Arte Cidade

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Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Criação em atos, criação em sentidos: o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão Ana Gabriela Dickstein Roiffe 2006

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFRJ

Criação em atos, criação em sentidos: o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão

Ana Gabriela Dickstein Roiffe

2006

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UFRJ

Criação em atos, criação em sentidos: o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão

Ana Gabriela Dickstein Roiffe

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) Orientadora: Elsje Maria Lagrou

Rio de Janeiro Agosto de 2006

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Criação em atos, criação em sentidos:

o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão

Ana Gabriela Dickstein Roiffe

Orientadora: Elsje Maria Lagrou

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e

Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal

do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Aprovada por:

____________________________________

Presidente, Profª. Drª. Elsje Maria Lagrou – IFCS/UFRJ

____________________________________ Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani – FFLCH/USP

____________________________________

Prof. Dr. José Reginaldo dos Santos Gonçalves – IFCS/UFRJ

Rio de Janeiro

Agosto de 2006

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Roiffe, Ana Gabriela Dickstein

Criação em atos, criação em sentidos: o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão/Ana Gabriela Dickstein Roiffe – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006.

x, 160f.: il.; 29,7 cm.

Orientadora: Elsje Maria Lagrou

Dissertação (mestrado) – UFRJ/IFCS/Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2006.

Referências Bibliográficas: f. 139-150.

1. Arte/Cidade. 2. São Paulo. 3. Arte contemporânea. 4. Nelson Brissac Peixoto. 5. Criação artística. I. Ana Gabriela Dickstein Roiffe. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III. Criação em atos, criação em sentidos: o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão.

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Resumo

Criação em atos, criação em sentidos: o projeto Arte/Cidade e seus conceitos em tensão

Ana Gabriela Dickstein Roiffe

Orientadora: Elsje Maria Lagrou

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Arte e cidade são os dois termos que deram nome a um projeto realizado ao longo

de quatro edições na cidade de São Paulo, de 1994 a 2002. Efêmeras, essas exibições se

foram feitas em locais não habituais de exposição, com a participação de uma série de

profissionais de diferentes áreas. Com o passar das edições, o projeto foi se transformando

e, de uma apresentação de trabalhos de arte contemporânea, acabou buscando uma

atividade cada vez mais vinculada a questões especificamente urbanas, como propostas

para moradores de rua e catadores de papel. A partir de uma breve trajetória de seu

principal organizador, Nelson Brissac Peixoto, e de quatro estudos de caso sobre obras

apresentadas, cada uma delas realizada em um desses eventos, esta dissertação analisa de

que modo se constituíram os repertórios e os sentidos que estimularam e permearam os

variados tipos de atuação identificados nesse projeto.

Palavras-chave: Arte/Cidade; São Paulo; arte contemporânea; Nelson Brissac Peixoto;

criação artística.

Rio de Janeiro Junho de 2006

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Abstract

Creation through acts, creation through meanings: Arte/Cidade project and its tensed concepts

Ana Gabriela Dickstein Roiffe

Orientadora: Elsje Maria Lagrou

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Art and city are the two concepts which named a project that happened in São Paulo

(Brazil), in four editions, from 1994 to 2002. Ephemeral, these art contemporary

exhibitions were set in unusual places, and professionals with different backgrounds took

part on it. In time, Arte/Cidade started to connect closely to urbanistic and social issues, for

example proposing solutions for homeless people and pickers-paper organisations. The

project was mainly conceived and organized by Nelson Brissac Peixoto. This dissertation

analyzes his journey and also the way four different works, one for each edition, were

created. The aim is to understand how the meanings that stimulated these different kinds of

acting were constructed.

Key-words: Arte/Cidade; São Paulo; contemporary art; Nelson Brissac Peixoto; artistic

creation.

Rio de Janeiro June 2006

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AGRADECIMENTOS

Que coisa doida: voltar para São Paulo depois de morar lá, procurar apartamento,

desmontar a casa e acabar, mais à frente, optando por fazer o caminho inverso, com um

novo olhar. Nem posso dimensionar o quanto este período de mestrado e esta dissertação

mudaram a minha vida, mas, sem dúvida, escrever estes agradecimentos – processo que

deixo para a reta final – faz com que eu perceba quantas redes eu construí, quantas pessoas

me ajudaram, quantas trocas se deram neste caminho. Acho que, na verdade, é tudo um

pretexto para que eu me entenda melhor no mundo, para conversar, querer saber, ouvir

quem me cerca e quem eu busco para me cercar.

Os primeiríssimos desta lista são Frima, Israel e Valdete, além de toda a minha

família de São Paulo, a quem dedico este trabalho, por me terem me dado, ao longo das

minhas viagens para o trabalho de campo, mais do que guarida. Deram-me a possibilidade

de realizar esta pesquisa – e, ainda, regada a muita tranqüilidade, generosidade, segurança e

um afeto imensurável. Queria retribuir um pouco dessa doçura.

Mami, vô e família carioca são hors concours; sempre lá e aqui, mesmo sem

entender muito bem as tortuosidades das minhas escolhas.

Incrível também contar com a criatividade pulsante da minha orientadora, Elsje, tão

paciente e estimulante em todos os momentos.

Agradeço a todos os meus entrevistados, em especial a Nelson Brissac Peixoto,

atencioso e presente. Àqueles que não entraram na dissertação por variados motivos,

principalmente a Paulo Mendes da Rocha, deixo também a minha gratidão, com a certeza

de que a não adequação pode gerar preciosos frutos.

Alezinha foi a amiga-irmã mais especial que eu poderia ter; a interlocutora mais

ativa no meu processo, minha maior vítima em infinitas circunstâncias. Acabou, amiga!

No IFCS, além das incansáveis Claudinha e Denise, agradeço especialmente aos

meus quase orientadores, Andre Botelho, Gláucia Villas-Bôas e Maria Laura Cavalcanti, a

José Reginaldo dos Santos Gonçalves e Marco Antonio Gonçalves – pela deliciosa

qualificação – e a todos os professores do PPGSA que me apresentaram às ciências sociais.

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Além disso, seria uma heresia deixar de fora meus incríveis colegas, parceiros nas dúvidas,

companheiros de debates e chopes. Simone, Mylene, Salvador, Diego e Paulo Eugênio são

só cinco dos nomes que estiveram sempre comigo, mas sintam-se todos incluídos.

Os amigos do Discrepância foram outros responsáveis por este trabalho, por

instigarem muitos dos meus interesses, torcerem por mim, se interessarem pela dissertação,

além de terem me emprestado (e doado) livros e folhetos, escaneado minhas fotos (valeu

demais, Betinho!) e ouvido minhas preces para tudo dar certo.

Linda Marivi, sua ajuda foi mais na minha lente do que nos finalmente, mas que

privilégio ter você nos meus finalmente...

A Marc, agradeço pela dispersão imposta. Deixo em sua homenagem a parte do

“desorganizando posso me organizar” porque, depois de cortada a lenha, entendo que os

momentos de distração são fundamentais para a sanidade física e mental de um mestrando.

Gilberto Velho, caríssimo, foi sempre gentil em suas sugestões e generoso em

distribuir seus conhecimentos.

Pessoas queridas, como Andrezinho, Alice, Alcino, Mario Chagas e o pessoal do

Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan, tentaram ajudar a minha louca

busca Sherlock Holmes por contatos com artistas, críticos e curadores.

Aninha Costa, Luciana Villas-Bôas e Antonio Carlos Costa Ribeiro acreditaram em

mim lá no comecíssimo, quando eu muito duvidava. Luci ainda me apresentou a Geertz...

Gabi e Xande: salvadores em dia MacGyver.

Hadija, da Mercúrio Produções, foi extremamente atenciosa. Capes, mecenas

importante. Serviço telefônico da SPTrans, fundamental. Agradeço ainda às bibliotecas e

aos bibliotecários do Museu Nacional, do CCBB, da Biblioteca Nacional e do Itaú Cultural.

Por último – e jamais em último –, meus amigos: pequenos, grandes, magros,

gordos, de todos os sexos, cores e nacionalidades. Muito obrigada!

Agora, “agradeço, mas prefiro recomeçar pelo recomeço”.

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ÍNDICE DE IMAGENS∗

Página 88 – José Resende e seu trabalho no Arte/Cidade 1

Página 93 – Imagens do trabalho de José Resende no Arte/Cidade 4 (2)

Página 98 – Tríptico da obra de José Resende no Arte/Cidade 1

Página 103 – Viaduto do Chá durante o trabalho Detetor de ausências, de Rubens Mano

Página 108 – Detetor de ausências, trabalho de Rubens Mano no Arte/Cidade 2

Página 109 – Lajes, trabalho de Nelson Felix no Arte/Cidade 3

Página 113 – Esboço de Lajes, trabalho de Nelson Felix no Arte/Cidade 3

Página 116 – Nelson Felix e equipe na montagem de Pilar, para o Arte/Cidade 4

Página 120 – Imagens de Lajes, trabalho de Nelson Felix no Arte/Cidade 3 (2)

Página 124 – Desenhos do projeto de Vito Acconci para o Arte/Cidade 4 (2)

Página 125 – Obra realizada no Viaduto do Glicério para o Arte/Cidade 4

Página 127 – Imagens de abrigo montado no Viaduto do Glicério para o Arte/Cidade 4 (3)

Página 128 – Imagens de crianças utilizando o abrigo montado no Viaduto do Glicério (2)

Página 151 – Imagens do Matadouro Municipal da Vila Mariana (4)

Página 152 – Imagens do edifício Guanabara (4) e do Shopping Light (3)

Página 153 – Imagens do Centro Cultural do Banco do Brasil (4)

Página 154 – Imagens da Estação da Luz (3)

Página 155 – Imagens do Moinho Central (2) e da entrada da Favela do Moinho (1)

Página 156 – Imagens das Indústrias Matarazzo e de seu entorno (5)

Página 157 – Imagens do Edifício São Vito (2)

Página 158 – Imagens do Pátio do Pari (5)

Página 159 – Imagens do Cine Piratininga (1) e da Avenida Rangel Pestana (2)

Página 160 – Imagens do Largo da Concórdia (5) e do Sesc Belenzinho (3)

∗ Créditos: Folha Imagem, site do Arte/Cidade, Brasmitte, Paisagens urbanas (Nelson Kon), Intervenções urbanas, Nelson Felix (2005), José Resende (1992) e Ana Gabriela Dickstein Roiffe.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................1 CAPÍTULO 1 – DIÁLOGOS COM A ARTE CONTEMPORÂNEA...............................18

1.1. Breves traços de uma arte com muitos traços.........................................18 1.2. Manifestações pós-modernistas................................................................20 1.3. Uma abordagem antropológica da arte....................................................27

CAPÍTULO 2 – O PROJETO ARTE/CIDADE.....................................................................32

2.1. Idéias na cabeça e ‘terapias de artistas’....................................................33 2.2. Cidade sem janelas.........................................................................................36 2.3. A cidade e seus fluxos...................................................................................38 2.4. A cidade e suas histórias...............................................................................41 2.5. BrásMitte ou quase um Arte/Cidade(s) ....................................................49 2.6. Artecidadezonaleste.......................................................................................53 2.7. Meanings em síntese......................................................................................61

CAPÍTULO 3 – A ‘DISTRIBUIÇÃO’ DE BRISSAC........................................................62 3.1. Bricolages e articulações..........................................................................68 3.2. Rendição ao urbano..................................................................................73 3.3. Rastros de cidades....................................................................................80 CAPÍTULO 4 – ESTUDOS DE CASO..............................................................................85 4.1. José Resende em ação..............................................................................88 4.2. O espaço ressignificado de Rubens Mano...............................................99 4.3. Nelson Felix, ‘impregnado de pensamento’...........................................109 4.4. Vito Acconci e a construção do cotidiano..............................................121 CONCLUSÃO ou ‘DESORGANIZANDO POSSO ME ORGANIZAR’........................136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................139 ANEXO (IMAGENS)........................................................................................................151

1

INTRODUÇÃO

No ano de 2003, reuni-me com um grupo de amigos, com quem havia estudado na

Escola de Comunicação da UFRJ, para criarmos trabalhos relacionados a práticas

conhecidas como intervenções urbanas. Formamos, assim, o Discrepância. Embora

curiosos pelo assunto, tínhamos a intenção de atuar de forma meramente lúdica, já que não

estávamos preocupados em nos especializar no campo das artes, mas apenas em nos

divertir. A idéia era que trabalhássemos em espaços abertos, a partir de variados suportes,

tentando criar diferentes tipos de diálogo entre superfícies e imagens. Fizemos

apresentações em quatro diferentes ocasiões – FotoRio 2003, Santa Teresa de Portas

Abertas (2004), FotoRio 2005 e Sexta-Livre do Ateliê da Imagem (2006) –, sempre

destituídos de qualquer compromisso profissional ou institucional. Tratava-se apenas de

uma prática para livres e esporádicas criações.

Paralelamente, ao longo de diversos trabalhos de preparação de originais, revisão e

edição para publicações relacionadas a museus e museologia, principalmente no Museu

Histórico Nacional e no Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan – onde sou

editora-assistente de Musas, uma revista sobre esse assunto –, deparei-me freqüentemente

com artigos que faziam referência a intervenções urbanas, mas em contextos outros:

tratava-se de projetos arquitetônicos, voltados em especial para questões de urbanismo e

planejamento urbano. Por outro lado, muitas vezes também encontrei artigos que tratavam

de questões sobre a chamada Nova Museologia e suas diferentes abordagens na relação

entre o espaço museológico e o público. Propunha-se uma participação ativa das

comunidades na constituição das práticas museológicas que concerniam aos seus espaços

de vivência, fazendo com que elas fossem menos público e mais gestoras de seus próprios

conteúdos e dispositivos – tal como nos casos de ecomuseus.

De alguma maneira, parecia-me que todos esses caminhos se cruzavam ou poderiam

se cruzar porque traduziam uma mesma vontade de reconfigurar as relações entre os

diferentes vetores que constituíam o universo heterogêneo das artes, olhando para além do

“cubo branco” e tentando se afastar das práticas de um circuito profissional, com seus

habitus estruturados e seus espaços geralmente bem estabelecidos. Tudo isso despertou-me

2

a curiosidade por investigar de maneira mais aprofundada situações que criavam encontros

entre espaços abertos e o universo das artes contemporâneas. Então, tendia eu a fazer parte

do grupo de antropólogos que intenciona “se aproximar de seus universos de origem”

(Velho, 2003:12).

Dado o absoluto amadorismo de minha atuação nesse campo, tinha poucas

referências sobre o assunto. Já havia lido sobre as práticas de Flávio de Carvalho, Oiticica e

companhia; tateava algumas manifestações recentes de grupos que provinham do universo

das artes plásticas e que realmente “se levavam a sério”, como o Atrocidades Maravilhosas

e o Capacete, mas, por algum motivo desconhecido por mim mesma, chamava-me a

atenção um nome específico: Nelson Brissac Peixoto. Sabia que era filósofo, que tinha feito

o belo livro Paisagens urbanas, que tinha participado ativamente de um projeto de

intervenções urbanas em São Paulo e nada mais. Foi então que resolvi desvendar essa

referência para mim igualmente basilar e desconhecida, uma espécie de eminência parda,

que era quase um mero significante. Numa “sondada” preliminar, acabei descobrindo o

Arte/Cidade, um projeto cujas proporções eram muito maiores do que eu imaginara.

Tratava-se de uma iniciativa que tivera início na Secretaria de Cultura de São Paulo, no ano

de 1994, e que fora realizada em quatro diferentes edições (duas em 1994, uma em 1997 e a

última em 2002). Nos quase 200 trabalhos produzidos, apresentaram-se artistas de variados

meios, como artes plásticas, cinema e música, em edificações que estavam ou em ruínas ou

em estado judicial indefinido – por exemplo, que haviam sido postas à venda ou que

estavam parcialmente abandonadas –, ao longo de cerca de um a dois meses. Brissac, a

“ponta do meu iceberg”, não era apenas uma figura importante para o projeto, mas, grosso

modo, seu grande mentor.

Então, comecei a pensar na possibilidade de trabalhar com esse tema na dissertação

de mestrado, a partir de uma abordagem antropológica. Se eu tinha entrado no IFCS com a

intenção de estudar sociologicamente alguns movimentos fotográficos, Mauss, Durkheim,

Lévi-Strauss, Bourdieu, Boas, Malinowski e tantos outros – além de meus próprios colegas

de curso – convocaram-me a tentar realizar um trabalho de campo que privilegiava a

investigação de certas categorias costurando-as pela presentificação dos eventos. Deixaria

de lado – ou mais para adiante – outras paixões, como Norbert Elias e o pensamento social

brasileiro, que me acompanharam em meu primeiro ano de mestrado. Mas entraria num

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diferente exercício de imbricação antropológica, que me permitiria elaborar um caminho

mais dialógico, nessa constante busca de como a criação de um outro pode nos falar sobre

nós mesmos.

Uma vez decidido que optaria por esse tipo de criação e, mais ainda, no âmbito do

projeto Arte/Cidade, encontrei uma grande dificuldade inicial: como trabalhar antropolo-

gicamente a partir de um evento que já havia sido realizado e que eu sequer havia visitado?

Como reconstituir as tramas de relações que deixaram rastros esparsos? E, mais ainda,

como reavivar pelo discurso um universo que preconizava a importância da obra, ou seja,

uma materialidade que tem como condição “ser experimentada”?

Em primeiro lugar, passei ao largo de discussões sobre “arte pública”, que me

levariam quase que inevitavelmente a uma abordagem mais institucional, ou ainda a

discussões sobre as esferas pública e privada, que em nada se relacionavam com minhas

intenções. Nesse sentido, a enquete “O que é arte pública?” (2002), formulada pela revista

Trópico, demonstra o quanto é polêmico um consenso sobre o termo. Entre as respostas,

encontrei variações como: (1) tipo de obra que interfere na vida das pessoas; (2) produção

em que artista e espectador se relacionariam em um espaço comum; (3) arte socialista; (4)

museus e seus acervos; (5) toda a arte deveria ser pública; (6) proposta demagógica, em que

mudariam os lugares, mas não os personagens. Portanto, nem me interessa incorporar-me a

essa discussão, nem tornar arte pública um termo operacional1. A idéia aqui é, como sugere

a minha orientadora, numa leitura de Geertz, entender “não o que se pensa, mas como se

pensa” (Lagrou, 1991:129).

Escolhi como ponto de partida para a minha construção do fenômeno Howard

Becker e seu Art Worlds, onde o autor havia vastamente mapeado o mundo das artes

ocidentais, indicando caminhos de pesquisa que consolidavam certas categorias importantes

para as ciências sociais. Ele já reivindicava a necessidade de referência às atividades

coletivas por meio das quais as artes são produzidas e às ações de pessoas que fazem juntas

1 Para José Teixeira Neto, a arte pública é um campo que, embora necessariamente centrado no estético, em muito o transcende, “seja por envolver essa dimensão histórico-social, seja por emergir de fenômenos que não podem ser abrangidos pela estreita designação de arte, institucionalizada ou não”. (2000:10) Trata-se de uma ampla definição, mas, como já colocado, não pretendo instrumentalizar um conceito, senão descobrir como se constituem diferentes modos de entender e atuar em arte. A intenção aqui, como veremos no próximo capítulo, é justamente escapar a qualquer análise que coloque como central na análise a categoria estética.

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coisas que criam as estruturas sociais (1982:205). A investigação das artes, para Becker,

deveria tratar necessariamente da divisão de trabalho que constituía seus produtos,

estabelecida na concepção das idéias, na confecção dos artefatos físicos, na criação de uma

linguagem convencional de expressão, no “treinamento” de pessoal e platéias artísticas no

uso dessa linguagem e na elaboração da mistura necessária desses ingredientes para uma

obra e uma representação particulares (1982:206). “Se focalizarmos uma obra de arte

específica, parece ser útil pensar na organização social como uma rede de pessoas que

cooperam para produzir aquela obra”, sugere o autor (1982:220). Então, os eventos que

abrangem a produção de obras poderiam ser focalizados a partir da rede de relações de

pessoas que tornaram conjuntamente possível que o evento ocorresse tal como ocorreu.

Encontrar personagens que, diferentemente de mim, haviam “experimentado” o

evento mostrava-se imprescindível para entender seu espectro de atuação. Embora

desaconselhada por alguns dos organizadores a percorrer os locais a pé e de ônibus, como

pretendia fazer, ou mesmo a visitar certos locais – porque de difícil acesso ou “perigosos” –

, fui em busca dessa recepção, refazendo em uma das minhas viagens a São Paulo o

percurso de todas as edições do Arte/Cidade, visitando e fotografando os locais de

intervenção, tentando mapear esse público e ouvir de que maneira se relacionaram essas

pessoas com o projeto e suas obras. Mesmo o fato de ter morado por quase dois anos em

São Paulo não impediu que eu desconhecesse quase que a totalidade dos lugares que visitei.

Então, antes de cada saída, estudava no mapa detalhadamente cada um dos trajetos que

faria, mas muitas vezes me perdi e o boca-a-boca serviu-me também para sentir um pouco

da atmosfera desses lugares e perceber que São Paulo é uma cidade projetada

especialmente para pessoas que se locomovem em automóveis e que se deslocam dentro de

percursos bem delimitados, já que entrevistados e informantes raramente situavam os

pontos que eu mencionava.

O sítio onde foi realizado o primeiro evento era um ex-Matadouro, localizado num

local isolado da região central de São Paulo e que, depois do Arte/Cidade, transformou-se

na Cinemateca Brasileira. Quando estive no local, em 2005, já haviam decorrido onze anos

desde aquele evento. Portanto, malgrado as minhas inúmeras tentativas de encontrar

informações com a equipe da Cinemateca, moradores e passantes, as respostas foram

escassas. Um ou outro “achava” que sabia do que eu estava falando, mas não tinha certeza.

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Apenas um vendedor de cachorro quente numa barraca próxima à Cinemateca, chamado

Edilson Pinheiro da Silva, lembrou-se do Arte/Cidade. Morador da região há cerca de 30

anos, sabia que o local havia sido um depósito de iluminação da prefeitura e que também,

depois do Arte/Cidade, sediara uma edição do evento de arquitetura Casa Cor. Mas não

sabia o que tinha acontecido dentro daquela edificação quando foi realizada o primeiro

evento do projeto a que estava me referindo. Se era de graça, não se interessou em saber

como era? “A gente fica cansado, trabalha e fica cansado.”

Depois, foi a vez de peregrinar pelo Viaduto do Chá, onde se realizaram alguns

trabalhos, e pelos três edifícios que abrigaram a maior parte das obras do Arte/Cidade 2 – o

prédio conhecido como Guanabara e os que viraram, depois do evento, o Shopping Light, o

Centro Cultural do Banco do Brasil. Essa área era a única que eu conhecia com alguma

propriedade porque no ano de 2001 morei na rua Libero Badaró por três meses,

especificamente no hotel Othon. Mas nem assim as tentativas de encontrar interlocutores

foram mais frutíferas. Busquei informações em inúmeras edificações e prédios

estabelecidos na região há bastante tempo – como o próprio Othon e o edifício do Banespa,

que desde 2004 pertence à prefeitura –, tanto no corpo administrativo delas como com os

transeuntes, sem sucesso. Donos de bancas de jornal, os principais fornecedores de

informação aos “perdidos”, em sua maioria estavam pelos arredores do Viaduto do Chá

havia pouco mais de três anos e, mesmo no caso das bancas mais antigas, não encontrei

qualquer vestígio de lembrança sobre o evento. Até mesmo no pequeno edifício onde se

situa a célebre lanchonete Guanabara o porteiro já era outro e as caras de estranheza se

multiplicavam cada vez que perguntava sobre o Arte/Cidade. Portanto, uma das minhas

conclusões iniciais foi que os usos daquele centro nervoso da cidade, onde se misturam um

centro comercial, um centro financeiro e um centro histórico, traduzem igualmente uma

movimentação desarraigada, em que a permanência e a fixidez são raras.

Mais uma vez, no trajeto do Arte/Cidade 3, que se deu ao longo de uma ferrovia em

outra parte da região central, a questão da alta rotatividade que caracterizava seus

estabelecimentos confirmou-se, indicando que aquela conclusão não era tão precipitada. Na

Estação da Luz, por onde passam diariamente milhares de pessoas, um funcionário apenas

soube-me informar sobre a Estação da Luz da Nossa Língua, um megaprojeto que estava

sendo construído ali e que hoje já foi concluído e premiado. Nas pequenas lojas e barracas

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consegui poucas pistas e muitos olhares para minha câmera fotográfica, nada discreta. A

Casa das Caldeiras, parte das indústrias Matarazzo onde foram realizadas diversas obras

dessa edição, virou um local de eventos para empresas dois anos depois do Arte/Cidade e

seu único funcionário, ainda que tenha me deixado percorrer toda a parte interna do local e

fotografá-la, preocupava-se apenas em divulgar o “salão de festas” para mim. No complexo

corporativo que se construiu ao lado, situado no restante do terreno daquelas indústrias,

cheguei apenas até a portaria de um dos vários prédios, mas não obtive qualquer

informação, assim como no shopping West Plaza, localizado em frente à Casa das

Caldeiras, ou nas lojas espalhadas pela área, que se mostraram também rotativas. Para

chegar ao Moinho Central, que sediara trabalhos importantes do evento, foi um trajeto

curioso. Tomei metrô, andei pelas ruas do Bom Retiro e seu intenso comércio atacadista,

onde fui espremida por uma multidão interessada nas ofertas anunciadas pelos alto-falantes

até chegar ao ponto indicado por Brissac: o pontilhão da avenida Rio Branco, passando pela

alameda Nothmann. Atravessei o viaduto por baixo, rodeei o local diversas vezes, perguntei

para um grande número de pessoas se conheciam o evento ou o Moinho Central e nenhuma

resposta afirmativa. Apenas algumas pessoas sentadas no meio da rua disseram-me que um

portão embaixo do viaduto dava acesso a uma favela, conhecida como Favela do Moinho,

que se formou depois do Arte/Cidade. Trancado, o portão é uma espécie de garagem da

Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM e a empresa colocou no local um

porteiro, que permitia o acesso dos novos moradores ao local, embora a maioria deles

preferisse pular o muro. Depois de alguma insistência, o funcionário Flávio atendeu-me,

abriu o portão e deixou que eu caminhasse um pouco pelo terreno, mas não recomendou

que eu passeasse pela área do Moinho, que estava completamente tomada por populações

sem-teto. Não foi ali tampouco, nem mesmo nos demais estabelecimentos, que eu encontrei

resposta para uma simples pergunta: “Você se lembra de um evento que foi feito nesta

região, há cerca de oito anos, em que, através de um trem, os visitantes tinham acesso a

trabalhos de arte?”.

A última possibilidade era o Arte/Cidade 4, que tinha sido realizado havia pouco

tempo – três anos – e em toda a zona leste da cidade, passando por variados bairros, como o

Brás, o Pari e o Belenzinho. Eram muitos locais e todos bastante distantes uns dos outros.

Além disso, não consegui traçar um caminho circular e muitas vezes tive que fazer zigues-

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zagues no trajeto, com a ajuda principalmente dos ônibus e dos pés, já que as estações de

metrô deixavam-me perto de apenas alguns desses pontos. Cheguei à zona leste pela

Estação D. Pedro II, um terminal rodoviário onde se cruzam transportes para vários cantos

da cidade. Caminhei por um lugar de muitos viadutos e grandes avenidas, rodeando um

antigo mercado com galpões imensos e ocupados por grupos exclusivamente masculinos,

até chegar à parte nova do Mercado Municipal, que foi transformado num pólo

gastronômico em agosto de 2004, atraindo um novo público para a região. Sabia que por ali

estava o edifício São Vito, para o qual foram realizados alguns projetos dessa edição, mas

os comerciantes da feira não conheciam o prédio e nem tinham idéia do que significava

Arte/Cidade ou coisa semelhante. Depois de muita insistência, um dos feirantes, num grito

de eureca, revela: “Ah, você está falando do Treme-treme!”. Então, o São Vito – um

imenso cortiço vertical, que acabou sendo desalojado em 2004, para recuperação da

fachada, dos elevadores e dos sistemas elétrico e hidráulico – estava exatamente em frente

ao Mercado Municipal, mas não se sabia seu “verdadeiro nome”... A parada seguinte foi o

Pátio do Pari, que, apesar de bastante próximo, também era desconhecido pelos

trabalhadores do Mercado Municipal. Apontaram-me para sua direção; uns indicaram-me

ônibus, disseram-me que era muito longe. Ninguém me falou com precisão onde se

localizava o tal Pátio e resolvi caminhar. Após uns cinco minutos andando por uma das

grandes avenidas desertas de gente e lotadas de carros e ônibus, cheguei ao local: um pátio

ferroviário onde ficavam estacionados os vagões dos trens em desuso. O grande mercado

alimentício que funcionava nas ruas em volta do Pátio passou, depois do Arte/Cidade, para

dentro dele, onde já havia algumas poucas barracas.

Por ali caminhei bastante, conversei com diversos feirantes e finalmente encontrei

pessoas que se lembravam do projeto. Mas os trabalhadores do mercado pouco se

interessaram por ele – muitos diziam que não estavam lá nos fins de semana, quando

acontecia o evento, e a maioria queixava-se da falta de tempo para ver as obras. “A gente

estava trabalhando, não podia sair”, disse Pacheco Mendes, dono de uma barraca no

mercado há 25 anos. Animaram-se com as perguntas apenas os três funcionários

encarregados de cuidar do galpão onde se realizou o Arte/Cidade. Disseram-me que haviam

participado da montagem e lembraram-se de detalhes das obras. “Tinham umas obras, umas

pinturas, uns slides, um filme daquele prédio ali [aponta para o edifício São Vito, visível

8

desde o Pátio do Pari]. Veio um monte de gente”, afirma o administrador Jorge Santana

Ribeiro, que trabalha há oito anos no local. Segundo a secretária Maria Teresa Diniz

Mendes, havia “uns labirintos legais, uma coisa muito interessante. Fizeram também uma

coisa para catadores de lixo”. Para Antonio Carlos Pinto de Queiroz, gerente da empresa

GSA – Serviços Gerais e Transportes Ltda., o evento foi “muito bonito” (ver imagem na

página 158). Ele lembrou-se de que “colocaram divisórias, cadeiras e passaram filmes sobre

meninos de rua, sobre o que seria humanizar o Treme-treme [o edifício São Vito]” e

considerou a idéia “supimpa” (“porque a finalidade era muito legal, muito futurista”). Os

funcionários também deixaram-me entrar no galpão, que estava completamente

abandonado. Entre o amontoado de objetos, encontrei muito material deixado pela equipe

do Arte/Cidade, como cartazes, escritos no chão e até mesmo a “camarmário” – o projeto

realizado pelo grupo Casa Blindada para os moradores do edifício São Vito. Recolhi algum

material e me despedi.

Fui também ao camelódromo do Largo da Concórdia, ao lado da estação de trem e

metrô Brás/Roosevelt, onde o brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Riedweg filmaram,

para o Arte/Cidade, cerca de 30 ambulantes, contando suas histórias, e instalaram nas

barracas dos entrevistados aparelhos de TV e videocassetes, que mostraram, durante a

realização do evento, as imagens adquiridas. Palco de freqüentes disputas e tensões internas

e com os poderes públicos, senti no local, pela primeira vez, uma grande hostilidade. Mas

lá, ao menos, todos os entrevistados lembravam-se – e muito bem – do evento. Um casal de

ambulantes afirmou ter participado do projeto, sem mostrar interesse pelo resultado. Assim

como eles, outra camelô não quis se identificar e mostrou-se reticente quanto à minha

pesquisa, afirmando que, durante a produção da intervenção dos artistas, ela estava doente e

impossibilitada de ir ao camelódromo, mas descobriu, ao voltar ao trabalho, que sua barraca

havia sido modificada por causa do evento. É que lá foi construído um terraço suspenso,

que funcionava como ponto de encontro, local para palestras e bar durante o Arte/Cidade.

Neguinho, ou Givanildo da Silva Nascimento, desde 1997 no Largo da Concórdia, é o dono

do estabelecimento e, bem articulado, tornou-se o principal interlocutor dos artistas na área,

organizando aqueles que participariam da instalação (ver imagem na página 160).

Diferentemente dos colegas, tornou-se árduo defensor da intervenção do Arte/Cidade e,

portanto, disposto a falar sobre o assunto:

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Vieram aqui, foram na prefeitura, fizeram levantamento. Eu tive a sorte que eles fizeram um bar, deram as fotos grandes e bonitas, me filmaram por um mês e me deram um vídeo e uma televisão. Depois, ainda me deram dinheiro para construir uma banca e deixaram as fitas pra gente dar ou vender (entrevista realizada em 10/2005).

Na avenida Rangel Pestana, perto do Largo da Concórdia, fui em busca do Cine

Piratininga, onde foi feito um projeto dos arquitetos holandeses Paul Meurs e Ton Matton,

do grupo Buro Schie. Fernando Almeida, funcionário há 12 anos da loja de plásticos e

espumas Brasmay, situada exatamente na frente do cinema, lembrava-se vagamente de um

evento que havia sido realizado durante alguns domingos em 2002. “Veio um pessoal que

filmou”, disse. Nada mais. Já Chen Chung, dono da loja, puxou da memória apenas a

gravação de um clipe da cantora Zizi Possi no local para um DVD. “Muito bom o DVD!”,

disse. Muitos funcionários de locais próximos afirmaram saber do que se tratava o evento,

mas colocaram que a região ficava isolada aos domingos, quando se realizavam as

apresentações do grupo. Quem se lembrou do Arte/Cidade foi o dono do bar do

estacionamento em que se transformou o Cine Piratininga. Quis se identificar apenas como

Marcos, porque desconfiou da minha pesquisa. Acabou me falando que tinha achado o

evento “muito micho” e com pouca visitação. “Foi, mas não foi”, afirmou. “Eles iam

colocar uns painéis, mas não colocaram. Largaram tudo aqui.”

Depois de poucas informações precisas, visitei o Sesc Belenzinho, que estava em

reforma quando aconteceu o Arte/Cidade e que acabou abrigando a maior parte das obras

da última edição. Supus que, ao menos em uma instituição fechada, parceira ativa na

realização do evento, teriam informações mais precisas. Não foi o que eu encontrei. Muito

solícitos, os funcionários deixaram-me fotografar o local, mas não tinham informações

detalhadas para me oferecer porque houve uma troca de cargos; outros responsáveis não

estavam e tive outros tipos de dificuldades. Fiquei bastante tempo no espaço, tentando

identificar onde teria se instalado cada obra, como se constituíam aqueles ambientes, como

haviam se transformado e como ainda havia obras a fazer. Hoje, o Sesc Belenzinho conta

com praça de eventos, diversos galpões para apresentações e atividades físicas, pista de

skate, sala de leitura, entre outros, mas continua, assim como seu entorno, bastante isolado.

De uma pequena vila em frente ao Sesc, surgiu um morador, chamado Márcio Luís, que

não se lembrava especificamente do Arte/Cidade, mas dizia que, qualquer que fosse o

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evento, aquela área permaneceria sempre igual. “De qualquer jeito, o bairro não tem

futuro”, afirmou. Nos estabelecimentos próximos, o dono de uma oficina mecânica,

Adriano, sabia do que se tratava o evento e sobre a pergunta se teria sido bom, respondeu:

“Pra quem gosta dessas coisas de arte...”. Muitos entrevistados, no entanto, lembraram-se

da obra de José Resende, que suspendeu vagões ferroviários no meio de um viaduto, dando

a impressão de que houvera um acidente impossível (ver primeiro estudo de caso). Então,

tentei ir ao local por diversas vezes. Ora me diziam para ir ao Viaduto Bresser; ora me

falavam de outras vias. Tentei por três dias inteiros, mas acabei não encontrando o local

específico e desisti.

De toda forma, essa minha incursão aos pontos do Arte/Cidade forneceu-me

algumas indicações para a pesquisa. A primeira delas foi sobre a recepção. Já havia

conversado com Brissac a respeito do público do projeto, ao que me respondeu que nesta

situação, diferentemente do que ocorre em espaços fechados, passa-se a lidar com os

moradores e muda-se esse conceito.

Aí inverte a situação. Você é que vai lá. O cara não é o público. O cara mora lá. (...) Tinham dois milhões de pessoas que moravam lá [na zona leste], que todo dia se relacionavam com aquilo. (...) os vendedores, os camelôs, os sem-teto estavam diretamente envolvidos na coisa (entrevista realizada em 04/2005).

O engenheiro Ary Perez, outro organizador do Arte/Cidade 4, contou que muitos

moradores da zona leste foram procurá-lo, durante a montagem, dizendo que também

queriam fazer parte do evento. “A baixa zona leste não estava participando do evento e

queria participar. Eles iam lá, iam a todas as festas, faziam visitação... Eles tinham o maior

apego” (entrevista realizada em 08/2005).

Mas, pela experiência que eu acabava de ter, percebi que seria pouco eficiente tentar

reconstituir o evento a partir desse público, que me supria com poucas informações e não

parecia estar realmente interessado nos trabalhos realizados. Por outro lado, as sucessivas

respostas negativas e incertas ajudaram-me a construir uma parte de meu objeto, indicando

que os visitantes mais esperados não eram necessariamente os moradores e trabalhadores

daquelas regiões. Segundo Neguinho, o entrevistado do Largo da Concórdia, as palestras e

reuniões realizadas no local tiveram como presença principal estrangeiros. O próprio

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Brissac afirmou que um dos grandes méritos do eventos foi o de ter provocado um

deslocamento do público dos lugares habituais de exibição. Então, o “alvo” principal, ao

menos nas edições iniciais, seriam aqueles que já freqüentavam museus e galerias, mas não

visitavam o centro da cidade e a zona leste.

Outra maneira de tentar construir meu objeto era tentar identificar de que maneira se

transformaram esses locais após a passagem do Arte/Cidade por eles. Muitas edificações

passaram por um processo de valorização, como o ex-Matadouro, o Centro Cultural do

Banco do Brasil, o prédio da Eletropaulo, a Casa das Caldeiras e as indústrias Matarazzo, a

Estação da Luz – que vem recebendo grande investimentos – e o Sesc Belenzinho. Áreas da

região central como um todo também foram transformadas, revitalizadas e reintegradas a

circuitos de arte em São Paulo, com a construção de diversos museus e galerias. O próprio

Brissac comentou algumas vezes que teria havido uma certa ingenuidade no projeto, que

poderia ter sido urbanisticamente mais previdente com relação ao que teria probabilidade

de acontecer com esses espaços depois do Arte/Cidade, como a pacificação dos lugares

pelo marketing empresarial. Por outro lado, se não era possível identificar se as edificações

tinham sido valorizadas por causa especificamente do Arte/Cidade ou se por causa de um

processo mais amplo do qual participava o próprio Arte/Cidade, não havia tampouco uma

sistematicidade nessa equação, já que muitos locais transformaram-se naquilo que já

estavam destinados a se transformar, como o ex-Matadouro, que já viraria o terreno da

futura Cinemateca Brasileira, e o Sesc Belenzinho, que passava por reformas. Outros

permaneceram como estavam ou sofreram poucas transformações, como o edifício

Guanabara, o Largo da Concórdia e os galpões do Pátio do Pari. E uma terceira parte foi

gradativamente se deteriorando, ou aumentando seu estado de deterioração, como o

Moinho Central e o Viaduto do Glicério. Portanto, era quase impossível indicar uma

causalidade que relacionasse o projeto a determinados efeitos e um estudo dessa maneira,

com tantas variáveis, seria mais interessante desenvolver com um tempo maior do que o de

uma dissertação de mestrado.

Esses caminhos, percebi, davam-me indícios para gerar certas perguntas sobre o

projeto, mas talvez essas fossem as questões secundárias, que me ajudariam a ilustrar as

principais. Se essas vozes, assim, ecoariam menos do que eu esperava, outras delas

caminhavam no sentido inverso, quais sejam as diversas publicações que foram editadas

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sobre o Arte/Cidade. A principal delas era um grande catálogo, com as obras selecionadas

das três primeiras edições, além de diversos artigos tanto dos organizadores como da

imprensa. Havia material excessivo sobre o projeto e uma das minhas tarefas seria filtrar

esses escritos e imagens. Assim como recomendam Marcus e Meyers (1995:30), se

imagens verbais muitas vezes são mais fortes do que o próprio material criado para eventos

de arte, uma das funções da crítica etnográfica é tornar aparente como esses discursos

tentam se fazer exclusivos2. Nesse sentido, como apontam as primeiras lições sobre a

pesquisa etnográfica, tentei a todo momento implicar-me criticamente na leitura desse

material, já que, diferentemente do que ocorrera com as entrevistas de público, falara-se

muito nesses escritos, com muitos detalhes e as bocas estavam bastante afiadas e afinadas

com seus próprios projetos. Mostrava-se atraente e necessária, portanto, a tarefa de

compilar esse material, mas tomando cuidado para que essa compilação não se tornasse um

novo catálogo sobre o Arte/Cidade, e sim uma das vias para compor os múltiplos mosaicos

opinativos a respeito do evento. Mais além, apesar de eu não ter ido exclusivamente em

busca desse aspecto, as contradições, disputas e leituras não primordialmente aparentes

serviriam mormente para diluir as “exclusividades discursivas”, que muitas vezes buscam o

“politicamente correto”. Portanto, se novamente Becker reitera a importância de se

entender como são concebidas as idéias dos projetos de arte, foram feitas diversas

entrevistas com organizadores de diferentes momentos do projeto, que totalizaram mais de

25 horas de gravação, ao longo de três viagens principais a São Paulo, com a finalidade de

criar um cruzamento entre esses textos e o discurso efetivo de seus criadores, ou ao menos

de alguns deles3.

Além da questão do artwriting, outra mostrava-se com clareza, e encampava de

certa maneira as anteriores: a relação dos artistas na produção de trabalhos de site-specific,

as obras de arte produzidas especialmente para determinados sítios, sobretudo em locais

anti-convencionais e abertos. Hal Foster e seu célebre artigo a respeito do artista que atuaria

2 A esse campo de práticas discursivas que constituem o mundo moderno da arte, chamam esses antropólogos de artwriting, termo que teria sido cunhado por Carrier. Os autores chegam a afirmar que o discurso antropológico teria algumas semelhanças com o artwriting, com a grande diferença de que deveria sempre relativizar as práticas do mundo da arte, mostrando efetivamente os contextos mais amplos da atividade na qual se encontram as apropriações desse contexto (1995:28). 3 Por questões logísticas, Rubens Mano e Vito Acconci foram entrevistados por e-mail. Além disso, devido às dimensões do evento, não foi possível entrevistar muitos participantes importantes do Arte/Cidade, como Ricardo Ribenboim e Gisele Beiguelman.

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como etnógrafo (1995) analisou como os artistas estariam se munindo de práticas

supostamente antropológicas para se inserir nas comunidades em realizam os projetos de

arte, mas não raro a despeito de seus moradores. Ainda que haja um debate não definitivo

sobre o assunto dentro da antropologia, essa discussão serviu-me também para entender, no

caso do Arte/Cidade, como procedimentos desse tipo modificavam as relações tanto entre

artista e público, como entre artista e espaço. É curioso, por exemplo, atentar para como foi

recebida a obra de Vito Acconci na última edição do projeto (ver estudo de caso). Tratava-

se de um abrigo para moradores de rua, que acabou sendo tomado efetivamente por essa

população, gerando até mesmo protestos quando de sua retirada.

Portanto, havia já uma série de caminhos que confluíam e possibilidades analíticas,

mas seria necessário um fio condutor, que encaminhasse todas as rotas e desvios por que

andou o Arte/Cidade. Tautologicamente, acabei voltando para Brissac, o único participante

de todas as edições. Mas de que maneira? Como afirmou Alfred Gell, na disciplina

antropológica, as artes ocidentais não precisariam ficar sob os auspícios de uma sociologia

da arte – segundo Gell, preocupada com os parâmetros institucionais da produção, recepção

e circulação da arte (1998:7) –, nem deveriam se preocupar apenas com os discursos

expositivos ligados a contextos museológicos e práticas colecionistas. Como a antropo-

logia, a antropologia da arte deveria se preocupar com o contexto imediato das interações

sociais e suas dimensões pessoais. “A antropologia seria mais bem descrita como

biográfica, uma tentativa de replicar a perspectiva de tempo dos agentes, enquanto a

sociologia seria supra-biográfica...”, afirma (1998:10). Nesse sentido, optei por tentar

entender biograficamente a figura de Nelson Brissac, tanto a partir de seus discursos e

vivências sobre a cidade, como a partir das biografias de seus objetos criados4, quais sejam

seus trabalhos que tematizam a questão das artes e das cidades, como livros, programas de

televisão e, principalmente, sua tese de doutorado. Mais ainda, se os seus objetos – ou suas

criações – forem entendidos como não somente os produtos diretamente relacionados ao

seu fazer material, mas a seus rastros como pessoa, podemos entender que as obras do

Arte/Cidade foram também em parte vinculadas à figura de Brissac e, nesse sentido, são

objetos de sua “pessoa distribuída” (cf. Gell, 1998). Assim, serão analisadas em estudos de

14

caso algumas obras do projeto – uma para cada evento –, que ajudarão a reconstituir as

tramas de relações que o produziram e, no diálogo entre seus criadores (artista e Brissac),

as categorias que se reiteraram e as fissuras que delimitaram as opções desse organizador

no prosseguimento do Arte/Cidade.

Na construção desses diálogos, surgiram inúmeras categorias de análise. A primeira

delas foi a do artista. Para os nativos, Brissac não era um artista, ao menos dentro do

projeto, senão um curador, organizador ou articulador. Para mim, ele pode ter sido um

curador, mas com características outras, que o diferenciam do curador comum. Portanto,

para fins heurísticos, decidi chamá-lo de artista, embora saiba que o artista, para os nativos,

tem uma atuação e intenções completamente diferentes. Então, estabeleci que Brissac seria

artista no sentido de que artista é aquele que “trabalha no centro de uma ampla rede de

pessoas em cooperação, cujo trabalho é essencial para o resultado final” (Becker,

1982:209), já que foi a figura central do projeto e sem o desenvolvimento da sua idéia

nenhuma das obras poderia ter sido produzida, ao menos nesses contextos específicos.

Outras categorias freqüentes foram analisadas com mais detalhamento, como o efêmero –

identificado no tipo de circulação e ocupação das regiões que abrigaram as edições do

Arte/Cidade e nas próprias características do projeto, que produzira eventos temporários e

obras destinadas ao fim5. O cosmopolitismo defendido por Brissac também resguarda

traços de efemeridade, já que, como aponta Ulf Hannerz (1996), se existe uma espécie de

cultura mundial que acena para os encontros, estes são efetuado especialmente a partir de

parcialidades – e essas parcialidades também revelam tempos de não-permanência. É

interessante notar como efêmero, cosmopolita, global, gigantesco e outras categorias

“genéricas” sobre a condição humana mostram-se renitentes num projeto que propõe uma

maior imbricação da arte no espaço de São Paulo. “É claro que São Paulo é a cidade

brasileira, né? Isso não tem dúvida. Se você quiser falar de metrópole, obviamente que São

Paulo tem condições genéricas de metrópole muito mais reforçadas do que de qualquer

outra cidade brasileira...”, afirma Brissac (entrevista realizada em 10/2005). Mas se os

lugares comuns repetem que a cidade é um palimpsesto, vem à tona que a ausência de uma

4 Como sugerem os estudiosos da cultura material e, recentemente, autores como Koppytoff (1995) e Appadurai (1995), os objetos podem ser estudados como se tivessem histórias de vida, relacionadas com seus modos de produção, apropriação e circulação. 5 Ainda que algumas delas, de diferentes maneiras, tenham se repetido em outras ocasiões e situações.

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abordagem diretamente mais “localista” foi uma opção, um tipo de leitura de cidade.

Magnani, por exemplo, trabalha no sentido oposto, ao evidenciar em seus estudos o

universo restrito de vida, habitação, consumo e entretenimento de trabalhadores dos bairros

periféricos de São Paulo (cf. 1998). Trata-se, neste caso, de uma cidade concreta, com suas

ruelas e espaços claramente nomeados e ocupados. Vale colocar que o primeiro é filósofo e

o segundo, antropólogo; duas vias diferentes de análise.

Por outro lado, à medida que as edições do Arte/Cidade foram se sucedendo, a

organização foi agregando cada vez mais profissionais de diferentes áreas para reafirmar

essa idéia de palimpsesto – que é, ela mesma, também genérica. Portanto, muitos artigos de

colaboradores do projeto, como arquitetos e antropólogos, foram adensando a visão de

cidade, em especial de São Paulo, para a elaboração dos eventos.

No andamento de um projeto para o outro, o que ficou claro é que você tinha que ter que trabalhar cada vez mais as condições, as dinâmicas e as configurações urbanas existentes na cidade. Mais e mais pesquisar, compreender o funcionamento da cidade e sobretudo atuar entre os agentes presentes no espaço urbano se tornou um fator fundamental, ou seja, você mais e mais se entender como mais um agente, e não como alguém que está ali pedindo permissão pra fazer uma coisinha artística, uma coisa inócua dentro da estrutura da cidade. (Brissac, entrevista realizada em 10/2005).

Portanto, se o Arte/Cidade se iniciara com uma proposta claramente relacionada aos

projetos de site-specific, foi se afastando de um universo circunscrito para cada vez mais

atuar sobre outros domínios, como na criação de propostas relacionadas aos problemas

urbanos. Nesse sentido, adianto que não entrarei especificamente nas questões da

antropologia urbana, que apresenta estimulantes discussões sobre a cidade, percorrendo

desde Weber e Simmel, passando pela Escola de Chicago e, no Brasil, por Gilberto Velho,

Eunice Durham, entre outros. Uso a referência de Magnani apenas para pontuar que houve

uma seleção de repertório entre as muitas possíveis porque acredito que a maior

contribuição desta dissertação seja menos entender estritamente como se desenvolveram

determinadas idéias de cidade, mas principalmente relacionar como alguns discursos sobre

cidade implicam a defesa de certos procedimentos no campo da arte. Como exemplo desse

debate, coloco que carrinhos para catadores de papel, espaços artificiais de lazer, projetos

para o edifício São Vito, entre outras obras do Arte/Cidade, passaram a instaurar a seguinte

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contradição: como dar continuidade a uma arte que é cada vez mais cidade? Existe uma

possibilidade de fundir arte e vida?

No âmbito das culturas indígenas, por exemplo, sim. E é por esse motivo que a

literatura indicada por minha orientadora Elsje Maria Lagrou, que trabalha com os

Kaxinawa, ajudou-me tanto a entender antropologicamente como construir o meu objeto.

Por outro lado, dentro do panorama das artes ocidentais dos anos 60 e 70, foram tentadas

diversas formas de concretizar essa fusão, que muitas vezes se mostraram pouco profícuas.

No Arte/Cidade, se um abrigo para moradores de rua continuasse em exposição ad

aeternum, sendo apropriado como moradia, continuaria parte desse universo? Se a repre-

sentação cada vez mais se deixasse tomar pela intervenção, até que limite esse tipo de arte

poderia se reinventar? Esta será, portanto, a questão que permeará especialmente o campo

de tensões encontrado nos estudos de caso. Obras de José Resende, Rubens Mano, Nelson

Felix e Vito Acconci, principalmente a partir da materialidade delas, ajudam a entender de

que maneira vão se encontrando e/ou cindindo certos repertórios sobre a arte e a cidade que

acabam por reiterar o quanto é heterogêneo o universo das artes contemporâneas.

Colocadas, então, as diretrizes principais do projeto, que tem como foco discutir a

imbricação entre os dois termos que dão nome ao Arte/Cidade, aponto de que maneira

selecionei a ordem de apresentação do texto. No primeiro capítulo, ainda de cunho

parcialmente introdutório, trabalharei especialmente algumas sugestões de definição da arte

contemporânea e farei um breve mapeamento de algumas de suas manifestações. Completo

indicando algumas possibilidades analíticas de construção do Arte/Cidade a partir de uma

abordagem antropológica, onde serão colocadas referências da disciplina importantes para a

construção deste trabalho. Mais adiante, segui meu roteiro bastante influenciada pelos

estudos de Daniel Miller sobre a cultura material. Para o autor, ir além de uma abordagem

dualista entre coisas e pessoas implicaria reconhecer (1) a forma como ordenamos as

coisas; (2) a forma como somos ordenados pelas coisas; e (3) como ambos se implicam

mutuamente (cf. 1994). Nesse sentido, o segundo capítulo mostra uma descrição mais

detalhada do fenômeno, com as características principais de cada edição do projeto e de

seus locais de realização, mas também algumas mudanças de repertório que foram se

sucedendo por conta de determinados critérios da organização. Por outro lado, como o

ponto nodal dos cruzamentos que se deram para a realização do Arte/Cidade é Nelson

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Brissac Peixoto, o terceiro capítulo tratará de entender de que maneira esse personagem, a

partir de certos pontos de sua vida e obra, ordenou as “coisas” do Arte/Cidade, conduzindo

as mudanças do projeto, o que também revelou uma reincidência de algumas categorias.

Seguem-se ainda os estudos de caso já mencionados, onde uma dinâmica de mútua

implicação será mais bem analisada, e a conclusão.

Gostaria de dizer ainda que muitas categorias e vias de análise surgiram, como os já

referidos estudos sobre antropologia urbana ou ainda a vasta análise de São Paulo a partir

do pensamento social brasileiro, mas esses caminhos estão à espera de um projeto mais

extenso. As definições sobre arte contemporânea e exemplos de manifestações, por

exemplo, foram bastante reduzidas, diante da amplitude que configura esse universo.

Outros caminhos antes cogitados, como a relação do projeto com seus patrocinadores e com

outros eventos concomitantes, como a Bienal de São Paulo, tiveram que ser abandonados

pelos mesmos motivos. Portanto, para o mestrado, coube-me sintetizar as inúmeras

possibilidades mostradas pela pesquisa, selecionando apenas poucas diretrizes. Espero que

esse empreendimento instigue de alguma maneira os leitores.

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CAPÍTULO 1 – DIÁLOGOS COM A ARTE CONTEMPORÂNEA

1.1. Breves traços de uma arte com muitos traços

Responsável por introduzir a expressão “mundo da arte” na estética filosófica,

Arthur Danto afirmava que não havia características intrínsecas aos objetos que pudessem

caracterizá-los como artísticos. Desenvolveu, assim, a chamada teoria interpretativa,

segundo a qual a interpretação sobre arte deveria estar relacionada a uma tradição de fazer

artístico que internaliza, reflete e se desenvolve a partir de sua própria história (Gell,

1999:191). No caso da arte contemporânea ocidental, mais além de todas as suas variadas

referências, é o movimento moderno, que o precede, uma das chaves essenciais para

entender as suas características. Segundo o crítico de arte Agnaldo Farias, “(...) moderno é

o nome de um movimento com características particulares que nasceu na Europa, com

variados desdobramentos por quase todos os países do Ocidente, e que entrou em crise a

partir da década de 50” (2000:13).

Sobre a arte moderna, Ronaldo Brito, outro crítico de arte, aponta que, com a

explosão das vanguardas nas primeiras décadas do século XX, a obra de arte passou a ser

tudo e qualquer coisa. “... parecia possível fazer tudo, com tudo, em qualquer direção”,

afirma (2001:202). A modernidade se imbuía de um sentido liberatório, caracterizado,

sobretudo, por uma revolta, que implicaria um descentramento do olhar e a abertura de um

abismo no interior da Contemplação, o lugar por excelência das Belas-Artes e do

academicismo. Portanto, além de “matar a arte para salvá-la”, a arte moderna teria

institucionalizado uma “tradição do novo” (Brito, 2001:203-205).

Se nem bem existe uma clara determinação de quando a arte deixou de ser moderna

para ser rotulada como contemporânea, não haveria uma diferença evidente entre o trabalho

moderno e o trabalho contemporâneo, com rupturas formais bem delimitadas, mas sim

“démarches distintas agindo ‘dentro’ e ‘fora’ deles” (Brito, 2001:206). Então, nunca houve

de fato uma “substituição” e diferentes tipos de manifestação foram se sobrepondo até que

moderno como nomenclatura passou a ser inadequado para classificar novas formas do

fazer artístico. Dessa forma, enquanto moderno seria um termo pleno de sentido,

relacionado a rupturas na política, na sociedade e nas artes, contemporâneo trataria

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principalmente de uma dimensão temporal (cf. Farias, 2000), onde se encaixariam obras

realizadas a partir de determinadas questões. Essa característica, no entanto, não se refere a

todas as obras, já que pode-se fazer uma arte mais ligada à arte moderna até os dias de

hoje6. Isso complica ainda mais a tentativa de compilar uma definição, mas essa

“passagem” nada retilínea teria alguns traços que a diferenciariam da anterior. As principais

delas, afirma Brito (2001), seriam a auto-sátira implementada pela arte pop, a mudança do

mercado de Paris para Nova Iorque e o uso da técnica não como meio expressivo, mas

como necessidade de investigar o campo de atuação no nível de consciência crítica. Não

são menos importantes a tendência a uma racionalidade artística cada vez mais extremada e

o gradativo abandono da ingenuidade nas obras relacionadas a esse tipo de produção.

Um raciocínio político mais fino e minucioso, estratégico, vai aparecer, entretanto, como nova modalidade de combate crítico. Um raciocínio analítico, mediatizado, que logre detectar as articulações da materialidade da arte e nela possa intervir com um cálculo de eficiência (Brito, 2001:210).

Ainda mais específicos, Eduardo Coimbra e Ricardo Basbaum apontam alguns

pontos de oposição que atravessariam a produção contemporânea, quais sejam: texto X

imagem; comunicação X pensamento; espaço íntimo X espaço público; tecnológico X

translógico; real X simulação; e história da arte como campo da cultura. Cada obra seria

atravessada por uma multiplicidade desses pontos, e não apenas por um único par de

oposições (2001:347-348), o que indicaria que a arte contemporânea acena mormente para

um intercruzamento de campos e meios. Já o artista passa também a assumir uma nova

postura frente a seus trabalhos: de uma atuação encerrada e autônoma, torna-se um

articulador de sentidos.

O artista contemporâneo é um operador da visualidade e seu trabalho, uma intervenção no campo da cultura: é na atuação de uma inteligência plástica potencializada ao máximo que o artista busca eficiência em sua prática, agora estruturada na forma de um Projeto Plástico, sob o signo da Transdisciplinaridade (cruzamento e superposição de vários campos do conhecimento) e Intermídia (livre trânsito entre diferentes meios de

6 Segundo Farias, “embora escorado no senso comum, quando aplicado à arte o termo contemporâneo vai além de simplesmente designar o que vem sendo feito agora. Em primeiro lugar, convém observar que nem tudo que anda sendo feito no campo da arte é contemporâneo; do mesmo modo, será prudente alertar que a arte contemporânea não é prerrogativa de gente jovem” (2000:13, grifo do autor).

20

expressão, com utilização de diversos materiais). (Basbaum; Coimbra, 2001:349).

Dessa forma, as manifestações da arte contemporânea, ao mesmo tempo que

deslegitimam os códigos modernos, lidam com a interpenetração de culturas, fronteiras,

híbridos, fragmentos e intractabilidade da diferença cultural (Marcus, Meyers, 1995:20).

Assim, a arte contemporânea será aqui entendida sobretudo como a produção no campo

artístico ocidental que se determina a partir principalmente de uma crítica – ou referência –

em relação à arte moderna, de uma interdisciplinariedade – numa tentativa de agregação

com outros campos, em oposição à autonomização da arte moderna – e como uma

tendência à criação de manifestações híbridas, em termos de meios de expressão. Por outro

lado, como será colocado no próximo subitem, tão diversificadas são as suas manifestações

que nem sempre a referência à arte moderna se dá no sentido crítico ou depreciativo, mas

também formas de arte tidas como tradicionais, assim como a pintura e a escultura,

fortaleceram-se em muitas situações.

1.2. Manifestações pós-modernistas

Nos próximos parágrafos, serão esboçados alguns traços dessa produção e de suas

práticas, com ênfase no caso brasileiro. Grandes movimentos e grandes artistas foram

omitidos no panorama traçado, tanto por falta de espaço como porque esta dissertação,

como dito anteriormente, não é sobre arte, mas sim sobre como a arte se insere dentro de

um universo mais amplo de relações sociais.

Portanto, se estamos em busca de linhas gerais, não podemos deixar de lado a

referência constante da arte contemporânea ao modernismo, em especial aos movimentos

vanguardistas do início do século XX. Nesse momento, os objetos passam a ser exibidos de

outras maneiras, mais além dos pedestais e da iluminação direta, como no caso dos objets

trouvés surrealistas e das assemblages cubistas. Já Duchamp e seus ready-mades foram

uma revolução na arte moderna, rompendo de vez com o sistema de representação artística

ocidental e deslocando a importância da questão estética na relação com as obras7. Outro

7 Enquanto os objets trouvés eram uma apropriação, pelos surrealistas, de objetos encontrados ao acaso para a produção de novos trabalhos, as assemblages ficam a um meio-caminho entre escultura e pintura, já que

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importante precursor da arte contemporânea foi Wassily Kandinsky, que também nos anos

10 e 20 deu início ao abstracionismo, abandonando definitivamente as tendências

representativas e academicistas8. Outros movimentos, como o suprematismo, também

forneceram muitos dos elementos explorados posteriormente na arte contemporânea, mas

destaca-se entre eles o Dadá, do poeta Tristan Tzara, que rejeitava toda e qualquer aliança

com as próprias vanguardas, num caráter contestatório que defendia a dissolução de

critérios estabelecidos e incorporava produções variadas, sem qualquer dogmatismo formal.

Portanto, em meio a essas influências, a arte contemporânea foi gradativamente se

constituindo, sem fronteiras determinadas – nem históricas, nem de práticas utilizadas. De

toda forma, foi notória a maneira como a Pop Art, munida de lixos, quadrinhos, cartazes e

happenings, acabou sendo reconhecida como um dos grandes marcos da arte

contemporânea – senão o grande marco. Herdeira direta do Movimento Dadá, ela passou a

brincar com os elementos da indústria cultural, de modo a tornar evidentes as falências da

classe média norte-americana. Como lembra Tadeu Chiarelli, a Pop Art e o minimalismo –

outra grande referência – foram dois movimentos que expressaram a tendência ao

afastamento da subjetividade vivido naqueles tempos de pós-guerra. O primeiro, com a sua

criação voltada para o caráter serial das imagens e o segundo enfatizando as propriedades

físicas e/ou químicas da matéria natural ou semi-industrializada com mínima ou nenhuma

intervenção do artista (1999:121). Por outro lado, a partir dos anos 60, cada vez mais as

manifestações de arte preocuparam-se com a abertura dos canais de negociação entre

criador, obra e espectador, a partir de uma implicação mais dinâmica entre esses três

vetores. A arte ambiental, o minimalismo, a body art, a land art e a arte conceitual, por reúnem elementos de distintos materiais, mas são dispostas como quadros, não permitindo uma visão integral dos objetos. “Aparentemente usado pela primeira vez como designação por Marcel Duchamp (em 1961 houve no MoMA de Nova York uma primeira exposição denominada ‘The Art of Assemblage’) , a assemblage consiste na aproximação de elementos descontínuos, provenientes de diversas origens e não de uma única peça como um mesmo bloco de mármore, e que portanto têm distintas naturezas: um pedaço de madeira é ligado a um pedaço de ferro ou um fragmento de pedra; e um pedaço de cano, objeto previamente manufaturado, pode entrar em composição com algum elemento que ainda é uma matéria prima, como a argila; e papel usado, terra, plástico e sangue do artista podem ser acrescentados, se for o caso” (Coelho, disponível em: <www.macvirtual.usp.br>, grifo do autor). Já os ready-mades, objetos industriais apresentados como obras de arte, praticamente não sofriam alterações. 8 Em 1911, Wassily Kandinsky e Franz Marc deram o nome de Der blaue Reiter (O cavaleiro azul) às obras e exposições que preconizavam uma renovação total das formas estéticas no domínio das belas artes, mas sem a preocupação em criar um programa artístico específico. A intenção era agregar uma variedades de estilos subjetivos, a partir da formação de um grupo internacional, que tinha nomes como Paul Klee. Tratava-se de

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exemplo, passaram a explorar novas de apropriação do espaço circundante, fosse em

relação aos limites físicos do corpo ou aos limites físicos das próprias instituições, com o

freqüente convite à saída do chamado “cubo branco” dos museus e galerias9.

No Brasil, as primeiras manifestações de arte contemporânea surgiram nas décadas

de 50 e 60. Se o chamado primeiro modernismo, de Anita Malfatti, Lasar Segall, Tarsila do

Amaral, Ismael Nery, Di Cavalcanti, entre outros, trouxe inovações especialmente sociais à

arte produzida no país, o pós-guerra germinou preocupações mais voltadas para a pesquisa

plástico-formal. Surgiram, nesse esteio, os movimentos abstracionistas, com a abstração

informal de Iberê Camargo e o concretismo dos grupos Ruptura, de São Paulo, e Frente, do

Rio de Janeiro.10

Tal como o de outros países latino-americanos, o Modernismo brasileiro havia se desenvolvido desde o começo do século passado em torno do compromisso com questões sociais e temas da vida nacional, em detri-mento da investigação plástico-formal que então movia as vanguardas européias do mesmo período. Será somente com a emergência da arte Concreta e Abstrata, por volta de 1949, que os artistas brasileiros passa-ram a investigar prioritariamente, e em várias direções, as possibilidades expressivas e poéticas da matéria e dos materiais, do espaço, da cor, da forma, do plano, do volume e da linha (Cocchiarale, 2005).

Portanto, a I Bienal de São Paulo, em 1951, fez os artistas se confrontarem com o

desafio de, ao mesmo tempo, absorver a produção vanguardista internacional do início do

século e ganhar maturidade com relação aos modernistas brasileiros dos anos 20 e 30

(Bueno, 2002:10), o que implicou um novo tipo de diálogo com a arte moderna. E as

bienais a partir de então foram grandes impulsos para o desenvolvimentos desses novos

um projeto que consistia não apenas da renovação das formas de artes, mas, como afirmara Marc, de um renascimento da forma de pensar (Jimenez, 2004:30-31). 9 Pode-se dizer que a exposição de esculturas em logradouros públicos nas grandes cidades ocidentais no início do século XIX foi uma das precursoras da retirada das obras de arte das paredes de museus e galerias, mas a preocupação naquele momento era sobretudo o embelezamento, o saneamento urbano e a construção controlada das cidades ainda horizontais, inspirados pelas reformas de Haussman na França. De toda forma, foi crescente a preocupação com o entorno das obras, tal como exemplificam o muralismo de Diego Rivera, no México, ou até mesmo o paisagismo de Burle Marx, no Brasil. (cf. Silva, 2005) 10 A vertente carioca, formada por figuras como Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Franz Weissman e Ivan Serpa, tinha como principal objetivo libertar-se do excesso de formalismo da corrente paulista, cujos representantes principais eram Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Começa da seguinte maneira o Manifesto Neoconcreto 1959, de Ferreira Gullar: “A expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não-figurativa ‘geométrica’ (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista” (Gullar, 2002:118).

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tipos de expressão, colocando em contato direto o artista local e as produções dos principais

artistas internacionais (Chiarelli, 1999:30).

Se os anos 50 eram ainda uma espécie de reencontro com a arte moderna, os anos

60 diversificam suas referências. O figurativismo volta por aqui muito por conta da arte

pop, em especial pelas mãos de Wesley Duke Lee, Rubens Gershman e Claudio Tozzi. Mas

essa década caracterizou-se sobretudo por um experimentalismo generalizado, cuja

finalidade era tanto expandir as possibilidades e a diversidade de linguagens como, em

muitos casos, aproximar “arte e vida”. Os artistas passaram, então, a trabalhar com objetos

cotidianos e corriqueiros e a estimular a produção de obras que incorporassem a

participação do espectador. Lygia Clark, por exemplo, constrói seus bichos e máscaras

sensoriais, para serem manipulados pelo público; Lygia Pape faz obras como Divisor

(1968), em que convidava os passantes a preencherem com suas cabeças os buracos de um

gigantesco pano. A efervescência constestatória e libertária mostrava-se também nas ações

performáticas, nos happenings e nas manifestações de arte coletiva. Em um dos casos,

Nelson Leirner promoveu um grande acontecimento ao ser fechada, em 1967, a Galeria

Rex (que sediava as reuniões do grupo de mesmo nome). Nessa ocasião, todos os trabalhos

realizados e expostos pelos artistas puderam ser gratuitamente retirados por uma pequena

multidão em poucos minutos. No trabalho Porco empalhado, o próprio Leirner foi

protagonista de outra das tendências então correntes: as provocações ao próprio sistema de

arte, que vieram a se acentuar na década seguinte11. Além disso, proliferaram as mostras de

arte, como a Opinião 65, Opinião 66, a Nova Objetividade Brasileira e os Salões da Bahia,

que promoviam os novos artistas e estimulavam o intercâmbio entre eles. A primeira delas,

realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ficou famosa principalmente por

ter sido palco do trabalho do trabalho Parangolé, de Helio Oiticica, em que passistas da

Mangueira – incluindo o próprio artista – desfilavam com capas, barracas e estandartes,

propondo não apenas uma participação mais ativa dos espectadores como uma inserção da

arte nos movimentos políticos e sociais. Nesse momento, estavam principalmente em

debate questionamentos sobre os poderes centrais, as formas restritivas e coercitivas de

11 No IV Salão de Brasília, realizado em 1967, Leirner conseguiu passar pelo crivo do júri e apresentar uma “obra de arte” que nada mais era do que um porco empalhado. O trabalho foi feito para revelar a arbitrariedade dos critérios de seleção das obras pelas autoridades responsáveis.

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institucionalização da arte e a necessidade de se desestabilizar normatizações correntes de

toda a espécie. “Da adversidade vivemos!”, defenderia, então, Oiticica (2002:130).

A ditadura arrefeceu o hedonismo dos anos 60 e a produção da década seguinte viu-

se diretamente vinculada às regras do mercado. Marchands e colecionadores, figuras cada

vez mais importantes, passaram a administrar a trajetória de determinadas obras,

promovendo o renascimento de tendências anteriores, com vistas a bons lances nos leilões.

Não havia mais as vanguardas polêmicas dos anos 1950 e 1960. O aspecto crítico por elas introduzido, colocando em questão o papel da arte na sociedade, já havia se esvaziado. Assim, o momento era particularmente propício para o retorno a uma ideologia conservadora (Venancio Filho, 2001:218).

Por outro lado, a ditadura militar expulsou voluntária e involuntariamente muitos

dos artistas radicados no país e fez com que muitas das obras acabassem se tornando mais

intelectualizadas e individualistas. Intensificam-se, assim, os trabalhos de arte conceitual12,

como forma de criticar não apenas o sistema de arte, mas também as condições políticas e

sociais. Esse cerebralismo é acompanhado tanto por um uso mais freqüente de recursos

tecnológicos, como computadores, vídeos e fotografia, quanto pela utilização de materiais

baratos, no esteio da arte povera – ou arte pobre –, cujas obras trabalhavam com terra, areia

e elementos da natureza. Para Tadeu Chiarelli, três tendências principais nortearam a

década: a desestabilização guerrilheira dos aparelhos ideológicos de estado, por exemplo,

com as estratégias de mail art de Mario Ishikawa e as intervenções urbanas de Arthur

Barrio; a investigação crítica da natureza das modalidades artísticas institucionalizadas,

com Waltercio Caldas, José Resende, Carlos Fajardo e Antonio Dias; e a obra de Tunga,

cujos objetos e instalações teriam uma poética singular, “baseada em latejos eróticos e

sensuais” (Chiarelli, 1999:30). Talvez as obras mais notórias tenham sido as de Cildo

Meireles, que se encontraria na primeira dessas tendências. No Projeto Coca-Cola (1970),

o artista colou os dizeres “Yankees go home” em garrafas de refrigerante que passaram a

12 Em 1961, Henry Flynt criou a expressão concept art e declarou: “(...) l’Art Concept est une forme d’art qui a pour matériau le langage” (apud Jimenez, 2004:56). Seis anos depois, Sol LeWitt colocou que as idéias, elas mesmas, podiam ser obras de arte. Mas a arte conceitual está realmente associada a Joseph Kossuth, que, com a assertiva Art as Idea as Idea, indicava que a reflexão estética da obra ou do objeto de arte deveria ser deslocada para a idéia mesma de arte, e não para o aspecto físico da obra (Jimenez, 2004:56).

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circular pelo país; já no Projeto Cédula (1975) carimbava a pergunta “Quem matou

Herzog?” nas notas em uso.

Mais à frente, no final dos anos 70 e no início da década seguinte, a chamada

Geração 80 tentou se reconciliar com o público, abandonando o experimentalismo dos anos

60 e o conceitualismo dos 70 e reivindicando a volta da subjetividade e das cores às obras.

Relacionado principalmente à exposição Como vai você, Geração 80?, realizada na Escola

de Artes Visuais do Parque Lage, em 1984, que contou com 123 artistas de todo o país,

esse grupo popularizou-se a partir de um retorno a técnicas tradicionais, como a pintura, a

escultura e a gravura em metal – embora formas anteriores de manifestação, como os

happenings, ainda fossem comuns. Os novos meios de comunicação, em especial a

televisão, teriam sido recebidos sem resistência por essa geração, acostumada, portanto, a

trabalhar com um “universo de informações fragmentado, cheio de imagens das mais

diversas épocas e procedências, todas elas homogeneizadas em suas diferenças por essas

mesmas críticas” (Chiarelli, 2001:265). Também por esse motivo, essa produção tende a ser

classificada como acrítica, repetitiva, aliada às tendências multiculturalistas internacionais

de mercado e alheia à própria história da arte brasileira, embora muitos críticos ataquem a

leitura reducionista e homogênea de uma geração que inclui trabalhos bastante variados,

como os de Chico Cunha, Daniel Senise, Jorge Guinle, Jac Leirner e Leonilson13.

Nos anos 90, a “era do espetáculo” chegou ao circuito das artes no país, com

mostras temporárias realizadas a partir de vultosos patrocínios. Se a exposição de Monet

realizada no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro e no Masp (1997) foi vista por 400

mil espectadores, a produtora BrasilConnects conseguiu um público de 1 milhão e meio de

pessoas na Mostra do Redescobrimento, Brasil+500. Em geral, os megaeventos, relaciona-

dos à idéia de marketing cultural, receberam dinheiro de grandes corporações internacionais

face ao crescente interesse pela arte brasileira no exterior.

Em relação à arte contemporânea, os museus brasileiros, galerias institucionais e mesmo comerciais, ao menos do Rio de Janeiro e São Paulo, mesmo que timidamente, passaram a figurar nas rotas de exposições internacionais. Uma nova Bienal – a do Mercosul – foi inaugurada e a tradicional Bienal de São Paulo, cujo comando até o início

13 Essa divergência de opiniões fica bastante explícita nas diferentes posições defendidas pelos artigos de Marcus de Lontra Costa, Jorge Guinle, Leonilson, Frederico Morais e Alberto Tassinari publicados no livro Mapa do agora (Othake [org.], 2002).

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dos 90 era visto como um abacaxi feérico, passou a ser alvo de encarniçadas brigas entre a elite paulistana (Farias, 2002:199).

Como conseqüência também dessas grandes mostras coletivas e temáticas, foi

valorizada a figura do curador, cujo caráter autoral passou, em muitos casos, a se sobrepor

ao do próprio artista (Farias, 2002:199). A produção da década foi marcada em especial por

um hibridismo cada vez mais crescente, em que se destacaram em termos de conteúdo as

inúmeras referências à história da arte e as críticas ao panorama “globalizado” das artes e

aos problemas das grandes metrópoles, como o enclausuramento e a solidão. Rosângela

Rennó, por exemplo, trabalha com conceitos como memória, desaparecimento e identidade,

a partir da apropriação de fotografias já existentes, por exemplo, em arquivos públicos,

retratos de identidade, álbuns de família e textos de jornal. Como pano de fundo de suas

instalações, objetos e vídeos estão não raro a “amnésia visual” causada pelo excesso de

imagens da contemporaneidade. Já Adriana Varejão trabalha sobre azulejos e materiais

como cacos de louça para criar uma releitura de objetos e imagens do período colonial.

Muitos artistas que apresentaram suas primeiras obras ainda nos anos 80, como Leda

Catunda, Beatriz Milhazes e Nuno Ramos, desenvolveram de outras maneiras seus

trabalhos na década seguinte, sedimentando suas carreiras. Um deles é Emmanuel Nassar,

que mistura iconografia popular e formas geométricas em suas instalações e esculturas. Nos

anos 90, convivem, portanto, práticas heterogêneas, muito voltadas para as novas

possibilidades tecnológicas de divulgação e produção caseiras, o que acabou gerando

trabalhos em vídeos digitais, web art, net art14, entre outros.

14 “A web art ou net art é o setor mais recente dentro do sempre mutante campo das artes eletrônicas. Ela representa uma fusão da arte-comunicação com a arte digital. Historicamente, a arte-comunicação utilizou recursos predominantemente não digitais (mail art, fax, telefone, slow-scan TV, etc.) ou semidigitais (videotexto) para estabelecer contatos de comunicação, enquanto as artes digitais não lidavam ainda com o conceito de comunicação. A web art, num certo sentido, dá continuidade à idéia de comunicação, mas agora dentro de um contexto nitidamente digital e valendo-se dessa gigantesca rede mundial de computadores chamada Internet”. (cf. Enciclopédia de Artes Visuais, disponível em <www.itaucultural.org.br>). No Brasil, o Arte/Cidade foi um dos pioneiros no uso das tecnologias digitais na arte, tanto por fomentar a criação de material exclusivo para o formato CD, quando ainda não era de uso comum – em 1994 –, quanto por incorporar projetos que utilizassem esse formato ainda pouco explorado, como o “Telage 94”, no Arte/Cidade 2. “A proposta foi criar uma trama eletrônica de conexões entre diferentes cidades, que se tecia entre as diferentes imagens processadas. Uma imagem distinta era introduzida em cada ponto do circuito e retrabalhada pelos demais participantes” (cf. Enciclopédia de Artes Visuais, disponível em <www.itaucultural.org.br>).

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Na passagem do milênio, o que se viu foi a acentuação das tendências da década

anterior. Afirma Francisco Faria: “Eis o que se diz das artes visuais no Brasil: os anos 80

foram das galerias, os 90, dos curadores, e os de agora, dos especuladores” (2001:200). Por

outro lado, se as megaexposições continuaram, Fernando Cocchiarale mapeia uma grande

quantidade de grupos de jovens artistas brasileiros que tentam escapar de uma dinâmica

atada, promovendo intervenções públicas e efêmeras (2005). Mais ainda, grupos como

Capacete, Interferências Urbanas e Núcleo Performático estariam ligados não pela defesa

comum de princípios plástico-formais e estéticos, mas pela “crescente indefinição (e

confusão) de fronteiras entre arte, ética, política, teoria, afeto, sexualidade, público e

privado” (Cocchiarale, 2005). Para tentar escapar dos circuitos viciados de distribuição,

seus participantes trabalham sob o conceito de rede, tanto em termos de divulgação como

na estratégia política, privilegiando as microações e questionando sistemas codificados.

1.3. Uma abordagem antropológica da arte

O Arte/Cidade surgiu nos anos 90, em meio ao já mencionado panorama de

reverberação da arte brasileira no circuito internacional. O projeto teve suas duas primeiras

exposições realizadas em 1994, dentro da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, e

as duas posteriores, com o auxílio de empréstimos e patrocínios de toda espécie, incluindo

de grandes empresas, como a Petrobras. Portanto, se a idéia inicial era escapar dos

esquemas das megaexposições e de espaços demasiadamente estruturados, como a Bienal

de São Paulo, também esse evento fez parte de uma dinâmica institucional, que o

introduziu, em certa medida, a essa dinâmica – naturalmente, com uma série de

especificidades e diferenças. A principal delas era estabelecer uma relação entre espaços

em desuso na cidade de São Paulo e a arte contemporânea. Tratava-se, portanto, de uma

possibilidade de constituir um encontro entre arte e vida, mas com características muito

diversas daquelas manifestações contestatórias dos anos 60 e 70, em grande parte porque,

assim como apontaram algumas críticas, não havia um projeto plástico ou formal específico

que superasse as propostas de uso desses espaços.

A partir desses contornos, foram fundamentais na construção de meu objeto de

estudo as referências apresentadas por minha então professora de antropologia da arte, Elsje

28

Maria Lagrou. Para seu trabalho sobre os artefatos dos Kaxinawa, que assim como grande

parte das sociedades indígenas, não separam em diferentes domínios arte e vida, uma das

premissas básicas de pesquisa seria ir além de uma “antropologia da estética”,

necessariamente constituída por características distintivas, principalmente desde as

formulações de Kant sobre julgamento, gosto e apreciação (cf. Bourdieu, 1979).

(...) as sociedades cultivam sua estética ou teoria do gosto ligado a um valor e, conseqüentemente, julgamento. Percepções visuais, gostos, cheiros e sons que agradam serão sempre contrastados com outros que desagradam e esta percepção implica em interpretação e valor, pressupondo esquemas de significação que precedem a mera possibilidade de percepção. (Lagrou, 1998:166)

Esse tipo de abordagem rejeita a idéia de que a arte é um simples reflexo de

determinada sociedade ou cultura, seja em termos funcionalistas, seja em termos

estruturalistas. Para Bateson, por exemplo, a arte comunica; não na mesma medida das

palavras, como apontavam os estudos baseados na lingüística, mas sim com as expressões e

gestos corporais. Desta maneira, afirma Elsje, “todos os produtos criativos da imaginação

de uma pessoa comunicam” (1998:194) e uma antropologia da arte deveria ser o projeto de

entendimento interpretativo do significado das qualidades sensíveis na percepção, expres-

são e cognição nativa, tanto nas experiências pessoais como nas coletivas (1998:161).

Já segundo Boas, a arte não deveria ser tratada de maneira denotativa porque as

mensagens transmitidas pela linguagem visual atuariam de modo diferente do das formas

coerentes da linguagem. Para este autor, mais que simbólico e expressivo, o fazer artístico

seria formal e técnico e o significado da forma artística não seria universal (Boas, 1955:19).

À diferença dos estruturalistas, Boas ressaltava ainda a importância de se pensar nas formas

específicas, e não especulares, que a conjugação analítica entre forma e conteúdo poderia

assumir em diferentes contextos.

Geertz mostra-se outro autor necessário para construir essa abordagem porque

destaca a importância de captar um sentido global e qualitativo da vida na formação das

sensibilidades (cf. 1998), mas também distante de análises denotativas. Para ele, “a

participação no sistema particular que chamamos de arte só é possível através da

participação no sistema geral de formas simbólicas que chamamos de cultura, pois o

29

primeiro sistema nada mais é do que um setor do segundo” (Geertz, 1998:165). A arte,

dessa maneira, não deveria ser estudada na cultura, mas sim, tal como os ritos e mitos,

refletir sobre a própria condição humana, ou seja, arte é cultura e arte pode ser antropologia

no sentido mais amplo. A partir de Geertz, Lagrou defende, portanto, a utilização de uma

abordagem que chamaria de intersemiótica, evitando os termos social ou cultural, muitas

vezes tidos como totalizantes: “O termo inter-semiótico parece o mais apropriado para lidar

com o nosso universo de interpretação por comportar vozes dissonantes e reconhecer

discursos distintos, embora relacionados (mutuamente traduzíveis) em um todo inter-

ligado...” (1998:160). Esse conceito demonstraria, dessa forma, a interdependência do

discurso relacionado à arte com outros discursos ou práticas simbólicas.

A essa abordagem aderiu-se posteriormente Alfred Gell, com sua tentativa de

dessacralização da arte. Segundo esse autor, no pós-iluminismo a arte teria absorvido a fé

até então dispensada ao discurso religioso e, à semelhança do ateísmo metodológico,

atitude tomada com relação à religião no discurso sociológico, o contexto de discussão de

valores estéticos deveria imbuir-se do que chamou de methodological philistinism

(1999:161), que significaria uma ruptura total com a estética. Para tanto, considera a arte

como um componente da tecnologia:

Considero as variadas artes – pintura, escultura, música, poesia, ficção etc. – como componentes de um vasto e geralmente não reconhecido sistema técnico, essencial para a reprodução das sociedades humanas, o qual eu chamarei de tecnologia do encantamento (Gell, 1999:163, tradução minha).

De acordo com Gell, a eficácia dos objetos de arte como componentes da tecnologia

do encantamento seria resultado do encantamento da tecnologia, o que sugere uma

aproximação entre tecnologia mágica e tecnologia produtiva, ou ainda entre magia e arte

(1999:181). Portanto, no lugar de análises baseadas num conceito universal de beleza ou na

função utilitária ou ritual dos objetos artísticos, uma antropologia da arte deveria ser

fundada nos contextos de produção, circulação e recepção dos objetos. Os artefatos, afirma,

não suscitam apenas sentimentos estéticos, não são apenas relacionados a indivíduos

isolados, mas a uma ampla rede de interações sociais. “Vejo a arte como um sistema de

30

ação, que intenciona mais mudar o mundo do que codificar proposições simbólicas sobre

ele”, afirma (1998:6, tradução minha).

Portanto, além de desestabilizar categorias como sociedade e indivíduo, a etnologia

deveria igualmente desestabilizar o conceito de arte. Price, por exemplo, trata de

estabelecer critérios de autoria para os criadores das artes étnicas, colocando sob suspeita as

definições ocidentais ligadas a uma determinada teoria do gosto (cf. 1993). Já Clifford

aponta que a arte moderna teria constituído as artes não ocidentais à sua própria imagem,

tentando descobrir capacidades humanas a-históricas e universais (1988:193)15.

Para uma análise sobre a arte contemporânea, dialogar com pesquisadores que

estudam a arte em sociedades que não a têm permite fazer uma crítica de si mesmo a partir

do espelho do outro, explorando, assim como propunha a própria arte moderna, as

fronteiras do campo da arte. Esse espelho invertido ou distorcido, que volta para nós com

uma imagem ligeiramente modificada de nós mesmos, permite que vejamos o quanto o que

fazemos é diferente do que os outros fazem ou, no sentido inverso, ver o quanto o que os

outros fazem se parece com o que fazemos, mas sob outros rótulos. Portanto, os discursos

da arte em conceitos não ocidentais serão o “outro antropológico” que, em alguns

momentos da dissertação, permitirá a construção dessa análise dos discursos da arte em

contextos também ocidentais – tal como uma série de autores, entre eles Marcus e Meyers,

há muito vêm se debruçando.

In contrast to a previous paradigmatic anthropology of art that was concerned principally with mediating non-Western objects and aesthetics to Western audiences, the work here [refere-se ao artigo introdutório do livro The traffic in culture] engages Western art worlds themselves, casting a critical light on mediation itself, and proposes a renegotiation of the relationship between art and anthropology (1995:1).

Nesse sentido, se é estimulante pensar na arte conectando variados discursos e

intencionalidades no caso de sociedades que nem mesmo possuem uma palavra para

designar arte – como ocorre com os Kaxinawa –, as artes no contexto das sociedades

ocidentais complexo-contemporâneas também devem reivindicar para si o direito de serem

analisadas de maneira “biográfica”. Parece necessário entender uma contaminação que se

31

dá nas artes por diversas vias: mudaram os procedimentos dos artistas, mudou a formação

deles, mudaram os personagens que lidam com essa produção e, se como afirma Clifford

(1988:223), as definições sobre o que é belo ou interessante mudam rapidamente,

naturalmente mudaram também a própria produção e suas formas de apresentação.

Então, novamente citando Gell, uma abordagem antropológica no contexto da arte

deveria não apenas atentar para uma teoria interpretativa, senão também para uma teoria

institucional, porque um trabalho pode ter origem desconectada do mainstream da história

da arte, mas ainda assim circular como tal, quando cooptado como arte pelos agentes que

lidam diretamente com esse mundo, como artistas, críticos, dealers e colecionadores

(1999:188). Nesse sentido, uma análise antropológica sobre arte contemporânea, constitu-

tivamente concebida como distante de critérios determinados de beleza e contemplação, é

beneficiada pelo tipo de análise proposto por Gell e pelos demais autores mencionados –

tendo a possibilidade de se afastar, inclusive, das críticas que emparelham todas essas

manifestações, adjetivando-as ora como demasiado herméticas, ora como brincadeiras

infantis, vazias de conteúdo16. Portanto, ainda que o estatuto de arte tenha sido questionado

em muitas obras do Arte/Cidade – como será mostrado ao longo da dissertação –, os

personagens envolvidos nele colaboraram com sua implicação dentro do campo

considerado como arte.

15 Por outro lado, reconhece este autor que os objetos etnográficos passaram a não ser meramente dispostos como antigüidades e curiosidades exóticas depois das influências de Boas, Malinowski e Picasso (1988:198). 16 O filósofo norte-americano Arthur Danto foi um dos que tentou destituir tanto as significações da arte contemporânea, como as dos artefatos, indicando a necessidade de certas “autoridades” para legitimar as obras de arte como tais e a existência de divisões inflexíveis entre essas categorias de objetos. Para Danto, os ready-mades e as obras de artistas como Duchamp e Andy Warhol, assim como todas as experimentações da arte conceitual, teriam declarado que qualquer objeto “banal” poderia ser desde então apresentado como “obra de arte”. Então, como todos os recursos criativos no domínio das belas artes já teriam sido esgotados, a história da arte estaria condenada à repetição (cf. Danto, 1989; Jimenez, 2004:62). No Brasil, Ferreira Gullar, um dos precursores da arte contemporânea é, ao mesmo tempo, um de seus mais ferozes críticos. O artista lançou o livro Argumentação contra a morte da arte, no qual ataca, entre outros pontos, o excesso de efemeridade de suas manifestações, o cerebralismo duchampiano e as inovações de Mondrian (cf. Gullar, 1993; Piza, 1993). O próprio projeto Arte/Cidade sofreu críticas semelhantes. Sobre o resultado da terceira edição, afirmou o jornalista Marcelo Coelho (2002a:277): “(...) muita gente ficou sem saber o que era pura ruína e o que era obra de artista moderno. Esse monte de entulho: é arte ou lixo? Eu fiquei na dúvida”.

32

CAPÍTULO 2 – O PROJETO ARTE/CIDADE

Não esperava que daquelas reuniões caóticas entre artistas de diferentes personalidades e diferentes artes saísse alguma coisa.

Tassinari, 1994

Como descrito anteriormente, a análise que se segue tenta recuperar uma eficácia

ritual – no lugar de uma eficácia meramente contemplativa – dentro dos quase 200

diferentes trabalhos de arte realizados no projeto. Muitas vias seriam possíveis para

construir essa abordagem, mas optei por aproveitar os registros materiais dessas obras,

retomando estudos sobre a cultura material. Menciono aqui a abordagem de Daniel Miller,

que propõe o estudo da cultura material como um subgrupo da cultura, de modo que uma

teoria dos artefatos como cultura material fosse derivada de – ou relacionada a – uma teoria

da cultura mais geral (1994:399). Essa discussão implicaria dois problemas: o da

materialidade das coisas e o do dualismo coisas-pessoas.

No primeiro deles, aponta que, embora os objetos também incorporem códigos

culturais, a fisicalidade deles revela distinções fundamentais na sua comparação com as

palavras. “The problem of choosing between hundreds of pairs of shoes is most often

caused less because we are spoilt for choice, and more because of the extraordinary feeling

that despite the diversity not one of these pairs is quite right for us” (1994:407). Se

artefatos, assim, são bem diferentes de palavras, a expressão meaning of things deve ser

usada na antropologia para implicar algo além das estreitas questões de semanticidade, isto

é, uma preocupação primeira deve-se basear em questões de “ser” mais do que em questões

de “referência”: “Rather, the notion of meaning tends to incorporate a sense of

‘meaningful’ closer to the term ‘significance’” (1994:397). Segundo Miller, a problemática

da materialidade deveria se concentrar sobretudo na maneira como os sentidos dados aos

artefatos fazem com que se chegue a um entendimento das próprias pessoas, ou mesmo de

certas abstrações – e não o contrário17.

17 Miller critica a maneira como os artefatos tenderam a ser destacados da sua natureza física e do contexto funcional e a ser tratados como signos relativamente arbitrários, formados pela aplicação de contraste,

33

Quanto ao segundo problema, indica alternativas para acabar com o dualismo

sujeito-objeto – constituído por pensadores como Kant e Descartes, que teriam, com a

defesa da razão pura, apontado dois caminhos radicalmente diferentes pelos quais o mundo

poderia ser apreendido. Especificamente no campo da antropologia, coloca-se o autor

contra o dualismo durkheimiano entre coisas e pessoas, que teria sido de um lado rompido e

de outro, reiterado por Mauss18, propondo explorar a noção de objetificação (1994:417; cf.

1987). Portanto, o processo contínuo pelo qual são dados meanings às coisas é o mesmo

processo pelo qual meaning é dado a vidas:

(...) objects only come into meaning through a process of socialization involving these same material taxonomies. Likewise, persons only come into being, with the particular cultural identities that they have, through a process of socialization involving these same material taxonomies (1994:417).

É nesse sentido que em cada uma das edições do Arte/Cidade identifiquei algumas

características específicas, que, se nem bem foram hermeticamente determinadas pelos

organizadores, indicam que houve uma seleção que permitiu e estimulou essas mudanças.

Isso significa que, mais do que escolhas não aleatórias por parte da equipe, eu mesma

selecionei os diferentes meanings que foram destacados nas descrições que se seguem,

construindo as minhas leituras pessoais a partir do extenso material sobre o projeto.

2.1. Idéias na cabeça e ‘terapias de artistas’

Embora não haja um “mito de origem” do Arte/Cidade, pode-se dizer que a

possibilidade de que viesse a se tornar um projeto factível teve início em 1993, quando o

designer Ricardo Ohtake foi convidado para ser secretário de Cultura nos dois últimos anos

da gestão de Luiz Antonio Fleury Filho, eleito pelo PMDB para o governo de São Paulo.

Nesse momento, a Secretaria comportava uma estrutura com uma série de equipamentos,

fazendo deles unidades potencialmente cheias de sentido, que poderiam, assim, ser combinadas para produzir algo que se assemelhasse a um texto (cf. 1994). 18 De acordo com Miller, ainda que os estudos de Mauss sobre o kula tenham sido pioneiros na contribuição de uma literatura antropológica que não estabelece uma relação dual entre pessoas e artefatos – tendo em vista que os objetos trocados tanto reteriam atributos da pessoa por quem foram doados quanto incorporariam características das próprias relações –, este autor teria associado essa análise a um primitivismo romântico, segundo o qual as sociedades de pequena escala repudiariam a distinção pessoas-coisas (1994:416).

34

como o Museu da Imagem e do Som, o Museu da Casa Brasileira, a Pinacoteca do Estado e

cerca de quinze oficinas culturais. Além de apoiar projetos da área ligados a esses

equipamentos, o novo secretário passou a estimular, com a ajuda de seus assessores –

Guilherme Almeida Prado (cinema), Marta Góes (teatro), Rodolfo Stroeter (música),

Clarisse Abujamra (dança), Agnaldo Farias (artes plásticas) e Nelson Brissac Peixoto

(audiovisual) –, a criação de projetos próprios. Segundo Ohtake, essa situação era

beneficiada tanto pela boa disponibilidade de recursos destinados à área quanto pelo

sistema de parcerias implantado naquela gestão:

Naquele tempo e no governo Fleury, isso foi muito possível de fazer porque tinha uma verba boa para isso. Depois, a gente sabia que naquela época, o que não era uma coisa usual, a gente precisava ter outras entidades fazendo parceria com a gente. Então, fizemos parcerias aos montes, que possibilitaram que tivéssemos uma atividade muito grande em termos de cultura – por exemplo, um programa para desenvolver as orquestras sinfônicas e levá-las para o interior do Estado. (entrevista realizada em 08/2005)

A equipe da Secretaria era formada por assessores, divididos por áreas, que tanto

administravam projetos já vigentes como criavam novas propostas – os chamados “projetos

especiais”, que poderiam ser feitos na própria Secretaria ou levados como sugestão para os

equipamentos administrados por ela. Foi nesse sentido que o subsecretário de Audiovisual,

Nelson Brissac Peixoto, em continuidade às suas pesquisas (ver capítulo 3), lançou mão de

um projeto que, aproveitando o “espaço catalisador da cidade”, pudesse articular diferentes

linguagens e suportes da criação artística contemporânea.

No início, não se sabia muito bem o que resultaria daquela idéia. “A gente faria com

que não tivesse nenhuma regra rígida, porque senão você não cria uma coisa nova, e foi o

que aconteceu com o Arte/Cidade”, afirma Ohtake (entrevista realizada em 08/2005). De

acordo com o ex-secretário, a proposta era inicialmente muito vaga, sem qualquer clareza

de objetivos, contando apenas com uma idéia central: a discussão da arte com a cidade e do

embate/diálogo resultante entre essas categorias. Para tanto, Ohtake teria designado todos

os seus subsecretários a participar do projeto, porque sabia que se tratava de uma proposta

interdisciplinar, que poderia integrar as variadas subdivisões dentro da Secretaria.

35

Tamanhos teriam sido o caos e as discordâncias no início desse processo que a

maioria da equipe acabou se afastando dele, tendo restado apenas alguns colaboradores,

como o crítico de arte e ex-subsecretário de Artes Plásticas Agnaldo Farias e Amir Labaki,

então diretor do Museu da Imagem e do Som. Pouco a pouco, foi se estabelecendo a

concepção do projeto e criou-se uma equipe de produção a partir de alguns funcionários dos

quadros da Secretaria e de seus equipamentos.

Passaram a ser realizadas, então, reuniões entre essa equipe e alguns artistas

convidados. Agnaldo Farias afirma que ele e Brissac teriam demorado alguns meses para

chegar aos nomes dos convidados a participar das reuniões; já nos primeiros encontros,

esses novos personagens passaram a chamar outras pessoas que poderiam se interessar

pelos debates. Sem periodicidade determinada, as reuniões foram intensas e geraram

algumas discussões acaloradas. Para Brissac, os primeiros encontros foram infrutíferos,

com uma grande dificuldade de os artistas discutirem coletivamente suas questões:

Os primeiros projetos promoveram reuniões exaustivas, hilárias, agressivas, entre 20, 30 artistas, com uma dificuldade intransponível de conversar sobre o seu trabalho, de trocar idéias, de criar qualquer tipo de trabalho coletivo. (...) No início, tinha gente que se recusava a dizer em público o que ia fazer. Eram muito sensíveis às críticas dos outros, tinham medo de ser copiados. Então, era muito engraçado (entrevista realizada em 04/2005).

Também o ex-secretário Agnaldo Farias reconhece que, embora tenham acontecido

reuniões “divertidíssimas”, houve encontros bastante tensos no início. Conforme a

definição do artista plástico José Resende, tratava-se de “uma terapia, dedicada, exclusiva,

específica para artista plástico” (entrevista realizada em 08/2005).

De toda forma, a proposta de sair dos museus para “invadir” a cidade foi instigante

para o grupo, que, após alguns meses de discussão, acabou concebendo as principais idéias

das duas primeiras edições. A primeira delas teria sido feita relativamente “à toque de

caixa”, com tempo de preparação de cerca de três meses, porque havia uma preocupação

primordial de que fosse concretizada alguma coisa, qualquer que fosse, com o intuito de

fazer o Arte/Cidade virar realidade e tomar forma. Mas, nesse mesmo momento, a segunda

edição – realizada alguns meses depois – já começava a ser elaborada, de maneira mais

cuidadosa e com as intenções mais claras.

36

2.2. Cidade sem janelas

No dia 11 de março de 1994 teve início a primeira edição do Arte/Cidade, com

ampla divulgação na mídia e um “público enorme” (Coelho, 1994b). Para essa primeira

edição, foi escolhido como subtítulo Cidade sem Janelas – seleção que, de acordo com

Agnaldo Farias, teria precedido a do espaço.

Cidade sem Janelas porque digamos que a janela da cidade seja a arte. Você pode encarar como sendo isso uma pintura na janela, a arte em cima de um pedestal, dentro de uma moldura, ela acaba aludindo a um tempo e um espaço que não estão aqui. “Sem janela” é porque não dá para ver sem perspectiva, então, é encarar a cidade de frente. Agora, por outro lado, é também a noção de cidade que nós temos, que é o artifício levado ao paroxismo (entrevista realizada em 08/2005).

Nas reuniões com os artistas, surgiu a idéia de que as obras fossem realizadas a

partir de uma lista de palavras, que abarcassem, de forma ampla, o universo sobre o qual se

pretendia trabalhar: prédios, empenas, fachadas, becos, vielas, skyline, impotência, solidão,

clausura, angústia, opacidade, saturação, acúmulo, artérias, detritos, ruínas, sobras,

escombros, concreto, lama, pedra, metal, solo mineral, arqueológico, porosidade, espessura,

massa, peso, gravidade, cheio, fechado, duro, cinza, amorfo, inerte, descascado, sujo,

usado, volume, sobreposição, entrelaçamento, articulação, ruído, indistinção, amontoado,

aglomerado, acoplamento, engate, expansão, superfície, plano, epiderme, aridez e secura.

Mas, segundo Farias, os artistas se desviavam com freqüência do tema proposto durante as

reuniões. A compreensibilidade mútua só teria sido alcançada com a aquisição do espaço de

realização das obras: o antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana, construído em 1887 e

desativado desde 1927 (ver imagens na página 151).

Tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,

Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), esse conjunto histórico de 24 mil m2

estava localizado em uma área da região central da cidade, mas bastante isolada de

movimentações mais intensas. Se a região foi bastante ocupada por imigrantes italianos no

final do século XIX, a interrupção das atividades do Matadouro, em 1927, como parte das

políticas sanitaristas, acabou também sendo responsável por esse isolamento. Desde então,

o local passou a ser controlado pela Secretaria de Viação e Obras Públicas (cf. Peixoto,

2002e), transformando-se em um depósito de iluminação pública da prefeitura. Décadas

37

depois, em 1988, o terreno foi doado para a Cinemateca Brasileira, que ficou responsável

pela restauração do local. Segundo Ricardo Ohtake, “quem conseguiu que aquilo ficasse

para a Cinemateca foi o atual [em 2005] Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, o

Carlos Augusto Calil, que na década de 80 foi um importante diretor da Embrafilme”

(entrevista realizada em 08/2005). Mas o Matadouro ainda estava completamente

deteriorado e teria que passar por uma série de reformas. Diretor da Cinemateca na década

de 90, Ohtake cogitou a possibilidade de conseguir um empréstimo para a utilização do

conjunto histórico pela equipe do Arte/Cidade.

Uma vez definidos o espaço e as obras, foi feito um tratamento de adequação, com a

retirada de alguns equipamentos do depósito de iluminação, que abrigava carretéis, postes,

fios, entre outros, o que durou cerca de dois meses. Quinze convidados participaram desta

edição, entre os quais o cineasta André Klotzel, o músico Livio Tragtenberg e artistas

plásticos como Carlos Fajardo e Marco Giannotti. Foram realizados no espaço do

Matadouro vídeos, esculturas, palestras, espetáculos teatrais, instalações, projeções de

filmes, performances e outros tipos de manifestação. O músico Arnaldo Antunes, por

exemplo, colou em um muro propagandas e anúncios de shows que encontrara espalhados

pelos muros da cidade, criando possibilidades de leitura a partir da reunião entre palavras

dos diferentes e deteriorados cartazes.

Nesse momento, assim como a própria situação do Matadouro, a “seleção de

cidade” do projeto tendeu para as características relacionadas ao isolamento. “Trata-se

menos da cidade enquanto aglomeração, favela, trânsito, e mais da cidade como zona

morta, edifícios abandonados, ruína”, escreveu sobre o evento o crítico Marcelo Coelho

(2002b). Esse isolamento, no entanto, já se colocava como uma generalidade discursiva,

assim como a lista de palavras sugerida para a criação das obras. Nesse sentido, Coelho

também afirma que não se dava a conhecer a lógica industrial que organizara aquele

espaço, o qual teria sido transformado em um “simples espaço para intervenções”. Então,

essa edição teria sido uma boa oportunidade para os artistas trabalharem num ambiente

diferente, mas, como uma exposição que pretendia tratar da cidade, teria optado por uma

sensibilidade semelhante à dos impressionistas em relação ao espaço (cf. Andreoli, Santos,

1999), ou seja, o tom romântico e nostálgico dos flâneurs teria se sobressaído nas

propostas, de maneira geral. O próprio Brissac reconhece que no início do projeto a cidade

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era mais um pano de fundo e a questão essencial era promover essa articulação de

linguagens e abordagens. Nesse sentido, como novidade da edição estava sobretudo a

proposta de fazer com que artistas e público se deslocassem dos seus locais habituais de

criação e se reapropriassem de um espaço inutilizado, aproveitando-o para outros fins que

não aqueles para os quais havia sido concebido.

2.3. A cidade e seus fluxos

Alguns meses depois, em outubro, foi realizada a segunda edição, com o tema A

cidade e seus fluxos. Como, segundo os organizadores, a idéia era trabalhar não mais a

partir de uma única localização, senão sob uma ótica dos deslocamentos, movimentações e

trânsitos da cidade, assim como dos edifícios, das novas tecnologias e da escala desmedida

do lugar, foram selecionadas três edificações para abrigar as obras do evento. Durante sua

concepção, acabou sendo escolhida para uso, entre as possibilidades que se mostravam, a

região do centro tradicional, que havia sido um importante local de consumo das elites e

ponto de encontro de políticos, jornalistas, acadêmicos, comerciantes e excursionistas no

início do século XX, mas que acabou perdendo a importância, com a gradativa fragmen-

tação deste centro e a multiplicação de outros centros comerciais e empresariais pela cidade

(cf. Campos, 2004:33-37). Portanto, dessa vez, os 22 participantes, também a partir de

trabalhos em diferentes meios, foram confrontados com uma cidade mais intensa, na qual

confluíam diversos grupos e atividades, em vez do isolamento desertificado do Matadouro.

O primeiro edifício selecionado, conhecido como “prédio da Light”, localizava-se

na praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal (ver imagens na página 152).

Até 1923, abrigava o Teatro São José e foi reinaugurado, após uma primeira reforma, em

1929, quando passou a ser sede da companhia canadense The São Paulo Light & Power,

concessionária de distribuição de energia, que crescia com o desenvolvimento industrial. Já

no final da década de 70, a Light foi comprada pelo governo federal e em 1981 passou a ser

estatal, tornando-se a Eletropaulo. Mas o nome Light persistiu na memória da cidade e

continuou vinculado à edificação19. Foi nesse local que o Arte/Cidade 2 abrigou a maior 19 Propriedade da Construtora OAS Ltda., o edifício acabou sendo vendido no início dos anos 90, tornando-se em novembro de 1999 o Shopping Light, como alusão ao seu nome original. Trata-se de um shopping de baixa renda, com seis pavimentos e cerca de cem lojas, mas a movimentação intensa da sua praça de

39

parte das obras. Os trabalhos foram expostos no último andar do prédio, cuja utilização a

Secretaria só conseguiu porque o local estava sendo desocupado para venda, assim como

conta Ricardo Ohtake:

Eu me lembro que uma vez precisava falar com os caras da OAS [construtora que era responsável pelo prédio]. Eles foram até a Secretaria e eu expliquei o projeto, que aquele prédio historicamente tinha uma importância muito grande para a cidade, era um ponto de referência forte. Contei da minha relação pessoal com o prédio, porque eu era office boy e trabalhava perto da Praça da República [na mesma região], então, eu passava lá varias vezes por dia. Eles acharam o máximo e emprestaram o prédio (entrevista realizada em 08/2005).

Cruzando o Viaduto do Chá, onde também foram realizados alguns trabalhos (ver

estudo de caso sobre Rubens Mano), estava o segundo edifício selecionado para essa

edição, especificamente na esquina das ruas da Quitanda e Álvares Penteado. Então

desocupado, o prédio pertencia ao Banco do Brasil desde 1923 e foi sua primeira sede na

capital paulistana20. Como o local estava fechado na década de 90, o artista plástico

Emanoel Araújo, então diretor da Pinacoteca, sugeriu a Brissac que fosse “resgatado” para

o Arte/Cidade. “(...) ninguém ia lá, ninguém tinha interesse, não era uma galeria, não tinha

sido tratado”, afirma Agnaldo Farias (entrevista realizada em 08/2005). Dessa maneira,

conseguiu-se o empréstimo do edifício. Lá foram exibidos trabalhos como o de Iole de

Freitas, que aproveitou o vão central do prédio para criar esculturas feitas de telas metálicas

e fios em espiral, sustentadas fragilmente nas paredes internas do edifício. Depois do

Arte/Cidade, o espaço passou por uma ampla reforma e, em 2001, transformou-se no

Centro Cultural do Banco do Brasil21 (ver imagens na página 153).

alimentação contrasta com a desocupação da grande maioria dos estabelecimentos. Tombado pelo Condephaat e pelo Conpresp, o edifício teve que ser restaurado preservando as características originais, como os toldos vermelhos das janelas e os elevadores da década de 30 (cf. site Sampacentro). 20 O local acabou sendo tombado pelo Condephaat e pelo Departamento do Patrimônio Histórico/Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – DPH/Conpresp, tanto por sua arquitetura eclética, quanto por ser representante de um centro financeiro, que movimentava a indústria cafeeira nas primeiras décadas do século XIX (cf. <www.bb.com.br>). 21 O CCBB de São Paulo tem características semelhantes ao do existente no Rio de Janeiro – salas de exposições, cinema, teatro, auditório, salas de vídeo, restaurante, bombonière e café, além de um cybercafé –, porém com dimensões menores. Entre os organizadores entrevistados, é unânime a opinião de que na época do Arte/Cidade não se pensava no espaço como um futuro centro cultural. Mais enfático, Ohtake acredita que esse resultado teria sido conseqüência direta da projeção ligada ao edifício depois do evento de 1994.

40

Descendo para o Vale do Anhangabaú, na esquina com a avenida São João, estava o

terceiro dos edifícios que abrigou obras nessa edição. Conhecido como Guanabara – por

comportar desde 1972 a lanchonete homônima, que ficou conhecida por ter sido ponto de

encontro de importantes personalidades políticas e literárias brasileiras –, trata-se de um

prédio quase desocupado, que hoje parece refletir o estado de abandono em que se encontra

essa área de São Paulo, tomada pelo comércio informal de rua, pelos mendigos e

assaltantes, malgrado as inúmeras tentativas de revitalização da região (ver imagens na

página 152). Por esse motivo, foi mais fácil conseguir o empréstimo de um dos andares do

edifício com seu proprietário do que nos casos anteriores22. Em uma de suas salas, Lenora

de Barros fez o seu Ácida cidade, em que construiu um gigantesco reservatório de acrílico,

do qual desciam lentamente 3.000 bolinhas de pingue-pongue, com a inscrição “A cidade

oxida”. À medida em que as bolinhas iam de encontro ao solo, ouvia-se uma voz emitindo

essa mesma frase.

Nesta edição, embora os locais utilizados também estivessem desocupados e se

situassem no centro da cidade, tratava-se de uma outra região: a área já não era delimitada e

passavam diariamente pelos locais trabalhadores de todo tipo, como empresários, transeun-

tes e turistas. A organização, desta vez, optou por tematizar a imprevisibilidade do caos

urbano e questões relacionadas à saturação e à verticalidade. Da medida do indivíduo,

passou-se, portanto, à medida dos prédios: “(...) trata-se de enfatizar não mais a decadência

‘paleotécnica’ das cidades fuliginosas e soturnas de antigamente, e sim a fluidez tecno-

lógica, a ‘inabarcabilidade’ que há na experiência urbana contemporânea” (Coelho, 2002c).

Então, mais do que a efemeridade das obras, aqui os organizadores enfatizaram a

fugacidade, ressaltando as características grandiosas da “cidade que nunca pára”, até

mesmo na proposta de um circuito multipartido: “Inúmeros caminhos são possíveis; não se

pode estabelecer um itinerário privilegiado, um guia para visitação” (Peixoto, 2002e:64).

Algumas obras também incorporaram essa dinâmica. Guto Lacaz, por exemplo, instalou um

periscópio de 28 m de altura no topo do prédio da Eletropaulo, que o ligava da rua ao

22 Depois do Arte/Cidade e da revitalização do centro, o edifício abrigou por algum tempo festas eletrônicas – aproveitando a desocupação tanto do prédio como do centro – e outras atividades que se instalam temporariamente, como comitês de campanhas eleitorais. Embora a lanchonete Guanabara permaneça no local, com um público menos célebre – formado especialmente por trabalhadores e estudantes –, pouquíssimos estabelecimentos resistem no edifício, segundo seus funcionários e comerciantes da área, com destaque para um restaurante a quilo, que tem grande freqüência na hora do almoço.

41

quinto andar do edifício. Então, por meio desse aparelho ótico, os transeuntes podiam ver

as pessoas que estavam no prédio e os visitantes podiam ver a movimentação das ruas (ver

imagem na página 152), o que produzia variadas tentativas de comunicação entre as

pessoas localizadas nos diferentes ambientes (cf. Coelho, 2002c).

Por outro lado, alguns críticos apontam que as dimensões urbanas teriam dificultado

a locomoção do público (Lagnado, 2002:276) e inibido os trabalhos realizados. Além disso,

foi criticado um fetichismo tecnológico e o ritmo imposto às obras, que, em alguns casos,

teriam contribuído para acelerar ainda mais o fluxo: “(...) os artistas que mais se deram bem

foram aqueles que resistiram à aceleração imposta pelo ambiente” (Mammi, 2002:274). O

próprio Ricardo Ohtake acredita que a segunda edição tenha crescido um pouco além do

necessário (entrevista realizada em 08/2005). Já Nelson Brissac destaca que, ainda assim, o

Arte/Cidade 2 foi uma “revolução” na cidade de São Paulo, porque, apesar de o centro ser

muito movimentado, só os trabalhadores estavam acostumados a passar pela região e

realizar um projeto nesse contexto seria um convite para que outro tipo de público passasse

a freqüentá-la (entrevista realizada em 10/2005).

Portanto, aqui já se percebe o início de um processo de contaminação de repertórios:

se na primeira edição o mais importante era criar coletivamente fora dos espaços

museológicos, aqui os discursos passam a ressaltar questões também sobre o deslocamento

de um público para uma região pouco explorada por ele, o que indica um menor

comprometimento com os discursos exclusivamente relacionados à criação artística.

2.4. A cidade e suas histórias

Três anos depois das duas primeiras experiências, nos meses de outubro a novembro

de 1997, foi realizada a terceira edição do Arte/Cidade. A demora para o tempo de gestação

desse Arte/Cidade 3, cujo subtítulo era A cidade e suas histórias, deveu-se, em primeiro

lugar, ao final da gestão de Fleury Filho e, conseqüentemente, da secretaria chefiada por

Ricardo Ohtake. Sem o apoio institucional dos primeiros eventos, formou-se o Grupo de

Intervenção Urbana, uma associação independente de pessoas que haviam ou não

participado dos projetos anteriores, constituída para desenvolver as edições seguintes. De

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acordo com Brissac, que liderava o grupo, as condições de preparação tornaram-se difíceis,

porque não havia fonte de sustentação financeira para os encontros.

Esse grupo não tem condição nenhuma de sobreviver entre projetos. Ninguém financia no Brasil preparação de coisa alguma. Então, o grande problema do Arte/Cidade é que ele volta à estaca zero, depois de finalizada cada edição. Não tem como manter uma organização, não tem mais como se manter um escritório, não tem mais como se pagar pessoas (entrevista realizada em 04/2005).

Mais ainda, a terceira edição foi tomando vultos cada vez maiores, o que acabou

retardando o processo de produção. Pela primeira vez, foram necessárias obras de

engenharia complexas; pela primeira vez, houve preocupações especificamente urbanísticas

e arquitetônicas; e, pela primeira vez, o projeto suscitou tamanha polêmica. No artigo

“Grandes escalas”, que Nelson Brissac Peixoto escreveu para o Arte/Cidade 3, ele coloca

que a situação proposta relacionava-se à questão de uma intervenção urbana que tratasse

das escalas astronômicas – e metropolitanas – de tempo e espaço (2002b:184). Às reflexões

sobre a fragmentação do tecido urbano e a difícil apreensão dos espaços contíguos, somam-

se referências a observações mediadas de grandes escalas, como por radares e satélites, a

obras de land art e a projetos arquitetônicos que enfatizam as medidas não humanas.

Portanto, embora o subtítulo dessa terceira edição fosse A cidade e suas histórias e os

locais remetessem ao período fabril de São Paulo, o objetivo era mais relacionar

temporalidades diversas, fazendo novas leituras dos circuitos de transporte e comunicação,

do que reconstituir antigas tramas. Então, além da efemeridade e da fugacidade, a

magnitude passa a constituir o repertório do evento, no que se enquadra a escala das

próprias negociações, que envolveu órgãos públicos e modificou, em alguns casos, o dia-a-

dia dos habitantes da cidade. Ricardo Ohtake, que já não era secretário, mas que afirma ter

participado ativamente da concepção dessa edição, contou que houve uma ampla

transformação nos procedimentos preparatórios ao evento, com relação aos anteriores:

O terceiro foi uma empreitada violenta, teve que se recuperar trens, teve que se mudar todo o sistema, tiveram que fazer um horário todo especial, o pessoal que pegava trem para o subúrbio teve que mudar de plataforma... Aí foi realmente uma coisa impressionante (entrevista realizada em 08/2005).

43

Assim como na edição anterior, foram selecionados três locais da região central para

sediar o evento, só que, neste caso, todos os empecilhos e atrativos confluíam em torno de

uma grande novidade: o percurso seria feito por meio de uma linha de trem. O processo de

reativação de linhas ferroviárias foi o mais complicado de todos os entraves do projeto até

então, já que intensos estudos sobre as possibilidades de uso e de trajeto dos trens, bem

como dos locais de exibição, passaram a ser feitos desde o ano de 1995. O primeiro passo,

afirma Brissac, foi uma reunião de apresentação do projeto para a Companhia Paulista de

Transportes Metropolitanos – CPTM. Imediatamente, os diretores teriam vetado a idéia,

alegando que os trilhos que queriam reativar – onde funcionaram as indústrias Matarazzo –

não existiam mais. Após muita insistência, foram juntos ao local:

Nós insistimos muito e eles fizeram um passeio, saíram com a gente do escritório para ir lá na região ver como era. O argumento principal dos caras para vetar o projeto era que os trilhos não existiam mais. A gente chegou lá, naquele matagal danado e eles: “Tá vendo o que a gente falou!” (entrevista realizada em 04/2005).

Segundo o curador, os executivos só cederam aos apelos do grupo porque

casualmente estava no local um ex-maquinista da ferrovia, que ouvira a conversa e dissera

não apenas que os trilhos ainda existiam, como apontara exatamente onde se encontravam.

Outro complicador era o fato de que atuavam na região mais duas companhias ferroviárias:

a Fepasa – Ferrovia Paulista S.A. e a RFFSA – Rede Ferroviária Federal S.A. Ao final,

conseguiu-se integrar o Arte/Cidade a projetos urbanísticos, como o Projeto Integração

Centro e a Operação Urbana Água Branca23, preocupados com as novas possibilidades de

ocupação daquela área.

A primeira alternativa imaginada para a saída do trem – a Estação Júlio Prestes – foi

abolida, assim como dois trajetos de saída da Estação da Luz. Logo depois, “descobriu-se

um travessão em desuso próximo ao viaduto Pompéia” (Peixoto, 2002e:126), que poderia

se adequar às necessidades do projeto, se fossem realizadas as seguintes reformas: a

23 Realizado pelo Governo do Estado de São Paulo, o Projeto Integração Centro foi iniciado em 2001 e tinha como objetivo principal reformar e adaptar as estações Brás, Luz e Barra Funda, incluindo integrações entre trens e linhas de metrô que confluíam nessas áreas (cf. <www.cptm.com.br>); já a Operação Urbana Água Branca era um projeto da Prefeitura de São Paulo, com a participação da iniciativa privada, para valorizar essa região a partir de ações que intencionavam, entre outros, criar condições de transporte, comércio e moradia para adensar as movimentações da área (cf. <portal.prefeitura.sp.gov.br>).

44

reabilitação de uma via permanente, a construção de plataformas e a revisão do sistema de

sinalização das linhas utilizadas. Nesse circuito, o trem teria que realizar um percurso “em

leque”, com uma série de desvios, para passar pelos locais onde ocorreriam as intervenções.

No entanto, os altos custos fizeram com que a proposta fosse alterada e a circulação foi

efetuada a partir de uma via já ativa, com um sentido único (2002:126-131). Só no ano de

1997 o circuito foi aprovado e, então, realizou-se o evento, que contou com 35 convidados.

Desta vez, não apenas artistas, mas também arquitetos passaram a apresentar trabalhos

pessoais no Arte/Cidade, o que chegou a ser bastante criticado pela imprensa, como será

colocado adiante. Os novamente três diferentes lugares de intervenção poderiam ser

visitados aos domingos, das 11h às 21h.

O ponto de partida dos trens acabou sendo a Estação da Luz, um dos grandes

marcos da pujança cafeeira de São Paulo no início do século XX, já que fazia a ponte entre

Jundiaí e Santos, por onde o café era exportado (ver imagens na página 154). À época do

Arte/Cidade, a região já estava tomada pelo processo de sucateamento que foi

gradativamente mudando as características de seu entorno, ocupado cada vez mais por

mendigos, prostitutas e camelôs24. O primeiro lugar de intervenções do evento não era, no

entanto, a Estação, e sim o próprio trem. Os vagões cedidos pela Fepasa – que estavam em

desuso na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo – passaram por um processo de

pintura que os assemelhara ao projeto da vanguarda artística russa na década de 20 do

século passado25. Nesse projeto do trem, foram apropriadas influências construtivistas e

outras experiências russas, como o kinotrem e o cinetrem26, para aludir ao período

industrial de São Paulo (Peixoto, 2002e:138). Então, uma equipe de filmagem registrou

avenidas, muros, cercas, pontes, vias engarrafadas, além de construções fabris, casarões que

24 Atualmente, a área vem passando por sucessivas tentativas de “saneamento” e restauro, como a reforma executada desde 2003 nas partes interna e externa e as obras de conexão com o Metrô. Incluem-se também nesse movimento o Jardim da Luz e as obras que transformaram a fachada da Pinacoteca, ao lado da Estação, convocando os turistas a voltarem ao local. Em março deste ano, foi inaugurado o Museu da Língua Portuguesa Estação da Luz, sobre a língua portuguesa falada no Brasil e suas influências – um projeto de R$ 36 milhões, com apoio do poder público e de algumas das maiores empresas do país, como a Fundação Roberto Marinho, a IBM Brasil, a TV Globo, a Petrobras e a Vivo. 25 “No período da revolução, entre os anos 1919 e 1920, a vanguarda artística russa usou trens para difundir entre a população a arte e novos produtos da indústria. Essas composições ferroviárias, chamadas de ‘trens culturais e de instrução’, tinham os vagões pintados pelo lado externo, transformando-se em exposições ambulantes através do campo e das cidades” (Peixoto, 2002:137). 26 Empreitadas russas que funcionaram nos anos 30, não apenas registrando e veiculando imagens do interior do país, mas influenciando a cultura visual e política daquela população.

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viraram hotéis, ambulantes, centros religiosos de variadas práticas, estabelecimentos de

toda ordem e personagens diversos, para apresentar o resultado dentro dos vagões

(Bambozzi, 2002:149). Editados, os filmes que passavam no trem forneciam informações

sobre o evento.

O segundo local de intervenção foi o Moinho Central, um prédio de seis andares

entre os bairros de Campos Elíseos, Barra Funda e Bom Retiro – numa área conhecida pelo

seu intenso comércio atacadista. Segundo o catálogo do Arte/Cidade (cf. Peixoto, 2002e), o

Moinho Central foi inaugurado em 1949, como propriedade do Moinho Fluminense da

Santista S.A. Além de sua grande capacidade de moagem, chegou a construir uma fábrica

de massas alimentícias na década de 50, que foi desativada nos anos 80, passando para o

controle da Rede Ferroviária Federal. “As melhores farinhas”, lê-se em sua fachada (ver

imagem na página 155). Para o Arte/Cidade, houve uma limpeza intensa do material

sucateado, das pichações e do lixo que inundavam a área:

...a área recebeu uma limpeza cuidadosa, abertura de locais que haviam sido fechados e construção de piso elevado para embutir a nova tubulação, provisória. (...) Os vários vãos entre os andares foram fechados com grades de proteção, que garantem segurança sem eliminar a visibilidade (Peixoto, 2002e:175).

Foram também reativadas as escadas das torres da edificação, que permitiam que os

visitantes não apenas tivessem acesso aos andares superiores como percebessem as

dimensões da área ocupada (2002b:188)27. Os trabalhos acabaram, em sua maioria,

27 Depois do Arte/Cidade, o Moinho Central continuou completamente abandonado e assim ainda permanece, repleto de pendências judiciais que não decidem sua destinação. Três anos depois do Arte/Cidade, catadores de papel começaram a formar uma favela no local, construindo barracos de madeira, lata e papelão. Chamada de Favela do Moinho, a área hoje abriga mais de 300 famílias, que vivem sobre o pontilhão da Avenida Rio Branco, entre duas linhas de trem (Linha A, da Luz à Francisco Morato; e Linha B, da Estação Julio Prestes a Itapevi). São dois trens em cada sentido e, por esse motivo, além do barulho ensurdecedor, os moradores convivem com freqüentes mortes e atropelamentos. Para entrar no local, eles têm que passar primeiro por um portão gradeado e trancado, cujo acesso só é permitido por um funcionário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM, um representante que a empresa estabeleceu no local supostamente para evitar novas invasões (ver imagem na página 155). Mas, como é relativamente grande a distância entre o portão da rua Nothmann e o local onde permanece o “porteiro”, a maioria dos moradores prefere pular o grande muro que dá acesso às linhas de trem para chegar à favela, localizada a cerca de 300 metros dessa entrada. Em 2003, a Rede Ferroviária moveu uma ação de reintegração de posse para retirar os barracos do local, mas a situação ainda não se modificou. Nesse mesmo ano, instalou-se na área a Pastoral do Moinho, que passou a promover ações de cunho religioso-assistencialista e a favela foi “batizada” como Comunidade de Nossa Senhora Aparecida do Moinho. Também atua esporadicamente na área um grupo de arte contemporânea que tem uma lista na internet: <http://br.groups.yahoo.com/group/faveladomoinho/>. Os participantes realizam

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aproveitando as dimensões dos espaços, tomando grandes proporções. Laura Vinci, por

exemplo, utilizou dois pisos do local para construir uma espécie de ampulheta gigantesca.

O final do trajeto dessa terceira edição foi a quatro quilômetros do Moinho Central,

no que restou das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, localizadas numa área

conhecida como Água Branca. Essas fábricas representaram o primeiro grande impulso

industrial de São Paulo, na década de 20, e estavam abandonadas desde os anos 70, quando

foram destruídas quase todas as suas edificações para serem destinadas a outros fins. Imersa

na região maior da Barra Funda, essa área estava ligada inicialmente à construção de

estradas de ferro para o escoamento da produção de café, com imigrantes italianos que

trabalhavam basicamente em torno das duas estações ferroviárias da região. A crise de 29

abalou o desenvolvimento da área e dos próprios trens e proliferaram os cortiços, as

oficinas mecânicas e as pequenas fábricas, consolidando seu processo de sucateamento

industrial e residencial. Na época da realização do Arte/Cidade, o terreno estava

completamente abandonado, a vegetação cobria toda a área e foi encontrada até mesmo

uma estopa em uma das máquinas restantes. “Fechada para a cidade, apenas as chaminés

indicavam sua presença além do muro da avenida” (Peixoto, 2002e:161). Além de

consertos nos telhados e limpeza, foram ajustadas três passarelas antigas, que estavam

comprometidas, e foram feitos outros ajustes para a visitação do público, que também

poderia ter acesso ao evento pelas indústrias, fosse a pé ou de carro. As obras foram

instaladas na única construção original remanescente das antigas fábricas, a Casa das

Caldeiras – tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,

Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pelo Iphan28 (ver imagens

mostras de filmes e propõem intervenções como sinalização das áreas, construção de jardins, criação de grafites e pintura das fachadas, entre diversas manifestações heterogêneas, que chegam a incluir distribuição de algodão doce. 28 Depois do Arte/Cidade, a localização estratégica do bairro, que fica próximo às duas Marginais e ao centro comercial, somada à facilidade de transportes e a uma imensa área desocupada, transformaram a região numa das maiores promessas de expansão da cidade e não tardaram em chamar a atenção dos especuladores imobiliários. Além do Shopping West Plaza, do Memorial da América Latina (de Oscar Niemeyer), do Sesc Pompéia (de Lina Bo Bardi) e de outros equipamentos, a área foi tomada por empreendimentos comerciais e residenciais milionários, que lembram o tipo de ocupação da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. A Rede Record construiu ali uma sede e incrementaram os negócios da região ainda os recém-construídos Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães e Fórum Trabalhista de São Paulo, famosos pelo caso de superfaturamento do juiz Nicolau dos Santos Neto. Já os 100 mil m2 das Indústrias Matarazzo foram adquiridos pela empresa Ricci e Associados, que transformou o terreno em um megacomplexo empresarial, constituído por quatro torres de 20 andares. A Casa das Caldeiras é parte desse empreendimento e tornou-se um local de eventos em 1999, com capacidade para 1.232 pessoas, utilizado principalmente para festas

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na página 156). Lá estavam trabalhos como a videoinstalação de Lucas Bambozzi, em que

mostrava cenas de violência e acidentes de trânsito filmadas em São Paulo, a partir de

televisões instaladas nos buracos do chão, ou o imenso trabalho de terraplanagem, de 300 m

de comprimento por 20 m de largura, construído pelos arquitetos Fernando de Mello Franco

e Milton Braga e localizado no terreno vazio ao lado da Casa das Caldeiras.

Então, tamanhas foram as mudanças do projeto que variados trabalhos passaram não

apenas a ser realizados por arquitetos, mas também a usar um repertório arquitetônico, em

uma escala que pouco fazia lembrar as duas edições anteriores. Ilustrativo dessa situação

foi o trabalho de Elísio Yamada, Paula Santoro e Renata Motta. Esses arquitetos tinham

como objetivo produzir intervenções significativas nessa escala urbana e usaram como

referencial o sol, “o extremo da escala monumental”29. Nas passarelas reconstruídas para o

evento, localizadas nas indústrias Matarazzo, e nas torres reativadas do Moinho, criaram

estruturas retangulares para essas construções, cobrindo-as com lonas vermelhas – o que

demandou desligamentos da rede elétrica na parte da madrugada, para não comprometer o

sistema de transportes. Os viadutos Pompéia, Antártica, Pacaembu, Engenheiro Orlando

Murgel e Couto de Magalhães, incluídos na área de 5 km que abarcava o projeto, sofreram

alterações no mesmo sentido: foram projetadas e pintadas nesses locais manchas vermelhas,

pensadas como marcações urbanas, e usadas as mesmas lonas vinílicas nas vias para

produzir o efeito de torção desejado. Para tanto, foi necessário que se reunissem diversas

vezes com a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, que estudava um modo de evitar

que as manchas causassem acidentes. Uma vez aprovado o projeto, foram fixadas peças

metálicas e pontos de apoio na estrutura de concreto dos viadutos para que se sustentassem

as lonas (Motta, Santoro, Yamada, 2002:191-201).

promocionais (ver imagens na página 156). Como iniciativa do marketing empresarial, o grande atrativo do local é a recuperação do espaço histórico em que se encontra, usando também o mesmo nome como chamariz. Alude-se, desse modo, à memória de um dos grandes pioneiros de São Paulo, que sedimentou a capacidade industrial da cidade para capitalizar o investimento empresarial. Segundo o sítio da casa de festas, “Os primeiros eventos já mostraram entender muito bem a proposta do espaço, todos muito bem produzidos, eventos de grandes empresas que souberam aproveitar o inusitado, o componente histórico e cultural, o conceito de reciclagem, os contrastes: do novo/antigo, do rústico/moderno/sofisticado, da máquina/homem” (cf. <www.casadascaldeiras.com.br>). 29 “O eixo que desloca os pontos da intervenção é definido pelo grau de deslocamento da posição do sol em relação ao norte geográfico, em São Paulo, na data do início do evento. Essa angulação determina um desenho e uma área de sombra que serão rebatidos na mancha sobreposta aos viadutos e passarelas, gerando a torção pretendida” (Motta, Santoro, Yamada, 2002:191).

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Essas novas dimensões do Arte/Cidade, que passou a ser invadido por problemas

urbanos, sociais e políticos de outra ordem que não a das exposições de arte, dividiu a

opinião dos críticos. Por um lado, foi elogiada a iniciativa do evento de trazer à tona a

“visão de uma cidade morta nas entranhas da cidade atual” (Mammi, 2002:281). O projeto

também foi considerado superior a outras megaexposições realizadas na mesma época,

como o Projeto de Escultura (Münster), a Bienal de História e Geografia (Joanesburgo) e a

In Site (San Diego e Tijuana) (Pedrosa, 2002:279). Em contrapartida, acusou-se a curadoria

de ter sido demasiadamente aberta (Andreoli, Santos, 2002:292) e de não ter conseguido

articular os projetos aos locais e cenários propostos, o que fez com que as questões

colocadas por Brissac atingissem as obras apenas superficialmente (Pedrosa, 2002:279).

Nesse sentido, o espaço teria sido tratado de maneira formalista em muitos casos,

principalmente pela maneira como os arquitetos convidados contribuíram para o projeto:

“(...) é incrível que os arquitetos tenham optado pela arte/design em vez de enfrentar o

tema cidade de um modo mais inventivo, e dentro de seu próprio campo profissional”

(Andreoli, Santos, 2002:292). Outras opiniões foram no sentido inverso, acusando uma

tendência de o projeto ter cada vez mais se imposto sobre as obras individuais, estreitando o

espaço de manobra dos artistas:

O problema do Arte/Cidade 3, enquanto exposição de arte, não é a falta de boas obras (há algumas, embora não muitas, e pelo menos duas bastante significativas): o problema é que, se as obras fossem outras, o significado da exposição seria mais ou menos o mesmo (Mammi, 2002:281).

Identifica-se, portanto, nessas críticas o desconforto com um embate mais efetivo

entre os dois termos que dão nome ao projeto, seja para o lado da arte – “o naufrágio da

obra diante do meio” (Coelho, 2002a:278) –, seja para o lado da cidade – “os artistas,

arquitetos e curadores parecem ter adotado uma posição conservadora ao manter a primazia

da arte sobre a cidade” (Andreoli, Santos, 2002:292). Se houve uma miscelânea de campos,

que estava sendo duramente contestada, um pano de fundo unia todos as faces desse debate:

o desmesurado crescimento do projeto Arte/Cidade.

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2.5. BrásMitte ou quase um Arte/Cidade(s)

Já em 1996, antes da realização do Arte/Cidade 3, começava-se a equacionar a

quarta edição do Arte/Cidade. Em julho daquele ano brasileiros, alemães e suíços

participaram do ciclo de debates Intervenções em Megacidades, promovido pelo Instituto

Goethe, para discutir as características do futuro evento. Inicialmente planejado com o

título de BrásMitte, tinha como finalidade produzir intervenções tanto na zona leste de São

Paulo como no bairro de Mitte, em Berlim, também na parte leste dessa cidade. Segundo os

organizadores, tratava-se de uma tentativa de articular tanto os espaços fragmentados no

interior de cada uma dessas duas cidades como, a partir da ampliação da escala proposta,

estimular uma reflexão sobre elas. Portanto, planejava-se mais uma vez trabalhar em uma

larga escala, mas que, neste caso, escaparia de maneira inevitável à apreensão humana. As

distâncias, diziam, seriam superadas com o uso de tecnologias que permitissem o

acompanhamento dos eventos simultâneos nas duas cidades, como internet e rádio. Em

termos gerais, o projeto apontava os seguintes objetivos:

1. Criação de um grupo de trabalho, com alemães e brasileiros, para fazer um intenso

levantamento de informações e imagens.

2. Reunião em cada cidade de grupos de criadores, visitando os locais e realizando

workshops binacionais.

3. Acompanhamento do grupo da outra cidade, provendo “o maior número possível de

interfaces”.

4. Registro multimídia do evento (Peixoto, 1997:25-26).

Como resultado, seriam propostos mapas diferentes das duas cidades, que

incorporariam novos caminhos e antigas trilhas, por meio de relações entre os espaços

urbanos dos dois bairros (Peixoto, 1997:25-26). Nesse sentido, diferentemente das três

primeiras edições, a atuação não se daria em lugares específicos, mas em uma região

inteira, “compreendendo os elementos urbanos, arquitetônicos e sociais existentes, os

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sistemas de transporte e comunicação ali implantados e, sobretudo, as operações e projetos

urbanos, arquitetônicos e artísticos previstos ou em andamento na região” (Peixoto, 1997).

Questões diretamente políticas seriam tematizadas, como a globalização, os processos de

desindustrialização e abandono, as populações de rua, os camelôs e as favelas.

De acordo com a arquiteta Regina Prosperi Meyer, que contribuiu para articular as

pesquisas do Arte/Cidade na zona leste, embora as duas cidades fossem completamente

diferentes, o interessante do projeto seria tentar estabelecer aproximações entre elas, tanto a

partir de uma busca dos elementos universais e generalizáveis presentes na estrutura urbana

das cidades, como pelo rastreamento de elementos específicos (1997:70):

(...) acredito que a possibilidade de apontar determinados “lugares” e estabelecer analogias entre eles é um método de trabalho de grande interesse, pois introduz uma brecha no interior das diferenças, abre a possibilidade de entender um todo distinto – São Paulo e Berlim – a partir de paralelismos e semelhanças (1997:72).

A região de Mitte, na parte central de Berlim, tem cerca de 10 km2. Nos anos 20, era

uma região internacional, onde se concentrava a cultura de vanguarda, mas a Segunda

Guerra transformou-a numa área repleta de ruínas e degradação e a queda do Muro

evidenciou a necessidade de sua reestruturação, o que se tornou uma das principais metas

políticas da Alemanha. Na década de 90, a região ainda guardava seus galpões e pátios

vazios, que se transformaram em boates e clubes undergrounds. Mas, com os bilhões de

marcos – e euros – injetados na sua recuperação, o bairro se transformou num pólo cultural,

comercial e gastronômico, que abriga galerias de arte, museus, estúdios e sedia diversos

festivais (cf. Carvalho, 2000).

Já o Brás foi o primeiro bairro partindo do centro de São Paulo em direção ao leste,

que evidencia o processo irracional do crescimento periférico de São Paulo e a transfor-

mação de cidade pacata em proto-metrópole (Meyer, 1997:89-90). “O Brás fica numa

posição, no contexto de São Paulo, a partir da qual a história desse crescimento ultra-

rápido, num ritmo dramático e numa escala catastrófica, pode ser visto praticamente de

camarote” (Sevcenko, 1997:60). Ocupada desde o século XIX, principalmente pela

imigração italiana e posteriormente pelos migrantes do Norte e do Nordeste, registrava os

maiores índices de crescimento da cidade e concentrava grande parte da força de trabalho

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do setor têxtil. Além das fábricas, abrigava hospedarias e pensões, mercados populares,

cemitérios e o gasômetro da cidade (Sevcenko, 1997:64). As novas zonas industriais e as

mudanças na produção ocasionaram tanto uma migração das indústrias para o interior como

um declínio populacional no bairro a partir dos anos 40, o que se agravou com a construção

da Radial Leste em 1957, que separou os bairros do Brás e da Mooca, e do metrô nos anos

70, que implicou a demolição de 900 imóveis. Esse metrô, por sinal, “é o principal entron-

camento urbano e interurbano ferroviário da cidade através da sua estação” (Sevcenko,

1997:63), o que intensifica as características locais de grande mobilidade e de área de

passagem. Além disso, convivem no Brás ritos africanos, uma Igreja Universal do Reino de

Deus e igrejas carismáticas católicas. Na década de 90, embora a prefeita Luiza Erundina

(então do PT) tenha transferido a sede da Prefeitura de São Paulo do Ibirapuera para o Brás,

a iniciativa pouco mudou a região, já decadente, abandonada e tomada pela criminalidade.

Então, além dos motivos já mencionados, como o fato de se localizarem na parte

leste das áreas centrais de duas grandes metrópoles mundiais, Brissac acredita que esses

bairros se aproximariam por seus processos de degradação:

Brás (SP) e Mitte (Berlim) são áreas com algumas características similares. Afetadas por processos contínuos de decadência e renovação urbana, por um desenvolvimento econômico desigual, por cataclismos políticos e por mudanças populacionais bruscas e reiteradas, essas regiões apresentam uma profunda dilaceração do tecido urbano e social. Rios, muros, autopistas, linhas de trem, espaços vazios, grandes canteiros de obras e áreas industriais funcionam como barreiras, afastando essas áreas do restante da cidade (Peixoto, 1997:22).

Para ele, ambas seriam compostas por terrenos baldios, áreas desocupadas,

composições arquitetônicas desequilibradas e ocupações inusitadas, gerando tensões entre o

passado e o futuro. Regina Meyer colocou ainda que as duas cidades chegaram ao final do

século XX com uma questão comum: “reparar a cidade, desfazer as marcas de processos

violentos de apropriação do espaço urbano” (1997:87).

No ciclo de debates realizado no Instituto Goethe, as grandes atrações do evento

foram urbanistas, arquitetos e artistas estrangeiros, como Vito Acconci, Krystof Wodiczko,

Rem Koolhaas e Antoni Muntadas, que estiveram nas áreas da zona leste de São Paulo

52

“recolhendo material” e apresentaram propostas de intervenção a partir de diálogos

estabelecidos com a equipe do Arte/Cidade.

Mas, apesar desse ciclo de debates, do catálogo e das intensas pesquisas que vinham

sendo feitas, incluindo viagens de artistas e organizadores a Berlim, o projeto foi em parte

abortado, mais especificamente na parte do Mitte. Ohtake fala que esse resultado deveu-se

à distância e às complicações decorrentes dela; Brissac alega que houve um desinteresse

repentino do Instituto Goethe, o principal patrocinador da empreitada; José Resende, que

chegou a ir a Berlim, falou que os alemães começaram a entender que a ação teria relação

com a especulação imobiliária daquela cidade e que não queriam se vincular a esse tipo de

projeto. Além disso, todos concordam que a rapidez da reestruturação de Berlim acentuou

as diferenças entre as cidades. Enquanto empreiteiras e grandes empresas vinham criando

um novo Mitte, o Brás estava passando por processo oposto, com desinvestimento

generalizado e conseqüente sucateamento.

No livro Cidade dos homens (2002), a socióloga Barbara Freitag já alertara sobre o

perigo da comparação entre as duas cidades dentro do projeto. Segundo a autora, que vivia

na Alemanha quando escreveu o texto, confundiam-se os sentidos de diferentes ruínas,

tentando associar realidades diversas. “Como comparar duas grandezas incomparáveis,

duas histórias inconciliáveis de uma metrópole européia e outra de origem colonial

portuguesa?”, questionava (2002:168). Enquanto o projeto tentava caracterizar escombros

produzidos em todos os tempos como conseqüência inevitável de superação de um modo de

produção por outro, resultado da falência de certas tecnologias, as ruínas alemães não eram,

para Freitag, sucatas quaisquer, mas sim resquícios vivos da Guerra. “As ruínas eram o

efeito imediato e irreparável de um bombardeio aéreo ou de uma conquista da cidade por

um exército forte e bem equipado, como o Exército Vermelho Russo, que tomou Berlim e

ocupou parte da cidade por mais de meio século” (Freitag, 2002:167). Mais do que isso, a

autora acreditava que a impossibilidade de comparação entre essas grandezas relacionava-

se às próprias características das cidades: enquanto Berlim era uma metrópole, São Paulo

era uma megalópole30. Por esses motivos, na opinião de Freitag, a tentativa de superação

30 Segundo Freitag, haveria uma diferença qualitativa e quantitativa entre metrópole e megalópole. Localizadas principalmente no hemisfério sul, as megalópoles teriam, entre outras, as seguintes características: população de 10 milhões de habitantes ou mais; crescimento mais vertiginoso nas décadas de

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desse hiato entre as duas áreas específicas corria o risco de cair numa politização da arte ou

numa estetização da política.

Então, apesar de todos os intercâmbios, em que uma equipe alemã veio para o Brasil

e outra brasileira foi para a Alemanha, para avaliar as possibilidades de condução do

projeto, decidiu-se realizar apenas a parte relativa ao Brás, o que aconteceu no ano de 2002. Como afirmou o próprio Brissac, durante entrevista, o BrásMitte foi “um delírio” que

serviu mais como gancho para o Arte/Cidade 4. Nesse sentido, muitas das pesquisas

realizadas para sua concretização foram o ponto de partida para os trabalhos dessa edição –

assim como intenções e práticas não foram integralmente abandonadas, mas preferen-

cialmente reaproveitadas. Da mesma maneira, muitos dos personagens envolvidos na

produção do BrásMitte participaram da quarta edição do Arte/Cidade – outros, como

Ricardo Ohtake, afastaram-se do projeto. Portanto, ainda que não tenha se concretizado,

essa não-edição introduziu uma nova categoria no repertório do Arte/Cidade, que foi

incorporada mais adiante: o cosmopolitismo como via de aproximação de diferentes sítios.

Seria possível, então, conciliar localismos e especificidades regionais com os traços

generalistas de uma cultura mundial?

2.6. Artecidadezonaleste

O BrásMitte acabou não se concretizando, mas muitas de suas preocupações e

referências acabaram se incorporando ao chamado Artecidadezonaleste, a quarta edição do

projeto, que foi realizada no ano de 2002. Depois de uma série de adiamentos, o evento

abriu no dia 16 de março, data em que alguns dos 27 trabalhos apresentados ainda não

estavam prontos, e foi encerrado em 5 de maio. Enquanto a 25ª Bienal de São Paulo

problematizava a relação entre as metrópoles e o campo da arte nos três andares do

Pavilhão Ciccillo Matarazzo, localizado no parque do Ibirapuera31, as intervenções do

Arte/Cidade espalharam-se por diversos pontos do Brás. Segundo Nicolau Sevcenko

(1997:60), essa região comporta um contexto bem maior, envolvendo outros bairros, como

70, 80 e 90; explosão devido à confluência de populações de variadas origens; imigração mais ou menos descontrolada; composição por uma grande variedade de subculturas; e contrastes radicais (2002:109). 31 Com o tema “Iconografias metropolitanas”, a 25ª Bienal foi realizada de 23 de março – mesmo mês de abertura do Artecidadezonaleste, a 2 de junho de 2002. A curadoria da representação brasileira foi de Agnaldo Farias, ex-curador do Arte/Cidade.

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Belém, Tatuapé, Pari, Bela Vista e Cambuci. Ao final, as intervenções espalharam-se por

uma área total de cerca de 10 km2, caracterizada especialmente por um desenvolvimento

relacionado à expansão do centro tradicional e do cinturão ferroviário-industrial, que foi

segregando a população de renda mais baixa (Campos, 2004). Inicialmente constituída por

um movimento de intensa industrialização, a zona leste foi, décadas mais tarde, abandonada

e esvaziada. Portanto, potencializando uma tendência que já se identificava em edições

anteriores, esta se propunha – na voz de seus organizadores – a tematizar frontalmente

certas questões urbanas relacionadas à região e a São Paulo, estimulando levantamentos

que tivessem em conta a exclusão social e as transformações causadas pela globalização

das cidades e das artes.

Naquela situação, a questão era o efeito desagregador que esses processos tiveram na cidade, com a desindustrialização, a generalização da economia informal, a favelização da região. (...) Então, o projeto tinha um viés de trabalhar as alternativas existentes ali, trabalhar com as populações presentes naquela cidade. O foco foi muito os movimentos informais, as populações sem teto, os camelôs, o lado desagregado da região (Brissac, entrevista realizada em 10/2005).

Percebe-se, então, que desta vez o discurso de Brissac a respeito das intenções

principais do evento não ressaltava o estímulo a uma nova postura do artista e dos

movimentos de criação coletiva, ou o deslocamento do público de arte contemporânea de

seus locais habituais, ou ainda o re-conhecimento de trajetos históricos da cidade, mas sim

o trabalho com “as alternativas existentes”, ou seja, uma intervenção direta na vida das

populações locais. Essas propostas acabaram se sobrepondo, mas é interessante observar

como muitos trabalhos acabaram indo ao encontro dessas novas intenções.

Essa edição contou com patrocinadores como a Petrobras e com cerca de cem

pessoas na montagem das obras32. Outro importante apoio foi o do Sesc-São Paulo, que

ofereceu os galpões do Sesc Belenzinho – localizado no terreno de 32 mil m2, onde

funcionara uma fábrica de tecidos –, que seria reformado, como parte de um amplo

movimento de investimentos na área (ver imagens na página 161). Na chamada torre leste,

realizaram-se 12 trabalhos do Arte/Cidade, como o neon de 25 metros de comprimento e 2

32 Na imprensa, foi dito que o patrocínio teria chegado a R$ 2,5 milhões (Amaral, 2002), o que não foi confirmado pelos organizadores entrevistados.

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metros de largura que Carmela Gross atravessou nas janelas do segundo andar, com a

inscrição “Eu sou Dolores” – uma alusão a seu verdadeiro nome. Já Waltércio Caldas

montou, no terceiro andar, uma espécie de auditório, com 250 cadeiras. Além de ouvir os

sons ambientes de platéias, as pessoas que se sentassem veriam ser impressa em cima delas

a palavra “figura”, de maneira invertida. Em frente à única janela desse local, para onde se

voltavam as cadeiras, foi colocada uma tela de nylon com a mesma palavra “figura”,

também invertida – o sentido correto só era visto por quem estava na rua. Nelson Felix foi

outro que realizou uma obra no Sesc Belenzinho, chamada Pilar, em que cortou um dos

pilares de sustentação do edifício (ver estudo de caso).

Mas a maioria dos trabalhos estava espalhada por grande parte da zona leste. Para

encontrar os locais de intervenção, a equipe distribuiu um mapa da região cuja base era de

1887. Embora as vias mais recentes estivessem localizadas em azul, isso fez com que os

visitantes se confundissem e muitos acabaram se perdendo. “Foi uma operação para

evidenciar a complexidade de se localizar numa cidade grande e perceber como é

complicado andar na zona leste de São Paulo”, afirma Brissac (entrevista realizada em

04/2005). Como mencionei na introdução, ainda que munida de um mapa atual e bem

estudado, eu mesma acabei me perdendo na região. De toda forma, se eu, como carioca, me

perdi, oferecer um mapa do século XIX para que os visitantes paulistanos se aproximassem

de uma região no cerne da própria cidade fez sobressair uma sensação de estranhamento, tal

como se a zona leste fosse realmente desconhecida. Portanto, pressupunha-se ou que o

público não conhecia a zona leste – e que deveria também experimentá-la – ou que todos

eram igualmente estrangeiros dentro da sua própria realidade.

Quanto à equipe, somou-se à coordenação do evento, ao lado de Brissac, o

engenheiro Ary Perez. No Arte/Cidade 3, ele passou a trabalhar como uma espécie de

consultor do evento, depois de ter sido convidado pelo artista Nelson Felix para ajudá-lo na

execução de seu projeto Laje (ver estudo de caso). Na quarta edição, além de atuar na

realização dos trabalhos, Perez passou a colaborar também na concepção deles – o que

acabou modificando a percepção das escalas necessárias para a elaboração das obras:

O meu papel era radicalizar todos os conceitos, limpar os conceitos. “Vamos tentar ficar em idéias que sejam fundamentais. (...) se é para fazer uma intervenção na praça, vamos ocupá-la ao máximo. Porque tem um pressuposto de que, quando você trabalha numa escala urbana, a

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intervenção tem que estar acompanhada por uma escala condizente com a escala urbana, senão ela não é percebida. Não adianta fazer uma intervençãozinha assim e jogar na calçada. Ninguém percebe e aquilo não chega a contaminar o tecido urbano (entrevista realizada em 10/2005).

Na opinião do engenheiro, embora o projeto fosse grande, na escala urbana era

mínima a sua influência. Portanto, defendia um tipo de intervenção que considerava

próximo ao da acupuntura: “tem que tocar num ponto que consiga provocar reações das

pessoas naquela região, mexer com os fluxos existentes, o senso prático, trânsito (...). Tem

que ser real, senão, não funciona, senão, ele não é percebido como uma interferência”

(entrevista realizada em 08/2005). Além de ampliar as possibilidades de magnitude das

obras, a inserção mais ativa de Perez no processo de produção acabou por traduzir na

concepção de muitas obras os tipos de relação que já se mostravam em seu trabalho de

engenharia – como negociações para conseguir autorizações formais de órgãos públicos e

negociações para conseguir autorizações informais da própria população, que, segundo o

próprio, pode expelir um trabalho que não a satisfaça.

Quando eu percebi uma coisa assim, a cidade, todo o espaço urbano tem vários donos: você tem os donos oficiais, você tem os donos de direito, os donos de fato... Então, você tem que negociar com todos. Faz parte do trabalho de intervenção urbana ter que negociar com todos os donos. (...) Essa negociação é que vai dar a integridade do trabalho, porque, se o cara [refere-se aos habitantes das áreas em que são feitas as intervenções] não gostar, também não sai. Não pode ser uma coisa que vá na contramão. Porque, se não, não dura segundos. A cidade expele aquilo. (...) É o contrário de uma galeria, onde você faz o que quer. Na intervenção urbana, você faz aquilo que é possível, aquilo que você conseguiu negociar (entrevista realizada em 08/2005).

O artista, então, segundo Perez, deveria ser alguém responsável por criar a sua

organização e as suas condições de trabalho, um negociador com uma capacidade de

liderança para articular “parceiros urbanos”. O holandês Avery Preesman, por exemplo, fez

uma escultura de ferro pesando cinco toneladas, que seria suspensa a 20 metros de altura,

na fachada da torre do Sesc Belenzinho. Para essa estrutura ser colocada no local planejado,

foi necessário um procedimento complexo, que incluiu o desligamento de energia da região

por 12 horas e uma operação logística ampla, na qual se realizaram operações com a

companhia de transportes, com a segurança pública e com a Companhia de Engenharia de

57

Tráfego. Portanto, o repertório era explicitamente vinculado a intervenções reais, que

implicavam um posicionamento político e uma grande transformação das maneiras de ver e

lidar com a arte.

Esses trabalhos significavam uma intervenção que modificava os fluxos reais. É tudo real, não é simbólico, não é de uma forma metafórica. Você está cortando a luz, pára o trânsito, desvia, quer dizer, o cara que passa ali na região no mínimo vai ficar com raiva: “Olha o que fizeram por causa desse negócio que botaram na parede!” (entrevista realizada em 08/2005).

Portanto, essa mudança implicaria um maior comprometimento com outros campos

de atuação e uma conseqüente dependência com relação a outras estruturas políticas e

econômicas. Para Perez, esse tipo de intervenção em muitos casos se relacionou às obras

dos estrangeiros, que pela primeira vez participaram do projeto. Além da obra de Preesman,

mais 12 trabalhos dessa edição foram realizados por artistas e arquitetos de outros países,

muitos dos quais já participariam do BrásMitte. Em termos gerais, o engenheiro acredita

que a maior parte dos artistas brasileiros tenha preferido um apelo mais estético, e dos

estrangeiros, mais social – opinião que é compartilhada por críticos como Aracy Amaral

(2002). Brissac também entende que a dificuldade financeira de trazer profissionais de

outros países foi compensada pelo aprendizado oferecido às experiências do Arte/Cidade,

com a diferença de repertório entre brasileiros e estrangeiros:

Existe um ganho nisso, que é o confronto de experiências, de maneiras de ver, de repertórios técnicos totalmente distintos. Todo o mundo sai ganhando com isso, existe um intercâmbio prático que é fundamental e existe uma questão conceitual: o cara entende de outra maneira a cidade, entende de outra maneira como se relacionar com as coisas (Brissac, entrevista realizada em 04/2005).

O curador colocou que os estrangeiros contribuíram para introduzir uma visão em

grande escala porque experiências como a integração européia teriam feito com que eles

não pensassem nos processos de maneira apenas local, mas que compreendessem os

contextos mais amplos em que estavam inseridos33. Talvez por esse motivo uma outra

atividade do evento, o seminário SP Laboratório Urbano, para discutir possíveis formas de

58

ocupação das metrópoles, tenha contado com palestrantes, em sua maioria, estrangeiros.

Em abril daquele ano, Brissac reuniu no Sesc Belenzinho os holandeses Chris Dercon

(curador e crítico) e Rem Koolhaas (arquiteto), o italiano Stefano Boeri (arquiteto e

urbanista), o suíço Hans Ultrich Obrist (curador e crítico), a belga Barbara Vanderlinden

(curadora independente) e o mexicano Fernando Romero (arquiteto mexicano). Portanto, a

contar também pelas variadas nacionalidades dos palestrantes, foram valorizados nesse

momento, assim como já se apontava em BrásMitte, não apenas a figura do personagem

que intervinha diretamente na dinâmica da cidade como também um tipo de intervenção

que se construía a partir de características globais.

O polonês Krystof Wodiczko, por exemplo, decidiu construir carrinhos para

catadores de papel, que teria lateral projetada para receber propaganda institucional de

patrocinadores; cama embutida e compartimento para guardar água, comida e ração para

cachorro; painel para ser usado como sinalização de segurança; e alça para manipulação do

catador. A idéia surgiu porque o designer e arquiteto teria ficado impressionado com o

desprezo à organização desses catadores na cidade por parte das diversas prefeituras de São

Paulo, que insistiam em acabar com eles, alegando que perturbavam o trânsito (cf.

Gonçalves Filho, 2002).

Já os arquitetos holandeses Paul Meurs e Ton Matton, dos grupos Buro Schie e

Urban Fabric, propuseram transformar o terreno próximo ao antigo Cine Piratininga34 em

uma espécie de praia para os moradores dos arredores, com quadra de futebol e pistas de

skate. Encontravam-se aos domingos, durante o decorrer do Arte/Cidade, para usufruir

desse “espaço de lazer” artificial (ver imagens do local na página 159). No Pátio do Pari, o

arquiteto holandês Rem Koolhaas apresentou um projeto de elevador para o edifício São

Vito (ver imagens na página 158), um dos maiores cortiços verticais de São Paulo35, e no

33 Por outro lado, o próprio engenheiro afirma que faltava à experiência internacional uma “vivência de Brasil”, ou seja, muitos artistas estrangeiros não sabiam como levar à frente seus projetos em meio a uma organização frágil e pouca verba. 34 Com capacidade para 5.000 espectadores, o cinema funcionou no local dos anos 40 aos 70 e era conhecido como “a maior sala do Brasil”. Na época do Arte/Cidade, ainda se podia ver a fachada destruída do local, que se transformou em um estacionamento – mesma situação em que se encontra atualmente (ver imagem na página 159). 35 Com 600 quitinetes e capacidade para cerca de 1.200 habitantes, o “cortiço vertical” São Vito – ou Treme-treme, como é conhecido – é um dos símbolos da decadência e da degradação por que vem passando esse centro de São Paulo, mais à zona leste. Fica próximo ao terminal Parque D. Pedro II, um grande terminal ferroviário, de ônibus e metrô, e foi construído em 1959, com investimentos das Indústrias Matarazzo. O

59

Viaduto do Glicério, o arquiteto norte-americano Vito Acconci colocou um contêiner

transparente para moradores de rua, que incluía sala, banheiros, torneiras e tanques (ver

estudo de caso).

Mas as propostas urbanas, que se relacionavam com projetos de políticas públicas –

muitas vezes sendo apresentados até mesmo como sugestão para a prefeitura –, não se

restringiram aos estrangeiros. O grupo paulista Casa Blindada, por exemplo, apresentou

diversos trabalhos baseados nas quitinetes do “Treme-treme”, como uma “camarmário” –

móvel ironicamente projetado para os moradores do São Vito (ver imagem na página 157).

De uma maneira menos diretiva, o brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Riedweg

filmaram cerca de 30 ambulantes no camelódromo do Largo da Concórdia (ver imagens na

página 160), contando suas histórias pessoais e apresentando seus produtos. Nas barracas

dos entrevistados foram instalados aparelhos de TV e videocassetes, que mostravam essas

imagens, durante a realização do evento. Portanto, se esse trabalho não realizou um

protótipo, como outros mencionados, também operou com a possibilidade de conflagrar

processos supostamente alijados pelos habitantes. Parecia perguntar quem eram aqueles

ambulantes, cujas tensões permaneceriam obscuras para a cidade.

Buscava-se, então, criar uma indeterminação de fronteiras entre a arte e a atuação

política na cidade ou minimizar a criação artística em detrimento de processos concretos?

Ao final, nenhuma dessas propostas acabou sendo encapada pelo poder público, mas, se o

fosse, estaria ainda dentro de um circuito de arte, mesmo nos termos de uma teoria

institucional?

É notável que a grande parte dos artigos pesquisados tenha destacado as obras

relacionadas a questões sociais, como o carrinho de catadores de papel de Wodizcko (ver,

por exemplo, Dimenstein, 2001, e Gonçalves Filho, 2002). Para Aracy Amaral, a proposta gradativo abandono estimulou uma série de discussões sobre a possível implosão do edifício, mas ele acabou sendo desalojado em 2004, como parte do Programa Morar no Centro, para recuperação da fachada, dos elevadores e dos sistemas elétrico e hidráulico. A idéia é que o edifício tenha menor número de apartamentos, creche, Telecentro e uma escola técnica em Gastronomia. Toda essa área vem sendo incluída no plano de revitalização, que incluiu o Palácio das Indústrias, antiga sede da prefeitura, e o Mercado Municipal Paulistano, situado exatamente em frente ao prédio. Reformado numa parceria entre a prefeitura e a Petrobras, o Mercado transformou-se em agosto de 2004 num pólo gastronômico, com novos restaurantes no mezanino suspenso que foi construído, o que atraiu um novo público para a região. Nas redondezas, encontra-se ainda grande parte do antigo mercado, com imensos e deteriorados galpões. Portanto, o novo Mercado Municipal

60

de Brissac, teria tocado em feridas nos espaços abandonados e esquecidos de uma das áreas

mais degradadas de São Paulo (2002). No artigo “Os intestinos expostos do Arte/Cidade”

(2002), a crítica escreveu que se espantara com o fato de a maior parte dos artistas ter

elaborado “projetos que poderiam estar sendo apresentados em galerias de arte, museus,

documentas, parques ou bienais”. Apenas dez deles teriam evidenciado uma “preocupação

com o social”, dos quais apenas três eram de brasileiros:

Como aceitar que aos estrangeiros choque mais nossa realidade que aos brasileiros, já anestesiados diante da miséria, do sexo, da droga, do tráfico banalizados como lugar-comum? Não é uma barbárie que isso ocorra no meio infelizmente luxuoso das artes e dos patrocínios?

Tiago Mesquita (2002) também defendeu o fato de o evento ter questionado os

limites que separam a arte contemporânea de seus objetos. E Brissac destacou como uma

das conquistas do evento “a percepção da cidade não como um receptáculo de objetos, e

sim como um campo de operações complexo e mais potente”:

Quanto mais você se embrenha no real funcionamento da cidade, mais difícil. Você está fazendo projetos com interesses muito mais fortes, você mexe mais com algo real, a real estrutura e as possibilidades de transformação da cidade, quer dizer, os projetos ficam mais interessantes... (entrevista realizada em 10/2005).

Por outro lado, as críticas não foram poucas, tanto da imprensa como dos próprios

participantes, que não reconheciam muitos dos trabalhos realizados como arte. Houve

também dificuldades para realizar algumas obras com estrangeiros, como um certo

desconhecimento das condições de trabalho por aqui, que implicavam a falta de recursos e

de tempo, tal como o próprio Perez coloca. Uma das conseqüências foi a realização de

obras “mistas”, devido à impossibilidade de que certos trabalhos fossem concretizados tal

como haviam sido concebidos (ver estudo de caso sobre Vito Acconci).

Portanto, se o projeto se complexificou e passou a adotar outros tipos de atuação, a

mídia acabou alimentando as polêmicas, o que gerou grande visibilidade para o evento. Isso

não impediu, no entanto, que o projeto acabasse mergulhado em dívidas e, também devido

parece hoje uma shopping center no deserto, o que é acentuado pela proximidade com o São Vito, totalmente esvaziado para essa reforma.

61

a essa situação, a quarta edição foi a única que não teve qualquer material produzido pela

organização com os registros do evento, além do site.

2.7. Meanings em síntese

Ao longo dessas descrições, ressaltei, portanto, algumas expressões que se repetiram

seguidamente dentro de cada uma das edições do Arte/Cidade. Se no Matadouro,

isolamento e coletividade – talvez não tão casualmente palavras opostas – foram elementos

importantes na criação do projeto, as propostas da segunda edição buscaram uma leitura

que estimulou a velocidade e a fugacidade. No evento seguinte, magnitude e construção

acompanhavam um processo de releitura histórica e, finalmente, a última edição foi movida

a concretude e estrangeirismo. Portanto, o Arte/Cidade teve também uma ordenação como

totalidade, que acabou agregando os repertórios já adquiridos e selecionados.

Reitero aqui que Nelson Brissac Peixoto foi o idealizador do projeto e o próximo

capítulo tratará de entender, portanto, quais traços de sua trajetória e de suas outras obras

apresentam meanings semelhantes aos repertórios ressaltados no Arte/Cidade, especial-

mente no que diz respeito à sua visão sobre cidade, o que pode indicar onde essa seleção foi

menos aleatória.

62

CAPÍTULO 3 – A ‘DISTRIBUIÇÃO’ DE BRISSAC

O Arte/Cidade é do Brissac.

Ricardo Ohtake, agosto de 2005

A curadoria de Susan Vogel na exposição Arte/Artefato, montada no Centro para a

Arte Africana (Nova Iorque), em 1988, suscitou uma fecunda discussão na antropologia da

arte sobre questões de autoria. Conduzida pela maneira como as formas ocidentais têm

visto a arte e a cultura material africanas durante o século XX, a partir das distinções entre

as categorias de arte e artefato, a antropóloga montou uma exibição para evidenciar a lente

opaca e conflituosa com que vinham sendo exibidos os objetos africanos ao longo de

diferentes períodos. Questionava, por exemplo, os curiosity rooms, quando os artefatos

eram amontoados como “maravilhas exóticas”, sem qualquer alusão ao contexto dos

objetos. Tratava da demarcação evolutiva, durante a passagem para o século XX, que

divorciara os objetos que seriam levados aos museus de arte – valorizados na condição de

objetos únicos e originais – e aqueles que iriam para os museus de história natural, por

gerarem supostamente um interesse apenas científico, e eram acompanhados por uma

documentação excessiva e uma apresentação que sugeria certa “arrogância antropológica”.

Fazia menção também às exposições de arte moderna, que privilegiavam o isolamento do

observador, com exibições de artefatos no formato moldura, base e holofote. Para esse

debate, Vogel optou por uma abordagem que era quase uma brincadeira: expôs objetos

africanos tal qual as estratégias dispositivas que colocava em debate, ou seja, remontou de

maneira irônica exibições que supostamente corresponderiam a esses períodos. Estavam na

exposição um gabinete de curiosidades, onde os produtos do Outro apareciam como objetos

exóticos e sem rótulo, entre répteis empalhados, fotografias desbotadas e espécies minerais;

uma apertada alcova dotada de um diorama em escala real, onde rituais se entendiam por

explicações racionalistas; e um museu de arte, no qual os produtos africanos eram

colocados em pedestais, iluminados e rotulados com poucas frases sobre sua função e suas

pinceladas. A arte contemporânea não ficou de fora e a curadora criou uma galeria, que era

63

um espaço branco e sem adornos, onde foi disposta, sem qualquer explicação ou

identificação, tal como um objet trouvé, uma rede Zande (cf. Faris, 1989; Vogel, 1989).

Essa tentativa de tornar maleáveis as definições de arte e artefato impôs à própria

Vogel o papel de autoridade deflagradora de determinados procedimentos antropológicos.

Nesse sentido, a antropóloga envolveu os observadores em diferentes quebras-cabeças, dos

quais destacavam-se dois. O primeiro deles referia-se à maneira como o reconhecimento

estético de objetos tribais dependia das mudanças no gosto ocidental (Clifford, 1988:203),

tal como intencionava a exposição. Como um desdobramento do primeiro, o segundo

tangenciava a forma como os próprios vetores do campo da arte implicavam-se de variadas

maneiras na sua relação com os “resultados artísticos”. Nesse sentido, a atuação da própria

curadora na concepção da exposição Arte/Artefato adensa uma provocação latente sobre a

pertinência de certos usos de espaços autônomos como recipientes de artefatos. Por outro

lado, igualmente o circuito montado pela antropóloga foi fruto de mudanças no gosto, o que

só foi possível porque estava inserido num contexto que permitia a existência desse

trabalho de subversão conceitual. Grosso modo, a exposição montada no Centro para a Arte

Africana era, antes de tudo, uma exposição de arte/artefato contemporânea – onde já havia

um repertório constituído para que se entendesse aquela operação. Já diria Geertz que “A

arte e os instrumentos para entendê-la são feitos na mesma fábrica” (1998:178), ou seja, a

arte, assim como a cultura, pressupõe uma sensibilidade essencialmente coletiva, necessa-

riamente vinculada a determinado contexto e à existência de signos compartilhados que

variam também contextualmente36.

Voltando às definições de Ronaldo Brito (2001) colocadas no primeiro capítulo da

dissertação, a arte contemporânea teria como marcos importantes a arte pop, a técnica como

forma de investigar o campo de atuação no nível de consciência crítica, uma predominante

falta de ingenuidade e uma mudança na centralidade do mercado de Paris para Nova

Iorque. Curiosamente, a exibição de Vogel atendeu a todas essas características: assim 36 Em “A arte como sistema cultural” (1998), Geertz trabalha com a idéia de formação de sensibilidades – constituídas também por meio das instituições culturais. Na Itália do século XV, por exemplo, criavam o “olhar da época” não apenas a pintura, como também os sermões populares, as danças sociais e mesmo as novas formas de embalar as mercadorias – que “preparavam o olhar” para a pintura, indicando o desenvolvimento conjunto de uma “sensibilidade renascentista” (1998:158-159). Portanto, habilidades de “apreciação” e reconhecimento não seriam inatas, mas adquiridas a partir de uma vida quatrocentista

64

como a Pop Art, satirizou o seu próprio universo; utilizou objetos para uma análise crítica

de maneira diretiva; e, por fim, sediou-se na cidade que se constitui como o mais vasto

campo de projeção das manifestações artísticas contemporâneas. Portanto, o preenchimento

desses “requisitos” sugere uma pergunta: atuou Vogel também como uma artista?

Marcus e Meyers (cf. 1995) já haviam chamado a atenção para a maneira como a

antropologia foi influenciada pelos movimentos artísticos, seja pelo Romantismo, que veio

a originar a arte moderna, seja pelas concepções alemães de cultura, mencionando os

cruzamentos entre artes e análises científicas, por exemplo, em Franz Boas37. Quanto a

Lévi-Strauss, associam as colagens surrealistas aos escritos desse grande esteta.38 Por outro

lado, esses autores, como já referido, concentram-se especialmente em outro tipo de relação

entre arte e antropologia: a apropriação de interesses antropológicos pelo mundo da arte na

produção de arte, na escrita sobre ela, no marketing e na criação de um gosto. A produção

curatorial de Vogel instala-se, portanto, nas duas faces desse movimento de mútua

implicação entre antropologia e arte.

Comparativamente à atuação de Vogel em Arte/Artefato, a relação de Nelson

Brissac com a gestão e as materializações do Arte/Cidade, assim como com as obras que os

eventos exibiram, pode também ser tratada como uma produção estética. Mas isso faria de

Brissac um artista? “Ele não é artista”, afirma José Resende (entrevista realizada em

08/2005). Por um lado, essa posição pode indicar a defesa do artista como alguém que

resguarda uma sensibilidade especial, com relação a outras práticas que envolvem a

realização de um trabalho de arte, tal como aponta Becker:

Os participantes num mundo da arte encaram algumas das atividades necessárias à produção daquela forma de arte como “artística”, exigindo o dom ou a sensibilidade especial de um artista. As atividades restantes parecem para eles uma questão de habilidade, argúcia para negócios ou alguma outra capacidade menos rara, menos característica da arte, menos necessária para o sucesso do trabalho, e merecedora de menor respeito.

(1998:156). A esse sentido refiro-me quando trato a curadoria de Vogel como fruto – e artífice – de seu tempo. 37 Para os autores, Boas teve como influência tanto os historicistas Dilthey, Windelbrand e Rickert – na formação antropológica da concepção de cultura – quanto as doutrinas do modernismo, o que se mostraria evidente em Primitive art (1927), quando o antropólogo procura demonstrar que sociedades tribais podem ter criatividade e individualismo (Marcus, Meyer, 1995:9-10). 38 Nessa mesma linha, esta dissertação desenvolve-se a partir de uma criação estética baseada em referências múltiplas e heterônomas – fruto de uma “tradição pós-moderna”?

65

Eles definem as pessoas que desempenham essas atividades especiais como artistas e todos os outros (...) como pessoal de apoio (1977:208).

Provavelmente Resende não estava desmerecendo a atuação de Brissac, mas apenas

demonstrando que existem divisões profissionais bem estabelecidas na constituição de um

trabalho de arte. Cabe lembrar, no entanto, assim como descrito no capítulo 1, que, a partir

da década de 90, o papel da curadoria, especialmente em mostras de caráter coletivo,

muitas vezes sobrepôs-se ao do artista, em termos de autoria.

Ainda assim, existe uma dificuldade em precisar uma única categoria que dê conta

da grande quantidade de funções de Brissac dentro do Arte/Cidade. Em entrevistas e nos

textos e artigos publicados, variadas classificações foram utilizadas para designar o seu tipo

de papel dentro do projeto: curador, produtor, idealizador, organizador, articulador, entre

outras. O próprio coloca-se como um “catalisador” das atividades necessárias para estimu-

lar as pesquisas e a realização das edições. De toda forma, essas categorias nativas indicam,

ao menos, a importância desse personagem para o andamento do projeto, já que foi dele a

idéia original, foi ele quem deu continuidade ao Arte/Cidade e foi ele quem participou de

todas as etapas e de todos os processos envolvidos na sua produção – em maior ou menor

grau. Dessa maneira, os entrevistados em uníssono não questionam o papel preponderante

de Nelson Brissac dentro do projeto: é patente sua assinatura em todas as etapas dos even-

tos, nos textos, na seleção de pessoal, na curadoria, no andamento dos trabalhos e na

própria continuidade do projeto como uma marca. Convidado para ser uma espécie de co-

curador da primeira edição, Agnaldo Farias afirma, por exemplo: “A coisa é dele mesmo.

Ele estava com essa preocupação e já era bem maduro na cabeça dele esse debate” (entre-

vista realizada em 08/2005). Portanto, muito mais do que um curador, como o classifica a

maior parte dos artigos e textos consultados para esta dissertação, Brissac foi tanto um

idealizador quanto um realizador, mas, mais ainda, foi o grande articulador desses eventos.

A comparação entre as curadorias de Vogel e Brissac tem poucos pontos de

semelhança, além dos já mencionados. Em grande parte, isso se deve à grande diferença

entre as duas propostas, em especial a temática – e tudo o que cada uma dessas concepções

implicou em termos de objetivos e colaborações. Além disso, diferentemente da exposição

de Nova Iorque, a de São Paulo abriu espaço para uma produção heterogênea, que não

66

poderia ser integralmente controlada, tal como apontam as críticas já mencionadas sobre o

Arte/Cidade. Na opinião do artista plástico José Resende,

(...) o Nelson [Brissac] teve um pouco essa disposição de também não aprisionar dentro de um sentido muito determinado a coisa do trabalho. Acho que tem uma coisa positiva dele de abrir espaço para uma surpresa, para alguma coisa que não estava pressuposta. Então, isso é ambíguo porque às vezes é uma maneira de deixar de ter uma posição mais determinada sobre a coisa, mas tem um lado positivo, que é o espaço que isso te permite (entrevista realizada em 08/2005).

Assim, deve-se levar em conta, sobretudo, (1) que houve uma centralidade,

representada pela figura de Brissac, mas que (2) ela foi permeável, tanto em termos de

cooperação como em termos de apresentação de resultados. O discurso do próprio Brissac

indica uma preocupação com a diluição de sua posição predominante dentro do projeto.

Sempre quando questionado sobre esse tema, reafirmava o caráter coletivo do Arte/Cidade,

mencionando outras figuras que teriam sido fundamentais para o andamento das edições,

como Ricardo Ohtake e Ary Perez. Colocava também a importância do aporte dos artistas

para a elaboração dos projetos e para a sua evolução, visitando as áreas e contribuindo com

sugestões de leitura e novas possibilidades de locações. Mas reconhece que o projeto está

ligado à sua figura de maneira inextrincável, ainda que considere que esse vínculo pode ser

problemático na conquista de novos apoios e parceiros: “É um dilema. Se você trabalha em

rede, quanto mais personalizada é a abordagem, mais difícil é. Pode ser até uma vantagem,

mas é um problema. (...) Isso talvez tenha sido um obstáculo grave” (entrevista realizada

em 10/2005).

Essa declaração indica, portanto, que o personalismo pode gerar conflitos internos e

isso acabou acontecendo em muitos momentos do projeto, como os diversos casos de

incompatibilidade e de discordância quanto aos rumos das edições. Houve discussões sobre

a realização das obras, o tipo de espaço que haveria para a produção dos trabalhos, o tempo

para a sua elaboração, o dinheiro e o material disponíveis, entre outras. Dentro de toda a

heterogeneidade do projeto, por exemplo, pode-se verificar uma passagem de tendências,

que se refletiu na saída e entrada de alguns participantes. Se as duas primeiras edições

pareceram-se mais a exposições em espaços controlados – numa linha relativamente mais

ortodoxa (cf. Bourdieu, 1996) –, as duas últimas infiltraram-se nas questões urbanas com

67

mais intensidade e essa heterodoxia resvalou na maneira como foram produzidos os

eventos, que passaram a necessitar cada vez mais do auxílio de profissionais alheios ao

campo da arte para a sua elaboração conceitual. Então, alguns parceiros foram se afastando

e tornaram-se ex-parceiros; outros, aproximaram-se com novas propostas. Isso demonstra

que tanto maior a quantidade de agentes, maiores as possibilidades de disputa e

dissidências, assim como a de interlocução com outras esferas.

Nesse sentido, reconhecer a atuação de Brissac como artista é um recurso heurístico

utilizado por ter sido ele o grande artífice e fomentador do caráter do projeto como um

todo. A partir dele, alimentaram-se essas divergências e foi também para estimular essas

divergências que se criou o Arte/Cidade. O uso dessa categoria, portanto, não se relaciona

com os modos de produção de uma obra específica, como uma pintura, uma escultura, uma

instalação, ou uma série, mas com o papel que ele representou nesse grande trabalho de

arte, o que se relaciona especialmente com a definição já mencionada de Becker segundo a

qual o artista é alguém que está no centro de uma rede de cooperações para a realização de

um trabalho artístico (cf. Becker, 1982). Trata-se apenas de uma categoria relacional.

Reconhecida, então, a preponderância de Brissac no projeto e caracterizados alguns

contornos de seu direcionamento sobre o andamento das edições, sobre os trabalhos

individuais e sobre as relações que estabeleceu com os personagens envolvidos, caberá

entender de que modo ele produziu uma realidade, ou seja, de que maneira selecionou um

repertório e elaborou-o, a fim de dar corpo ao Arte/Cidade.

Gell atribui a noção de agência a pessoas ou coisas que dão início (intencional) a

seqüências causais de determinado tipo (1998:16), ou seja, agentes primários distribuiriam

a sua agência para agentes secundários, tornando-a eficiente. O antropólogo utiliza a noção

de animismo, mas não no sentido de que os objetos seriam animados devido a uma

“confusão primitiva” (cf. Durkheim, 2001:56-71), senão graças à subjetividade/intencio-

nalidade identificada neles em certas circunstâncias – e sempre na qualidade de agência

secundária. Trata-se, portanto, de uma agência relacional, extensiva aos objetos. Mais

especificamente, se os indivíduos são internamente constituídos por relações sociais,

também a personalidade interior torna-se manifesta nos objetos, traços e rastros gerados

pelos indivíduos ao longo da vida.

68

Entre os diversos exemplos mencionados por Gell está o dos soldados do

sanguinário líder Pol Pot, responsáveis por alocar minas que causaram milhares de mortes

em Cambodja, no final dos anos 70. Nesse sentido, a teoria da distribuição de agência não

significa, naturalmente, que as minas teriam sido responsáveis pelas mortes ocorridas,

eximindo a atuação dos soldados; significa que os soldados não eram apenas homens, mas

“homens com armas”. Portanto, as minas de Pol Pot eram partes dos soldados e também os

caracterizavam daquela maneira. Para o antropólogo, esses soldados, assim como todos os

seres, teriam o que chama de distributed personhood:

Pol Pot’s soldiers possessed (...) “distributed personhood”. As agents, they were not just where their bodies were, but in many different places (and times) simultaneously. Those mines were components of their identities as human persons, just as much as their fingertips or the litanies of hate and fear which inspired their actions (1998:21).

Nesse sentido, a pessoa de Brissac também se distribuiu nos “objetos de criação” –

ou, segundo os termos de Gell, nos índices – que criou ao longo de sua trajetória. Embora

esses resultados sejam diferentes e tenham se “espalhado” de variadas maneiras – assim

como feitos em diversos momentos de sua vida –, revelam uma mesma procedência e

indicam certas características comuns, que se mostraram importantes também na

elaboração e na execução das edições do Arte/Cidade. Alguns de seus outros trabalhos

merecem, por esse motivo, ser analisados com mais atenção neste capítulo.

3.1. Bricolages e articulações

Embora atuante em variadas áreas, Nelson Brissac Peixoto teve como principal eixo

profissional suas atividades de pesquisa. Filósofo de formação, trabalhou no mestrado com

o nascimento do modernismo dentro do marxismo, tomando como importante referência as

discussões de Walter Benjamin sobre a percepção urbana. Foi também sua ligação com as

esquerdas e os grupos de guerrilha que o levou à prisão e posteriormente a um auto-exílio,

entre Nova Iorque e Paris, no início dos anos 70, que o deixou afastado do Brasil

aproximadamente dez anos.

69

No livro A sedução da barbárie: o marxismo na modernidade, fruto de sua

dissertação de mestrado, relacionou a crise da arte e da economia (1982:7) nos anos 20 e 30

a partir de uma articulação entre a crise da representação e as manifestações decorrentes

dessa crise, tanto na pintura, como na literatura e na música. Nesse livro heterogêneo,

mesclam-se relatos sobre manifestações artísticas e análises sobre a teoria do valor marxista

a partir de leituras de diferentes autores. Além da grande quantidade de referências do

campo da arte, como Kandinsky, Klee, Joyce, Conrad, Mann, Webern e Stravinski,

menciona ainda Freud e Heidegger, entre vários outros, para ambientar com exemplos

teóricos a sensação de desordem e de proximidade com o fim vivida naqueles tempos de

incerteza – em que, segundo o autor, um movimento ambíguo aludia, ao mesmo tempo, a

uma desestruturação das formas de sociabilidade e a uma embriaguez total, que levaria

posteriormente à hiper-racionalização opressora do nazismo. Esse período de hiato teria

sido caracterizado, afirma, por uma barbárie sedutora, da qual nem mesmo o marxismo

teria escapado. “(...) esta experiência da crise, da desagregação da estrutura social e da

cultura, que perpassa todo o pensamento moderno, aparece como a temática central do

marxismo deste período” (1982:24). Aborda, então, a formulação do que chama de “as duas

fases do marxismo moderno”. A primeira, com Lukács e Bloch e a segunda, com autores

como Hilferding e Bukharin. Em suma, A sedução da barbárie pode ser considerada uma

colagem de referências sobre a construção da cultura e da sensibilidade modernas, em

especial na cidade de Berlim, que o autor descreveu como a grande metrópole européia

daqueles anos.

Já o doutorado em Filosofia na Sorbonne, concluído no período do auto-exílio,

gerou o livro Cenários em ruínas (1987), no qual trabalhou a representação do espaço por

meio de imagens do cinema, construindo três diferentes tipos de subjetividade a partir de

colagens de cenas de filmes paradigmáticos, como Casablanca e Easy rider (ver detalhes

no subitem 3.2). Depois do período em que esteve fora do país, passou a atuar como

professor da faculdade de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e começou a trabalhar com

outras mídias. Os projetos América e Paisagens urbanas, por exemplo, foram séries de

televisão roteirizadas por Brissac, que viraram livros escritos também por ele.

A primeira delas, uma série de cinco programas, dirigida por João Moreira Salles,

foi veiculada pela Manchete no ano de 1989 e tratava dos norte-americanos sob variados

70

pontos de vista. O primeiro programa tematizou as estradas, os viajantes, o blues e o jazz; o

segundo, a imigração ilegal e os locais onde foram filmadas imagens marcantes do cinema;

o terceiro, os bluesmen; o quarto, a velocidade (na arquitetura, na quebra dos recordes, na

invasão dos computadores e das máquinas em geral); e o quinto, as tecnologias em tempo

real, a transformação da vida decorrente dessas mudanças de caráter “espetacular” e a

importância do estrangeiro.

No livro de mesmo nome (América – Imagens) e lançado também no ano de 1989, o

estrangeiro volta a aparecer, mas desta vez como protagonista. O argumento de Brissac é

que as imagens da América confundem-se com a própria realidade, mas alguns fotógrafos e

cineastas teriam sido capazes “de olhar de outra maneira aquela realidade. Estrangeiros que

contemplavam pela primeira vez o país ou americanos influenciados por esta visão”

(Peixoto, 1989:14). Em síntese, a publicação consiste de um agrupamento de imagens

lançadas por fotógrafos estrangeiros sobre os Estados Unidos ao longo de diversos

momentos do século XX, que têm como tema mais corrente Nova Iorque e são

acompanhadas por comentários sobre os autores e sobre como essas fotografias teriam

alimentado o sonho (ou, em certos casos, a desilusão) de diversas gerações. Incluem-se no

livro o suíço Robert Frank, o francês Henri Cartier-Bresson, o húngaro André Kertész, além

dos brasileiros Cristiano Mascaro, J.R. Duran, Walter Carvalho, Bob Wolfenson, Claudio

Edinger, entre tantos outros. Aparecem também nessa seleção norte-americanos como

William Klein, tidos pelo autor como forasteiros, sempre constituídos por uma sensação de

deslocamento. “Mesmo os nascidos lá são estrangeiros”, aponta (Peixoto, 1989:35).

Quanto ao projeto Paisagens urbanas, data de 1990, mas só foi concluído em 1996,

quando já decorridas duas edições do Arte/Cidade – cujos resultados e reflexões acabaram

sendo incorporados a esse material. Foram produzidos com este título três vídeos, que

documentam diferentes tipos de olhar sobre a cidade, incluindo depoimentos como os dos

professores da USP Olgária Matos (filosofia política) e Davi Arrigucci Júnior (literatura),

dos fotógrafos Cassio Vasconcelos e Cristiano Mascaro, do arquiteto Paulo Mendes da

Rocha, entre outros. Conceitos como o olhar, a memória, a luz, as janelas, os muros, o

movimento, os vestígios, os retratos e os lugares orientam narrativas costuradas por

imagens tiradas da cidade, da pintura, da escultura, da arquitetura e da fotografia.

71

Já o livro, embora se pareça com os anteriores de Brissac, pelo fato de se constituir

por múltiplas referências, é um trabalho de maior fôlego e nitidamente mais ambicioso.

Nele, os capítulos retomam não didaticamente conceitos já elaborados nos vídeos. Assim

como nas suas outras publicações, Brissac constrói subtítulos que indicam mais poéticas

abertas a diferentes formas de bricolage39, costurando a partir de elementos parelhos as

referências que vão se sobrepondo. Mais ainda, o trabalho parece concatenar todas as

referências que balizam suas diferentes atuações, que incluem, além das artes, um forte viés

filosófico, com menções a Merleau-Ponty, Deleuze e Benjamin, por exemplo. Vêm à tona

nas páginas reflexões sobre as paisagens urbanas desde as primeiras experiências

perspectivistas até as novas dinâmicas das cidades, incidindo sobre questões relacionadas

ao tempo-espaço na fotografia, no cinema, na arquitetura, no urbanismo, na arte

contemporânea e na maneira como essas manifestações engendram umas as outras para

redimensionar e realimentar a idéia da cidade como um palimpsesto. Muitas imagens são

transpostas e comentadas no livro, passando por pilares como Fra Angelico, Michelangelo,

Degas e Dali e incluindo muitos dos artistas e obras que participaram das duas primeiras

edições do Arte/Cidade – sem obedecer a critérios rígidos, em termos de edição. Fazem

parte da publicação também muitas fotografias de Nelson Kon, que mostravam os locais

onde se situaria o Arte/Cidade 3, então em fase preparatória.

Nesse mesmo ano de 1996, muito por conta do Arte/Cidade, Brissac foi convidado a

ser um dos curadores (juntando-se a Lisette Lagnado, Lorenzo Mammi, Stella Teixeira de

Barros e Tadeu Jungle) de um projeto que selecionaria pelo Brasil artistas nascidos depois

de 1964 para formar uma exposição, chamada Antártica Artes com a Folha. O trabalho

durou seis meses e, no final, 62 diferentes artistas apresentaram-se no Pavilhão Manoel da

Nóbrega, no parque Ibirapuera (cf. Fioravante:1998), de 29 de setembro a 17 de novembro.

No balanço de Brissac, as duas experiências com televisão40 permitiram que o

próprio aprofundasse a questão da estratégia de leitura das cidades e que passasse a

39 Segundo Lévi-Strauss, “a poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato de que não se limita a cumprir ou executar, ele [bricoleur] não ‘fala’ apenas com as coisas (...), mas também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (1976:36). 40 Em 1993, Brissac foi editor de texto e participante da série Ética, constituída por cinco episódios que discutiam esse conceito e veiculada pela TV Cultura. Mas o fato de não ter idealizado a série indica que os caminhos do programa não estavam diretamente relacionados à sua figura, embora tenha colaborado com o

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combinar diferentes abordagens, suportes e profissionais. Foi nesse momento que se

instaurou a possibilidade de transformar em ato suas investigações anteriores:

Então, a partir desse conjunto de trabalhos eu fui convidado para ser assessor da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, o que permitiu, deu a chance de ter um suporte para um projeto que na verdade tinha essa idéia: ter a cidade como pano de fundo e trabalhar com artistas, arquitetos, no espírito dominante da época, que era uma questão de intertextualidade, de tirar as pessoas dos seus espaços consignados de pensamento e criação e procurar fazer a articulação entre as pessoas (entrevista realizada em 10/2005).

Desde essas experiências, todos os livros que escreveu, como Brasmitte,

Arte/Cidade e Intervenções urbanas, relacionaram-se ao Arte/Cidade; Brissac passou a dar

palestras para universidades e outras instituições sobre o evento; e criou uma espécie de

pólo de pesquisa para estudos dos locais onde se realizam os projetos, que tem como

colaboradores profissionais de diferentes áreas e origens.

Essa incursão de Brissac em projetos cada vez mais densos – ao menos em termos

de articulações – lembra o processo de “objetificação” apontado por Miller (1987), em que

este autor reivindica uma constituição mútua e incessante entre pessoas e coisas. A partir de

Fenomenologia do Espírito, de Hegel (1807), indica que sujeito e objeto nascem um com o

outro, ou seja, que a condição de existência do sujeito está intrinsecamente relacionada a

um processo de exteriorização, que é a única via de se chegar a um auto-conhecimento. Isso

significa que sujeito e objeto seriam inseparáveis porque o sujeito é sempre constituído pelo

processo de absorção do seu próprio objeto41. Portanto, Brissac foi ao mesmo tempo

projeto. De toda forma, é notável que este seja o único trabalho de Brissac em que a questão das cidades e do urbano seja praticamente irrelevante dentro de seu contexto mais amplo, tendo em vista que foram discutidos temas como a confusão entre ética e moralidade, a ética na imprensa e nas imagens, a ética das aparências, ética e política, entre outros. Sobre os temas recorrentes na trajetória de Brissac, ver o subitem 3.3. 41 Com o termo alienação, Hegel indica que as transformações do sujeito são inseparáveis do estágio de desenvolvimento que alcançaram com a sua experiência particular no mundo. Então, esse sujeito passa por um processo vastamente repetitivo, em que, numa primeira etapa, ainda é inteiramente inconsciente e indiferenciado. Logo depois, com a externalização, ele se separa com relação ao objeto. Só assim ele passa a se conhecer como não-outro e a reconhecer o “fora de si”. Finalmente, há uma reincorporação do externo no sujeito – chamada por Hegel de sublação – e este passa a adquirir auto-consciência. Posteriormente, o processo se repete, mas as etapas comportam repertórios cada vez mais complexos. A cada repetição da seqüência, o sujeito criaria um outro cada vez mais complexo e particular, dando-se conta de que o outro é um produto de si. A reincorporação do mundo externo, por conseguinte, também torna-se cada vez mais complexa. Já em estado avançado, o processo segue-se a partir das coletividades. Daniel Miller – embora critique o fato de Hegel defender um distanciamento cada vez maior entre sujeito e objeto para complexificar

73

constituindo seus produtos e sendo constituído por eles e, assim, tendências que já se

mostravam em seus trabalhos isolados potencializaram-se nos projetos coletivos e, mais

ainda, no Arte/Cidade, como as referências múltiplas e o intercruzamento de campos.

Dentro dessa interdisciplinaridade, destaca-se ainda um tema recorrente em seus trabalhos:

o urbano e a questão da cidade. Mas, como dito anteriormente, trata-se de um urbano com

leituras próprias e é da sensibilidade específica que gerou esses discursos, ou seja, de como

a trajetória de Brissac construiu uma urbanidade específica, reincidente nos seus rastros,

que tratará o próximo subitem.

3.2. Rendição ao urbano

Em meio à miscelânea de referências utilizadas por Brissac em seus trabalhos, o

urbano e as cidades são, senão o horizonte, o fio condutor de todos os seus projetos e

pontuam todas as suas formas de atuação, seja na academia, seja na mídia, seja nas artes.

“Sempre tive uma preocupação direta com questões relacionadas à compreensão da cidade,

seja do ponto de vista das suas imagens, da iconografia, seja do ponto de vista da cultura e

das artes”, afirma (entrevista realizada em 10/2005). Em A sedução da barbárie, ainda que

o marxismo seja tido como tema principal, a ambiência da Berlim do início do século XX

ocupa grande parte do livro. Embora o subtítulo do livro seja “o marxismo na

modernidade”, a questão política situa-se apenas como uma das manifestações no interior

da experiência dessa cidade, que o autor ilustra como fragmentária e criativa, pontuada por

cafés, cabarés, prazeres e iminência de catástrofe (1982:134). America, tanto o livro quanto

a série, trata especialmente de Nova Iorque – uma cidade que Brissac acaba destacando

como “aquela que construiu o mais vasto arsenal de imagens sobre uma metrópole”, o que

deixa claras as intenções do autor de ir ao encontro de determinadas características

metropolitanas, como a intensa mediatização. Quanto a Paisagens urbanas, é construído a

partir de um apanhado de fragmentos, divagações, elocubrações sobre quadros, fotografias,

filmes, projetos arquitetônicos, poesias, sistemas de comunicação... Tudo isso, com uma

única finalidade: reconstituir experiências de cidade. Neste caso, a cidade de Brissac é

as etapas do processo descrito – incorpora a alienação hegeliana, a que chama de objetificação, apontando a importância de se compreender a constituição da cultura material como uma via dupla, atuante tanto de sujeito para objeto como vice-versa (cf. Miller, 1987).

74

saturada, um lugar onde se destaca uma espécie de achatamento e justaposição dos

elementos, uma “superfície planar” (1996:83), cujo maior paradigma seria a metrópole.

“No auge da visibilidade, a cidade tornou-se invisível”, conclui (1996:130).

Com essas pinceladas, percebe-se que a cidade de Brissac, mesmo quando pontual é

dotada de grande abstração e generalidade. Nessa mesma linha, aponta a antropóloga Esther

Hamburger (1996:7) sobre o projeto Paisagens urbanas que: “Ao contrário do vídeo,

centrado principalmente em São Paulo, mas também no Rio e em Congonhas do Campo, no

livro, Brissac trata da arte na cidade de maneira abstrata, dialogando com uma gama

bastante ampla da tradição ocidental”. Nesse sentido, há poucas referências diretas a São

Paulo, as quais, ainda que pretendam destacar suas especificidades, encarnam igualmente

abstrações. Na abertura do capítulo “Ruínas (O essencial ainda está por vir)”, por exemplo,

essa cidade é descrita da seguinte maneira:

Visão desconcertante que parece confundir superfície e profundidade, presente e passado. Difícil identificar, à primeira vista, esse skyline desprovido de signos ou pontos reconhecíveis. Algo porém – talvez a particular textura formada pelo aglomerado caótico, pela massa de concreto erguido, uma paisagem saturada e opaca – nos dá a inequívoca sensação de que olhamos São Paulo (1996:227, grifo do autor).

Caso a oração “nos dá a sensação inequívoca de que olhamos São Paulo” fosse

substituída por “nos dá a sensação inequívoca de que olhamos para Nova Iorque”, “para

Paris”, ou até mesmo “para Belo Horizonte”, não seria difícil imaginar dentro dessas

cidades situações semelhantes, onde se confundem noções de espaços e tempos e convive-

se com o caos e as construções verticais em excesso. Mas essas cidades também têm as

suas especificidades, os seus pequenos redutos, as suas ruelas, suas sensações.

Magnani, por exemplo, desde a sua tese de doutorado, estuda espaços, ou modos de

viver, em São Paulo ligados ao lazer, à cultura popular e ao entretenimento na periferia.

Dessas pesquisas, vem desenvolvendo o conceito pedaço (1996:33), uma categoria nativa a

partir da qual identifica na cidade espaços reduzidos de sociabilidade, com territorialidade

circunscrita e códigos específicos. Além dos freqüentadores de pedaços, existem redes de

relações mais amplas, classificadas como manchas de lazer, trajetos e circuitos, que

implicam diferentes dinâmicas urbanas. No livro Na metrópole (2000), foram publicadas

75

pesquisas coordenadas pelo antropólogo, em que os trabalhos apresentados estendiam esse

espectro, tratando de temas como as formas de lazer no Bexiga e na avenida Paulista, o

candomblé, as torcidas de futebol, o circuito dos cinéfilos e as relações entre migrantes

nordestinos. Por outro lado, ressalta o autor que esse discurso deve evitar cair na “tentação

da aldeia”, como faziam os estudos de comunidade da Escola de Chicago, por exemplo.

Trata-se, assim, de estabelecer uma relação dialógica, que não abdique das características

da metrópole, mas que não encontre em São Paulo apenas uma tonalidade cinzenta,

indiferenciada, grandiosa e formada por ethos weberiano. Trata-se de identificar como

essas relações particulares e suas trocas participam de contextos mais gerais, provocando

novas experiências e arranjos (cf. Magnani, 1998 e 2003).

Já os espaços de Brissac, ao menos os que circulam em seus discursos, têm

características mais abstratas, que apontam não raro o efêmero como inevitável na narrativa

da metrópole. Esse estado de inconcretude pode ter relação com o fato de ele ter vivido

durante mais de dez anos entre Nova Iorque e Paris, além de suas constantes viagens

profissionais e pessoais ao exterior. Segundo Ulf Hannerz, existe hoje uma cultura mundial

caracterizada por uma crescente interconexão entre variadas culturas locais, assim como um

desenvolvimento de culturas sem uma clara ancoragem em um único território (1996:102).

Ainda segundo o mesmo autor, as culturas transnacionais são geralmente mais marcadas

por alguma cultura territorial do que por outras, a maioria das quais, de diferentes formas, é

uma extensão ou transformação das culturas da Europa ocidental ou da América do Norte

(1996:107). Portanto, trata-se de um discurso que, em muitos casos, tende a se aproximar

mais de vivências metropolitanas num contexto internacional.

É nesse sentido que Hannerz caracteriza a imagem do cosmopolita como alguém

que não apenas viaja constantemente pelo mundo, mas principalmente apresenta uma

maneira de estar em alguns locais, um tipo de perspectiva e de construção de sentido: “A

more genuine cosmopolitanism is first of all an orientation, a willingness to engage with the

Other. It entails an intellectual and esthetic openness toward divergent cultural experiences,

a search for contrasts rather than uniformity” (1996:103). Essa inserção, no entanto, seria

apenas parcial, com o interlocutor buscando traços de si no interior desses contrastes.

Portanto, se existe um processo de rendição a outra cultura baseado nas diferenças, com

vistas a adquirir outro repertório, trata-se de uma rendição apenas condicional. “The

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cosmopolitan may embrace the alien culture, but he does not become commited to it”

(1996:104). Essa falta de comprometimento é, assim, característica de um modo de vida

que busca a efemeridade, o estar aqui e ali, o deslocamento ágil.

Não são poucas as semelhanças entre o cosmopolita descrito por Hannerz e as

formas de atuação e produção de Nelson Brissac. Em primeiro lugar, ele relaciona-se

constantemente com variadas culturas, em especial a dos grandes centros europeus e norte-

americanos, tirando dessas experiências contrastes que possam enriquecer um repertório

próprio, já constituído. Para os projetos do Arte/Cidade, por exemplo, a atuação de Brissac

implica um tipo de procedimento que em parte se inclina a essa “rendição parcial”. Sua

visão é sempre momentânea; é, propositadamente, uma “visão em satélite”42, assim como a

visão dos estrangeiros que convida para atuarem nesses projetos. Sobre o próximo projeto

que está preparando, por exemplo – uma expansão do Arte/Cidade para o Vale do Aço, à

beira da linha do trem que liga Belo Horizonte a Vitória –, aponta que metade da equipe

com quem está trabalhando sequer conhece a região: “Então, a gente recebe informação e

manipula, monta mapas e tudo isso, mas é como se tivesse mapeando Marte” (entrevista

realizada em 10/2005)43.

Hannerz coloca ainda que os cosmopolitas trazem sempre consigo uma sensação de

deslocamento e até mesmo de irritação com as pessoas comprometidas com os sensos

comuns locais (1996:110), exatamente como aponta o discurso de Brissac:

Só com um certo distanciamento você consegue compreender as formas de uma maneira não local. Hoje o mundo é tão complexo e fragmentado que as pessoas só pensam na sua inserção imediata, elas têm enorme dificuldade de se enxergar em contextos mais amplos e em entender os processos que afetam você localmente, mas que não são imediatamente visíveis (entrevista realizada em 10/2005).

42 Expressão que mencionou durante entrevista em outubro de 2005. 43 Hannerz não acredita que exilados estejam na categoria dos cosmopolitas, já que foram forçosamente levados de uma cultura territorial a outra. Neste caso, ele está rodeado pela cultura estrangeira, mas geralmente não imerso nela (1996:105). Ao cosmopolita, relacionaria mais o termo expatriado: “Expatriates (or ex-expatriates) are people who have chosen to live abroad for some period, and who know when they are there that they can go home when it suits them” (1996:106). Este último caso seria mais próximo das circunstâncias vividas por Brissac, já que, embora tenha se afastado do país num momento de complicações políticas, sua partida foi um auto-exílio, uma opção estimulante, em que pôde realizar um grande projeto de vida, que foi seu doutorado. Essa situação relaciona-se também com a observação de Konrad, para quem principalmente os intelectuais transnacionais teriam uma especial predileção em se fazer em casa em outras culturas (apud Hannerz, 1996:108).

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No caso específico da arte, uma crítica a determinados procedimentos artísticos já

foi apontada por Hal Foster, no artigo o “Artista como etnógrafo” (1995). Este autor

menciona um panorama de “intercâmbio” em que métodos etnográficos estariam sendo

apropriados pelas diferentes práticas artísticas, no que tange principalmente às concepções

espaciais de percepção da obras. A arte teria passado a se relacionar não somente a espaços

encerrados, senão a outros tipos de práticas, instituições, subjetividades e comunidades –

principalmente com as obras de site-specific, iniciadas nos anos 60, que construiriam

trabalhos para lugares específicos a partir de mapeamentos “etnográficos” de determinadas

comunidades (“the ethnografic mapping of a given institution or a related community is a

primary form that a site-specific now assumes” [1995:306]). Mas esse mapeamento

etnográfico seria geralmente instrumento para uma crítica mundana bem comportada e

acabaria servindo aos propósitos de seus patrocinadores. Quanto aos artistas, teriam uma

interação superficial e breve com a comunidade com a qual trabalham, sem reconhecer de

fato as especificidades dos nativos:

Um artista é contatado por um curador a respeito de uma obra site-specific. Ele, ou ela, vai até a cidade para mobilizar a comunidade, indicada pela instituição, a colaborar. No entanto, há pouco tempo, ou dinheiro, para muita interação com a comunidade. Não obstante, um projeto é concebido e se realiza uma instalação no museu e/ou uma obra na comunidade. Poucos dos princípios do observador-participante da etnografia são observados, muito menos criticados. E, apesar das boas intenções do artista, apenas um envolvimento parcial do outro localizado [sited other] é efetuado. Quase naturalmente, o foco passa da investigação cooperativa para uma “autoconfiguração etnográfica” na qual o artista não é tanto descentrado quanto o outro é configurado à maneira artística (Foster apud Marcus, 2004).

Um caso de obra de site-specific, freqüentemente citado nos textos do Arte/Cidade,

é o Tilted arc (“Arco inclinado”), de Richard Serra. Encomendada ao artista pelo Federal

Office Building de Nova Iorque, em 1981, a obra foi instalada na Praça Federal, um local

de trânsito intenso. As gigantescas proporções do trabalho faziam com que os transeuntes

tivessem que se desviar de seus caminhos originais, o que gerou uma série de reuniões e

protestos dos trabalhadores do edifício, reivindicando o fato de não terem participado do

processo. Como resultado, a obra foi removida do local (Silva, 2005:69). Este trabalho

tornou-se paradigmático porque suscitou questionamentos acerca do papel da arte em

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trabalhos de site-specific, tendo em vista que se, por um lado, alocar obras em certos locais

pode transgredir suas formas correntes de uso e desrespeitar habitantes e passantes, isso

possibilita igualmente um cerceamento do trabalho de arte, que acaba contando com tantos

censores quanto insatisfeitos.

O Arte/Cidade foi freqüentemente colocado como um projeto de site-specific, seja

nas discussões, nos artigos, nas críticas e entrevistas. Mas Brissac – ciente do tipo de crítica

indicado por Foster44 – acredita que essa categoria seja insuficiente para classificar os

eventos, o que é contestado por outros participantes. No artigo “Como intervir em grande

escala?” (2002a), ele rejeita frontalmente a associação com o termo: “Não se buscam mais

‘sítios’: as locações não são entendidas como autônomas, mas remetem a processos urbanos

mais amplos. A noção de sítio não é adequada para apreender essas situações urbanas mais

complexas”. Então, por um lado, tenta se inserir cada vez mais na dinâmica urbana a partir

de implicações mais complexas de negociação; por outro, procura relacionar os lugares

onde atua mais pelas semelhanças do que pelas diferenças.

Na tentativa de não generalizar o heterogêneo universo das manifestações de site-

specific, George E. Marcus contesta a posição de Foster no artigo “O intercâmbio entre arte

e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da

pesquisa de campo em antropologia” (2004), em que aponta três principais críticas:

(1) além de Foster fazer uma generalização, diz Marcus, as manifestações artísticas

podem possuir práticas investigativas que, embora similares à pesquisa de campo

quanto à forma, teriam genealogia e propósito independentes dela45;

(2) Foster se apoiaria na idéia de que os artistas apropriam-se de uma mise-en-scène

malinowskiana, ou seja, de uma pesquisa de campo conforme moldes tradicionais e

estáveis que já não caberiam na disciplina46; e

44 No artigo “Intervenções urbanas”, no qual faz um extenso apanhado sobre diferentes tipos de apropriação do espaço em manifestações artísticas, escreveu Brissac: “Os trabalhos para lugar específico subsidiados passam a tratar situações como sítios etnográficos. Usados para fazer não-lugares parecerem específicos novamente (...). Utilizados para reintroduzir valores como autenticidade e singularidade, para uso de patrocinadores” (2002:20). 45 Como tópico tangencial, Marcus comenta a opinião de Foster segundo a qual haveria perigos da inveja mútua ou do querer-ser nas discussões recentes que articulam antropologia e arte. Para Marcus, o problema não é tanto o da inveja mútua, mas a criação de certas tendências, como a transformação do nativo em mero “objeto” dessas colaborações (2004).

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(3) por fim, defende que, embora as críticas às obras de site-specific fossem

pertinentes, ofícios como o teatro e o cinema, imbuídos de procedimentos meta-

etnográficos, poderiam ajudar a reinventar os limites e as funções da pesquisa de

campo dentro da própria antropologia.47

Esses “regimes de colaborações” defendidos por Marcus, os cruzamentos interdisci-

plinares, também ressoam claramente na figura do cosmopolita, que mantém um

distanciamento relativo para poder circular por variadas esferas e daí colher o seu material.

As articulações de Brissac são cosmopolitas, porque privilegiadas por seu deslocamento

territorial e por um trânsito entre esferas, que mais tende a um papel de articulação do que

de implicação efetiva naquelas realidades. Por esse motivo, não vê quaisquer restrições em

reconhecer que a maneira de selecionar os locais em que atua nos projetos do Arte/Cidade é

essencial e propositadamente estética: “A investigação de grandes e complexas situações

pode render inesperada informação estética, pela extração do sítio de aspectos que

permanecem invisíveis no quadro das leituras convencionais” (entrevista realizada em

04/2005). Isso explica sua preferência por atuar em locais que considera estarem “em

suspensão”, ou seja, se o Arte/Cidade trabalhou no centro da cidade e se essa região passou

por um processo de transformação que o tornou mais estruturado para o turismo, com a

construção de novos equipamentos culturais, passa a não ser mais interessante para o

projeto. “Você tem que aproveitar esse intervalo entre o espaço tal como ele era e tal como

ele vai ser. Você tem que entrar justamente nesse momento de indeterminação da situação

ou se subordinar a uma tendência que já virou hegemônica”, acredita (entrevista realizada

46 Embora concorde com a crítica, Marcus (2004) aponta a instabilidade da antropologia contemporânea em considerar a pesquisa de campo como uma prática exclusiva. “Que repercussão as apropriações experimentais das modalidades tradicionais de pesquisa de campo em antropologia feitas pelo mundo da arte, para seus propósitos complexos, podem ter para uma antropologia que, por necessidade, está passando da mise-en-scène malinowskiana para a reinvenção dela?”, questiona. 47 Esta última objeção tem relação direta com os procedimentos adotados pelo próprio Marcus, que relata a possibilidade de incorporar na sua antropologia algumas das experiências adotadas, por exemplo, por determinadas práticas de montagem teatral. “(...) há uma afinidade ou adequação particular em pensar o ofício cenográfico como uma forma de etnografia” (Marcus, 2004), afirma. Então, o que ele defende é que a antropologia deveria aspirar ao regime de colaborações, “no nível que é praticado em círculos artísticos que produzem teatro e cinema”. É interessante sublinhar uma posição polêmica de Marcus, que se segue: “Artistas, que se viram atraídos para a pesquisa de campo em seu modo crítico-reflexivo, enxergam esse potencial em suas práticas antropológicas. Os próprios antropólogos, em minha opinião, não o enxergam, ou não o fazem de modo tão claro” (Marcus, 2004).

80

em 10/2005). Trata-se, portanto, de uma intervenção pontual e efêmera, que tem como

fundamento passar a outros locais, e não constituir um movimento fixo e mais perene.

Voltando à questão do meaning, não é aleatória a recorrência da tematização e

incorporação do estrangeiro em uma série de trabalhos de Brissac. Nesse sentido, embora

autores como Miller e Gell concentrem-se na tarefa de diferenciação quanto às análises

semióticas e estruturalistas, que estariam mais voltadas para o aspecto lingüístico do que

para o pragmático e físico, também os escritos de Brissac indicam sentidos que ele dá aos

seus rastros como “pessoa distribuída”.

3.3. Rastros de cidades

Uma breve síntese dos personagens criados para Cenários em ruínas (Peixoto,

1987) pode, portanto, ajudar a entender os traços desse tipo de pertencimento e de como

isso se traduz em termos da produção de Brissac. Foi escolhido este livro por ter sido fruto

de sua tese de doutorado, que, além do investimento demandado – pelo prolongado tempo

com que são feitas as teses –, revela o estado de deslocamento em que se encontrava o

autor, morando, então, fora do país. Já na introdução, Brissac fala da importância de sua

experiência no exterior para a sua biografia, mas é na própria narrativa que se mostra uma

interrelação entre seu cosmopolitismo e o de seus personagens. No livro, foram criadas

estórias sobre três modos de constituição da subjetividade na cultura contemporânea,

representados pelas figuras (1) do detetive, (2) do viajante e (3) do estrangeiro.

O primeiro deles, o detetive, é retratado em ambientes escuros, pequenos e

fechados, onde pessoas vêem-se envoltas em tramas misteriosas, rodeadas por mortes e

desaparecimentos, em uma ambiência de filmes noir. Brissac descreve de que maneira

isolamento, frustração e cinismo mesclam-se no interior de personagens em crise de

identidade. Fala de uma necessidade de esquecimento, de destruição das memórias, com

uma volta inevitável ao passado – configurando-se, portanto, uma tensão entre esqueci-

mento e recordação. Os locais que cria na narrativa são pequenos, sufocantes e carecem de

referências espaciais. O viajante, por sua vez, tem como referência a estrada. É construído

como um cowboy solitário, desterritorializado e em busca de um lugar; como aquele que

vem do nada e parte para lugar nenhum (Peixoto, 1987:83). O autor o coloca como

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irrequieto, disperso, agitado, porque constituído pela experiência do abandono. “Ele é

aquele que abandona. É o contrário do indivíduo que, como o detetive, procura” (Peixoto,

1987:107). Para o viajante de Brissac, o mais importante é a travessia; percorre as cidades,

dessa forma, num itinerário sem destinação. Os grandes desertos, as impessoais auto-

estradas, a transitoriedade e a falta de lembranças, assim como a perda de referências

temporais, seriam, na opinião do autor, constitutivos desse tipo de subjetividade. Mais

ainda, o viajante conviveria com dois movimentos opostos e complementares: a

nomadização e a sedentarização (Peixoto, 1987:88). Finalmente, surge o estrangeiro. Sem

casa nem raízes no próprio país, esse personagem adotaria imagens e histórias alheias, mais

especificamente as do sonho americano. Brissac imagina o estrangeiro indo em busca de

uma América mítica e descobrindo que esse empreendimento é vão. Nesse sentido, ilustra

suas imagens como artificiais e sua busca como uma aventura suicida. Portanto,

diferentemente do cowboy, não alimentaria a idéia de ter um lugar para onde voltar, tornan-

do sua experiência permanentemente precária, onde quer que fosse (Peixoto, 1987:153).

A caracterização de todos esses personagens é feita por meio de colagens de

referências diversas, principalmente cinematográficas – passagens de roteiros e caracte-

rísticas da iluminação de determinados filmes servem para criar os ambientes descritos. Em

todas as narrativas, a cidade é como um personagem central, que baliza a atuação dos seus

coadjuvantes, ora expulsando-os, ora atraindo-os, mas sempre confundindo-os. Chama a

atenção no livro a maneira como, invariavelmente, essa cidade – na sua versão metropo-

litana, em especial – é tida como degradada, destruída, uma verdadeira fonte de angústias.

Na parte do detetive, por exemplo, a cidade é grande e perigosa, uma espécie de

limbo. “A metrópole é ao mesmo tempo causa e símbolo da deriva e decadência dos

indivíduos, dos seus tormentos” (Peixoto, 1987:37). É uma cidade que sufoca, escura,

densa, onde se sobrepõem histórias e memórias que precisam ser esquecidas, mas não

cessam de voltar à tona. No caso do viajante, interessa menos um ponto de fixação do que

um território. Se existe uma cidade, ela é confusa – porque se mesclam as noções de limites

e fronteiras –, dinâmica, constituída por espaços grandes e transitórios. Por isso mesmo, “A

metrópole, onde acaba a viagem, é para eles [os viajantes] o lugar dos sonhos frustrados e

das expectativas jamais cumpridas” (Peixoto, 1987:85). Já o estrangeiro vive numa

paisagem pós-industrial, num mundo fantasmagórico em que tudo parece artificial e

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simulado, onde a realidade é sempre produzida. Sua cidade é um cenário, constituído por

cartazes, logomarcas, poluição visual, o que remete a uma espécie de maquete: “A cidade

agora é apenas uma paisagem desenhada num painel publicitário. Trata-se de uma

arquitetura de imagens” (Peixoto, 1987:204). Esse personagem vagueia por entre detritos,

fábricas e depósitos abandonados, que passaram por um processo radical de desurba-

nização, como numa espécie de arqueologia dos lugares.

Um homem vaga por entre prédios abandonados, vasculhando os montes de móveis e objetos quebrados, examinando cada coisa que encontra em meio aos detritos. É lá que espera encontrar imagens de si mesmo e do seu lugar. (...) Pretende se reconhecer nas coisas que estão morrendo, quer se encontrar nos lugares que estão acabando. Todos esses objetos arruinados, que perderam todo o sentido original, e lhes atribui outro significado e lugar. Alegoria criada pelo seu lirismo e saudade. Retrato fantasioso de um lugar que não existe mais (Peixoto, 1987:168).

Curioso atentar para essas descrições e perceber como, anos depois, todas elas

foram reatualizadas nos textos do Arte/Cidade. Mais ainda, curioso identificar as muitas

semelhanças entre os próprios eventos e essas descrições/sensações. No Arte/Cidade 1, por

exemplo, cujo subtítulo era Cidade sem janelas, os artistas foram estimulados a trabalhar a

partir de uma situação de sufocamento, medo, angústia e clausura, mesma condição em que

se encontra o detetive. “Portas e janelas são elementos constitutivos dessa arquitetura.

Marcam dramaticamente os limites desses lugares pequenos” (Peixoto, 1987:41). Essa

passagem, por exemplo, trata da maneira como eram descritos os ambientes vivenciados

pelo detetive, mas da mesma maneira a primeira edição do projeto refere-se diretamente às

janelas. Nessa linha, A cidade e seus fluxos, subtítulo do Arte/Cidade 2, também remete ao

tipo de espaço em que se movimenta o viajante: “O urbano se estende por onde o

movimento passa e vai por onde ele alcança. Não é localização, fixação. A cidade do

viajante é pura dinâmica e extensão” (Peixoto, 1987:114). Ou seja, foi exatamente com a

intenção de tematizar as dinâmicas urbanas e os fluxos que se constituíram tanto os trajetos

do viajante como a segunda edição do Arte/Cidade. No caso do mundo do estrangeiro,

afirma Brissac que “é feito de meios de locomoção: escadas rolantes, trens, carros e aviões.

(...) A imagem de trem domina, como sempre, toda a estória” (Peixoto, 1987:161). E não

foi o trem o grande protagonista do Arte/Cidade 3? As fábricas e depósitos abandonados,

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descritos nesse mesmo universo, também podem remeter ao estado em que se encontravam

as indústrias Matarazzo, que participaram da terceira edição48.

Outros tipos de analogia poderiam ser feitos, mas é notória sobretudo a maneira

como Brissac cria um repertório sobre a cidade e o urbano que redunda nos produtos que

espalha. Elementos e imagens assemelham-se, ressurgem em seus lastros. De certa maneira,

atuando menos como alter egos de Brissac e mais como rastros da sua “pessoa distribuída”,

as subjetividades de Cenários em ruínas revelam suas inclinações diante das situações

urbanas, em que pese especialmente sua inclinação por ruínas, que aparecem não raro para

compor os ambientes. No final do livro, por exemplo, como um livre ensaio de imagens,

aparecem fotografias de edificações arruinadas atravessadas por algumas frases, como

“RUÍNAS, LUGAR DE DESLOCAMENTO” ou “CENAS E PAISAGENS ERGUIDAS

COM DESTROÇOS”. Mas, entre todos os personagens, é o estrangeiro o mais atravessado

por elas: “As ruínas são o lugar do estrangeiro. São o testemunho, vivido cotidianamente,

da perda do mundo” (Peixoto, 1987:169).

Igualmente, é no estrangeiro que mais parece estar Brissac, muito por conta de seu

estranhamento com relação à paisagem, de sua busca por aquilo que não encontra no

próprio país, de sua ligação com uma mítica dos grandes centros mundiais, de sua veia de

colecionador, que “toma tudo como fragmento ou resto...” (Peixoto, 1987:168). Essa

caracterização poderia assemelhar-se à idéia do estrangeiro em seu próprio país, já indicada

quando selecionou norte-americanos para a galeria do seu livro America. Para Brissac, essa

foi uma postura muito característica dos anos 80, quando foi escrito o livro. “Na época, era

uma postura intelectual e existencial fundamental do ponto de vista da criação, ela permitiu

um horizonte muito rico de alternativas” (entrevista realizada em 10/2005). Mas enquadra

essa postura como uma marca de época, por acreditar que as articulações atuais, em termos

de facilidade de informações, já implicaria uma outra postura, menos distanciada. Parece,

de toda forma, que essa perspectiva ainda não se esgotou na sua obra, como já analisado 48 Quanto ao Arte/Cidade 4, agrega algumas características descritas nas três ambiências narradas, especialmente na cidade pós-industrial e pós-apocalíptica do estrangeiro, mas possivelmente as características do Arte/Cidade 4 não tenham sido integralmente contempladas em Cenários em ruínas porque foi o único evento do projeto que aconteceu no século XXI – passagem de tempo que, como a do século anterior, implicou a aquisição de novos elementos no repertório usual de uma época. Nesse sentido, passa a ser bastante recorrente desde então no discurso de Brissac o termo informação. Assim, a cidade passa a ser vista

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neste capítulo. Segundo Hannerz, talvez verdadeiros cosmopolitas nunca se sintam em casa

novamente, da maneira que os verdadeiros locais podem estar (Peixoto, 1987:110), e essa

condição de não pertencimento – que beira não raro uma sensação de inadequação – é

renitente no discurso de Brissac sobre a sua trajetória:

Foi uma mistura de necessidade e de opção, de morar em vários lugares, de ter uma vida de nômade por um tempo – que na época eu pensava que ia ser para sempre. Eu não me via muito voltando para o Brasil. Acabei fazendo essa opção porque você também tem limitações muito fortes de viver no exterior do ponto de vista de ser operacional criativamente. Seria impossível fazer alguma coisa morando em Paris ou em Nova Iorque, a não ser escrever. Então, a opção de vir para cá foi pensar na possibilidade de que no Brasil também está tudo por fazer, tem uma grande desorga-nização, você tem muito mais chance de fazer as coisas (entrevista realizada em 10/2005).

Portanto, esse cosmopolitismo, mais do que enclausurar os sentidos de atuação de

Brissac, revela outros meanings que o acompanham, como será mais detalhado nos estudos

de caso. Vale ressaltar que esse tipo de associação não indica padrões como reflexos de

certas divisões sociais ou como derivativo de determinados modelos. Em A regra da arte,

por exemplo, Bourdieu procura identificar relações parelhas entre escrito e escritor, ou seja,

haveria certas afinidades estruturais entre o meio social do autor de determinada obra e a

manifestação artística resultante. Nesse sentido, Frédéric, o protagonista de A educação

sentimental, assumiria as mesmas contradições do autor do livro, Gustav Flaubert, que

tinha que se desdobrar entre círculos intelectualizados e espaços mais elitizados (cf.

Bourdieu, 1996; Martins, 2004). Diferentemente da análise de Bourdieu, esta abordagem

não busca paralelismos ou homologias, mas sim sugestões, tal como escolhas nem bem

aleatórias, nem bem enclausuradas em determinados significados, senão localizadas numa

zona intermediária, que indicam, assim como afirma Miller (cf. 1994), que a ordem das

coisas é culturalmente construída. Nos próximos capítulos, estudos de caso ajudarão a

entender características específicas dessas decisões a partir de objetos criados para as

edições do Arte/Cidade e do repertório constituído para e pela materialidade deles.

como um sítio informacional (cf. 2002) e as novas formas de comunicação e o encurtamento de distâncias tornam-se elementos constantes em seus textos.

85

CAPÍTULO 4 – ESTUDOS DE CASO

Une sculpture, avant d’être un objet, est un acte.

Carpenter apud Severi, 1991:84

Neste capítulo serão analisadas quatro obras realizadas nas diferentes edições do

Arte/Cidade, quais são, respectivamente, os trabalhos de José Resende, Rubens Mano,

Nelson Felix e Vito Acconci. Uma série de motivos estimulou a seleção desses casos

específicos. Em primeiro lugar, a filtragem foi feita a partir dos objetos que mais foram

relacionados e debatidos no material pesquisado e/ou que foram citados pela equipe de

organização como os mais representativos, ou ao menos importantes, dentro das suas

respectivas edições.

Uma exceção é o primeiro caso, onde não pude realmente identificar um trabalho

que se destacasse dos demais a partir dos discursos pesquisados. De toda forma, foi

bastante referida e lembrada a obra de José Resende e o depoimento desse importante

escultor, no contexto específico desse projeto, poderia indicar quais foram as diferenças

principais entre suas formas de atuação anteriores e a proposta de Brissac. Durante a

entrevista, o artista chegou a se surpreender com meu interesse nesse trabalho específico, e

não no que realizou para o Artecidadezonaleste, mas esse estudo de caso acabou-me

rendendo importantes ferramentas de análise. No caso da segunda edição, o trabalho de

Rubens Mano foi lembrado por todos os entrevistados e considerado, em muitas críticas,

como um divisor de águas na sua carreira. Nelson Felix conjuga características dos dois

anteriores. De Resende, além da amizade mútua e de outras características semelhantes,

guarda em comum o fato de ter preferido comentar o trabalho da quarta edição, enquanto eu

buscava mais elementos para descrever o do evento anterior. Mas, à diferença, tanto aponta

uma continuidade nas duas obras que fez para o Arte/Cidade como identifica em Lajes –

meu foco – um trabalho importante dentro de sua trajetória. De Mano, compactua com o

fato de sua obra ter também demarcado um momento específico do Arte/Cidade. Já sobre a

situação de Vito Acconci, tentei escapar dela de todas as maneiras, tanto porque o artista

mora em Nova Iorque como pelo fato de sua obra ter gerado tanta polêmica, o que poderia

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me dispersar do foco, gerando nada mais do que um trabalho de compilação. Além disso, a

obra foi muito criticada e teve até mesmo a sua autoria contestada pelo artista. Então, havia

uma complexidade de questões que poderia me complicar. Mas selecioná-la foi quase

inevitável, não apenas pelos mesmos motivos que me afastavam dela como porque traduzia

quase idealmente as condições de mudança do projeto.

Mais ainda, essas obras foram selecionadas porque Brissac classificou-as, na

companhia de outras, como as mais importantes para os contornos que se acenavam para as

edições seguintes – novamente com exceção da primeira. E, se estamos em busca de

categorias redundantes nos seus discursos sobre cidade, aqui poderemos perceber como

esse repertório resvala nas obras específicas, seja na forma de paralelismo ou fissura. Ao

final, minha intenção é que esses diálogos ajudem a entender como se posicionam

diferentes formas de criação artística. Casualmente, as três primeiras obras analisadas

foram realizadas por arquitetos de formação e artistas por opção; inversamente, a última foi

feita por um importante artista, que, mesmo sem formação técnica, decidiu abrir um escri-

tório de arquitetura. Nessas passagens, a maneira como cada um deles se relaciona com o

espaço indica também de que maneira entendem a arte – ou, ao menos, a sua própria arte.

Além de breves históricos sobre a trajetória dos artistas, com o exemplo de outras

obras, esses estudos de caso serão uma tentativa de entender como, a partir da fisicalidade

dos resultados, podem-se perceber alguns conceitos à luz desses eventos. Portanto, é a

partir das relações sociais que se deram na realização dos trabalhos, como a escolha dos

materiais, que se dará primordialmente a análise. Num segundo momento, resgato a

classificação de Brissac como artista para recuperar alguns momentos de sua relação com

as edificações do Arte/Cidade. E, por fim, produzo uma relação quase artificial segundo a

qual Brissac vincula-se a essas obras também em termos de autoria, principalmente na

escolha desse espaços, que não são apenas físicos, mas principalmente tomados como

ambientes de produção. A idéia é, com esse confronto, analisar de que maneira coisas e

pessoas se implicam mutuamente (cf. Miller, 1994).

Para esses estudos, serão usados esporadicamente alguns termos desenvolvidos por

Gell (1998), que merecem aqui um pequeno glossário. Índices são as entidades materiais

que motivam interpretações cognitivas; protótipos são os modelos conceituais que

87

inspiraram a realização desses índices. Outro conceito importante, já mencionado, é o de

agência, que é uma qualidade relacional de atividade e de produção de sentido. E,

finalmente, abdução são as regras inferenciais – portanto, distantes de convenções

meramente simbólicas – que permitem a aquisição de sentido. Assim, se o artista de Gell é

aquele a quem é atribuída, por abdução, responsabilidade causal pela existência do índice,

tanto os artistas propriamente ditos quanto Brissac serão responsáveis por estimular a

agência de determinados índices. Nos diferentes casos, então, considerarei índices não

apenas as obras individuais, mas os materiais de que elas foram constituídas e os próprios

espaços – aqui físicos – mais amplos de que se constituíram. Da mesma maneira, os

protótipos dos artistas serão as metáforas que utilizaram para descrever as suas obras, nos

casos em que isso ocorreu, enquanto o protótipo de Brissac será especialmente relacionado

a seus discursos sobre cidade e sobre os eventos particulares. Recepção foi um termo de

Gell pouco empregado, menos pelas questões sobre público colocadas na introdução do que

pelo fato de esse antropólogo entender que para cada agente há um paciente. Isso significa

que existe uma conotação de passividade implicada no conceito que não me parece a mais

eficaz, ainda que a recepção não seja necessariamente o público, mas qualquer coisa ou

pessoa que “recebe” a agência. Quando usado como sinônimo de público ou espectadores

ou participantes, ele deve ser entendido como um complemento das intenções apontadas

pelos próprios artistas. Assim, essas categorias serão utilizadas quando me parecer

conveniente, mas não de modo a deixar engessadas as análises. Prefiro-me lembrar, nesses

casos, das preocupações de Miller sobre a escolha das nossas vestimentas, que traduzem

escolhas indicativas, mas não determinantes. Aqui também muitas categorias apareceram

na minha leitura; categorias indicadas, sugeridas, mas nunca absolutas.

88

4.2. José Resende em ação

O meu trabalho é mesmo avesso à palavra.

José Resende, 1999:54.

Um antigo matadouro esperava sair de seu estado de abandono para virar alguma

outra coisa. Materiais de construção, fios, postes e dejetos em geral eram seu conteúdo, mas

estavam em estado de inércia desde que o local deixara de “ser” para entrar no estado de

“virar”. Com as primeiras novas movimentações para fazer o local “virar”, eis que entre

todo o entulho fazem-se ver pedras de granito. Ainda que escondidas pelo mato, elas

mostravam-se belas dentro de suas deformidades, apresentavam todas uma conformação,

eram semi-regulares, pareciam cubos, convidavam-se a... Então, ao serem vistas e pensadas

para serem vistas, aquelas pedras já não eram escombros, mas possibilidades de existência.

Pouco tempo depois, um guindaste de cerca de 15 metros de lança, durante algumas horas

do dia, passou a pegar cada uma dessas pedras e a tentar dar forma a elas, construíam-se

encaixes; às vezes, quase paredes. Pesadas, as pedras tinham cerca de 1 metro cúbico e nem

sempre se apoiavam bem umas nas outras, tornando os movimentos de construção e de

desconstrução ininterruptos. A dinâmica do “vir a ser” precedia a da fixidez.

89

Se as pedras viraram agentes, porque desencadearam a ação de construir paredes,

sua agência primária chamava-se José Resende, já que se pode responsabilizá-lo pela

existência da obra (Gell, 1998:27). Formado em arquitetura, Resende acabou optando por

trabalhar exclusivamente nas artes plásticas, principalmente com a escultura, a gravura e o

desenho. Nos anos 60, fundou o Grupo Rex, com Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros,

Nelson Leirner, Frederico Nasser e Carlos Fajardo, e na década seguinte, o Centro de

Experimentação Artística Escola do Brasil, além de ter atuado como professor em diversas

instituições. Também participou de uma série de publicações, como a revista de artes

Malasartes (da qual foi co-editor), e de uma série de Bienais de São Paulo, da Bienal de

Veneza e outras importantes mostras. Preocupado com a questão da tensão, do movimento

e do espaço, sua obra caracteriza-se, principalmente a partir dos anos 80, pelo emprego de

materiais que “resistem à manipulação” (Brito, 1998:19), como couro, ampolas de vidro,

cera, parafina, tubos de cobre e chapas de aço. Além de usar laços, nós e dobras como

agentes de sustentação, explora os atritos entre esses materiais, a partir de situações

inesperadas (Brito, 1992:5). Essas características levam alguns críticos a associarem seus

trabalhos ao pós-minimalismo49, mas o próprio destaca as influências da arte povera e,

principalmente da idéia construtiva em arte, de forma mais ampla. Quanto às relações que

estabelece com a vida urbana e as metrópoles de modo geral, podem ser encontradas, por

exemplo, nos materiais pesados que usa50, no anonimato de que são dotadas suas

construções abstratas e no diálogo direto que estabelece com os logradouros, construindo

obras ao ar livre em diversas cidades do Brasil e do mundo.

Sobre o anonimato, no caso das pedras de granito de seu trabalho no Arte/Cidade,

por pouco não foram tiradas desse estado, já que os organizadores da primeira edição foram

receosos em chamar José Resende para as primeiras discussões coletivas do projeto, tendo

em vista a sua importância no circuito das artes plásticas brasileiras e o ainda indefinido

caráter do Arte/Cidade. “Não convidamos o Zé Resende porque achávamos que ele não

49 O pós-minimalismo seria uma variação do minimalismo, mas com ênfase na importância de pesquisa dos materiais, cores e substâncias empregados para estimular a percepção. As obras de chumbo de Richard Serra e os trabalhos com blocos de aço de Robert Morris são apontados como pós-minimalistas (cf. Minimalismo. In: Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural). Para José Resende, o uso de materiais expressivos, mas de maneira a simplificar ao máximo as formas e volumes, é um recurso visto em grande parte de suas obras, como a Vênus, feita com uma imensa placa de aço córten. 50 Para Ronaldo Brito, esse uso de materiais pesados revela o “caráter francamente urbano” dos trabalhos de Resende. (1998:6)

90

aceitaria, uma pessoa que a gente respeita muito e tal. (...) nós havíamos subestimado o

interesse do projeto”, afirma Agnaldo Farias (entrevista realizada em 08/2005). Carlos

Fajardo teria sido o responsável por sua aproximação em relação ao grupo, que acabou

tornando-se das mais intensas: foi um dos poucos que participou de mais de uma edição do

Arte/Cidade (a primeira e a quarta), além de ter ido a Berlim na época das discussões sobre

o BrásMitte51.

Voltemos ao trabalho do Arte/Cidade: sem nome, como grande parte das obras de

Resende, foi realizado com as pedras encontradas no quintal do antigo Matadouro

Municipal da Vila Mariana. O operador de um guindaste de cerca de 15 metros de lança

seguia as orientações de Resende, que fornecia de perto as informações de um roteiro

planejado pelo próprio, cujo objetivo era construir uma parede. A idéia era que a obra

tivesse uma condição efêmera, sendo construída e desconstruída de seis a oito vezes por dia

durante dez dias consecutivos, num movimento ininterrupto – durante o tempo estipulado

para visitação. Formava-se uma espécie de parede instável, cujas situações de encaixe entre

as pedras, as instabilidades e dificuldades resultantes iam-se mostrando ao longo do

processo de construção. A segunda parte desse cenário era um portão lacrado, por meio do

qual o público era mantido à distância da obra, em constante execução.

Transcreve-se, abaixo, um trecho do artigo “Cidade sem janelas” (2002), de Nelson

Brissac Peixoto, em que apresenta as obras do primeiro Arte/Cidade – especificamente a

parte em que fala do trabalho de Resende:

O gesto de suspensão – realizado por uma máquina, de modo a retirar-lhe toda conotação pessoal, toda intencionalidade artística – é contrastado pela força da gravidade. Como a torre de Babel. Problematização da verticalidade, que o artista efetua também em suas esculturas. Renúncia ao impulso construtivo, retomada contínua do esforço para erguer o insustentável pesado. Não por acaso esse itinerário termina contra outra grade, não deixando alternativa senão andar em círculos: as obras aqui instaladas armam um moto-contínuo. Um percurso acidentado através de um terreno obstruído, uma sondagem do abismo. Não se trata aqui de perceber o invisível das coisas, mas de confrontar sem descanso sua impenetrável e irremovível presença.

51 Apesar de não ter sido um de seus organizadores, o artista afirma que acabou participando de diversas reuniões com o grupo alemão que daria apoio ao projeto.

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Se autores como Lévi-Strauss entenderam que a arte não apenas representa, mas

também significa, ou seja, possibilita uma comunicação que envolve signos comparti-

lhados, artistas como José Resende refutam a aplicabilidade dessa máxima52. Para ele, a

obra emanaria muito mais das possibilidades criativas do material do que da capacidade de

comunicar uma determinada mensagem. Essa posição fica claramente nítida quando o

artista é confrontado, por exemplo, com o trecho acima reproduzido: “a dificuldade

construtiva que ali se evidenciava não pressupunha um entendimento, digamos, não há uma

finalidade tão declarada que a Torre de Babel tem”. A questão essencial da obra, afirma, era

“colocar pedra, tirar pedra”. E, se o material encontrado foi o que instaurou o trabalho,

também a grade de separação do público foi utilizada porque fazia parte do espaço e acabou

sendo aproveitada como uma forma de oferecer proteção aos visitantes, já que era

extremamente frágil o equilíbrio das pedras quando sobrepostas:

Aparentemente, se você olhar para os blocos, eles vão transparecer uma instabilidade. Vamos dizer: seria, em princípio, um brinquedo como de criança, facilmente executável. Então, você vê uma coisa que parece tão fácil, sofrer tantas dificuldades para ser feita que ela em si já é suficiente, quer dizer, não havia nenhuma coisa por trás disso, não há um tema por trás disso, não tem Babel, não tem verticalidade, não tem horizontalidade. Isso tudo são traduções formais que não passam pela ação, que é muito mais direta do que isso e é ela que é o trabalho e não há nada por trás disso (entrevista realizada em 08/2005).

Relembrando o meaning de Miller, percebe-se que, embora a arte não comunique tal

qual uma linguagem visual, existem escolhas cotidianas e formas que se dão aos artefatos

que acabam configurando determinados sentidos. Portanto, se nem bem a arte – mesmo a

contemporânea – é dotada de uma racionalidade extrema que a assemelha a textos

explicativos, também não é isenta de sentido – sentido este que muitas vezes acaba-se

mostrando a partir da própria ação. Como lembra Gell (1998:30), com relação em especial

aos ready-mades, existem muitos casos em que o artista nem tanto faz, mas principalmente

“reconhece” o índice53. Por outro lado, continua, “having ‘no reason’ to select something as

an object of ready-made art, is of course, a reason, since it’s motivated by the need to avoid

selecting for whose selection some reason might be proposed” (1998:30). O próprio

52 Ainda que Lévi-Strauss tenha apontado as possibilidades criativas surgidas na análise do próprio material, como em O pensamento selvagem (1976). 53 Entendendo-se aqui índice como o artefato construído pelo artista.

92

Resende acredita que possa haver um sentido associativo na obra, mas este não seria

exterior à ação: “Se você vir um piano subindo para entrar em um prédio, você pára e fica

vendo se aquela coisa vai cair ou não. Não fui eu que inventei isso. Agora, usei isso lá”

(entrevista realizada em 08/2005). Vê-se, portanto, que o trabalho de Resende teria como

intenção não apenas “colocar pedra” e “tirar pedra”, mas também estabelecer relações

associativas, que não necessariamente estéticas.

Para Gell (1998:15), os sentidos que geralmente temos para formar uma noção da

disposição e das intenções dos “outros sociais” é via um grande número de abduções de

índices que não são nem convenções semióticas, nem leis da natureza, mas algo entre eles –

no que lembra o conceito meaning, de Miller. Nesse sentido, se o índice são as entidades

materiais que deram forma ao trabalho de Resende, podemos considerar, a partir de sua

fala, que seu protótipo teria sido “um piano subindo para entrar em um prédio” ou qualquer

outra relação semelhante que sugerisse uma fragilíssima estabilidade – ou uma expectativa

de queda. Nessa ação estariam presentes um elemento material pesado, outro elemento de

sustentação (um fio, no caso do piano; um guindaste, no caso da obra) e uma pessoa, ou um

originador direto (e não intelectual, tal como o “dono do piano” ou José Resende) daquela

movimentação, como o funcionário da transportadora ou o operador de guindaste. Então,

do protótipo construiu-se o índice, com vistas a desencadear uma reação dos receptores – o

público ou os espectadores. Que reações foram essas? Instabilidade, fragilidade e iminência

de uma queda ou um acidente.

... uma sensação de perigo, que me reportava um pouco essa coisa que na cidade era comum você ver no canteiro de obras um monte de gente parada vendo, uma certa coisa meio perversa, provavelmente esperando um acidente trágico, uma coisa cair na cabeça de alguém, alguma coisa desse tipo, mas um espetáculo que, alcançar dum guindaste essas pedras, eu estaria um pouco reconstituindo nesse lugar. (...) as pessoas ficavam vendo isso através de um portão, um pouco também para que não se expusessem ao tal possível acidente que de fato se desenhava (entrevista realizada em 08/2005).

Oito anos depois desse trabalho, o acidente que se desenhava acabou concretizando-

se, ainda que artificialmente, quando, na quarta edição do Arte/Cidade, o próprio José

Resende colocou em suspensão no meio do Viaduto Bresser, por meio de cabos de aço e

travas, a parte frontal de alguns vagões desativados que encontrara na Estação Ferroviária

93

do Pari. O resultado assemelhou-se a um acidente ferroviário de proporções gigantescas

(ver imagens abaixo). Para alguns entrevistados, essa obra foi uma continuidade daquela

primeira. Nesse sentido, Agnaldo Farias chega a dizer que se tratou do mesmo trabalho: “A

peça do Zé Resende é um eterno se fazer, um trabalho em construção perpétua, do lado de

fora no quintal daquela grande área, feita do mesmo modo como ele pega os trilhos

posteriormente no Belenzinho [bairro onde se realizou parte do Arte/Cidade 4], vira os

trens, ele vai fazer o mesmo trabalho” (entrevista de 08/2005).

De toda forma, no caso do primeiro Arte/Cidade, havia um elemento no pátio do

Matadouro fora do script, que indicava acidente e perigo e acabou se agregando à obra,

fornecendo-lhe novas possibilidades de abdução: uma grade, a qual acabou se mostrando

disponível a participar da performance. O público, então, no lugar de se aproximar da obra,

ficou retido atrás de uma espécie de portão, fechado, o que tanto era conveniente para

garantir a segurança dos visitantes, mas também ajudou a adensar a idéia de “espetáculo”

proposta pelo artista – além de ter remetido ao caráter espetacular dessa aproximação e de

outras semelhantes, mais corriqueiras, porém não menos espetaculares.

Então, se a obra, por associação, pode provocar uma perversidade voyeurística do

visitante, não é menos possível inferir que a grade demarca dois domínios e dois espaços

diferenciados: em um deles, existe um movimento ininterrupto, que demanda atividade,

criação e imprevisibilidade; em outro, espectadores ficam à espera do que poderá acontecer

e têm a visão e a movimentação corporal limitadas por uma materialidade impositiva.

Nessa linha associativa, a muitas situações pode remeter a clausura provocada; as

mais evidentes seriam as variadas formas de isolamento, aprisionamento e reclusão,

94

incluindo toda sorte de formas de vigilância, seja dos sistemas de segurança, seja das

escolhas cada vez mais mediadas da vida moderna.

Por outro lado, numa associação mais próxima à da própria ação de Resende, ou

seja, outra das possíveis “destinações” dessa performance, pode haver também uma espécie

de meta-abdução, em que entram em jogo os limites implicados na dinâmica da criação

artística. Se levarmos em conta que o artista está “livre para agir” e o público, ao menos,

limitado, podemos identificar que se trata também de uma delimitação de proposições que

se relaciona à maneira como o público é convidado a participar da obra, ou seja,

parcialmente, a partir de um lugar de confinamento – afinal, apenas o artista poderia

aproximar-se do imprevisível da obra, ordenar e interromper a criação. Esta pode, mais

ainda, ser uma ação intencional do artista, no sentido de fazer lembrar que a criação

artística por muito tempo deixou o público confinado a uma ação contemplativa, que

preconizava a autonomia da obra e do artista. Ainda assim, lembra o próprio Gell que a

visualidade pode ser ativa, dentro de um domínio que, se bem pode ser estético, não o é

necessariamente54. Então, mais uma dessas possibilidades é a inversão da equação, em que

o artista coloca-se diretamente exposto ao perigo e deixa-se ele mesmo ser vigiado e

confinado, enquanto os visitantes do evento podem trasladar a outras esferas do Matadouro

e assistir a outras obras.

Em termos de meaning, afirma José Resende que sequer lembra-se do tema

proposto pelos organizadores para pensar a sua obra, sintetizado em palavras-conceito,

quais sejam, novamente: prédios, empenas, fachadas, becos, vielas, sky line, impotência,

solidão, clausura, angústia, opacidade, saturação, acúmulo, artérias, detritos, ruínas, sobras,

escombros, concreto, lama, pedra, metal, solo mineral, arqueológico, porosidade, espessura,

massa, peso, gravidade, cheio, fechado, duro, cinza, amorfo, inerte, descascado, sujo,

usado, volume, sobreposição, entrelaçamento, articulação, ruído, indistinção, amontoado,

aglomerado, acoplamento, engate, expansão, superfície, plano, epiderme, aridez e secura.

Mas, ainda que Resende afirme ter trabalhado sobretudo a partir do tipo de ocupação que se

oferecia no antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana, ou seja, da maneira pela qual se

54 Nesse sentido, Gell exemplifica a questão de algumas imagens religiosas, como as da Virgem Maria, em que o olhar aponta também para uma relação de toque, numa eficácia ritual que passa ativamente entre adorador e imagem adorada. “For instance, kissing a holy icon will, some believers hope, elicit the agency of the image in relieving illness or poverty”, afirma (1998.:32).

95

poderia trabalhar a partir das condições que se desenhavam no próprio lugar proposto, é

nítida a aproximação do resultado final com muitos desses conceitos.

Por outro lado, se as pedras adquiriram uma agência relacional a partir da ação de

seu realizador, elas provavelmente não haveriam adquirido essa agência se o Matadouro

não houvesse sido a edificação selecionada. Então, neste caso, mais além das inúmeras

colaborações antes apontadas para a realização do Arte/Cidade, temos como agência

primária específica a figura de Nelson Brissac Peixoto, o idealizador do projeto. Diferente-

mente de José Resende, o seu nível de atuação para “causar eventos na sua vizinhança”, ou

seja, a sua concepção com relação aos trabalhos específicos é de outro espectro, mais

generalista – e, portanto, muito mais ligada aos conceitos anteriormente descritos, porque

esses conceitos são parte da sua própria criação.

Nesse sentido, se as pedras e a grade foram os elementos que se mostraram para

José Resende, o Matadouro e, mais ainda, a própria cidade de São Paulo foram alguns dos

principais elementos que se mostraram para Brissac. E quais eram as questões para ele

relevantes nesse momento? De acordo com Brissac, além da intertextualidade e da

“contaminação” entre diferentes tipos de práticas e suportes artísticos, o primeiro

Arte/Cidade trabalhou a partir do processo de desindustrialização da cidade, cada vez mais

evidente desde os anos 80:

A cidade entrou em colapso porque ela não produzia o suficiente para se manter. Então, cada vez mais, São Paulo viveu 20 anos entrando em crescente decadência funcional e, portanto, tudo entrou em colapso: os transportes, a ocupação urbana, a crise imobiliária, tudo. A cidade não era produtiva e é grande demais para ficar assim. Então, esse era um momento ideal para trabalhar em São Paulo (entrevista realizada em 10/2005).

Nesse sentido, se Brissac trabalhou essencialmente com questões ligadas não apenas

ao isolamento e ao trabalho coletivo dos artistas – como foi visto no segundo capítulo –

mas também à decadência paulistana em meados da década de 90, em especial ao processo

de esvaziamento produtivo da cidade, teriam esses significantes relação com o trabalho das

pedras em movimento? Em outra via associativa, o movimento ininterrupto das pedras

poderia sugerir a fragilidade do processo de soerguimento dessa metrópole e da tentativa de

construção de uma parede que é, em verdade, instável. Ao mesmo tempo, estariam lá os

96

espectadores numa espera (do que pode vir a acontecer)/esperança (de que a parede se

estabeleça). Dessa maneira, essa seria uma leitura não apenas possível, como em estreita

consonância com os elementos da própria materialidade da obra. Incorpore-se a essa idéia a

metáfora corrente também nos discursos sobre o evento segundo a qual a panorâmica de

São Paulo é um aglomerado de paredes de diversos tamanhos, numa idéia que sugere

desequilíbrio. Assim como aponta Agnaldo Farias sobre os trabalhos artísticos do

Arte/Cidade de forma geral,

(...) estavam ali certos aspectos que encontramos na cidade, mas sobre os quais não meditamos ou nem sequer experimentamos de uma maneira consciente, como o problema da opacidade, o problema de uma cidade que não tem horizonte. Porque o horizonte do paulista, como dizia Nelson Rodrigues, não é um horizonte, é uma parede. E essa parede está a 10 metros de uma outra parede (entrevista realizada em 08/2005).

José Resende, no entanto, evita relacionar seu trabalho com o urbano como

temática, no sentido do que poderia representar um confronto direto entre os dois termos

que dão nome ao Arte/Cidade: “esse binômio tem muito a ver com a arte e muito pouco a

ver com a cidade. Eu nunca acreditei na relação e da intenção da cidade nesse contexto”

(entrevista realizada em 08/2005).

Por outro lado, indica em seu discurso de maneira freqüente que trabalha sobretudo

com elementos já presentes no cotidiano, deslocando-os, a partir de um projeto, para a

esfera da arte. Além disso, o próprio artista é um escultor que tem “experiência de cidade”,

já que criou muitas esculturas gigantescas para espaços abertos, como a imensa Vênus

(1992) instalada entre a Visconde de Itaboraí e a Rua do Rosário e conhecida pelos cariocas

como “Negona”55, Passante (1996), no Largo da Carioca, e o Monumento aos 100 Milhões

de Toneladas na Companhia Siderúrgica Nacional (1997), em Volta Redonda. Porto

Alegre acaba de ganhar uma obra de José Resende, que o artista construiu para a 5ª Bienal

do Mercosul, em dezembro de 2005: o trabalho Olhos Atentos – uma estrutura suspensa que

funciona como um mirante sobre a Orla do Guaíba56. A cidade de São Paulo foi a primeira

55 Existem outras versões da Vênus, como a instalada no MAC USP em 1991. 56 O artista construiu a obra com a intenção de criar uma sensação de grande movimento para os passantes, mas os habitantes, temerosos, fizeram com que o trabalho passasse por alterações, de modo a reduzir sua “instabilidade”.

97

a ter uma obra de Resende ao “ar livre”, com um trabalho na Praça da Sé (1979). Depois,

vieram outras, como a do jardim da Pinacoteca do Estado (2000)57.

Essa experiência de cidade, mais além, não é a experiência de uma metrópole

qualquer, mas de uma determinada metrópole e é dessa metrópole, onde nasceu e onde vive

o escultor, que emanaram os elementos para a construção da obra. “Usar o vagão de trem,

pegar um guindaste para articular coisas, claro que tudo isso tem a ver com esse mesmo

repertório comum a quem vive numa cidade como São Paulo”, afirma (entrevista realizada

em 08/2005). Reitera-se, no entanto, que, de acordo com o discurso do artista, essa

experiência não entra na obra como uma “resposta a uma questão urbana”, e sim como uma

“resposta plástica” a partir da observação do fenômeno urbano, tal como ocorreu no

trabalho do Arte/Cidade – ou seja, não há qualquer intenção de criar uma representação de

um protótipo imaginado58.

Para Brissac, “cidade” entrou no trabalho de Resende porque, de alguma maneira,

ele já tinha um repertório para trabalhar com escalas urbanas. “É por isso que ele foi

convidado”, afirma. Por outro lado, embora o trabalho tenha sido “impactante e

extremamente interessante”, suas características não teriam, na sua opinião, respondido às

questões específicas do projeto, ou seja, poderiam ter sido exploradas em outras obras da

carreira do artista, e não apenas no contexto específico do Arte/Cidade: “O que ele fez foi

provocar a percepção que as pessoas têm das escalas e volumes. Mas foi um trabalho

relacionado com a percepção. Outros convidados lidaram com interação das pessoas no seu

espaço. Aí são trabalhos de outra natureza” (entrevista realizada em 10/2005). Já Resende

destaca que foi importante criar a partir de um contexto que não estava relacionado a

57 Em entrevista a Lúcia Carneiro e Ilana Pradilha, Resende conta que existe uma grande diferença entre seus trabalhos expostos em locais abertos em São Paulo e no Rio. Na sua cidade, as obras seriam tratadas de maneira muito mais indiferente, mas aqui obras como a “Negona”, por exemplo, teriam estimulado uma reação afetiva dos habitantes (cf. 1999). 58 Esse posicionamento fica claro quando Resende destaca, dentro do Parangolé de Hélio Oiticica, a observação do fenômeno urbano mais como influência na criação de uma “paleta tropical para a pintura”, baseada nas cores da favela, dos objetos de plástico nos supermercados e nos tecidos dos armarinhos, do que na questão da participação do espectador. “Embora a participação do espectador no Parangolé seja sempre o mais ressaltado, há neles cores e texturas que indicam questões pictóricas tão ricas quanto as da ruptura com o plano pictórico, a favela, o carnaval, a vida marginal, onde naturalmente o aspecto urbano é mais evidente. (...) Acho que ele estabelece e cria uma paleta como visualidade que é extremamente informada pela observação da vivência urbana; como num pedaço de asfalto e muitos outros elementos que estão lá incorporados nos trabalhos” (Resende, 2005).

98

instituições como museus, salões ou a própria Bienal, o que trouxe uma liberdade para o

trabalho, além do desafio de uma escala “desafiadora” e, portanto, mais experimental.

De toda forma, o que transparece no discurso de Brissac é que o primeiro

Arte/Cidade e seus objetos foram uma tentativa inicial de começar a trabalhar com os

artistas em outros ambientes, que apresentassem novas condições de criação e, nesse

sentido, o trabalho de Resende pode ser entendido como um trabalho único e só possível

nesse determinado contexto.

99

4.2. O espaço ressignificado de Rubens Mano

Não há como separar o estético do político, quando tratamos

de ações artísticas inseridas no ambiente das cidades.

Rubens Mano, 2002.

Pedras foram índices; agora foi esse o papel do Viaduto do Chá. Inequívoco pensar

que essa construção do final do século XIX não seja observadora de grande parte das

mudanças ocorridas em São Paulo. Inaugurado com pompa, flores, bandeiras, discursos e

hino, aquele viaduto já nasceu como marco numa então cidadezinha. Era acompanhado pela

simultânea construção de um boulevard, que cruzaria todo o Vale do Anhangabaú; ligava

duas diferentes partes do centro em seu processo de expansão. Logo vieram, de um lado, o

Teatro Municipal e o Mappin (a imensa loja de departamentos que se instalou na Praça

Ramos de Azevedo); de outro, os centros bancários e o crescimento comercial nos

arredores da Praça da República. A “nata” da sociedade passava por lá, para ver os

espetáculos, fazer compras, tomar chá. Meio século depois da inauguração, o viaduto teve

que ser transformado para agüentar a explosão demográfica da região59, e a pequena São

Paulo já era uma grande metrópole. Mais meio século se passou e, em um mês de outubro,

essa via de 240 metros foi reanimada. Cada lado do Anhangabaú recebeu holofotes, que,

apoiados sobre torres metálicas, passaram a projetar potentes luzes sobre os passantes.

Apenas isto: um viaduto, duas torres, dois holofotes.

Dessa vez, foi Rubens Mano que implicou atividade ao Viaduto, espalhando sua

própria agência. Arquiteto de formação, trabalha com fotografia e artes plásticas desde os

anos 80 e participou de importantes exposições na década seguinte, sempre usando a

imagem mais além das suas possibilidades como documento. Especialmente a partir do

Arte/Cidade, sua obra passou a tomar outros contornos, focando-se na questão do espaço,

muitas vezes em áreas abertas. Para Laymert Garcia dos Santos, seu trabalho seria “a

produção do espaço através da transformação do espaço em imagem” (2002). O crítico

entende que seus trabalhos têm três diferentes formas de relação com o espaço, seja por

meio de dispositivos que deixam ver como o espaço se produz; pela busca da força do

59 O viaduto construído pelo francês Jules Marin teve que ser demolido e reconstruído em concreto no ano de 1938, quando passou a ter o dobro de sua largura original. (cf. Sampacentro)

100

próprio espaço; ou por um convite a que o observador “embarque na fluência do espaço”

(cf. Santos, 2002). Em White Cue (1999), por exemplo, pintou totalmente de branco, sem

qualquer tipo de reforma, uma antiga casa em Santa Teresa (RJ), para sugerir uma idéia de

lapso entre o momento presente – e seu acúmulo de experiências passadas – e as

possibilidades futuras (cf. Batista, 1999). Nesse mesmo ano, realizou durante um mês e

meio três intervenções no bairro do Bom Retiro (SP): Bueiro, Telhado e Calçada. Este

último consistiu da instalação de tomadas elétricas no meio do centro de São Paulo,

tornando a eletricidade gratuitamente disponível a quem se interessasse – caso de um

vendedor de discos de vinil. Já no polêmico projeto Vazadores (2002), realizado para a 25ª

Bienal de São Paulo, construiu no prédio de exposições uma passagem localizada no térreo,

composta por um corredor e duas portas, semelhantes às já existentes no local. Uma delas

ligava-se à área externa e a outra dava acesso à exposição, o que acabava também por

oferecer acesso gratuito a quem quisesse visitá-la sem pagar o ingresso de R$ 1260.

Percebe-se, portanto, que suas obras incitam um diálogo com os passantes, no sentido de

introduzi-los a outras possibilidades de interação com o espaço, tornando-os também

agentes nesses processos. Essa intenção fica clara em vários de seus discursos, como

quando revela, por exemplo, por que trocou a arquitetura pela arte: “(...) enquanto para a

arquitetura o espaço ainda aparece como uma dimensão exclusivamente física, para a arte

ele vem sendo compreendido como lugar, onde a conversão de usuários em sujeitos é uma

possibilidade real” (Mano apud Rivitti, 2003).

Diferentemente de Resende, ao ser convidado para o Arte/Cidade, Mano ainda não

tinha uma carreira com grande projeção. O artista acredita que foi lembrado por Brissac

graças à sua participação no projeto Panoramas da Imagem, que realizou de 1992 a 1998,

com Eli Sudbrack, Everton Ballardin e José Fujocka Neto, para discutir a presença da

fotografia na produção artística contemporânea. Uma vez aceita a proposta, foram

60 Embora Mano e a organização do evento (com curadoria de Agnaldo Farias) tivessem tomado cuidado para que a obra não fosse divulgada, o trabalho acabou não sendo realizado conforme fora planejado porque organizadores da Fundação Bienal vetaram-no, alegando perigo de insegurança e evasão de renda do evento. Ao final, chegou-se a um acordo: o trabalho seria liberado se a entrada fosse controlada por um segurança, que liberaria a passagem de acordo com o fluxo de visitantes. Em contrapartida, Mano decidiu “monitorar” as entradas, instalando câmeras perto das duas portas, que transmitiam as imagens para um monitor no segundo andar (cf. Antenore, 2002). Mais ainda, uma segunda parte do projeto, a construção de uma grande abertura na laje do segundo piso do prédio, foi vetada pelos organizadores, alegando que o prédio era tombado. (cf. Farias, 2002).

101

realizadas diversas reuniões para a discussão do projeto, mas sem grandes interferências

dos organizadores no seu trabalho, o que Mano atribui ao fato de ser pouco conhecido

naquele momento:

Como não havia muita expectativa em relação ao trabalho, talvez por minhas ações anteriores não serem tão conhecidas, e a proposta apresentada ao Arte/Cidade não ter sido inicialmente bem compreendida, o processo de produção foi, digamos, bem silencioso. As únicas “limi-tações visíveis”, se é que podemos tratar desta maneira, estavam ligadas à própria espacialidade do Vale do Anhangabaú e à minha preocupação quanto a uma possível interferência do feixe luminoso em outros trabalhos instalados nas proximidades (entrevista realizada em 06/2005).

Portanto, mais uma vez não houve delimitações conceituais restritas, apesar dos

encontros e dos textos da curadoria. Tampouco a parte da produção teve participação

preponderante dos organizadores e Mano acabou sendo responsável por negociar todas as

etapas para conseguir o material de que precisaria, o que demandou grande quantidade de

apoios. No total, sete empresas e instituições tiveram seus nomes vinculados ao trabalho –

num processo que, segundo Mano, foi carregado de entraves burocráticos, principalmente

pelo fato de quase todos os parceiros do trabalho terem sido grandes empresas ou

instituições do Estado. Por outro lado, afirma que teve uma grata surpresa na parte dos

holofotes. De onde poderia sair uma luz tão potente e densa para o trabalho? Mano pensou

nos instrumentos do Exército e, para isso, teve que convencer o general da Brigada de

Artilharia Antiaérea de Santos a fazer o empréstimo. Acabou levando para a obra dois

projetores Sperry (modelo 1941) e duas lâmpadas HMI – equipamentos caros e raros, que

juntos despejavam luzes de 12 mil watts, com 1,5 metro de diâmetro cada facho. Para o

trabalho, conseguiu também um caminhão, que fez o trajeto de ida e volta dos holofotes de

Santos até o Vale do Anhangabaú – um percurso de mais de 70 km por trecho –, além de

estabilizadores, cabos e telas que protegiam os vidros dos projetores e a estrutura de

sustentação dos holofotes, que chegava a 13 metros de altura.

Sobre o trabalho, se a obra de José Resende sugeria mais a associação com outra

ação do que com um texto, aqui é o próprio título paradoxal da obra, Detetor de ausências,

que começa por delimitar seus possíveis sentidos de leitura – poderia, assim, ser

considerado um protótipo, aquilo que encaminha a construção do índice. Em geral, detectar

102

pressupõe a percepção de alguma coisa que existe e está oculta, o detetive procura pistas

para desvendar o seu mistério. Aqui propõe-se o jogo inverso: a busca da ausência, daquilo

que não existe (e deveria ou poderia existir) ou daquilo que já existiu. Mas aqui também,

como na obra de José Resende, a ação foi estimulada por um dispositivo externo. Trata-se

de uma detecção relacionada à luz, que faz brilhar e que tornou possível o ver e o ser visto.

Então, não apenas os holofotes, mas também os passantes foram esses dispositivos porque

não haveria a possibilidade de a obra existir se esses personagens não atravessassem a

iluminação. Numa espécie de renascimento, os transeuntes também passaram de índices a

agentes, atuaram no processo da obra. Não se viam no escuro; passam a se ver numa nova

claridade. Mais ainda, iluminavam-se esses corpos de modo peculiar: metade superex-

postos, metade numa sombra projetada por entre os prédios, o que tornava concomitantes e

complementares os processos de aparecimento e desaparecimento (cf. Santos, 1994).

Tratava-se de meias-luzes/meias-sombras que se alongavam e viravam, no seu gigantismo,

estrelas e monstros sem rosto. Aqui a ação é rasante e fugidia, tal como o movimento dos

passantes. Não existe o tempo da construção, mas o do estranhamento e da recomposição

de rotina. Tudo “em instantes”. Mais ainda, como apontam muitas críticas e o próprio

artista, a obra pode remeter também ao processo fotográfico, absorvendo as características

de uma imagem que nunca chega a se fixar. A luz incide sobre os passantes e se esvai. Só

que, diferentemente do tempo do susto, o instante é agregador, num convite provocativo,

mas pacífico – assim como Mano propõe em seus demais trabalhos:

(...) não costumo criar expectativas em relação aos projetos, e tampouco imagino essas ações como propostas transformadoras. Penso nelas como inserções “silenciosas”, que não procuram provocar qualquer descontinui-dade à paisagem. Apenas sugerir, através de um processo de ressigni-ficação dos espaços, a presença de outros fluxos contidos no interior do ambiente urbano. São ações que procuram atuar em uma linha limite entre o estar e o não estar na condição de arte, realizadas sem que as pessoas saibam se tratar de um projeto, ou serem informadas de que o que ali se apresenta deriva de uma prática artística (apud Rivitti, 2003).

Por outro lado, o Viaduto do Chá, como índice, não se desgarra facilmente de seu

processo histórico, que configura mais do que um cenário e um pano de fundo. Se a ação é

rasante no tempo, pode-se também inferir que é o próprio Viaduto que causa esses

acontecimentos, detectando as ausências de quem passa por ele e permitindo que as pessoas

103

se detectassem nos prédios que circundavam essa via – ou ainda que os prédios que

circundavam a via enxergassem as grandes pessoas que passavam por ela. Além disso, sem

passantes, o Viaduto seria unicamente iluminado – o que pode ter ocorrido – e, nesse caso,

os holofotes – um de cada lado do Anhangabaú – permitiriam detectar uma cidade que não

se veria, com um de seus símbolos atuando de forma metonímica. Então, o processo

fotográfico seria igualmente a imagem de uma cidade que não se fixara, ou a imagem de

uma cidade que comportaria vida, além de seus anonimatos.

Para Mano, embora o Vale do Anhangabaú e o Viaduto do Chá estejam

relacionados às grandes transformações vividas pela cidade ao longo do século XX, pode-

se entender essa região também como o eixo visível de um intenso cruzamento entre

homens e máquinas (“estas, hoje em dia, deslocadas para o andar de baixo do Vale”),

o que ofereceria uma boa oportunidade de reflexão sobre os processos de “desen-

104

raizamento” experimentados nos grandes centros urbanos. Nesse sentido, existe uma

simbiose entre os sentidos gerados pelo Viaduto e os próprios objetivos do trabalho:

A intenção com o trabalho foi avançar sobre uma reflexão quanto aos efeitos decorrentes da desqualificação do espaço urbano e, ao mesmo tempo, me aproximar das implicações associadas aos processos de “desterritorialização” vividos nas metrópoles contemporâneas. Assim, Detetor de ausências surgiu como proposição de um pequeno deslocamento no interior da racionalidade com que observamos o ambiente à nossa volta (entrevista realizada em 06/2006).

Portanto, com esses discursos, Mano indica uma preocupação central com a questão

das metrópoles e, principalmente com a cidade específica de São Paulo, onde nasceu e vive.

Mais ainda, seu trabalho apresenta uma conotação declaradamente política, no sentido

amplo da palavra61, com o convite a uma destinação bastante precisa, que é a apropriação

do espaço por seus habitantes.

Para Brissac, além de ter feito um trabalho determinante em sua carreira, Mano foi

um dos artistas que apresentou uma nova maneira de lidar com sua obra, tornando-se um

agenciador do processo produtivo: “O Rubens Mano era um cara que tinha pouquíssima

experiência, era um artista muito fresco, mas foi até Santos e conseguiu que dessem pra ele

imensos refletores...”, conta (entrevista realizada em 04/2005). Além disso, essa teria sido

uma das primeiras criações a trabalhar não só com o espaço, mas com a dinâmica do

próprio espaço. “A aposta no trabalho deles [Rubens Mano e Guto Lacaz62] mostrou a

possibilidade de uma outra escala nos trabalhos”, afirma. Portanto, essa obra teria, na sua

opinião, apontado as mudanças que se consolidariam na forma de atuação dos artistas

dentro do projeto e na sua relação com o espaço da cidade, abrindo novas possibilidades de

atuação para os eventos seguintes.

O próprio Mano considera que o processo de produção incorporou-se às questões

conceituais de seu trabalho, já que “o grau de ‘inscrição’ pretendido junto aos envolvidos

61 Como lembra Tadeu Chiarelli, trata-se de uma postura política que não se assemelha à imagem de artista revolucionário. Segundo o crítico, diferentemente de seus antecessores mais imediatos, Mano não possui resquícios utópicos de transformação da arte por meio de sua libertação da estética, ou de dirigi-la contra o sistema sócio-político, ou ainda de cultivá-la como crítica ao próprio sistema de arte (cf. 2001). 62 Ver descrição do trabalho de Lacaz no capítulo 2 e imagem no anexo.

105

estava diretamente relacionado à clareza com que as intenções e propósitos eram

apresentados”:

Durante a fase de produção do trabalho, percebi que o fator de atração dos colaboradores e empresas procuradas não estava necessariamente ligado à compreensão e ao alcance de seus resultados, mas ao fato de eles se perceberem diante de um pequeno “desvio” quanto aos seus habituais processos de produção. Assim, a proposição de um “deslocamento”, formulada pelo projeto, passou a ter significado não apenas na etapa de recepção do trabalho, mas principalmente em sua produção (entrevista realizada em 06/2006).

Reproduziu-se ou intensificou-se, assim, a expectativa inicial da obra, que era

causar uma sensação de estranhamento em relação aos processos correntes de atividade,

com o próprio ato instaurando sentidos que se compõem mais além da tríade modernista do

artista, obra e espectador. Com a agência espalhada por todos os vetores dessa ação, foram

injetadas novas possibilidades na concepção das obras posteriores de Mano, que passou a

adotar a etapa de produção como parte integrante de seus projetos.

Quanto às questões que norteavam Brissac nesta edição, se o ano era o mesmo do

primeiro Arte/Cidade, sua intenção era justamente abandonar a proposta de exibição em um

espaço circunscrito para demarcar uma maior aderência ao tecido urbano, com a produção

de movimentações que remetessem aos percursos, deslocamentos, trânsitos e que afetassem

o espaço como um todo. “A questão é a distância e a tensão entre os locais”, aponta

(2002:64). Então, privilegia categorias como fugacidade, velocidade e aceleração, no que

parece endossar o conceito de cidade informacional, disseminado por Manuel Castells:

No es la ciudad de las tecnologías de la información profetizada por los futurólogos. Ni es la tecnópolis totalitaria denunciada por la nostalgia del tiempo pasado. Es la ciudad de nuestra sociedad, como la ciudad industrial fue la forma urbana de la sociedad que estamos dejando. Es una ciudad hecha de nuestro potencial de productividad y de nuestra capacidad de destrucción, de nuestras proezas tecnológicas y de nuestras miserias sociales, de nuestros sueños y de nuestras pesadillas. La ciudad informacional es nuestra circunstancia (1995:19).

Valorizam-se, nesse sentido, as possibilidades de conexão aos fluxos globais, a

partir de um vínculo entre alta tecnologia e tradição. Não por acaso foi esta a edição em que

Brissac aludiu constantemente às novas formas de comunicação e aos novos usos da

106

tecnologia. Além da categoria fluxos, e não independente dela, está também como bandeira

do projeto a ampliação das escalas – mesmo argumento que usa para elogiar o trabalho de

Mano. Segundo Brissac, na primeira edição a escala seria a do indivíduo; nesta, a escala já

estaria “saturada e densa demais para se prestar ao passeio” (2002:66). Propõe, na nova

situação, a aquisição de uma escala diferente, desmedida, como forma de enfrentar o

adensamento desse tecido:

Agora não se tem mais o indivíduo como medida: as escalas são outras. Domínio do desmedido – o horror e o sublime do urbano. A questão aqui é estar à medida dos prédios, na proporção desses grandes espaços. (...) Um confronto com algo que vai ser sempre maior (Peixoto, 2002e:66).

Assim como será potencializado na edição seguinte, Brissac já adjetivava nessa

edição o espaço da cidade como monstruoso e opressor, como se os indivíduos não tives-

sem possibilidade de escapar dessa trama fatalista, à imagem de um suicídio durkheimiano.

O organizador, no entanto, parece tentar se aproximar dessa cidade e, se classifica a

experiência como fugaz, os novos deslocamentos vêm unidos a um sentido de localidade.

Uma nebulosa na qual se pode apenas fincar pontos de referência, como uma intervenção cirúrgica ou militar, o teatro de operações situando-se neste extenso campo. É um lugar de passagem, simbolizado pelo viaduto do Chá. Num dos pólos, o prédio da Eletropaulo. Do lado oposto do Anhangabaú, a antiga sede do Banco do Brasil. E ainda o edifício Guanabara, na esquina da Av. São João. Além disso, a área do vale e as ruas circundantes (Peixoto, 2002e:62).

Mas, ainda que o centro de São Paulo seja “simbolizado pelo Viaduto do Chá”,

trata-se de uma “nebulosa” que não escapa à sua própria fragmentação e dispersão. Embora

entendia-se que os percursos provocados pelas obras poderiam costurar novamente e

diversamente tramas dispersas, nesse trajeto artificial anuncia-se claramente uma

impossibilidade.

Alguns conceitos, como anonimato, velocidade, gigantismo, movimento, Viaduto

do Chá e cidade, indicam uma estreita correspondência entre muitos sentidos propostos

para a segunda edição e a obra de Mano. Essa relação chega a tal ponto de acordo que os

escritos de Brissac sobre o evento poderiam, em certos momentos e com um relativo grau

de distanciamento, descrever pontualmente a obra de Mano: “O tema do ofuscamento

107

atravessa todas as obras: a luz que entra, frontal, desfazendo as figuras, prismando a

paisagem. Tudo é transparência e trânsito: a cidade e seus fluxos” (Peixoto, 2002e:69, grifo

do autor). No livro Paisagens urbanas (Peixoto, 1996), Brissac demonstra a sua relação de

admiração com a obra, reservando cinco páginas para ela. Nesse caso, ele abandona as

referências pontuais sobre o Viaduto do Chá e a cidade de São Paulo; agora, descreve nada

mais do que o viaduto e a cidade, sem especificidades. Interessam-lhe especialmente as

associações da obra com os processos fotográficos. “A instalação é sobre luz. Fotografar o

invisível, o que não tem registro, o que não se pode reter. Deter ausências” (1996:42).

Mas, apesar das semelhanças, houve também diferenças entre as propostas, como a

questão do pequeno, muito mais nítida no trabalho de Mano – no convite ao olhar da

própria sombra – mesmo que ela fosse gigantesca – e à aproximação com relação à cidade

apagada. Enquanto em Brissac o anonimato é inevitável, para Mano, o anonimato não

existe por si, mas para que se resgate uma importância, como a detecção do título.

Divergiram também os conceitos de público. Por um lado, o organizador identificou

nessa edição uma oportunidade de levar as pessoas ao centro da cidade de São Paulo:

Levar as pessoas para o centro da cidade no Arte/Cidade 2 foi uma revolução, por incrível que isso possa parecer. As pessoas não iam mais, apesar de o centro ser muito movimentado. Mas só as pessoas que trabalhavam no centro iam para lá naquele momento (entrevista realizada em 10/2005).

Isso pressupõe que importantes receptores do Arte/Cidade 2 eram especialmente os

não-passantes, aqueles que não iam habitualmente ao centro de São Paulo. Já para Mano

são principalmente os desavisados que melhor compõem a sua obra, porque era a distração

que permitiria um reencontro com aquilo que havia escapado à experiência da cidade, era

sobretudo o resgate de ausência habituada.

O trabalho de Mano, dessa forma, endossou e acentuou os contornos gerais da

edição, mas salvaguardando suas próprias especificidades, aportou uma relação mais

afetiva e polifônica com o espaço da cidade, abrindo novas possibilidades de repertório

para os próprios organizadores.

108

109

4.3. Nelson Felix, ‘impregnado de pensamento’

Arte tem a ver com impregnação de energia,

impregnação mesmo de vida, de alma.

Nelson Felix, 2006.

No meio daqueles trilhos, um ex-moinho, que se tornou um grande fantasma

desocupado, virou escultura. O processo que permitiu essa “passagem” não se relacionava

com a recuperação de um antigo trajeto histórico, mas principalmente com a constatação de

uma potência rítmica, de um balanço, de uma dança. E foi o corte em partes do prédio que

possibilitou a apreensão de sua própria arquitetura. Quando três pedaços do segundo

pavimento foram cortados e pendurados em cabos de aço, sustentando-se rentes ao piso

inferior, aquela edificação voltou a ser tocada, mostrando seu peso e sua imponência.

Mostrou também a sua aparência de instabilidade, já que, embora erguida, anunciava

continuamente a possibilidade de queda.

110

Aí temos mais um trabalho com a agência de Nelson Felix, o escultor e desenhista

que mora no pequeno distrito de Muri (Nova Friburgo, RJ). Formado em arquitetura,

chegou a estudar com Lygia Pape e Ivan Serpa e começou a expor nos anos 80. Uma de

suas primeiras coletivas foi a já mencionada Como vai você, geração 80?, no Parque Lage.

Nessa década, começou também a projetar um de seus mais importantes trabalhos, o

Grande Budha (1985-2000), uma obra realizada em uma floresta no Acre, em que

introduziu seis garras de latão no tronco de uma muda de mogno. Assim como em outros

trabalhos, explorou nesse especialmente a questão do tempo e da relação entre elementos

orgânicos e culturais. “Em alguns casos imediatos, como o Grande Budha, você põe o

tempo na cabeça como um filme e imediatamente vai pensando outras questões. (...) Não há

um ser humano que olhe o Grande Budha e não o continue na cabeça”, afirma (2005:36).

Em Mesa (1999), realizado numa área aberta de Uruguaiana (RS), formou uma mesa de 51

metros de comprimento e plantou ao seu redor mais de vinte figueiras-da-índia, pensando já

plasticamente no momento em que as árvores teriam crescido e “invadido” a gigantesca

escultura – mesmo tipo de antecipação que alimentava o Grande Budha. Trabalha também

com questões sobre o corpo – como nas obras Vazio Coração e Vazio Sexo – e com uma

espiritualidade não religiosa e mais ligada à filosofia oriental, que perpassa conceitualmente

todas as suas obras. Outro elemento que o artista percebeu recorrente em seus trabalhos foi

a cruz e passou a usar essa idéia de maneira intencional. “Eu comecei a notar que eu sempre

trabalhava com a cruz, a noção de tensão da cruz, onde duas polaridades se juntam e têm

um centro” (entrevista realizada em 05/2006). Por exemplo, Cruz da América baseou-se

nesse conceito porque essa era a imagem que formavam as coordenadas dos locais onde se

realizaram os trabalhos Grande Budha, Mesa e os dois trabalhos do Vazio Coração (o

litoral do Ceará e o deserto do Atacama)63. Além de ter alguns livros sobre a sua

trajetória64, realizou uma grande exposição no Paço Imperial em 2005, chamada Trilogias,

em que apresentou três trilogias que constituem seus trabalhos: a Trilogia do Tempo, a Tri-

63 No Atacama, Felix fez uma série fotográfica, em que ajustava a velocidade da máquina segundo as batidas do seu coração. No Ceará, construiu em uma praia uma escultura feita em mármore, com 22 pinos de ferro. 64 Cf. Felix, 1998, 2002 e 2005.

111

logia do Vazio e a Trilogia da Cruz. Ao final, o artista entende que esses temas se reiteram

porque seus trabalhos são sempre o mesmo trabalho, mas realizados de variadas maneiras65.

O convite para participar do Arte/Cidade surgiu de Nelson Brissac, a quem não

conhecia. Felix já tinha ouvido falar do projeto porque era amigo de José Resende e haviam

conversado sobre o trabalho dele na primeira edição. Além de material dos projetos

anteriores, Brissac enviou a Felix fotografias do Moinho Central e, como única indicação,

afirmou que o artista trabalharia naquele local determinado. “Ele falou: ‘Olha, é uma

interferência num espaço, que é um antigo moinho, pode fazer qualquer coisa’” (entrevista

realizada em 05/2006). Felix “ficou de pensar”, mas vislumbrou naquele momento a

possibilidade de colocar em prática idéias que já o acompanhavam havia muitos anos.

Eu estava com a idéia do trabalho que eu fiz em Uruguaiana [Mesa], (...) já tinha o Grande Budha no Acre. (...) E aí, quando pintou essa proposta, eu disse: “Vou levar essa tensão desses trabalhos pra arquitetura, que eu tinha resolvido com o tempo, através de elementos vegetais”. Então, eu pensei: “Com a arquitetura, eu acho que posso resolver pela tensão do espaço, e não pelo tempo. (...) Eu quero transferir os pesos, trocar os pesos de lugar” (entrevista realizada em 05/2006).

Passaram-se dois dias e os Nelsons voltaram a se falar; Felix contou a sua idéia para

Brissac. “Ele falou: ‘Está meio maluco, bicho?’”. O escultor disse que conhecia uma pessoa

que poderia fazer o trabalho com ele e se responsabilizar pelo deslocamento dos pesos.

Tratava-se de Ary Perez, o engenheiro que o havia auxiliado em seu trabalho Vão (1996),

realizado para a Bienal de São Paulo66. Juntos, os dois começaram a pensar na transferência

de peso dessa estrutura a partir das possibilidades de deslocamento de lajes. A idéia era

recortar três trechos do piso do segundo pavimento – cada um de 3,7 metros por 3,7 metros

– e pendurá-los próximos ao piso do primeiro pavimento. De acordo com Perez, a obra foi

feita com muito pouco dinheiro, porque ele conseguiu os materiais necessários em outras

obras de engenharia, e contava com uma equipe muito pequena. “Eram dois sujeitos: um

ficava trazendo água, o outro serrando” (entrevista realizada em 08/2005). Além disso,

65 “Na realidade, a gente tem uma, duas, três idéias e o grande lance é você afinar elas cada vez mais e colocar elas em situações diferentes para ver se elas respondem as suas questões, se elas respondem a sua vida. Eu quero ver como a espiritualidade respira numa arquitetura, eu quero ver como a espiritualidade respira numa favela, numa floresta. (...) Literalmente, é sempre a mesma coisa. Só que diferente” (entrevista realizada em 06/2006). 66 Felix foi premiado por esta obra, em que trabalhava com os vazios existentes no interior do cérebro.

112

depois dos cálculos feitos, o tempo para a realização do trabalho foi muito curto: cerca de

três dias para cortar as lajes e aproximadamente quatro horas para pendurá-las. Facilitou o

processo também a falta de impedimentos legais para conseguir autorizações, o que,

segundo Felix, devia-se ao fato de tudo aquilo ser muito novo e também de a própria

conjuntura do país ainda carecer, naquele momento, de organizações nesse sentido. Para

Perez, um trabalho como esse teria sido proibido em qualquer outro lugar do mundo: “Não

vão deixar você cortar um edifício industrial, porque isso, do ponto de vista patrimonial, é

um afronte” (entrevista realizada em 08/2005). Mas o fato de o prédio não ser especial-

mente importante, apesar de estar “caindo”, ajudou a concentrar todos os problemas apenas

na parte técnica do trabalho, e não naquilo que o circundava. “A dificuldade era só a

realização, porque não tinha grana, não tinha isso, não tinha aquilo, ninguém estava junto”,

afirma Felix (entrevista realizada em 05/2006).

O processo, no entanto, não foi simples porque a ousadia da obra cercou-a de

tensão. Suas dimensões e a instabilidade que sugeria assustavam não apenas os organiza-

dores, mas também o próprio Nelson Felix:

Dá cagaço. Você amarrar essa laje, começar a descer, você fica com medo de a pessoa levar um tombo, de estar mal amarrado, passa tudo na sua cabeça. Eu me lembro que uma noite eu fui pro hotel e não consegui dormir a noite toda. Eu fiquei pensando como é que o cara ia tirar a talha de lá de cima. O cara tinha que subir dois andares, mais ou menos oito metros de altura, agarrado num cabo de aço, pra tirar uma talha lá de cima, que devia pesar uns 50 kg, 60kg. Eu fiquei a noite inteira pensando nisso e não dormi (entrevista realizada em 05/2006).

Perez colocava-se de maneira diferente diante da situação porque acreditava que

esse temor se relacionasse com a falta de abstração analítica dos artistas, que, acostumados

a se encerrar em seus ateliês, acabavam desconhecendo os processos de construção e

desconfiando dos cálculos da engenharia.

Se você chega para um artista e fala que precisa de um fio de 1 mm para segurar isso daqui, porque você calculou, você fez a tensão e tal, o artista não acredita: “Mas como é que eu vou ficar aqui embaixo?”. (...) O Nelson [Felix] não ficava no espaço, ele saía correndo. (...) Ele dizia: “Eu não tenho estrutura emocional pra vivenciar uma situação dessas, eu não consigo” (entrevista realizada em 08/2005).

113

De modo geral, os organizadores e artistas também não acreditavam que o trabalho

poderia ser feito e foi isso mesmo que possibilitou que Lajes fosse realizado sem maiores

intervenções. Ainda assim, o processo acabou atrasando e sua finalização aconteceu apenas

durante a abertura do Arte/Cidade 3. “As lajes desceram durante a abertura da exposição.

Então, foi um espetáculo. A laje tinha tudo para ser espetáculo, ou seja, a laje foi descendo

e a exposição abrindo. Tinha até TV embaixo, filmando.” (Felix, entrevista de 05/2006).

O artista acabou tornando-se ele mesmo um receptor de sua própria obra, surpreso

ao lidar com a magnitude de seus resultados: “Eu sabia com o que eu estava lidando, eu

estudei arquitetura, mas eu confesso que quando a gente desceu a primeira laje... (...) Eu me

lembro de que eu falei para o Ary [Perez]: a sensação estética da escultura é imediata!”,

brinca (entrevista realizada em 05/2006).

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O discurso de Felix anunciou, assim, que uma das principais características da obra

era seu caráter espetacular e, tal como no trabalho de José Resende, o espetáculo que

acompanhava Lajes incorporou a dupla dimensão do medo e do fascínio. Medo do perigo

de queda, medo da mudança brusca daquela arquitetura em ruínas, medo de uma destruição

iminente. O fascínio, por outro lado, remetia à própria ousadia do feito, mas também se

instaurava na possibilidade aberta pelos vãos de deixar ver o que estava velado: o esqueleto

do Moinho, bem como os outros andares e obras. Mais ainda, o fascínio se apresentava no

movimento que aquelas lajes conquistaram, com um balanço, apesar de suas dimensões. O

chão já não estava parado, mas quase rodando, brincando, serelepe pelos ares – lugar onde,

numa arquitetura, nunca deveria estar.

Uma coisa é você ver uma lâmina de ferro rodar, de dez quilos. Outra coisa é você ver três lajes dessas, de onze quilos, rodando, sendo que a gente cortou também viga, a gente não cortou só a laje. Então, você tem noção dessa coisa, a presença ali, você se tornava pequeno. Ao mesmo tempo, tinha a vazão de um andar para o outro. Você conseguia ver dois andares (entrevista realizada em 05/2006).

E o que possibilitou esse balanço, o que potencializou essa sensação, foi nada mais

do que o elemento que permitiu a sua sustentação: um cabo. Então, foi um simples fio que

deixou ver aquele imenso pedaço de concreto, que permitiu a sensação de peso e a noção

daquela totalidade. “Vendo pelo lado escultórico, o único elemento que foi acrescentado lá

foi o cabo de aço. Mas a escultura entre aspas virou o prédio inteiro”, afirma Felix. Por esse

motivo, para o artista era tão importante que as lajes fossem sustentadas, cada uma, não por

três – como foi sugerido –, senão por um único cabo de aço. Como coloca a crítica de arte

Rosalind Krauss a respeito da obra Duplo negativo (1969), de Michel Heizer67, a única

forma de experimentar aquele trabalho era estando dentro dele – “habitá-lo à maneira como

imaginamos habitar o espaço de nossos corpos” (1998:334). Aqui também, em Lajes, só se

pode experimentar a escultura estando dentro dela, mas trata-se neste caso de um corpo

cheio de ambigüidades e polissemias, um corpo desconfortável – num risco de perda – e um

corpo pleno – na aquisição de novas possibilidades visuais.

67 Realizado no deserto de Nevada, o trabalho consistia em “duas fendas, cada qual com 12 m de profundidade e 30 de comprimento, escavadas no topo das duas mesetas situadas uma defronte à outra e separadas por um desfiladeiro profundo” (Krauss, 1998:334).

115

Para o artista, mais além das associações estabelecidas pelo peso e pelo volume das

lajes, a cruz também acabou se associando a este trabalho – num raro caso de protótipo que

atua a posteriori. É que, com o convite para participar do Arte/Cidade 4, Felix realizou uma

obra que considerou complementar a Lajes, chamada Pilar (2002). Esta remete diretamente

ao tipo de intervenção feita em Grande Budha, já que inseriu uma viga de ferro num pilar

de sustentação no primeiro andar do Sesc Belenzinho, que acabou trabalhando com a

sustentação do próprio edifício. Novamente, portanto, a escultura era o prédio e o trabalho

baseava-se no deslocamento de peso, mas as duas obras traduziam-se, de acordo com o

artista, de maneiras diversas.

O conceito é o mesmo, mas o segundo é mais conceitual porque nada acontece no Pilar. Inclusive, quando abriu a exposição, as pessoas viam a obra e não entendiam por que tinha sido tão anunciada. Quer dizer, uma pessoa que não tinha nenhuma noção de espaço, olhava aquilo e não achava que tinha trabalho. (entrevista realizada em 05/2006).

Enquanto as Lajes se abriam ao espetáculo, o Pilar “não tinha festa, não tinha

nada”. As tensões e cortes também se complementavam: num, os cortes foram feitos na

vertical e a tensão se dava no plano horizontal; no outro, o corte foi feito na vertical e a

tensão era horizontal – daí a imagem da cruz. “O que eu acho bonito do Pilar é que ele

resolve tudo e ainda diz: ‘olha, eu nem quero aparecer’. A Laje ainda queria aparecer. É

como se fosse uma ópera e o pilar é um violino, é um violino que toca um agudo

violentíssimo” (entrevista realizada em 05/2006). Se um era exuberante e outro, discreto, o

processo de execução também inverteu-se no segundo trabalho: uma equipe de cerca de 50

profissionais, de oito diferentes empresas, foi necessária para realizar Pilar – o que

demandou um longo tempo de produção –, além de as negociações para conseguirem

autorizações com a prefeitura e permissões técnicas terem se tornado bastante mais

complicadas. Segundo Nelson Brissac,

116

Tinham 15 engenheiros do Sesc, que era proprietário do prédio, acompanhando o projeto. Ele [Nelson Felix] teve que ser capaz de negociar com gente que constrói – e não destrói –, dizendo o motivo do trabalho. Ele teve que ser capaz de convencer os caras de que aquilo era possível, os caras tiveram que garantir que o prédio não ia cair, o que é uma responsabilidade enorme (...) (entrevista realizada em 04/2005).

Por outro lado, Felix já tinha confiança na viabilidade e na segurança do trabalho e

ficava menos tenso com os possíveis imprevistos da obra. “Com o Pilar, eu ia para o hotel

e dormia” (entrevista realizada em 05/2006). Desta vez, novamente Ary Perez participou da

sua produção, mas tamanho foi o seu comprometimento com o projeto que o artista

convidou-o para “assiná-lo” com ele.

Então, assim como Grande Budha, Mesa e Vazio Coração – trabalhos anteriormente

mencionados, que, por suas coordenadas, formam o conjunto Cruz da América –, Lajes e

Pilar acabaram-se tornando, por motivos diferentes, um dos vértices da Trilogia da Cruz68 e

dois dos trabalhos mais importantes da carreira de Felix.

Mas Lajes não era um trabalho individual e, antes de se agrupar aos próprios

trabalhos de Felix, participava do grande conjunto que era o Arte/Cidade 3 – uma edição

que, como descrito no capítulo 2, foi feita ao longo de uma linha de trem. Nessa situação,

uma grande questão para Brissac era resgatar um pouco da história do universo fabril que

se situava ao longo daquelas ferrovias. Daí o subtítulo A cidade e suas histórias.

(...) aqui não é o movimento que interessa, não é a experiência do deslocamento que se quer ressaltar. Trata-se do percurso como fio condutor da organização e da história da cidade. Essa viagem se faz essencialmente no tempo. O passado como um solo arqueológico, o transcorrer do tempo evidenciado em formas espaciais, nas coisas e nos lugares (Peixoto, 2002e:103).

68 O terceiro trabalho da Trilogia da Cruz é a Série Árabe, realizada em 2001, nas cavalariças do Parque Lage (RJ), também com a colaboração de Ary Perez.

117

Essas “coisas e lugares” eram, em primeiro lugar, as próprias ferrovias. Neste caso,

Brissac destaca tanto a conquista dos espaços pelo trem como o seu processo de

decadência, com vagões e locomotivas depredados, equipamentos e maquinária subutili-

zados. Considera importantes, nesse sentido, sua velocidade e suas características de

permanência – “um mundo de coisas que se opõem ao movimento”. “Não é fácil arrancá-

las [as coisas] do chão, elas não se deixam facilmente erradicar. Têm peso, inércia, exigem

grande esforço” (2002:106). Se aceleração, em termos de processo histórico, e resistência

convivem no discurso de Brissac sobre as ferrovias, existe nesse universo criado uma carga

histórica carregada de magnitude. A cidade foi feita com muito esforço, mas tão arraigada

que é em si mesma e no seu processo construtivo, ela resiste – parece dizer. Nesse sentido,

afirma que o trem, com suas chaminés, guardou consigo a sua própria desagregação e a

carga violenta dos grandes deslocamentos necessários para as construções das estradas de

ferro. Mais ainda, aponta a lembrança dos espaços que cortavam essas estradas, já

desagregados e destruídos, tais como as indústrias Matarazzo – um dos maiores conjuntos

industriais já construídos em São Paulo – e a própria Estação da Luz.

O Moinho Central, no entanto, estava em certo sentido na contracorrente desse

movimento de lembrança: não carregava memória – como disse Nelson Felix, “não era um

prédio importante”. Era apenas um prédio esquecido, cuja história ficava submersa diante

de seu processo de destruição – característica que também Brissac indica em seu discurso:

Enquanto a área das antigas Indústrias Matarazzo é um campo repleto de indícios de história, o edifício do Moinho Central – uma estrutura de concreto – não guarda sequer um vestígio de memória. Nenhum traço das atividades que ali se desenrolavam. Tudo o que se tem são marcas da ocupação miserável recente, da pobreza que hoje ocasionalmente habita o local. O prédio parece ter sido palco de uma guerra civil. (Peixoto, 2002e:109)

Se memória e falta de memória confundiam-se na seleção dessas edificações, é

principalmente a grandiosidade que cerca os processos sugeridos de construção, em

oposição aos rastros anunciados de destruição, que é destacada. Essa dimensão resvalou,

em primeiro lugar, na elaboração do evento, que implicou negociações muito mais

elaboradas. “Na época do terceiro Arte/Cidade, estavam privatizando os trens, as

118

companhias ferroviárias todas. Ninguém sabia o que ia acontecer”, afirma Nelson Brissac

(entrevista realizada em 04/2005). Então, como três companhias de trem atuavam na

mesma região, foi necessário obter o apoio de todas elas.

O grandioso também está na amplitude adquirida, com relação às edições anteriores,

em termos de extensão territorial, de quantidade de projetos e de tipos de manifestação –

dimensão que provocou igualmente uma nova relação com a utilização do espaço. No

artigo “Grandes escalas” (2002b), Brissac apresenta esse evento a partir de conceitos como

“diálogos com o distante” e as novas formas de experiência e percepção das megalópoles69.

Nesse sentido, a questão das grandes escalas urbanas foi um dos principais direcionamentos

propostos aos artistas na maneira de realizar suas obras. “É fundamental, no projeto

Arte/Cidade, esse enfrentamento com dimensões que implicam incomensurabilidade, que

escapam à nossa percepção” (Peixoto, 2002b:188). Manifesta-se, assim, freqüentemente

esse sintoma de Brissac, que privilegia as grandes formas de narração.

Sobre Felix, acredita que o artista tenha sido uma referência fundamental para

enriquecer o repertório do projeto, tanto por seu tipo de proposta com relação à percepção

do espaço – de um espaço construído para aquilo que está ao redor – quanto pela escala de

negociações que propôs para a realização de seus trabalhos, como já mencionado70. “Nos

dois Arte/Cidade que ele participou, ele fez coisas decisivas na articulação entre uma escala

precisa, local, na compreensão de uma escala maior” (entrevista realizada em 10/2005).

Isso significa que a possibilidade de encontro entre as duas propostas está principalmente

no desdobramento de suas possibilidades construtivas e da magnitude que engendra esse

processo, acompanhada pela magnitude do evento e estimulada pela própria magnitude do

espaço proposto. Mais além, se o espaço do evento é protagonizado por um trem que

articula física e mentalmente pontos separados, da mesma maneira Lajes reintegra a noção

de totalidade daquela arquitetura arruinada de que se apropriou71.

69 Para tanto, Brissac aponta influências no campo da arte que trabalharam com grandes espaços, como as experiências da land art (cf. Peixoto, 2002:182-189). 70 Brissac coloca que, embora as obras de Felix tenham sido interessantes, o mais importante da relação entre eles foi a troca intelectual que surgiu nessa relação. O primeiro chegou a escrever um artigo para o escultor, no livro Nelson Felix (2001). 71 Na opinião de Ary Perez, se o segundo Arte/Cidade já trabalhava com grandes dimensões, havia uma limitação de vocabulário porque usava as mesmas metáforas, a mesma linguagem e os mesmos materiais de outros eventos de arte. Foi apenas no terceiro que as grandes escalas teriam passado a constituir novas questões para a criação artística (entrevista realizada em 08/2005).

119

Ligado também à idéia de grandiosidade, o medo da queda e da instabilidade faz

com que os espectadores sintam-se pequenos diante da obra de Felix, incluindo o próprio

artista. Um tom ameaçador também se apresenta no discurso de Brissac, quando não raro

coloca o homem se confrontando com a sua própria destruição:

A cidade moderna é o palco de transformações incessantes, que revelam sua precariedade. Ruínas e obras se confundem. (...) Basta contemplar, de um ponto elevado qualquer, esse ajuntamento de prédios e monumentos para que se tenha a sensação de que estão predestinados ao desastre. Dessas alturas, o que se torna mais claramente perceptível é a ameaça (Peixoto, 2002e:112).

Portanto, se com freqüência Brissac descreve as cidades como pós-industriais e pós-

arquitetônicas, o mito da modernidade retoma esporadicamente seu papel ilustrativo, para

caracterizar a cidade como não agregadora e com uma carga que indica unidade e poder, tal

como se fosse uma estrutura unívoca. O medo de Felix, no entanto, é uma sensação

momentânea, que revela o próprio esqueleto de sua elaboração, possibilitando que esse

medo seja reprocessado como uma brincadeira.

Mas a arquitetura também cria encontros entre as propostas de Brissac e Felix. Se o

evento se diferenciou dos anteriores também por absorver obras de arquitetos, é inegável

que o pensamento arquitetônico de Felix seja constitutivo de seu trabalho. Trata-se de uma

obra sobre o deslocamento de pesos de uma arquitetura; trata-se de uma obra em que a

própria arquitetura se faz presente.

Por outro lado, a questão histórica vinculada aos espaços propostos passou longe da

criação de Felix, que não mostrou em seu discurso um elo que fizesse reconhecer o Moinho

Santista e as ferrovias como os espaços trabalhados, mas sim um ex-moinho.

Diferentemente da imagem do Acre na criação do Grande Budha, dotada de um respeito

quase religioso, aqui tratava-se de uma edificação genérica, que se mostrava interessante

por seu caráter desimportante – e seu conseqüente convite à desconstrução. Portanto,

mesmo ruínas genéricas – e não apenas quando constituem patrimônio – podem estimular

uma atuação sobre o desaparecimento, salvando de alguma forma aquilo que estava

destinado ao esquecimento, assim como compara José Reginaldo dos Santos Gonçalves:

Uma vez que estou assumindo que os objetos classificados como “patrimônio cultural” são análogos às ruínas, é possível dizer que podem

120

ser consideradas por esse duplo aspecto: desaparecimento e construção imaginativa, perda e apropriação, dispersão e coleção, destruição e preservação, contingência e redenção (Gonçalves, 1996:30).

Nessa situação, muito além da história estava a possibilidade de ordenar, indicando

a totalidade de alguma coisa que estava dispersa de si mesma, mas com a potência que

oferece um aspecto arruinado e entrópico. O tempo, portanto, também é genérico, e não

retrospectivo ou prospectivo, como em Mesa. Quando ele se instala na obra, acompanha de

certa maneira o tempo fugidio do espetáculo; as lajes podem cair “a qualquer momento”,

enquanto o pilar deixa a gravidade fazer pesar o tempo.

Mas, embora o tempo tenha sido um importante elemento simbólico para a terceira

edição, não foi a característica que mais sobressaiu no conjunto dos trabalhos e dos

processos. Observa-se, assim, que, se para Felix o Arte/Cidade representou uma boa

oportunidade para criar um trabalho principalmente condizente com a sua própria trajetória,

também Lajes reiterou e alimentou as principais linhas projetadas para esse evento.

121

4.4. Vito Acconci e a construção do cotidiano

I turned to architecture because it is the art of daily life.

Vito Acconci apud Carlini, 2002.

Na última edição do Arte/Cidade, muitos trabalhos foram criados não a partir de

índices materiais, mas de situações selecionadas em áreas das quais já Lévi-Strauss (cf.

1981 e 1996) lembrava-se como bastante populares – e hoje, abandonadas – na região

central de São Paulo. Um dos locais que pareceu ser interessante para o projeto era o Largo

do Glicério, na divisa entre o centro e a zona leste. Inicialmente ocupado por fábricas e

residências de operários, passou a ser cortado por vias expressas, o que acabou afastando a

construção de áreas de lazer e atraindo cortiços, tráfico de drogas e prostituição. Por essa

pequena área, passam diariamente milhares de pessoas e automóveis, além de conviverem

igrejas de variados credos – incluindo uma imensa Assembléia de Deus – e cooperativas de

triagem de lixo. Foi nesse espaço que as populações de rua e os sem-teto, numerosos

habitantes do local, tornaram-se eles mesmos índices e agentes, quando foi construído um

abrigo debaixo do viaduto onde moravam72.

Esse novo espaço foi um projeto do Studio Acconci – um escritório de arquitetura

localizado no Brooklyn e formado no final dos anos 80 pelo artista novaioriquino Vito

Acconci. Lá trabalha com um grupo de arquitetos e juntos criam projetos para diferentes

tipos de espaço, especialmente abertos, como ruas, praças e parques. A idéia de criar o

escritório surgiu da aproximação cada vez maior de Acconci com a arquitetura, apesar de

não ser arquiteto. “I needed people to work with, because I didn’t have any particular skills.

Can’t draw, can’t build”73, afirma. Sua trajetória é bastante diversificada, mas são

invariáveis os questionamentos sobre espaço e sobre as relações entre público e privado –

seja em obras relacionadas ao corpo e ao self; seja em obras que criticam os tradicionais

papéis exercidos pelos personagens e instituições da arte; seja em projetos que propõem

72 Construído nos anos 70, o viaduto do Glicério é uma das alças de um elevado que chega à zona leste da cidade. São freqüentes as tentativas de erradicar as populações de rua e os catadores de lixo do local, com ações de “limpeza social”, e de acabar com o comércio informal e a prostituição da área. 73 Uma definição de Becker parece traduzir com precisão os rumos tomados por Acconci: “Os artistas não precisam lidar com os materiais a partir dos quais a obra de arte é feita para continuarem artistas; os arquitetos raramente constróem o que projetam”. (1977:208)

122

novas relações entre os espaços da cidade e seus habitantes. Nos anos 60, começou a sua

carreira como poeta e escritor, mas o próprio afirma que acabou mudando o tipo de arte que

fazia para ampliar fisicamente o espaço no qual intervinha:

When I was writing, what interested me was the space of a page, how you move from left margin to right margin, how you turn from one page to the next. (...) Once I realized I was so interested in movement, it seemed unnecessary to restrict that movement to an 8.5-by-11 piece of paper. There is a whole world out there or at least a street (apud Morgan, 2002).

Não exatamente as artes teriam estimulado esse traslado, mas o contexto específico

dos anos 60 – o qual, segundo Acconci, tanto privilegiava a mistura de campos como,

muito por conta do conceitualismo, possibilitava que a criação artística se desenvolvesse

abdicando de habilidades específicas como saber pintar ou desenhar. Aproveitou-se, então,

dessa situação para produzir performances e usar diferentes referências em seus estudos

sobre o corpo. Em uma de suas primeiras e mais conhecidas apresentações, Seedbed (1972),

masturbava-se sobre a rampa de entrada de uma galeria de arte, ao mesmo tempo em que

emitia, por um amplificador, as fantasias sexuais inspiradas pelos visitantes que passavam

por cima dele para entrar no local. Sua idéia central era diluir as fronteiras entre

observadores e o artista, de maneira que Acconci se misturasse ao próprio espaço. Muitas

vezes, suas performances acabavam sendo gravadas e viravam trabalhos de fotografias e

vídeos em Super 8 – suporte do qual Acconci é considerado um dos pioneiros. Com a

intenção de minimizar cada vez mais a sua figura dentro dos trabalhos, nessa mesma

década de 70 o artista foi gradativamente abandonando as performances para construir

instalações sonoras e trabalhos de escultura provocativos, nos quais demandava a

participação do público e uma postura mais política.

(...) I stopped using actions or performances to express my artwork, preferring to focus on proper space installations although I myself, as a physical entity, had not disappeared completely; my voice was still there almost as if to create some kind of community participation: I would speak to the people to bring them closer in space. (apud Carlini, 2002)

No trabalho chamado Under-history lessons (1976), por exemplo, as pessoas

entravam numa instalação que simulava uma sala de aula sombria e ouviam gravações do

123

artista, com frases como “Lesson number one: Let’s be suckers”, enquanto um coro de

vozes respondia “We are suckers!”. No final da década, ele começou a questionar de

maneira mais frontal os espaços de museus e galerias, com obras como Where we are now

(Who are we anyway?) (1976), The people machine (1979) e Decoy for birds and people

(1979). A partir de então, passou a se interessar cada vez mais pelos espaços da arquitetura,

criando principalmente projetos arquitetônicos que repensavam os espaços tidos como

públicos. Uma obra importante dessa fase é Instant house (1980) – uma espécie de casa

instantânea, que brincava com a questão da Guerra Fria. Tratava-se de quatro painéis de

madeira apoiados no chão, formando um quadrado; dentro desse quadrado, um balanço era

acionado quando uma única pessoa sentava-se sobre ele, e os painéis subiam, tornando-se

paredes de uma pequena casa, mas com bandeiras soviéticas pintadas do outro lado.

Realizou trabalhos sobre design, carros, mobiliário e as relações entre habitação e

comunidade, como House of cars (1983), Bad dream house (1984) e Mobile linear city

(1991) – este último era uma cidade móvel, construída em forma de módulos para um

trailer. Quando assumiu que seus objetivos estavam mais ligados a trabalhos arquitetônicos

do que a artísticos, criou a sua equipe, que elabora projetos encomendados geralmente por

instituições, como parques, playgrounds e galerias de arte, tentando, a partir de um forte

viés político, diluir fisicamente as fronteiras entre espaços públicos e privados.

Seu projeto para o Arte/Cidade teve início em 1999, quando foi convidado a

participar das discussões em torno do BrásMitte. Naquela ocasião, Acconci chegou a dar

palestras no ciclo de debates Intervenções em Megacidades, quando foi tratado como uma

estrela, atraindo um grande número de curiosos, principalmente de artistas e arquitetos.

Nessa ocasião, visitou o Largo do Glicério, local que – a partir de um mapeamento intenso

da região – os organizadores ofereceram como sugestão para Acconci realizar seu trabalho.

Assim como em outros trabalhos, o artista pensou em aproveitar um prédio não

finalizado74. De seus andares, sairiam passarelas de grades de aço ligadas, cada uma delas,

a postes de luz que estavam próximos ao local; ao redor desses postes, haveria áreas de

74 “Gostamos da idéia de nossos projetos se agregarem a estruturas já construídas. Anexando-se a um prédio, a um viaduto que já existe. Porque a maioria das pessoas é deixada de fora desses lugares. Então, queremos de alguma forma que as pessoas estejam neles. Talvez elas não possam entrar, mas ao menos elas podem se integrar ao exterior dos prédios e da cidade.” (Trecho retirado do filme Reinvenção da rua [2002], de Helena Ignez).

124

convivência, com televisões, como se fossem pequenas vilas, e em torno do principal deles

estaria um anfiteatro para entretenimento. Além de os postes iluminarem todas as

dependências do equipamento, sobre cada um deles uma espécie de guarda-chuva invertido

coletaria água da chuva para uso dos moradores. No prédio, banheiros semi-transparentes –

de fibra de vidro corrugada – invadiriam pela metade a fachada, deixando os passantes

verem seus usuários como vultos. Finalmente, o último andar, aberto, seria dotado de uma

canaleta, com água corrente, para uso dos moradores.

Sem o BrásMitte, o projeto, criado por Acconci com o nome de Highway House-&-

Garden, foi concluído para o Artecidadezonaleste. Nesse momento, por conta do trabalho

de Nelson Felix no Arte/Cidade 3, Brissac convidou Ary Perez para ser o coordenador do

evento seguinte, com a finalidade de aproveitar o conhecimento do engenheiro para

trabalhar com grandes dimensões. Na obra para moradores de rua, o projeto planejado por

Acconci sofreu inúmeras alterações, a ponto de o norte-americano renegar a sua autoria.

Segundo Brissac, foi concretizada a idéia inicial – e não a final – do artista porque

alterações posteriores estariam tornando a proposta financeiramente inviável. Já Perez

afirma que o projeto teria atrasado muito e que foi produzido, assim, um trabalho baseado

nas idéias centrais do norte-americano: “É verdade que aquilo que foi feito não tem nada a

ver com o Vito Acconci. Ele serviu mais como uma musa inspiradora” (entrevista realizada

em 08/2005). O próprio Acconci afirma que o projeto realizado não condiz com o que ele

havia planejado e mostra ressentimento ao falar sobre o trabalho:

The project that was built by Arte Cidade had nothing to do with our project. (...) Arte/Cidade built their own project and called it ours; the project they built had

125

nothing to do with us; we were never informed that they were going to build a project and call it ours; we were informed only that they were going to do some installation that showed the drawings for our project. I assume their intentions were right; but what they did was wrong. They could have built whatever they wanted, of course; but they shouldn’t have claimed the project was ours (resposta enviada por e-mail em 06/2006).

Foram construídos dois contêineres embaixo do Viaduto do Glicério, com materiais

semi-transparentes, estrutura de madeira e proteção lateral de acrílico. Um deles oferecia

água, chuveiro e iluminação; o outro era uma espécie de área de lazer, dotada de televisão.

Entre as modificações realizadas com relação ao projeto original, estaria, principalmente, a

não construção da parte externa, que seria uma espécie de jardim, além de outras

diferenças: “Our project was elevated off the street and connected to the underside of the

highway; our project had specific furnishings; our project was made of a specific material,

translucent corrugated fiberglass; our project consisted of both a ‘house’ and a ‘garden’”,

afirma Acconci (resposta enviada por e-mail em 06/2006).

Por outro lado, ainda que muitas alterações tenham sido feitas, permaneceu a idéia

central de criar novas relações entre os espaços urbanos e os moradores de rua,

aproveitando um lugar onde essa situação era bastante evidente: “Quando fui a São Paulo,

estava claro que existiam lugares para os moradores de rua ficarem à noite [os albergues

para moradores de rua nos arredores do Viaduto], mas aí não havia mais nada para eles

fazerem durante o dia. Então, pensamos que poderíamos oferecer um lugar onde pudessem

126

ficar pelo resto do dia” (apud Ignez, 2002). Assim, embora Acconci afirme que não tenha

pensado no uso da obra apenas por populações sem-teto, mas como um espaço de

convivência mais amplo, reitera-se em seu discurso a presença desses personagens: “Pode

ser a combinação de uma casa e um jardim, mas felizmente as pessoas que vivem nas ruas,

se as pessoas vivem nas ruas, agora talvez elas possam ter um lugar para ir. Ainda continuar

nas ruas, mas contar com uma espécie de casa na própria rua” (Acconci apud Ignez, 2002).

Portanto, se a autoria da obra não deve ser integralmente representada por Acconci,

muitas das características de seus trabalhos anteriores e de suas intenções iniciais

encontram-se nesse trabalho, como o confronto entre uma cidade encerrada e uma cidade

aberta no questionamento dos espaços públicos. Pode-se entender, nesse sentido, que

Acconci exerceu uma forma de agência primária direta na realização da obra, ainda que

essa agência tenha sido caracterizada por contornos que muito distanciam suas ações

daquelas exercidas pelos artistas nos três primeiros estudos de caso.

À diferença de Nelson Felix, por exemplo, os pesos e volumes foram pouco

importantes na sua idéia de arquitetura, em que importava menos a aquisição de uma

percepção diferente pelos processos construtivos do que a sugestão a ações concretas, ou

seja, tratava-se de uma obra claramente propositiva, que dialogava diretamente com a

população de seu entorno e cujo objetivo principal era trazer à tona o estado de abandono

da região. Neste caso, o uso de materiais deveria principalmente funcionar: pias feitas para

lavar; luzes feitas para iluminar. Já os materiais translúcidos das paredes deixavam à mostra

as condições de fragilidade e exclusão dos moradores de rua, aumentando o incômodo com

relação a essas condições, a partir da superexposição dessa visibilidade. Habitantes, então,

moram onde não deveriam, num quase-não-pertencimento a uma cidade que os ignora ou

expele. Existe, assim, uma série de intenções que se concretiza e identifica pontualmente na

obra, incluindo a problematização das formas de habitação tradicional e a falta de

integração das várias cidades que coexistem.

127

Por outro lado, se o transparente superexpõe os usuários do abrigo, também permite

que se instaure uma vigilância, circunscrevendo em espaços controlados as ações desses

atores e fazendo com que se tornassem eles mesmos receptores, agentes e índices na

construção do projeto. Receptores porque foram chamados a ver e perceber o projeto;

agentes porque as populações de rua acabaram apropriando-se das moradias e passaram a

dormir, beber, namorar, conversar, comer, lavar roupa, fazer a higiene pessoal, usar os

banheiros e até mesmo a brigar pela liderança do local75. Essa agência, no entanto, foi

parcial porque, embora os moradores tenham contestado a retirada do abrigo pela prefeitura

com protestos e abaixo-assinados, os apelos não funcionaram e, após 60 dias, foi

desmontado o “centro de lazer”. Portanto, essa expansão da visibilidade permitiu uma

inundação, uma transposição de fronteiras que deixava ver, mas também deixava ser visto,

o que trazia uma carga de índice na apropriação desses usuários como obra (ou parte dela).

75 O curta-metragem Reinvenção da rua (Ignez, 2002) mostra como os moradores apropriaram-se afetivamente dos contêiners, chegando a escrever no interior deles frases como “Mantenha este local limpo” ou mesmo um “Foda-se o ArteCidade” num muro próximo.

128

Mais ainda, essa permeabilidade da transparência revelou a própria superexposição

da obra dentro do projeto e dessa própria edição do Arte/Cidade. Isso porque esse trabalho

foi uma contínua fonte de polêmicas para os meios de comunicação, fosse pelo incômodo

que causou na prefeitura (de Marta Suplicy, PT-SP), fosse pelos imponderáveis que

acompanhavam o uso dos contêiners. Perez conta, por exemplo, que chegaram a jogar

dentro do abrigo uma pessoa que havia sido morta num albergue próximo ao local. Se não

faltavam situações para alimentar diariamente a mídia, a maior das polêmicas foi a

adequação do trabalho a um projeto de arte, mais além do estatuto de celebridade da obra.

Afinal, em que medida as destinações pretendidas relacionavam-se, como nos casos

anteriores, a contextos e personagens do mundo da arte? No vídeo Reinvenção da rua

(Ignez, 2002), realizado a partir dessa obra de Acconci, os moradores de rua mostravam-se

revoltados com a demolição da obra, sem entender por que não poderiam mais usufruir de

seus benefícios: “Precisamos de mais arte como essa, que realmente dê soluções para a

gente”, dizia uma mulher.

Para muitos críticos, a obra foi um grande equívoco, opinião reiterada por grande

parte dos entrevistados. Segundo Favaretto, “O uso público daquela cabine, no contexto da

vida cotidiana das pessoas que ali moravam, acabou desapropriando a intenção primordial,

que era artística. O efeito imediato é que a proposição artística perdeu sua função” (apud

Oliva, 2002). Na tendência oposta, destaca-se o já mencionado artigo “Os intestinos

expostos do Arte/Cidade” (2002), em que Aracy Amaral elogia a obra por entender que

apenas poucos artistas, como Acconci, teriam se preocupado com o seu entorno.

(...) 25 artistas realizaram projetos. Desses projetos, numa cidade tão espantosa, descuidada em grande parte de seu território imenso, horrenda

129

em sua fascinante atração, sem espacialidade preservada, porém mágica em seu poder energético, com uma população desempregada de cerca de 2 milhões, aproximadamente, indiferentes a esses dados, 15 artistas optaram por projetos que poderiam estar sendo apresentados em galerias de arte, museus, documentas, parques ou bienais. Apenas dez apresentaram projetos que evidenciam uma preocupação com o social, com o choque com o entorno humano e urbano, à flor da pele na área delimitada.

A crítica reivindicava não apenas uma arte política, mas uma arte que tivesse um

papel social de interferência direta nas situações urbanas, imantando determinadas

situações às suas próprias problematizações. A polêmica, no entanto, parece não incomodar

Acconci, que freqüentemente afirma já não se considerar mais um artista, além de

apresentar um discurso iminentemente contrário às práticas que separam arte e vida, como

nas críticas aos espaços exclusivos de museus e galerias. Para ele, os “apreciadores de arte”

vão gradativamente separando-se das pessoas que desconhecem os termos desse universo

exclusivista. Portanto, afirma preferir a idéia de passante à de observador e uma criação

para pessoas que não estão em locais especificamente para a fruição artística76:

Interessam-nos mais as pessoas que passam diante do museu do que aquelas que escolhem entrar. Idealmente, gostaria que as nossas coisas existissem na rua, do mesmo modo que as outras coisas existem na cidade. Não são anunciadas como arte; uma pessoa pode dar-lhes atenção por algum motivo, e interessar-se por entrar, explorar, deambular. Estamos, igualmente, interessados em pessoas que não têm uma cultura artística, que não fazem a mínima idéia do porquê da arte ser uma coisa tão especializada. Tantas outras coisas não o são: a música não o é. Há vários géneros de música pop, complexos e interessantes que não exigem um gosto ou conhecimento especializado. Penso que a arquitectura também é assim (Acconci, 2001)77.

76 Adere, assim, a uma compreensão que o aproxima da idéia de arte nos lugares que não a concebem como uma categoria autônoma, o que, segundo Joanna Overing, relaciona-se em grande parte a uma tradição estética do Ocidente moderno: “Tendemos a colocar a arte na esfera da inspiração: é uma atividade a-social, que não pertence ao cotidiano” (1991:7). Para os Piaroa, afirma a antropóloga, a beleza era uma noção moral, relacionada com a moralidade das relações sociais – ligadas a características como o limpo, belo e contido (1991:22) – e o uso das forças produtivas. Embelezamento representaria uma parte no processo diário de “empoderamento”, o que permitiria que tanto pessoa como objeto agissem produtivamente. Nesse caso, se beleza falava das capacidades criadoras de uma pessoa, o que só era possível dentro do contexto do social, não haveria a tríade necessária ao universo artístico ocidental: artista, objeto de arte e espectadores. Disso não se subentende que haja uniformidade nas manifestações artísticas tribais; muito pelo contrário. Para Sally Price, por exemplo, as variações individuais podem ser tão importantes nas sociedades tribais como nas urbanas. O importante é destacar a idéia preponderante de uma eficácia ritual integrativa nessas manifestações.

130

Por outro lado, Acconci demonstra que, mais do que se afastar da categoria arte,

intenciona apenas ampliar os seus limites, ao caracterizar a arte mais além de um domínio

determinado e de um universo reconhecido por personagens que o retroalimentam:

(...) I want to think of art as a very general thing, I think of art as not just as somebody necessarily who has a career in art, but art as a way of thickening the plot, complicating something. You take a situation that ordinarily exists in the world and you say, “What happens if I turn it upside down?”. In that sense, I think of myself as an artist. (2004)

Todas essas questões perpassam também o evento como um todo, que absorveu

certos procedimentos das edições anteriores, mas principalmente assumiu-se como fruto de

intensas pesquisas interdisciplinares. Pela primeira vez, os possíveis locais de intervenção

foram selecionados a partir de um detalhado mapeamento, que durou alguns anos. Esse

levantamento urbanístico, segundo o site do Arte/Cidade, foi feito pelos arquitetos Elíseo

Yamada, Paula Freire Santoro e Renato Cymbalista e por alguns grupos de pesquisa, de

acordo com os seguintes critérios de escolha: “(...) situações que apresentassem tensões

espaciais ou sociais, configurações complexas e desorganizadas pela implantação de vias de

transporte, a realocação de atividades produtivas e serviços, a desativação de equipamentos

industriais e a ocupação informal”. Tratava-se, portanto, de mapear as supostas fissuras da

cidade para atuar sobre elas. Mas de que modo?

Ao longo das edições do Arte/Cidade, o projeto recebeu inúmeras críticas, como

aquelas que questionavam sua coerência com relação a um determinado posicionamento

artístico e outras que tratavam da pertinência em atuar a partir de vultosos patrocínios, sob

os auspícios de grandes instituições. Em contrapartida, nessa ocasião, Brissac parece querer

responder a essas provocações atacando frontalmente os interesses imobiliários e a suposta

relação desses interesses com certas estratégias no campo das artes plásticas. Se as críticas

de Acconci não tiveram ressonância em seu discurso, os procedimentos de antigos

parceiros que se afastaram do projeto também são confrontados, indicando nitidamente as

rupturas em um campo no qual os personagens lutam pela dominância, seja econômica ou

simbólica. Em três diferentes escritos, Brissac aponta seus principais alvos, sedimentando

também a sua nova proposta de atuação, que se despedia definitivamente daquela da

77 A citação foi mantida com a acentuação do português de Portugal, tal como no original.

131

primeira edição, quando os personagens principais eram especialmente renomados artistas,

que expunham suas obras em locais inusitados. Ao mesmo tempo, incorpora as críticas de

Acconci para radicalizá-las, investindo cada vez mais na capacidade dos autores das obras

de realizarem e gerirem as suas próprias propostas e, principalmente, de interferirem

diretamente na dinâmica das cidades.

Na fotonovela As máquinas de guerra contra os aparelhos de captura, misturavam-

se em páginas com forte apelo visual imagens dos locais do Arte/Cidade e recortes de

jornal, fotografias, frases soltas e textos. Dizia, então, Brissac que São Paulo havia-se

transformado em um campo de batalha pelo controle das instituições e dos espaços públicos

(2002d:11). De um lado, camelôs e sem-teto tomariam os espaços intersticiais a partir de

shoppings populares e formas de ocupação informais, tal como “máquinas de guerra”. De

outro, representantes do capitalismo globalizado, os “aparelhos de captura”, funcionariam a

partir de “redes mundiais de poder”. Sua cidade, assim, resume-se a um “campo de batalha

das máquinas de guerra contra os aparelhos de captura” (2002d:23), em que a arquitetura

seria uma das principais vilãs.

Já em Isso aqui é um negócio: operações de captura da arte e da cidade relaciona

esse aparelho de captura arquitetônico a certos procedimentos identificados por ele no

campo da arte, com a citação e a reprodução de diversos artigos da imprensa. As

provocações viram ataques diretos e até mesmo antigos parceiros, como Ricardo Ohtake,

Agnaldo Farias e o Instituto Goethe, entraram nessa “roleta russa”78 – o que, além de causar

estranhamento, reitera que o Arte/Cidade foi reconfigurando-se também por conta de

violentos embates internos. A idéia principal é que o desenvolvimento de grandes projetos

78 Segundo Brissac, Ohtake e Farias estariam ligados às políticas da Fundação Bienal iniciadas na década de 90: “O processo foi sendo engedrado da seguinte maneira: Edemar Cid Ferreira, dono do Banco de Santos e presidente da Fundação Bienal quando das exposições de 1994 e 1996, foi responsável pela sua reorganização administrativa, introduzindo novas políticas de financiamento e marketing. Realizações que obscurecem acusações sobre seu envolvimento com o regime militar e grupos políticos conservadores. A Bienal foi reestruturada, neste período, de acordo com formas empresariais de gerenciamento” (Peixoto, 2002f:11). Brissac afirma que essa negociação teria sido mediada, de acordo com a imprensa, pelo então Secretário Municipal do Verde e Meio Ambiente, Ricardo Ohtake – que o convidou para ser assessor em sua gestão. O ex-secretário também é atacado frontalmente por meio de uma dura crítica ao Instituto Thomie Ohtake, do qual é diretor, que teria sido construído a partir das mesmas estratégias corporativas observadas na Mostra do Redescobrimento (Peixoto, 2002f:23). Essas críticas, portanto, costuram uma rede de interesses para a cidade e para a cultura em que estariam relacionados sempre os mesmos personagens: “O diretor do Instituto, Ricardo Ohtake, secretário municipal na gestão Pitta, agenciou a apropriação do Ibirapuera, sendo anunciado como próximo curador da Bienal de Arquitetura. Agnaldo Farias, curador do Instituto, tornou-se então também um dos curadores da Bienal” (Peixoto, 2002f:23).

132

urbanísticos e arquitetônicos e certos aspectos da integração econômica internacional

teriam alterado os mecanismos de produção e exibição da arte (2002f:4). Nessa linha, a

Mostra do Redescobrimento e as outras exposições da BrasilConnects, a Bienal de São

Paulo e a tentativa de implantação do Museu Guggenheim no país foram mencionadas

como exemplos das situações de espetacularização e turismo cultural que atrelariam

interesses corporativos de diferentes espécies.

No artigo “Como intervir em grande escala?”, continua criticando a promoção e o

marketing cultural, mas desenvolve também os ataques aos projetos de site-specific, por

considerá-los muitas vezes estetizantes, pouco vinculados a seus locais de atuação e pouco

relacionados a contextos mais amplos, o que diferiria dos procedimentos do Arte/Cidade:

“As exposições promovidas por este grupo de arquitetos corporativos representam a

estratégia oposta à que Arte/Cidade procura apontar para a cidade e a arte diante da

globalização” (Peixoto, 2002a:39). Segundo Brissac, uma das funções da intervenção

artística seria particularizar novamente os espaços “cada vez mais abstratos”, a partir da sua

organização espacial, de sua história e de suas formas de ocupação e da articulação dessas

situações a tramas mais complexas. Daí se tirariam elementos genéricos e indistintos que

possibilitariam novas rearticulações: “Uma estratégia baseada não na continuidade espacial

e histórica, na homogeneidade arquitetônica e social, mas na indeterminação e na dinâmica,

na instabilidade de configurações urbanas em processo contínuo de rearticulação” (Peixoto,

2002a). Para isso, reitera – assim como no evento anterior – a importância de se pensar em

grandes escalas, mas agora intensifica a defesa pelo abandono de procedimentos

escultóricos e práticas tradicionais de intervenção artística, ou seja, critica manifestações

semelhantes às das duas primeiras edições do Arte/Cidade. Apresenta também um discurso

diferente com relação à recepção desses projetos, passando a privilegiar os habitantes dos

locais de atuação como possíveis interlocutores, aproximação que não ocorreu – e nem

mesmo foi buscada – em todas as obras:

As intervenções tendem portanto a não ser locais, mas a abranger áreas mais amplas, a partir do território reconfigurado pelos diversos processos urbanos. Trabalhando na interseção desses diferentes vetores, nos intervalos surgidos no tecido fragmentado e nos fluxos descontínuos da megalópole. Provocando rearticulações entre as diversas situações urbanas, amplificando seu significado e impacto urbano, cultural e social. Intensificando a percepção, por parte da população, destes processos. (2002a, grifo meu).

133

De toda forma, o artigo de Brissac deixa claro que a tentativa de construir uma

intensa cartografia da zona leste, a partir de seus processos de restruturação e de suas

formas de ocupação, fez o Arte/Cidade se configurar cada vez mais como um projeto de

articulação a políticas públicas, de modo a tentar estabelecer ações no campo do

planejamento urbano:

Diante desta nova relação entre arte e desenvolvimento urbano, quais são as alternativas que se abrem para projetos de intervenção nas metrópoles em processo de restruturação global? Eles poderiam se integrar a um novo padrão de políticas públicas, próprio da era de investimentos privados maciços no espaço urbano. Isso significaria a possibilidade de ampliar o espectro das políticas públicas, diversificando o repertório de ações do planejamento urbano (2002a).

Não é de se estranhar, portanto, sua admiração pelo projeto de Acconci, que adotou

– ou foi incorporado a – muitas das propostas mais amplas do projeto, numa franca

aderência ao caráter de “projeto urbano”. Nesse sentido – assim como já apontara Aracy

Amaral –, elogiou a atuação dos estrangeiros, que, de modo geral, teriam enfrentado, do

ponto de vista social, as situações mais difíceis:

Neste último Arte/Cidade, a questão dos sem-teto era uma questão-chave para a gente lidar. Nenhum artista brasileiro ou arquiteto brasileiro topou fazer coisa nenhuma com os sem-teto, para não se desgastar mais ainda. Eu entendo. A cidade já é tão agressiva... Dá um desânimo profundo. O Vito Acconci chegou, olhou para aquele Largo do Glicério miserável, com gente dormindo na rua e enfrentou aquilo com uma coragem... (entrevista realizada em 04/2005).

Segundo Brissac, poucos artistas tiveram desprendimento, coragem e repertório para

enfrentar situações tão hostis. “O cara tem que ou não sacar nada do que tá acontecendo ou

sacar muito do que tá acontecendo para ter coragem...” (entrevista realizada em 10/2005).

Acaba indicando, assim, que a inserção parcial de Acconci, com a realização de um projeto

a partir de uma situação que não “dominava” integralmente79, merecia reconhecimento

79 A maneira como, em certos momentos, Acconci refere-se a São Paulo, revela que sua construção da cidade é sobretudo intuitiva, o que fica claro em frases que indicam um discurso com características de indeterminação. Exemplo: “O sistema de vias elevadas parecia tão importante para São Paulo... Elas cortam

134

porque deflagrava a deterioração de espaços que, segundo a sua leitura, deveriam ser

públicos80. Neste caso, é nítido que muitas das características implicadas no projeto

estavam na obra de Acconci: articulação entre local e global, dissolução dos espaços da

arte, questionamento do lugar da arte, grandes escalas (principalmente, se grande aqui for

entendido como “de grande alcance”) e inserção direta na vida das populações. Então, se

para Brissac a arquitetura pode funcionar não apenas como um aparelho de captura, senão

também como uma máquina de guerra – quando, segundo o autor, o arquiteto busca operar

taticamente com os modos de ocupação e a infraestrutura (2002d:47) –, o arquiteto

estrangeiro poderia ser o mais potente de seus guerrilheiros, com repertório supostamente

mais preparado para agir em situações de opressão das grandes corporações.

Essa preferência reitera também o duplo movimento de Brissac, que se volta cada

vez mais para uma inserção nas localidades a partir de estudos minuciosos, mas, ao mesmo

tempo, tenta criar articulações e estabelecer redes a partir de aspectos gerais dessas

realidades. Embora afirme que seu empreendimento constitui uma espécie de atualização da

idéia de site-specific, é certo que, malgrado todas as pesquisas para a realização da quarta

edição, houve uma hierarquização de valores na investigação desses locais que priorizou o

caráter global das informações extraídas.81 Percebe-se, portanto, que, se Acconci assumiu

que não é um artista, Brissac assume que não quer trabalhar com artistas como vinha

trabalhando até então: “No futuro, eu pretendo trabalhar com gente que tenha estratégias

menos do tipo do José Resende e mais do tipo do Maurício Dias, do Acconci, do

Wodiszko”, afirma (entrevista realizada em 10/2005).

Seu próximo projeto, por exemplo, já não se localiza em São Paulo e nem mesmo é

um Arte/Cidade; chama-se “MG-ES: um sistema infra-estrutural” – do qual Brissac é um

dos coordenadores. Agora, a idéia é desenvolver políticas e projetos – “urbanísticos,

São Paulo, adentram pelos bairros, provavelmente destroem essas vizinhanças” (apud Ignez, 2002, grifos meus). 80 Acconci afirma que, apesar de fazer trabalhos sempre com a intenção de problematizar os espaços públicos, já não reconhece mais as noções anteriormente vigentes: “I want stuff to be public. But I don't know if I believe public is the same as it used to be. I think public is a composite of privates. I think a computer-oriented world has made a very different notion of public. You know, you're in a very private space that at the same time has access to a very large public. So I think it makes you think of public very, very differently” ( 2004). 81 “As relações que as intervenções possam estabelecer – com o edificado, com o entorno urbano imediato e com toda a região, inserida em processos urbanísticos de caráter metropolitano e global – estão no cerne de Arte/Cidade”, afirma (2002a).

135

arquitetônicos, artísticos” – para a região situada entre Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES),

a partir de estudos sobre as minas, siderúrgicas, portos, sistemas ferroviário e de navegação.

Diz o site do projeto que:

MG-ES propõe criar novos repertórios de análise e atuação para grandes territórios. Desenvolver técnicas e práticas operativas para as novas configurações resultantes de sistemas infraestruturais. Uma estratégia territorial que visa compreender o comportamento de configurações massivas e organizar programas em grande escala. Detectar os novos fenômenos urbanos e conectá-los com redes mais vastas e complexas.

Se termos e meanings são bastante familiares, os textos do projeto, realizados a

partir de pesquisas e workshops desenvolvidos desde 2003, desta vez deixam clara a

intenção de atuar “em cooperação com a administração pública, empresas e comunidades,

na região e no exterior”. Entre os novos parceiros estão diversas universidades, os governos

estaduais e municipais de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Companhia Vale do Rio

Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, o Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas

Espaciais, entre outros. O projeto, então, já não cabe na cidade; e foge da associação a uma

arte contemplativa. É evidente também que essas novas estratégias propõem a agregação de

um grande número de personagens e articulações, na tentativa de estabelecer uma idéia

mais “eficaz” para se relacionar com os locais de atuação. Por outro lado, essa posição

preconiza um distanciamento com relação ao próprio circuito dominante da arte, o que

indica igualmente um afastamento cada vez maior dos códigos compartilhados e das

convenções apropriadas por grande parte de seus personagens.

136

CONCLUSÃO ou ‘DESORGANIZANDO POSSO ME ORGANIZAR’

Desde que comecei a pensar neste projeto, folheando as páginas do catálogo do

Arte/Cidade, passei a associar as informações que se mostravam para mim naquele

universo então desconhecido. Fotografias misturavam-se a artigos de organizadores, artistas

e críticos, incluindo discursos que remetiam a negociações extensas e minuciosas, a

planejamentos estratégicos e a operações que envolviam personagens não comumente

associados ao chamado mundo da arte. Estavam lá, entre os artistas, fotógrafos e críticos,

físicos, engenheiros, arquitetos, cientistas sociais. Parte das páginas estava tomada por

planos da cidade, mapas e projetos que pareciam mais ser de arquitetura e pouco se

assemelhavam aos tradicionais livros de arte e de exposições, geralmente ilustrados por

imagens nítidas, com legendas explicativas sobre os trabalhos apresentados. Ao menos no

caso do Arte/Cidade, então, acreditava que deveria haver alguma relação entre intervenção

urbana no contexto da arte e intervenção urbana no contexto do urbanismo.

Mais adiante, com a pesquisa já iniciada, lembro-me da pergunta do professor

André Botelho durante minha apresentação na VII Jornada Interna do PPGSA: “Por que

Arte/Cidade é grafado com uma barra, e não com um ‘e’ ou um travessão?”. Pergunta

importante, que praticamente resumia o teor do próprio projeto. Dos meus entrevistados,

não obtive uma resposta que elucidasse definitivamente essa questão, assim, arrisco-me a

tratar dela a posteriori. Vejo que, sim, a barra representa um embate que já se anunciava

naquele vistazo ao catálogo; um embate sobre os limites de um universo que está sempre –

e cada vez mais – querendo se reinventar. Portanto, de alguma maneira, a barra sugere que

existe uma invasão de domínios no projeto, e que essa invasão não é nada pacífica. Na

verdade, estamos falando de dois universos porque, se a arte pode transbordar na cidade,

também pode negá-la como espaço, ou ainda tentar, a partir de seus repertórios, redefinir as

fronteiras dessa cidade. A cidade, por sua vez, pode gritar por uma arte que transborde, mas

pode também negar a arte como tal, usando-a como forma de chamar a atenção para si

mesma. “Eu sou a própria obra de arte!”, já identificaria Argan no clássico História da arte

como história da cidade (1993).

Mas não estamos aqui falando de uma arte ou de uma cidade, e sim de

manifestações específicas que se realizaram no interior de um espaço que se constrói por

137

sua importância e grandeza – e, dentro disso, também faz parte a arte que cria e faz criar.

Seja pelo modernismo, pelas manifestações de vanguarda, pelos movimentos fotográficos,

grandes e pequenas exposições encontram em São Paulo um reduto para se concretizarem.

Por outro lado, acabam realimentando, a partir de sua grandiosidade, a idéia de que, mais

do que nenhuma outra cidade brasileira, São Paulo poderia receber e prover tanta diversi-

dade, colocar em pauta tantas discussões, confrontar-se com tantas tendências divergentes.

Curioso ler Saudades de São Paulo e Tristes trópicos e perceber como o que para

nós é demasiado imponente, para outros é tão desimportante. Naqueles anos 30, Lévi-

Strauss ilustrava São Paulo como uma cidadela quase rancheira: “E todavia São Paulo

nunca me pareceu feia: era uma cidade selvagem, como talvez o sejam todas as cidades

americanas... (...) nessa altura estava ainda por domar” (1981:91). Já nós vemos essa época,

geralmente, como um momento de sobrepujança daquela economia, que, apesar da crise do

café, tinha uma efervescência incontestável, era o grande pólo financeiro do país. Com

orgulho, falavam-se de espaços como o Triângulo Central, com suas ruas comerciais, o

centro novo e o próprio Viaduto do Chá. Assim, São Paulo foi sendo reinventado e se

reinventando com esses contornos de “cidade de ponta”, dos quais é difícil se descolar. Mas

também sabemos há muito que a cidade não é um sujeito universal e anônimo, mas um

espaço praticado pela inscrição de nosso corpo, pelas interações que promovemos, como

lembram Certeau (1996) e Lefebvre (1991).

Brissac, por exemplo, é uma figura que considero interessantíssima por propor-

cionar esses confrontos de uma maneira plural. É bem verdade que ele incorpora um

repertório que se traduz em seus diversos produtos a partir das marcas de cidades gerais,

globais, grandiosas e mesmo informacionais (cf. Castells, 1989). Mas essas referências

uniram-se a outras, diferentes e, por vezes, discordantes, que acabaram encontrando-se

numa mesma proposta mais ampla. Reinventou, dessa forma, a si mesmo e a sua cidade não

apenas como uma cidade geral, global, grandiosa e informacional, mas principalmente

como um potente campo de batalhas, que agrega uma multiplicidade de profissionais e que

pode gerar projetos que abrem frestas para auto-questionamentos – o que se constituiu a

partir de um processo de complexificação de seu próprio objeto. Tanto é assim que seu

próximo projeto rejeita ele mesmo o próprio espaço da cidade e de São Paulo. É possível

que com esse distanciamento físico e conceitual essas questões tornem-se menos relevantes.

138

No mais, não concordo com a imagem de que o Arte/Cidade seja um afronte

integral a formas de turismo cultural ou a fenômenos de espetacularização das artes. Trata-

se, na minha opinião, muito mais de uma outra leitura desses processos, que não neces-

sariamente se distancia deles, o que não significa negar essas contestações – afinal, por

mais que muitas vezes tentemos fugir e nos rebelar, não somos todos nós, antropólogos, em

maior ou menor grau, filhos de Durkheim? Com isso, embora o projeto liderado por Brissac

critique de diversas maneiras o universo em que está inserido, seja no campo das artes ou

na questão das políticas para as cidades, esse debate não torna seu brado menos legítimo.

Na minha análise, selecionei quatro estudos não para comprovar essa pluralidade,

mas para indicar as tendências dominantes no projeto – ou em suas intenções – naqueles

determinados eventos. Descobri, além de momentos e contextos específicos, quatro

maneiras completamente diferentes de relações com a arte e, mais ainda, com a arte dentro

da situação proposta. Pedras/Matadouro, holofotes/Viaduto do Chá, lajes/Moinho,

contêiner/Viaduto do Glicério.... Cada trabalho é quase um fato social total, é um indício da

multidimensionalidade cultural que cerca uma criação – até mesmo a artística. Como diria

Geertz, “a variedade da expressão artística é resultado da variedade de concepções que os

seres humanos têm sobre como são e como funcionam as coisas” (1998:181).

Mais uma vez, sou grata a esse exercício de distanciamento antropológico, que me

fez ver sem julgar – ou sem querer julgar. Considero que foi muito importante essa escolha

dos estudos de caso porque essas discordâncias acabaram evidenciando como as categorias

podem ser descascadas, reconstruídas, invertidas. Sinto, aqui, na conclusão, que sei menos

sobre arte do que sabia antes de começar esta dissertação, o que muito me agrada porque

significa que o estabelecimento dessa relação dialógica apresentou-me novas possibilidades

de me relacionar com os objetos. Portanto, acredito que, mais do que criar uma nova

perspectiva sobre o projeto, a principal contribuição deste trabalho tenha sido essa eterna

busca malinowskiana de olhar com outros olhos, permitir que se associem referências

aparentemente díspares. Mas são sobretudo esses desencaixes que vão construindo

perguntas. E espero que elas sempre me acompanhem.

139

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Sites consultados

ACCONCI STUDIO: www.acconci.com

ARY PEREZ: www.aryperez.com.br.

ARTE/CIDADE: www.artecidade.org.br.

CANAL CONTEMPORÂNEO: www.canalcontemporaneo.art.br.

CASA DAS CALDEIRAS: www.casadascaldeiras.com.br.

CASA TRIÂNGULO: www.casatriangulo.com.

CENTRO UNIVERSITÁRIO MARIA ANTONIA DA USP: www.usp.br/mariantonia.

CINEMATECA BRASILEIRA: www.cinemateca.gov.br.

CONTEMPORARY MAGAZINE: www.contemporary-magazine.com.

ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTES VISUAIS: www.itaucultural.org.br.

FOLHA DE S.PAULO: www.uol.com.br/fsp.

MILWAUKEE ART MUSEUM: www.mam.org.

MOMA.ORG: www.moma.org.

NOSSA AMÉRICA: www.memorial.sp.gov.br/revistaNossaAmerica.

O ESTADO DE SÃO PAULO: www.estado.com.br.

PREFEITURA DE SÃO PAULO: www.prefeitura.sp.gov.br.

RIZOMA.NET: www.rizoma.net.

SAMPA.ART: www.sampa.art.br.

SÃO PAULO 450 ANOS: www.aprenda450anos.com.br.

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SCIELO: www.scielo.br.

SCULPTURE MAGAZINE: www.sculpture.org.

SESC SÃO PAULO: www.sescsp.org.br.

TRÓPICO: www.uol.com.br/tropico.

VITRUVIUS: www.vitruvius.com.br.

Vídeos consultados

BAMBOZZI, Lucas; CAFFÉ, Eliane. “Arte/Cidade 1 : cidade sem janelas”. São Paulo: Paleo TV, 1994, VHS, sistema NTSC, 28 min, português. BAMBOZZI, Lucas; CAFFÉ, Eliane. “Arte/Cidade 2 : a cidade e seus fluxos”. São Paulo: Paleo TV, 1994, VHS, sistema NTSC, 26 min, português. GOIFMAN, Kiko; MÜLLER, Jurandir. “Arte/Cidade 3 : a cidade e suas histórias”. São Paulo: Sesc, 1997, VHS, sistema NTSC, 36 min, português. IGNEZ, Helena. “Reinvenção da rua”. São Paulo: Mercúrio Produções, 2004, DVD, sistema Betacam, 32 min, português.