreriam atque seus dedos desajeitados adquirissem a habilidade ou a vontade de us-los.

    Talvez, com o passar do tempo, tivessem chegado por si mesmos brilhante idia de usar armas da Natureza como instrumentos artificiais. Isso eramuitssimo improvvel. Ainda teriam, pelos sculos afora, inmeraspossibilidades de fracasso. Os homens-macaco haviam tido sua primeiraoportunidade. No haveria outra. O futuro estava literalmente em suas mos.

    Luas cresciam e minguavam; crianas nasciam e, s vezes, viviam; homensde trinta anos, fracos e sem dentes, morriam; o leopardo atacava durante a noite;os Outros faziam ameaas dirias, do outro lado do riacho. E a tribo prosperava.No decurso de apenas um ano, Amigo da Lua e seus companheiros haviammudado, a ponto de se tornarem irreconhecveis.

    Tinham aprendido bem as lies e agora sabiam empunhar osinstrumentos que lhes haviam sido proporcionados. A prpria lembrana da fomedesaparecia de seus espritos. Ainda que os porcos selvagens se tivessem tornado

    ariscos, havia nas plancies milhares de zebras, antlopes e gazelas. Todos essesanimais e outros estavam ao dispor dos aprendizes de caador.

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    Agora que no estavam mais naquele estado de semi-inconscincia,causado pela inanio, tinham tempo para descansar e para os primeirosrudimentos do raciocnio. Aceitavam com naturalidade sua nova maneira deviver. No faziam qualquer associao com o monlito que ainda permaneciajunto ao caminho para o riacho. Se algum dia parassem para pensar no assunto,talvez se gabassem de ter melhorado de vida por meio de seu prprio esforo. Na

    verdade, no se lembravam mais de outra maneira de viver.Mas no existe utopia perfeita. Essa, porm, possua dois senes. O

    primeiro era o leopardo, cuja paixo pelos homens-macaco, agora bemalimentados, parecia ter aumentado ainda mais. O segundo era a tribo do outrolado do rio, pois os Outros haviam sobrevivido, recusando-se teimosamente amorrer de inanio.

    O problema do leopardo foi resolvido, em parte, pelo acaso e, em parte,devido a um grande erro, quase fatal, cometido por Amigo da Lua. Mas, naocasio, a idia parecera-lhe to brilhante que ele havia danado de alegria,sendo compreensvel que no tivesse pensado nas conseqncias.

    A tribo ainda enfrentava ocasionalmente dias difceis, mas que nochegavam, todavia, a ameaar sua sobrevivncia. noitinha, no haviam caadonada. Amigo da Lua, regressando ao abrigo, seguia frente de seuscompanheiros exaustos e desapontados. As cavernas j estavam vista. E ali,bem junto a elas, encontraram uma rara ddiva da Natureza.

    Um antlope bem desenvolvido estava deitado no caminho. Apesar de teruma das patas quebradas, o animal ainda possua bastante energia. Os chacaisque o rondavam mantinham-se com certo respeito distncia de seus chifrespontiagudos. Podiam dar-se ao luxo de esperar. Sabiam que era questo de

    tempo.Tinham-se esquecido, porm, da competio. Ento, retrocederam, rugindo

    ferozmente, ao verem os homens-macaco se aproximarem. Estes, tambmrodearam o animal, mantendo-se fora do alcance daqueles perigosos chifres. Emseguida, avanaram munidos de pedras e de cacetes.

    O ataque no foi muito bem coordenado ou eficaz. Quando acabaram deliquidar o grande antlope, a noite j vinha chegando e os chacais retomavamcoragem. Dividido entre a fome e o medo, Amigo da Lua percebeu, ainda quelentamente, que todo aquele esforo talvez tivesse sido em vo. Era perigosodentais permanecer ali por mais tempo. E ento no era essa a primeira e nem

    seria a ltima vez provou a si mesmo que era um gnio. Num enorme esforode imaginao visualizou o antlope morto dentro do seguro abrigo de suacaverna. Comeou a arrast-lo em direo encosta da colina. Os outroscompreenderam sua inteno e puseram-se a ajud-lo.

    Se tivesse sabido que a tarefa seria to difcil, certamente jamais teriatentado. S mesmo a sua grande fora e a agilidade herdada de seus ancestraispermitiriam-lhe que subisse a ngreme encosta arrastando a carcaa. Pordiversas vezes, dominado pela frustrao, esteve a pique de largar sua presa, masuma teimosia to grande quanto sua fome fazia-o prosseguir. s vezes os outrosajudavam-no, s vezes o atrapalhavam. Mas, finalmente, quando os ltimos raios

    de sol desapareceram do cu, o antlope abatido estava dentro da caverna e obanquete teve incio.

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    Horas mais tarde, saciado completamente, Amigo da Lua acordou. Sentou-se na escurido, sem saber por qu, entre os seus companheiros tambmsaciados e aguou os ouvidos para o barulho noturno.

    A no ser a pesada respirao dos que estavam em torno, no haviaqualquer outro rudo: afigurava-se que o mundo inteiro dormia. As pedras dolado de fora da entrada estavam brancas como ossos sob a brilhante luz da Luaque ia alta no cu. Qualquer idia de perigo parecia completamente remota.

    Foi ento que veio, como de muito longe, o barulho de uma pedrinharolando. Temeroso, mas cheio de curiosidade, Amigo da Lua arrastou-se para forada caverna e olhou para a encosta da colina.

    O que viu deixou-o de tal maneira apavorado que por vrios segundos sesentiu paralisado de tanto medo. Pouco mais abaixo, um par de brilhantes olhosdourados fixavam-no diretamente. Ficou to hipnotizado de medo, que malconseguiu perceber o corpo gil e raiado que se movia lenta e silenciosamentepelas pedras. Nunca o leopardo subira to alto. No tomara conhecimento das

    cavernas situadas mais abaixo, se bem que tivesse percebido, certamente, apresena de seus habitantes. Mas a caa que perseguia era outra. Seguia a trilhasangrenta que subia pela encosta banhada de luar.

    Segundos mais tarde, os gritos dos homens-macaco da caverna que estavamais acima encheram de horror o silncio da noite. O leopardo rugiu furioso, aoperceber que no levava mais a vantagem do ataque de surpresa. Mas nem porisso se deteve, pois sabia que nada tinha a temer.

    Chegando beira do abrigo, deteve-se por um momento para descansar naestreita plataforma da entrada. O cheiro de sangue era penetrante e um nico eirresistvel desejo invadia o pequenino crebro selvagem. Sem hesitar, entrou na

    caverna, cuidando que suas passadas fossem as mais macias possveis.Foi ento que cometeu seu primeiro erro. Ao deixar a luz do luar, at os

    seus olhos admiravelmente adaptados escurido estavam em desvantagem mo-mentnea. Os homens-macaco viam sua silhueta, desenhada de encontro entrada da caverna, com mais nitidez do que ele os enxergava. Sentiam-seaterrorizados, mas j no estavam mais totalmente indefesos.

    Rosnando e abanando a cauda com arrogante confiana, o leopardoavanou procura da tenra carne que tanto desejava. Se tivesse encontrado suapresa do lado de fora da caverna, no teria havido problemas. Mas, agora, odesespero dos homens-macaco encurralados dava-lhes coragem para tentar oimpossvel. Pela primeira vez possuam meios para isso.

    Ao sentir o estonteante golpe na cabea, o leopardo percebeu que as coisasno iam bem. Deu uma patada no ar e ouviu-se um grito de agonia quando suasgarras arranharam a carne macia. Seguiu-se uma dor aguda quando o objetopontudo penetrou em suas costas uma, duas, trs vezes. Rodopiou para atacar assombras que grifavam e danavam por todos os lados.

    Houve novo e violento golpe em seu focinho. Seus alvos dentes fecharam-senum movimento brusco mas abocanharam apenas um pedao de osso. Ento,numa ltima e inconcebvel afronta, puxavam seu rabo com toda a fora.

    Rodopiou novamente, arremessando contra a parede da caverna seu loucoe ousado algoz. Mas, por mais que fizesse, no conseguia escapar aos inmerosgolpes desferidos, com os toscos instrumentos empunhados por mos

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    desajeitadas mas poderosas. Seus rugidos iam da dor ao alarma, do alarma aofranco terror. O caador implacvel tornara-se vtima, tentandodesesperadamente retroceder.

    Cometeu a o seu segundo erro. A surpresa e o medo haviam-no feitoesquecer onde estava. Ou talvez isso tivesse acontecido devido ao fato de estaratordoado e cego pela chuva de golpes recebidos na cabea. Mas, qualquer quefosse o motivo, arremessou-se, subitamente, para fora da caverna. Um gritoterrvel acompanhou sua queda no espao vazio. Um tempo infindvel pareceudecorrer at ouvir-se o baque de seu corpo, espatifando-se de encontro a umaplataforma saliente do penhasco.

    O nico barulho depois desse foi o de pedras soltas rolando. Fez-se silncionovamente.

    Durante muito tempo, Amigo da Lua, embriagado pela vitria, permaneceu entrada da caverna, danando e fazendo barulho. Sentia, com razo, que seumundo mudara e que ele no era mais uma vtima indefesa das foras em redor.

    Ento, tornou a entrar na caverna e, pela primeira vez na vida, dormiuininterruptamente uma noite inteira.

    Pela manh encontraram o corpo do leopardo ao p do penhasco. Apesar deestar morto, passou-se algum tempo antes que algum ousasse aproximar-se domonstro vencido. Mas finalmente avanaram com facas e serras de osso.

    Foi uma dura tarefa, mas naquele dia no caaram.

    5. Encon tro n a madru gada

    Conduzindo a tribo para o riacho, ao raiar do dia, Amigo da Lua fez umapausa um tanto hesitante num determinado ponto. Sabia que estava faltandoalguma coisa, mas no lembrava o que era. No fez o menor esforo mental pararesolver a questo, pois nessa manh tinha preocupaes mais importantes.

    O grande bloco de cristal desaparecera to misteriosamente como haviasurgido, maneira dos raios, troves, relmpagos, nuvens e eclipses. Mergulhadono passado inexistente, nunca mais entrou nas cogitaes de Amigo da Lua.

    Jamais saberia o quanto lhe devia. E nenhum dos companheiros que orodeavam na bruma da madrugada se preocupou com o motivo pelo qual eleparara um instante a caminho do rio.

    Do outro lado do rio, na segurana de seu territrio jamais violado, osOutros viram, como um quadro movendo-se na madrugada, Amigo da Lua e umadezena de machos de sua tribo. Imediatamente comearam a soltar seus gritos dedesafio costumeiros. Mas desta vez no houve resposta.

    Com firmeza e deciso, sobretudo em silncio, Amigo da Lua e seu bandodesceram a pequena colina que levava ao rio. Ao v-los se aproximarem, os

    Outros calaram-se imediatamente. Sua raiva de costume desapareceu aospoucos, sendo substituda pelo medo cada vez maior. Perceberam vagamente quealgo acontecera e que esse encontro seria diferente dos anteriores. Os cacetes de

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    osso e as facas que o grupo de Amigo da Lua empunhava no os alarmavam, poisno compreendiam sua utilidade. Sabiam apenas que os movimentos de seusinimigos revelavam determinao e ameaa.

    O grupo parou margem do rio, e, por um momento, os Outrosrecuperaram a coragem. Chefiados por Uma Orelha, recomearam sementusiasmo o seu canto de guerra. Mas em poucos segundos ficaram mudos anteaterradora viso.

    Amigo da Lua levantara bem alto seus dois braos, mostrando algo queestivera at ento escondido pelos corpos peludos de seus companheiros.Segurava um galho forte, na ponta do qual estava espetada a cabea sangrentado leopardo. A boca mantinha-se escancarada por meio de um pedao de pau eos dentes pontiagudos tinham o brilho de um branco horrendo sob os primeirosraios do sol que despontava.

    A maioria dos Outros, estarrecida de medo, no conseguia fazer um smovimento. Alguns, porm, iniciaram lenta e cambaleante retirada. Era esse o

    estmulo necessrio a Amigo da Lua. Sempre empunhando o trofu mutiladoacima da cabea, comeou a atravessar o riacho. Aps um momento de hesitao,seus companheiros o seguiram.

    Quando Amigo da Lua alcanou a outra margem, Uma Orelha continuavaem p. Talvez fosse corajoso demais ou estpido demais para fugir. Talvez noconseguisse acreditar realmente na veracidade daquela afronta. Covarde ou heri,o resultado final foi o mesmo, quando a glida sombra da morte se abateu sobre asua cabea incapaz de compreender.

    Gritando de medo, os Outros espalharam-se pelos arbustos. Mas logovoltariam, sem se lembrar d chefe desaparecido.

    Durante alguns segundos Amigo da Lua manteve-se em p junto suanova vtima, tentando compreender o estranho e maravilhoso fato de o leopardomorto continuar sendo capaz de matar. Via-se agora senhor do mundo, nosabendo bem o que devia fazer em seguida.

    Mas alguma idia viria.

    6. Asc enso do hom em

    Vindo do corao da frica, um novo animal espalhava-se lentamente pelomundo. Era ainda to raro que um levantamento superficial poderia t-loignorado no meio de bilhes de criaturas que vagavam pela terra e pelo mar. Porenquanto, no havia sinais de que se desenvolveria, ou mesmo de que sobrevi-veria. Nesse mundo em que tantos animais, apesar de maiores e mais fortes,haviam desaparecido, seu destino era ainda incerto.

    Durante os cem mil anos decorridos desde que o monlito de cristaldescera na frica, os homens-macaco nada tinham inventado. Mas j tinham co-meado a mudar, desenvolvendo habilidades que nenhum outro animal possua.Graas aos cacetes de osso, haviam aumentado seu raio de alcance emultiplicado sua fora. No eram mais indefesos ante os animais ferozes com osquais competiam. Podiam afastar os carnvoros de pequeno porte que se

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    aproximassem de sua caa. Quanto aos maiores, conseguiam pelo menosdesencoraj-los e, s vezes, p-los em fuga.

    Seus enormes dentes tornavam-se menores, pois no eram mais essenciais.As pedras afiadas que usavam para escavar razes ou cortar e destrinchar carne efibras haviam-nos substitudo com grande vantagem. Os homens-macaco nopassavam mais fome quando seus dentes se estragavam ou se tornavam gastos.At mesmo os mais toscos utenslios podiam acrescentar vrios anos s suasvidas. E, medida que seus dentes diminuam, seus prprios rostos semodificavam: a boca tornava-se menos proeminente, os pesados maxilares maisdelicados, os lbios conseguiam produzir sons mais sutis. Um milho de anosdecorreria antes que surgisse a fala, mas os primeiros passos estavam dados.

    O mundo ento comeou a mudar. Em quatro grandes ondas, comduzentos mil anos entre cada crista, a era glacial passou, deixando suas marcasem todo o globo. Longe dos trpicos, as geleiras mataram os que haviam deixadoprematuramente o local de origem de seus ancestrais e afastaram onde quer queencontrassem as criaturas que no conseguiam adaptar-se.

    Quando a era do gelo terminou, muitas coisas da vida primitiva do planetatambm haviam terminado inclusive os homens-macaco. Mas estes, diferentesde outros animais, tinham deixado descendentes. No haviam sido simplesmenteextintos, mas sim transformados. Os criadores de instrumentos foram recriadospor seus prprios instrumentos.

    Isso porque, ao usarem cacetes e pedras, suas mos haviam desenvolvidouma destreza nica no reino animal, permitindo-lhes fabricar instrumentos aindamelhores que, por sua vez, desenvolveram ainda mais suas mos e seus crebros.Foi um processo acelerado e cumulativo, estando no fim de tudo o Homem.

    Os primeiros homens verdadeiros possuam utenslios e armas que eramapenas um pouco melhores do que os de seus antepassados de um milho deanos antes. Apenas sabiam us-los com muito mais habilidade. E, em algummomento dos obscuros sculos j decorridos, haviam inventado a mais essencialde todas as ferramentas, que no era visvel nem sensvel ao tato. Tinhamaprendido a falar e haviam assim conquistado sua primeira grande vitria contrao Tempo. Da por diante, os conhecimentos de uma gerao podiam sertransmitidos seguinte, a fim de que todos pudessem tirar proveito dasexperincias passadas.

    Diferenciando-se dos animais, que conheciam apenas o presente, o Homem

    possua um passado e comeava a tatear em direo ao futuro.Aprendia, tambm, a domar as foras da natureza. Dominando o fogo,

    lanara os fundamentos da tecnologia e deixara muito longe sua origem animal. Apedra cedeu lugar ao bronze e, este, ao ferro. caa seguiu-se a agricultura. Atribo formou a aldeia, que se transformou em cidade. A palavra tornou-se eterna,graas a determinados sinais estampados em pedra, argila e papiro. Depoisinventou a filosofia e a religio. E no estava de todo errado ao povoar o cu comdeuses.

    medida que seu corpo ia ficando mais indefeso, seus meios de ataquetornavam-se cada vez mais assustadores. Com a pedra, o bronze, o ferro e o ao,ele percorrera toda a gama das coisas que furavam e despedaavam. Bem cedo naHistria aprendera, tambm, a maneira de atingir o inimigo a distncia. A

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    espada, o arco, o fuzil e finalmente o mssil teleguiado, haviam-lhe proporcionadoarmas de alcance e poder ilimitados.

    Apesar de t-las freqentemente usado contra si mesmo, o Homem jamaisteria conquistado seu mundo sem utilizar armas. Empenhara-se a tal respeito decorpo e alma e, durante sculos, lhe haviam prestado bons servios. Mas, agora,enquanto houvesse armas, os dias do Homem estavam contados.

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    II. AMT-1

    7. Vo especial

    Por mais que j se viaje pelo espao, pensava o Dr. Heywood Floyd comseus botes, a excitao sempre a mesma. Estivera uma vez em Marte, trs naLua, e j perdera a conta de quantas vezes visitara as diversas estaes espaciais.No entanto, sempre que a hora da partida se aproximava, sentia uma tensocrescente, uma impresso de pasmo e admirao e, tambm, de nervosismo, oque o colocava na mesma situao de qualquer novato prestes a receber seubatismo espacial.

    O jato que o trouxera de Washington, aps o encontro noturno com o

    presidente, mergulhava agora nas nuvens em direo a uma das mais conhecidase apaixonantes paisagens do mundo inteiro. A se encontravam, espalhadasnuma extenso de vrios quilmetros da costa da Flrida, as duas primeirasgeraes da Idade Espacial. Ao sul, rodeados por luzes vermelhas que piscavam,estavam os gigantescos guindastes dos Saturno e Netuno, que haviam levado oshomens rumo aos planetas, e que agora pertencem Histria. Na linha dohorizonte, parecendo uma brilhante torre prateada, banhada pelas luzes deholofotes, erguia-se o ltimo dos Saturnos v, que havia quase vinte anos seconstitua em monumento nacional e local de peregrinaes.

    No muito longe dali, erguendo-se em direo ao cu, como se fora uma

    montanha construda por homens, via-se o inacreditvel bloco do edifcio daAssemblia Vertical, que continuava sendo a maior estrutura isolada do mundo.

    Todas essas coisas, porm, pertenciam agora ao passado e ele estavavoando em direo ao futuro. Ao se prepararem para a aterrissagem, o Dr. Floydavistou l embaixo um conjunto de prdios, depois uma grande pista de pouso e,em seguida, uma cicatriz larga e reta, cortando a paisagem plana da Flrida osnumerosos trilhos que levavam a uma gigantesca plataforma de lanamento. Naponta, cercada por guindastes e veculos, uma brilhante nave espacial, banhadaem luzes, estava sendo preparada para sua viagem s estrelas. Numa sbita faltade perspectiva, causada pelas rpidas mudanas de velocidade e altitude, Floydteve a impresso de ver, ao olhar para baixo, uma pulguinha cor de prata,iluminada por uma lanterna de pilha.

    Mas, nesse momento, as pequeninas silhuetas que corriam pelo chofizeram-no lembrar-se do tamanho real da nave: o estreito v, formado por suasasas flechadas, media uns duzentos metros. E esse enorme veculo, pensou Floydum pouco incrdulo e com certo orgulho, est minha espera. Era a primeira vezque se preparava uma viagem completa para levar Lua um s homem.

    Apesar de j serem duas horas da madrugada, um grupo de reprteres dejornais e de TV estava sua espera quando se dirigiu para a espaonave Orion III,iluminada pelos holofotes. Conhecia de vista vrios daqueles reprteres, pois, na

    qualidade de presidente do Conselho Nacional de Astronutica, estava habituados entrevistas imprensa. Mas este no era o momento apropriado para falar,

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    mesmo porque ele nada tinha a dizer, se bem que fosse importante no ofenderos representantes das agncias de comunicao.

    Dr. Floyd, sou Jim Forster, das Notcias Associadas. Poderia dizer-nosalguma coisa sobre esse seu vo?

    Sinto muito, mas nada posso dizer.

    Mas verdade que o senhor teve um encontro com o presidente, estanoite? perguntou uma voz conhecida.

    Oh, voc, Mik! Infelizmente, acho que tiraram voc da cama toa.Nada tenho a dizer.

    O senhor no nos pode ao menos confirmar ou desmentir a notcia sobrea epidemia da Lua? perguntou um reprter de TV, trotando ao lado de Floyd,para conseguir mant-lo convenientemente focalizado em sua cmara de TV emminiatura.

    Sinto muito respondeu Floyd, abanando a cabea.

    E a quarentena? perguntou outro reprter.

    Quanto tempo vai durar?

    No tenho comentrios a fazer.

    Dr. Floyd perguntou uma reprter baixinha e com ar decidido , quala explicao para essa absoluta falta de notcias da Lua? Ter relao com asituao poltica?

    A que situao poltica a senhora se refere? perguntou Floydsecamente.

    Houve vrias risadas e uma voz gritou: "Boa viagem, doutor", quando elepenetrou no recinto reservado do elevador de embarque.

    Em sua opinio, tratava-se mais de uma crise permanente do que uma"situao". Desde 1970, aproximadamente, o mundo fora dominado por doisproblemas que tendiam a anular-se mutuamente.

    O controle da natalidade, apesar de barato, seguro e aprovado pelasprincipais religies, viera tarde demais. A populao do mundo era agora de seisbilhes de pessoas, um tero das quais habitava o Imprio Chins. Em algunspases totalitrios existiam leis estabelecendo o limite de dois filhos para cadafamlia, mas na prtica tornava-se impossvel fazer que fossem cumpridas. Oresultado era que faltava alimento por toda a parte. At mesmo nos EstadosUnidos a carne estava racionada, prevendo-se para dentro dos prximos quinzeanos uma fome. geral, apesar dos hericos esforos para cultivar os mares edesenvolver a indstria de alimentos sintticos.

    Apesar da necessidade de a cooperao internacional se tornar maisurgente que nunca, existia ainda o mesmo nmero de fronteiras intransponveisde pocas anteriores. A humanidade perdera, no decorrer de um milho de anos,muito pouco de seus instintos agressivos. Atravs de linhas simblicas, visveisapenas para os polticos, as trinta e oito naes nucleares se olhavam comansiosa hostilidade. Reunidas, possuam megatonagem suficiente para destruirtoda a crosta do planeta. Ainda que, por milagre, no tivesse havido emprego dearmas atmicas, esta situao no podia durar sempre. E agora, por motivosimpossveis de serem conhecidos, os chineses estavam oferecendo s naes

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    menores e desprovidas de armas nucleares completo equipamento, composto decinqenta ogivas e sistemas de lanamento. Seu preo era inferior a duzentos mi-lhes de dlares, aceitando eles propostas para pagamento facilitado.

    Talvez tentassem apenas melhorar sua economia deficiente, transformandoarmas obsoletas em moeda corrente, diziam alguns observadores. Ou talveztivessem descoberto novos mtodos, to avanados que tornavam desnecessriosaqueles brinquedos. que corriam rumores sobre rdio-hipnose por meio detransmissores em satlites, sobre vrus da compulso, chantagem por meio dedoenas sintticas para as quais somente eles possuam a teraputica. Essasencantadoras idias eram quase certamente propaganda ou pura imaginao,mas no era conveniente algum descartar-se delas. Cada vez que Floyd saa daTerra pensava que talvez no estivesse mais vivo na hora de voltar.

    Ao entrar na cabina, foi saudado pela elegante aeromoa.

    Bom dia, Dr. Floyd. Sou a Srta. Simmons. Dou-lhe boas-vindas a bordo,em nome do comandante Tynes e de nosso co-piloto, o oficial Bellard.

    Obrigado respondeu Floyd com um sorriso, pensando consigo mesmoque todas as aeromoas pareciam guias de turismo robs.

    Partiremos dentro de cinco minutos anunciou ela, mostrando com umgesto a cabina de vinte passageiros vazia. Pode escolher qualquer lugar, mas ocomandante Tynes aconselha a poltrona junto a primeira escotilha esquerda,caso deseje ver a manobra de lanamento.

    Seguirei seu conselho respondeu Floyd, dirigindo-se para a poltronaindicada.

    A aeromoa ocupou-se dele por um momento e, em seguida, dirigiu-se para

    seu compartimento, situado na parte traseira da cabina.Floyd instalou-se em seu lugar, prendeu o cinto de segurana em torno da

    cintura e dos ombros e colocou sua maleta no assento ao lado. Logo aps, o alto-falante emitiu um estalo e a voz da Srta. Simmons fez-se ouvir.

    Bom dia disse. Este o vo especial nmero 3, de Kennedy para aEstao Espacial Nmero Um.

    Pelo jeito, estava disposta a seguir a rotina completa para seu passageirosolitrio. Floyd no pde conter o sorriso, ao ouvi-la continuar impassivelmente:

    O percurso ser feito em cinqenta e cinco minutos. A acelerao

    mxima ser de dois g. Durante trinta minutos estaremos sem peso. Tenham abondade de permanecer em seus lugares at que as luzes de segurana sejamacesas...

    Floyd olhou para trs e agradeceu. Percebeu vagamente um sorriso meioencabulado mas encantador.

    Recostou-se na poltrona e descontraiu-se. Esta viagem, calculou, custariaaos contribuintes pouco mais de um milho de dlares. Caso se revelasse des-necessria, perderia seu emprego. Mas poderia em qualquer tempo voltar para aUniversidade e recomear os seus estudos interrompidos sobre a formaoplanetria.

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    Processo de contagem regressiva iniciado disse a voz do comandanteao microfone, naquele tom calmo e embalador prprio das transmisses ra-diofnicas.

    Lanamento em um minuto.

    Como sempre, o minuto pareceu uma hora. Floyd sentiu claramente as

    gigantescas foras armazenadas em torno dele, espera de seremdesencadeadas. Nos reservatrios de combustvel das duas espaonaves e nosdepsitos de energia da plataforma de lanamento estava estocada uma foraequivalente de uma bomba atmica. E tudo aquilo ia ser usado paratransport-lo a uma reles distncia de trezentos quilmetros da Terra.

    No houve aquela contagem antiquada, CINCO-QUATRO-TRS-DOIS-UM-ZERO,to dura para o sistema nervoso humano.

    Lanamento dentro de quinze segundos. Respire fundo para sentir-semelhor.

    Era uma boa psicologia e, tambm, boa fisiologia. Quando a plataformaimpulsionou sua carga de mil toneladas em direo ao cu acima do Atlntico,Floyd sentiu-se bem suprido de oxignio e pronto a enfrentar qualquer coisa.

    Era difcil determinar o momento em que deixavam a plataforma parapenetrar nos ares, mas, quando o ronco dos foguetes redobrou sua fria e Floydsentiu-se afundar cada vez mais na poltrona, soube que os motores do primeiroestgio haviam entrado em ao. Desejou olhar pela janela, mas at mesmo virara cabea exigia esforo. Apesar disso, a sensao no era de desconforto. Pelocontrrio, a presso causada pela acelerao e o barulho ensurdecedor dosmotores produziam uma extraordinria euforia. Com os ouvidos zunindo e o

    sangue latejando em suas veias, Floyd sentiu uma vitalidade maior do que nosltimos anos. Era jovem novamente, tinha vontade de cantar alto quanto aisso no havia problemas, pois ningum poderia ouvi-lo.

    Esse estado de esprito terminou rapidamente, quando se lembrou de queestava deixando a Terra e tudo o que amara em sua vida. L embaixo estavamseus trs filhos, rfos de me desde que sua mulher partira naquela fatdicaviagem Europa, havia dez anos (Dez anos? Impossvel! Mas era isso mesmo...).Talvez tivesse sido melhor casar-se novamente, para o bem das crianas...

    Havia quase perdido a noo do tempo quando, subitamente, a presso e obarulho diminuram e o alto-falante anunciou:

    Prontos para desprendimento do primeiro estgio. L vamos ns.

    Houve uma leve sacudidela. Nesse momento Floyd lembrou-se de umacitao de Leonardo da Vinci que vira certa vez num escritrio da NASA:

    "O Grande Pssaro alar vo das costas do grande pssaro, glorificando oninho em que nasceu."

    Pois bem, o Grande Pssaro voava agora para alm de todos os sonhos deda Vinci e seu companheiro, exausto, voltava para a Terra. Descrevendo um arcode milhares de quilmetros, o primeiro estgio, vazio, deslizaria em direo atmosfera, diminuindo a velocidade para descer em Kennedy. Dentro de algumas

    horas, depois de revisado e abastecido, estaria novamente pronto para levar outrocompanheiro em direo ao brilhante silncio que ele prprio jamais alcanaria.

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    "Agora", pensou Floyd, "estamos sozinhos, a mais de meio caminho paraentrarmos em rbita." Quando os foguetes do estgio superior entraram emfuncionamento e a acelerao recomeou, o empuxo foi bem mais suave. Naverdade, sentiu apenas uma gravidade normal. Porm teria sido impossvelandar, pois a frente da cabina estava exatamente acima de sua cabea. Casofosse bastante insensato para deixar sua poltrona, bateria imediatamente de

    encontro parede traseira.A sensao era desconcertante, pois tinha-se a impresso de que a nave se

    mantinha em p sobre sua cauda. Para Floyd, que estava bem na frente dacabina, todas as poltronas davam a impresso de estarem pregadas numa paredeque descia verticalmente atrs dele. Fazia o possvel para ignorar essadesagradvel sensao. Foi nesse momento que a aurora pareceu explodir do ladode fora. Em questo de segundos atravessaram camadas vermelhas, rosadas,azuis e douradas, em direo penetrante luz do dia.

    Havia quase perdido a noo do tempo quando, subitamente, a presso e obarulho diminuram e o alto-falante anunciou:

    Prontos para desprendimento do primeiro estgio. L vamos ns.

    Houve uma leve sacudidela. Nesse momento Floyd lembrou-se de umacitao de Leonardo da Vinci que vira certa vez num escritrio da NASA:

    "O Grande Pssaro alar vo das costas do grande pssaro, glorificando oninho em que nasceu."

    Pois bem, o Grande Pssaro voava agora para alm de todos os sonhos deda Vinci e seu companheiro, exausto, voltava para a Terra. Descrevendo um arcode milhares de quilmetros, o primeiro estgio, vazio, deslizaria em direo

    atmosfera, diminuindo a velocidade para descer em Kennedy. Dentro de algumashoras, depois de revisado e abastecido, estaria novamente pronto para levar outrocompanheiro em direo ao brilhante silncio que ele prprio jamais alcanaria.

    "Agora", pensou Floyd, "estamos sozinhos, a mais de meio caminho paraentrarmos em rbita." Quando os foguetes do estgio superior entraram emfuncionamento e a acelerao recomeou, o empuxo foi bem mais suave. Naverdade, sentiu apenas uma gravidade normal. Porm teria sido impossvelandar, pois a frente da cabina estava exatamente acima de sua cabea. Casofosse bastante insensato para deixar sua poltrona, bateria imediatamente deencontro parede traseira.

    A sensao era desconcertante, pois tinha-se a impresso de que a nave semantinha em p sobre sua cauda. Para Floyd, que estava bem na frente dacabina, todas as poltronas davam a impresso de estarem pregadas numa paredeque descia verticalmente atrs dele. Fazia o possvel para ignorar essadesagradvel sensao. Foi nesse momento que a aurora pareceu explodir do ladode fora. Em questo de segundos atravessaram camadas vermelhas, rosadas,azuis e douradas, em direo penetrante luz do dia.

    Apesar de as janelas serem feitas de material destinado a diminuir o brilho,os raios da luz solar, que lentamente penetravam no interior da cabina, deixaramFloyd ofuscado durante vrios minutos. Estava no espao, mas no lhe era

    possvel ver as estrelas.Abrigou os olhos com as mos em viseira e tentou espiar pela janela a seu

    lado. L fora, a asa flechada da nave ardia como metal incandescente sob o

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    reflexo da luz solar. Reinava em torno a mais completa escurido. Essa escuridoestava cheia de estrelas mas era impossvel v-las.

    Aos poucos o peso ia-se tornando menor. Os foguetes estavam sendodesacelerados medida que a nave entrava em rbita. O estrondo dos motorestransformou-se num ronco abafado, depois num leve sibilo, para em seguidasilenciar totalmente. Se no estivesse amarrado com as correias de segurana,Floyd teria boiado no ar, fora da poltrona. Mesmo assim, tinha a impresso deque seu estmago ia levantar vo.

    Esperava que as plulas que lhe tinham dado havia meia hora, ou seja,alguns milhares de quilmetros, fizessem o efeito desejado. Em sua carreirasentira apenas uma vez o enjo do espao, mas essa vez fora demais.

    A voz do piloto fez-se ouvir, firme e decidida, no alto-falante.

    Por favor, observem todas as regras de g. zero. Atracaremos na EstaoEspacial Nmero Um dentro de quarenta e cinco minutos.

    A aeromoa caminhava pelo estreito corredor situado direita daspoltronas pouco espaadas. Havia uma certa flutuao em seus passos. Seus pslevantavam-se do cho com dificuldade, como se pisasse em cola. Mantinha-se naparte amarela do tapete de Velcro que revestia todo o cho da cabina, bem comoo teto. Tanto o tapete como as solas de seus sapatos possuam milhares depequeninas salincias, de modo a aderirem um ao outro. Esta inveno paraconseguir andar em gravidade zero era muito reconfortante para viajantesdesorientados.

    Deseja uma xcara de caf ou de ch, Dr. Floyd?

    No, obrigado respondeu ele com um sorriso. Sentia-se como um beb

    quando tinha de chupar aqueles tubos de plstico.A aeromoa permaneceu a seu lado com ar aflito. Ele abriu a maleta para

    tirar alguns papis.

    Dr. Floyd, posso fazer-lhe uma pergunta?

    Claro respondeu ele, olhando-a por cima dos culos.

    Meu noivo gelogo em Tycho disse a Srta. Simmons, escolhendocuidadosamente as palavras. Faz mais de uma semana que no recebo notciasdele.

    Sinto muito. Quem sabe estar fora da base, em local semcomunicaes?

    Ela sacudiu a cabea.

    Sempre me avisa quando isso vai acontecer. E o senhor bem podeimaginar como estou preocupada com todos esses boatos. verdade mesmo queh uma epidemia na Lua?

    Se for, no h motivo para alarma. Lembre-se de que h muito tempo,em 1998, houve uma quarentena por causa daquele vrus de gripe modificado.Muita gente adoeceu, mas no houve mortes. s isso o que posso dizer-lhe concluiu com firmeza.

    A Srta. Simmons sorriu amavelmente e endireitou-se.

    Bem, muito obrigada, doutor. Desculpe t-lo incomodado.

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    No foi incmodo algum retorquiu ele gentilmente. Mas no estavasendo muito sincero. Em seguida mergulhou em seus interminveis relatriostcnicos, num esforo desesperado para pr em dia o seu trabalho.

    Quando chegasse Lua no teria tempo para leitura.

    8. Encont ro orb i t a l

    Meia hora depois o piloto anunciou: "Contato dentro de dez minutos. Favorverificarem seus cintos."

    Floyd obedeceu e guardou seus papis. Insistir na leitura durante asacrobacias da espaonave nos ltimos quinhentos quilmetros era querer meter-se em encrenca. Era melhor fechar os olhos e descontrair-se, enquanto asdetonaes do foguete sacudiam a nave para a frente e para trs.

    Aps alguns minutos, Floyd avistou, a apenas alguns quilmetros dedistncia, a Estao Espacial Nmero Um. A luz do sol refletia-se na superfciemetlica polida do disco de trezentos metros de dimetro que brilhava, rodandolentamente. No muito longe, girando na mesma rbita, via-se uma espaonaveTitov v, de asas flechadas, e perto dela um Aries-1B quase esfrico, o cavalo decarga do espao, com suas quatro pernas curtas, destinadas a absorver o choqueda alunissagem, fazendo salincia de um dos lados.

    A nave Orion IIIdescia de uma rbita mais alta, o que proporcionava umaviso da Terra espetacular, por trs da estao. De trezentos quilmetros dealtitude, Floyd via boa parte da frica e do oceano Atlntico. Havia muitas

    nuvens, mas mesmo assim podia perceber o perfil azul-esverdeado da Costa doOuro. O eixo central da estao espacial aproximava-se lentamente com seusbraos de atracao estendidos em direo nave. Contrariamente estrutura daqual provinha, o eixo no girava ou melhor, girava, mas em sentido oposto,numa velocidade que contrabalanava exatamente a rotao da Estao Espacial.Deste modo, uma nave espacial podia, ao chegar, acoplar-se com ela, paratransferncia de tripulao ou de carga, sem correr o risco de sair rodopiandoloucamente em torno.

    Num suavssimo baque, a nave conjugou-se com a Estao. Houve rangidose rudos metlicos e depois um rpido sibilo no ar, enquanto as presses se

    nivelavam. Segundos mais tarde, a porta da cabina de compresso abriu-se e umhomem entrou vestindo as calas leves e justas e a camisa de mangas curtas quepareciam um uniforme do pessoal da Estao Espacial.

    Muito prazer em conhec-lo, Dr. Floyd. Meu nome Nick Miller, doServio de Segurana da Estao. Fui incumbido de zelar pelo senhor at apartida.

    Deram-se um aperto de mos. Em seguida Floyd sorriu para a aeromoa edisse:

    Queira transmitir meus cumprimentos ao comandante Tynes,agradecendo a tima viagem. Talvez nos vejamos novamente na volta.

    Com muito cuidado pois fazia mais de um ano, desde a ltima vez emque estivera fora da ao da gravidade e levaria algum tempo para acostumar

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    suas pernas no espao arrastou-se sobre as mos para fora da cabina,entrando na grande sala circular do eixo da Estao. Era uma pea bemacolchoada em cujas paredes havia inmeras alas embutidas. Floyd agarrou-sefirmemente a uma delas e a sala inteira comeou a girar, at atingir a mesmarotao da Estao.

    medida que a velocidade aumentava, teve a impresso de que dedosgravitacionais, leves e fantasmagricos, seguravam-no, mas dirigiu-se lentamentepara a parede circular. Agora estava em p sobre o cho que, como num passe demgica, se tornara curvo. Floyd oscilava suavemente para a frente e para trs,como as algas na mar alta. A fora centrfuga da rotao dominava-o. Junto aoeixo, era ainda muito fraca, mas aumentaria progressivamente medida que sedirigisse para fora.

    Saindo da sala de trnsito central, desceu atrs de Miller por uma escadacurva. No princpio, seu peso era to leve que teve de fazer fora para conseguirdescer, segurando-se no corrimo. Somente quando chegou seo depassageiros, situada na parte externa do disco giratrio, recuperou peso su-ficiente para mover-se de maneira mais normal.

    A seo fora redecorada desde sua ltima visita, apresentando diversasmelhorias. Alm das cadeiras, mesinhas, restaurante e correio, havia agora umsalo de barbeiro, uma drogaria, um cinema e uma lojinha que vendia fotografiase diapositivos de paisagens lunares e planetrias, pedaos de Luniks, Rangers eSurveyors garantidos como peas autnticas, tudo com bonitas molduras deplstico e a preos exorbitantes.

    Deseja tomar alguma coisa? perguntou Miller. Embarcaremosdentro de trinta minutos, aproximadamente.

    Gostaria de uma xcara de caf, com dois torres de acar. E quero,tambm, uma ligao para a Terra.

    Pois no, doutor. Vou providenciar o caf. Os telefones esto ali.

    As pitorescas cabinas telefnicas estavam situadas a poucos metros deuma grade com duas entradas encimadas por letreiros que diziam, respectiva-mente:

    BEM-VINDO AO SETOR AMERICANO e BEM-VINDO AO SETOR SOVITICO.

    Logo abaixo, viam-se avisos em ingls, russo, chins, francs, alemo eespanhol:

    FAVOR TER MO SEUS DOCUMENTOS

    PASSAPORTEVISTOATESTADO MDICOLICENA DE TRANSPORTEDECLARAO DE PESO

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    Havia um simbolismo bastante significativo no fato de que os passageirostinham toda liberdade de juntarem-se novamente assim que tivessem passadopelas barreiras. A diviso existia exclusivamente para fins administrativos.

    Aps verificar que o cdigo de chamadas para os Estados Unidoscontinuava sendo 81, Floyd marcou os doze algarismos do telefone de sua casa,colocou seu carto de crdito na fenda apropriada e, em trinta segundos, obteve aligao.

    A cidade de Washington dormia, pois faltavam ainda horas para oamanhecer, mas ningum seria perturbado pelo telefonema. A governanta recebe-ria o recado pelo gravador, assim que acordasse.

    Aqui fala o Dr. Floyd, Srta. Fleming. Desculpe ter partido com tantapressa. Telefone para o escritrio e pea que algum v buscar meu carro, queest no Aeroporto Dulles. A chave ficou com o Sr. Bailey, chefe do controle devos. Em seguida ligue para o Chavy Chase Country Club e deixe um recado paraa secretria. No poderei de maneira alguma participar do torneio de tnis do

    prximo fim de semana. Diga que mando pedir desculpas, pois acho que estavamcontando comigo. Depois telefone para a loja de eletrnica e avise que se noconsertarem o vdeo de meu estdio at... digamos, at quarta-feira, podem levarde volta aquela droga.

    Fez uma pausa, tentando prever outros assuntos ou problemas quepudessem surgir no decorrer dos prximos dias.

    Se o dinheiro acabar, telefone para o escritrio. Eles podem enviar-merecados urgentes, mas possvel que eu esteja ocupado demais para responder.D um beijo nas crianas e diga-lhes que voltarei logo que puder. Raios... Vemvindo uma pessoa que no quero ver! Se der jeito, telefonarei da Lua. At logo!

    Floyd tentou escapar da cabina, mas era tarde, j fora visto. Saindo dosetor sovitico, vinha andando em sua direo o Dr. Dimitri Moisevitch, daAcademia de Cincias da URSS.

    Dimitri era um dos maiores amigos de Floyd. Justamente por isso ele noqueria de maneira alguma encontr-lo ali naquele momento.

    9. Viagem Lua

    O astrnomo russo era alto, louro e esbelto. A pele lisa do seu rostodesmentia seus cinqenta e cinco anos de idade, dos quais os ltimos dez haviamsido empregados na construo do gigantesco radiobservatrio situado no outrolado da Lua, onde alguns milhares de quilmetros de slida rocha protegiam-noda barulhenta interferncia eletrnica da Terra.

    Ol, Heywood! exclamou, num firme aperto de mo. O Universo pequeno, no? Como vai voc? E suas encantadoras crianas?

    Vamos muito bem respondeu Floyd afavelmente, mas com arligeiramente distrado. Sempre nos lembramos daquele maravilhoso vero que

    voc nos proporcionou o ano passado. Sentia-se triste por no poder ser maissincero. Realmente, tinham apreciado imensamente a semana de frias emOdessa, com Dimitri, durante uma das visitas do russo Terra.

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    E voc? Est seguindo viagem mais para cima? perguntou Dimitri.

    H... Sim. Parto dentro de meia hora respondeu Floyd. Conhece oSr. Miller?

    O oficial da Segurana aproximara-se e mantinha-se a respeitosa distncia,segurando uma xcara de plstico cheia de caf.

    Claro que conheo. Mas por favor, Sr. Miller, deixe isso a. Esta altima oportunidade que o Dr. Floyd tem para tomar uma bebida civilizada. Novamos desperdi-la. De modo algum, eu insisto.

    Saram da sala principal, dirigindo-se para o setor de observao e logodepois estavam sentados a uma mesa fracamente iluminada, olhando a paisagemmvel das estrelas.

    A Estao Espacial Nmero Um dava uma volta por minuto. A foracentrfuga gerada por essa lenta rotao produzia uma gravidade igual da Lua.Haviam encontrado essa soluo de meio-termo entre a gravidade existente na

    Terra e a total ausncia de gravidade. Alm do mais, isso proporcionava aospassageiros que se destinavam Lua uma oportunidade de se aclimatarem.

    Do dado de fora das janelas quase invisveis, a Terra e as estrelasdesfilavam em silenciosa procisso. No momento, aquele lado da Estao estavainclinado em relao ao Sol. De outra maneira, no teria sido possvel olhar parafora, pois a luz seria ofuscante. Mas, mesmo assim, o claro da Terra, refletindo-se na metade do cu, s deixava ver as estrelas mais brilhantes.

    Mas a Terra comeou a escurecer, medida que a Estao girava emdireo face noturna do planeta. Em poucos minutos transformar-se-ia numenorme disco preto pontilhado de luzes das cidades. E ento as estrelas

    dominariam o cu. Muito bem disse Dimitri, aps ter tomado rapidamente o primeiro

    drinque e distraindo-se com o segundo copo. Que histria essa de epidemiano setor americano? Eu queria ir nessa viagem e me disseram: "No, professor,sentimos muito, porm h uma quarentena rigorosa, at segunda ordem." Useitodos os pistoles possveis, mas nada consegui. Agora conte-me voc o que estacontecendo.

    Floyd resmungou com seus botes: "Pronto, j comeou novamente.Quanto mais cedo eu embarcar, melhor."

    Ah... bem... a quarentena apenas uma medida de precauo dissecautelosamente. Nem temos bem certeza de que seja realmente necessria,mas no gostamos de arriscar.

    Mas que doena ? Quais so os sintomas? Poderia ser extraterrestre?Deseja alguma ajuda de nossos servios mdicos?

    Desculpe, Dimitri, mas pediram-nos que nada dissssemos porenquanto. Obrigado pelo oferecimento, mas ns mesmos resolveremos o pro-blema.

    Hummm... fez Moisevitch, evidentemente incrdulo. Acho estranhoterem mandado voc, um astrnomo, ir Lua para observar uma epidemia.

    Sou apenas um ex-astrnomo. H anos que no fao pesquisa. Agorasou perito cientfico, o que significa que no estou a par de nada absolutamente.

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    Sabe ento o que quer dizer AMT-1? Miller quase engasgou com odrinque, mas Floyd sabia controlar-se. Olhou de frente para o amigo e disse emtom muito calmo:

    AMT-1? Que nome esquisito! Onde foi que voc ouviu isso?

    No vem ao caso retorquiu o russo. No pense que est me

    enganando. Mas, caso no consiga controlar a situao, espero que pea socorroantes que seja tarde demais.

    Miller olhou significativamente para o relgio.

    Seu embarque dentro de cinco minutos, Dr. Floyd avisou. Achomelhor irmos andando.

    Apesar de saber que ainda dispunha de vinte minutos, Floyd levantou-seapressadamente. Com pressa excessiva at, pois se esquecera de que a gravidadeestava reduzida a um sexto. Agarrou-se borda da mesa para no flutuar.

    Foi um prazer encontr-lo, Dimitri disse sem muita sinceridade.

    Espero que faa uma boa viagem de volta Terra. Telefonarei para voc assimque voltar.

    Saram da sala e, ao passarem pela barreira do setor americano, Floydexclamou:

    Ufa! Desta vez escapei por pouco! Obrigado pelo socorro.

    Sabe, doutor disse o oficial da Segurana , espero que ele estejaenganado.

    Em relao a qu?

    A no conseguirmos controlar a situao. exatamente isso que pretendo averiguar respondeu firmemente

    Floyd.

    Quarenta e cinco minutos depois, o transporte para a Lua, Aries-1B, deixoua estao, sem aquela furiosa energia de uma partida da Terra. Houve apenas umlongnquo e quase inaudvel sibilo quando os jatos a plasma, de baixo empuxo,lanaram pelo espao suas correntes eletrificadas. O suave impulso durou maisde quinze minutos e a acelerao era to pequena que no impedia ningum demover-se pela cabina. Mas, quando cessou, a nave no estava mais ligada Terra, como quando ainda acompanhava a Estao. Quebrara as barreiras da

    gravidade e era agora um planeta livre e independente, girando em torno do Solnuma rbita prpria.

    A cabina que Floyd ocupava sozinho havia sido desenhada para trintapassageiros. Teve uma sensao de estranheza e solido ao ver todos aqueleslugares vazios e ao receber sozinho as atenes do aeromoo e da aeromoa, semse falar no piloto, no co-piloto e nos dois engenheiros. Pensou consigo mesmo quetalvez fosse o primeiro homem na Histria, e quem sabe o nico, a ter, comexclusividade, tantos servios. Lembrou-se do comentrio cnico de um Pontficepouco honrado: "Agora que somos Papa, vamos aproveitar." Trataria realmente deaproveitar esta viagem e a euforia proporcionada pela ausncia de peso. Com a

    falta de gravidade, esquecera ao menos temporariamente a maioria de seusproblemas. Algum j dissera que no espao pode-se sentir terror, mas nuncapreocupao. Era a mais pura verdade.

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    A tripulao parecia disposta a faz-lo comer ininterruptamente durante asvinte e cinco horas de viagem e a todo momento tinha de recusar as refeiesoferecidas. Contrariamente s negras previses dos primeiros astronautas,alimentar-se no constitua problema na ausncia de gravidade. Floyd estavasentado a uma mesa comum qual os pratos eram fixados, como a bordo de umnavio em mar tempestuoso. Todos os alimentos possuam uma consistncia

    aderente, para no sarem flutuando pela cabina. Assim, a carne mantinha-segrudada no prato por um espesso molho e a salada permanecia sob controle pormeio de um tempero colante. Com alguma habilidade e certo cuidado, podia-selidar com quase todos os alimentos. Os nicos que haviam sido definitivamenteexcludos eram as sopas quentes e as massas folhadas excessivamentequebradias. Era evidente que as bebidas constituam um problema parte:todos os lquidos eram servidos dentro de tubos plsticos.

    A instalao do banheiro fora planejada por toda uma gerao devoluntrios hericos e annimos e agora parecia prova de acidentes. Assim quea gravidade se tornou nula, Floyd resolveu averiguar. Entrou num cubculo

    semelhante ao banheiro de qualquer avio, mas iluminado por uma luz vermelhaextremamente crua e desagradvel aos olhos. Um aviso em letras grandes dizia:IMPORTANTE!EM SEU PRPRIO BENEFCIO,QUEIRA LER ATENTAMENTE ESTAS INSTRUES!!!

    Floyd sentou-se (era um hbito que persistia apesar da falta de peso) e leudiversas vezes o aviso. Quando se certificou de que no houvera modificaesdesde sua ltima viagem, apertou o boto que dizia LIGADO.

    Um motor eltrico colocado bem ao lado entrou em funcionamento e Floydsentiu-se em movimento. Seguindo as instrues do aviso, fechou os olhos e ficou espera. Decorrido um minuto, ouviu um suave toque de campainha e olhou emtorno.

    A luz passara de vermelha para um tom branco-rosado e, o que era maisimportante, a gravidade fazia-se sentir novamente. Apenas uma fraqussimavibrao demonstrava tratar-se de uma gravidade artificial, provocada pelarotao de todo o compartimento. Floyd apanhou um pedao de sabo e,soltando-o, observou que caa lentamente. Calculou que a fora centrfuga era deaproximadamente um quarto da gravidade normal. Mas isso era suficiente.Bastava como garantia de que tudo se moveria na direo certa, dentro de umlocal em que isso era da maior importncia.

    Apertou o boto DESLIGADO PARA SADA e tornou a fechar os olhos. A sensao

    de peso desapareceu lentamente, medida que a rotao cessava, a campainhasoou duas vezes e a luz vermelha tornou a aparecer. A porta foi colocada naposio correta, para que Floyd pudesse flutuar de volta para a cabina, ondeaderiu ao tapete o mais depressa que pde. A ausncia de peso j no era maisnovidade para o cientista, que se sentia feliz por ter nos ps os sapatos de Velcro,graas aos quais lhe era possvel andar quase normalmente.

    Sem sair de sua poltrona, podia ocupar-se com vrias coisas. Quandoestivesse cansado de relatrios oficiais, memorandos e atas, ligaria o noticiosoeletrnico na tomada do circuito de informaes da espaonave e passaria osolhos pelas ltimas notcias da Terra. Entraria em contato com cada um dosprincipais jornais eletrnicos. Sabia de cor o prefixo dos mais importantes e nemprecisava consultar a lista fornecida para esse fim. Ligando a unidade dememria do aparelho, veria a primeira pgina do jornal escolhido e anotaria ostpicos que lhe interessassem. Cada manchete possua um cdigo de dois

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    algarismos. Era s marcar o nmero desejado para que o pequeno retngulo dotamanho de um selo aumentasse at ocupar toda a tela, formando uma imagemntida e fcil de ler. Quando terminasse a leitura, faria voltar tela a pginacompleta e selecionaria outro assunto para exame mais detalhado.

    Floyd pensou consigo mesmo que talvez aquele aparelho, apesar daextraordinria tecnologia necessria ao seu funcionamento, no fosse ainda altima palavra na eterna busca do Homem, em seu desejo de comunicaes maisperfeitas. Aqui estava ele, em pleno espao, afastando-se da Terra a uma veloci-dade de milhares de quilmetros por hora e, no entanto, podia, em frao desegundo, ver as manchetes de qualquer jornal. (Pensando bem, os prpriosjornais eram anacrnicos na era da eletrnica.) As notcias eram atualizadas dehora em hora. Ainda que algum lesse apenas o texto em ingls, poderia passar avida inteira sem outra ocupao seno ver a sempre renovada torrente deinformaes enviadas pelos satlites transmissores.

    Era difcil imaginar que o sistema pudesse ser mais aperfeioado outornado mais prtico.

    Porm mais cedo ou mais tarde, pensava Floyd, acabaria sendo substitudopor algum novo aparelho, to impossvel de ser imaginado quanto teria sido onoticioso eletrnico para Caxton ou Gutemberg.

    Outro pensamento vinha-lhe mente ao ler as pequeninas mancheteseletrnicas. medida que os meios de comunicao se tornavam cada vez maisextraordinrios, as notcias pareciam cada vez mais banais, escandalosas oudeprimentes. Acidentes, crimes, desastres naturais ou provocados pelo homem,ameaas de guerra, editoriais pessimistas continuavam a ser o principal assuntodos milhes de palavras enviadas ao ter. Mas, talvez, pensou Floyd, isso no seja

    to ruim assim. Chegara concluso de que os jornais da Utopia seriamterrivelmente enfadonhos.

    De vez em quando, o comandante e os outros membros da tripulaoentravam na cabina e conversavam um pouco com Floyd. Tratavam com respeitoaquele importante passageiro e evidentemente ardiam de curiosidade quanto finalidade de sua misso, mas eram bastante educados para evitar perguntas oumesmo dar indiretas.

    Somente a encantadora aeromoa parecia inteiramente vontade diantedele. Floyd logo descobriu que ela era originria de Bali e trouxera para alm daatmosfera a graa e o mistrio daquela ilha ainda to preservada. Uma das mais

    estranhas e encantadoras lembranas que guardou de toda a viagem foi a dademonstrao de movimentos de danas balinesas, executados em gravidadezero, tendo ao fundo a linda viso verde-azulada da Terra que desaparecia.

    Houve determinado perodo de sono, durante o qual as luzes principais dacabina fora apagadas. Floyd amarrou seus braos e pernas com os leniselsticos para que no flutuasse no ar. A sua cama dura e sem forro, com aausncia da gravidade, era mais confortvel que o mais luxuoso colcho da Terra.

    Depois de convenientemente amarrado, Floyd adormeceu rapidamente, maspouco depois acordou num estado de torpor e de semi-inconscincia, atnito anteo estranho ambiente que o cercava. Por um momento a tnue luz doscompartimentos vizinhos deu-lhe a impresso de estar no interior de umalanterna chinesa. Em seguida, disse a si mesmo: "Trate de dormir, rapaz. Isto apenas uma nave para a Lua."

  • 5/23/2018 Arthur C Clarke - 2001 - Uma Odiss ia No Espa o

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    Quando acordou, a Lua dominara metade do cu e as manobras defrenagem iam comear. Atravs da longa srie de janelas na parede curva dacabina de passageiros no se via o globo do qual se aproximavam, mas apenas ocu aberto. Floyd dirigiu-se, ento, para a cabina de controle. Ali poderiaobservar, atravs das telas de TV, as ltimas manobras da descida.

    As montanhas lunares eram totalmente diferentes das da Terra. Nopossuam as brilhantes calotas de neve, nem a verde vegetao que as enfeitava,nem as coroas de nuvens encimando-as. Mas os fortes contrastes de luz e sombradavam-lhes uma estranha belez