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    Para uma Antropologia do Poltico

    Paula Montero,

    Jose Maurcio ArrutiCristina Pompa

    I. Introduo: Cultura e Poltica

    A antropologia inevitavelmente poltica. A provocao de Ernest Gellner (1995) nos serve aqui como ponto de partida, embora por motivos relativamentediferentes e com implicaes mais amplas. A antropologia inevitavelmente poltica noapenas porque invade a poltica enquanto viso de mundo e fundamento do que o autorchamou de as grandes teorias, nem apenas porque a ecloso da problemtica tnica nofinal do sculo XX transformou o antroplogo nesta espcie de orculo, emdecorrncia de suaespecializaono conhecimento dacultura, que em grande partedefine a concepo popular de etnicidade. Tampouco inevitavelmente poltica apenaspor causa de seu pecado de origem, objeto dos crticos de sua funo ou mesmo razocolonial. O carter poltico da Antropologia no decorre enfim, apenas destes motivos,digamos, externos sua prpria teorizao, mas tambm de razes de ordem

    epistemolgica. Com efeito, gostaramos de sugerir que aquilo que delinearemos nesteensaio como o polticodeveria ocupar na antropologia contempornea o lugar terico-metodolgico deixado vago pelo conceito decultura na antropologia clssica. Oesvaziamento analtico desta noo j consenso na literatura recente. Mas a proposiode que o conceito de poltico,ao invs do conceito de cultura, venha a se constituir emum novo paradigma da antropologia ao propor o descentramento do estatuto terico daalteridade, pode ser considerada, ao mesmo tempo, uma provocao e um novo desafio. claro que, a noo de poltica j rondou a reflexo antropolgica, constituindo comoveremos adiante, um campo prprio de problemas epistemolgicos dentre os quais o maissensvel foi definir meios tericos que tornassem possvel delimitar a poltica como umcampo especfico da cultura nativa. A noo de antropolgica de poltica nasce portanto,em contraponto ao de cultura, e muitas vezes como subsidiria desta. No entanto, estelugar de campo especfico da disciplina antropolgica no mais se sustenta. Por um lado,

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    as distines analticas que se faziam ento necessrias entre aquilo que era postulado eidentificado como a cultura e o campo ou as prticas polticas foram se tornando sobretudo a partir do fim da era colonial - cada vez menos claras e certas. Por outro, acultura passou a ocupar tantos lugares, funes, e papis no vocabulrio poltico, quedeixou de ser eficiente enquanto um conceito analtico. Desse modo, os ditosespecialistas da culturaficaram cada vez mais reduzidos produo de uma antropologiaque tem por objeto a cultura enquanto instrumento, resultado ou traduo de interessesque desguam no campo da poltica.

    A necessidade de inovar o programa da abordagem antropolgica estrelacionada forma pela qual a idia antropolgica de cultura vem sendo posta emcheque pela crtica ps-moderna e ps-colonial, no apenas por sua insuficincia

    heurstica e epistemolgica na anlise social, crtica esta alis que a prpria disciplinaantropolgica j vinha fazendo h algum tempo, mas principalmente enquanto produto damodernidade. Com efeito, este conceito construdo pela antropologia do sculo XIXpermitiu modernidade se auto-representar, na medida em que classificava, de umaforma subordinada, as pocas e as civilizaes mais remotas, confirmando assim suacentralidade. Alm disso, o termo penetrou progressivamente em outros camposdisciplinares, como a Sociologia da Cultura, a Filosofia Poltica do Multiculturalismo oudo Reconhecimento, a Histria Cultural etc. Apropriaes que no a tomam mais porconceito, mas como auto-evidencia ontolgica, oferecendo tambm um rtulo impreciso Estudos Culturais para trabalhos que tendem a reific-la ao ponto de se permitiremcolocar deliberadamente contra ou fora de uma rea disciplinar especfica.

    Mas o dado mais significativo - e o verdadeiro paradoxo - est no fato de que,enquanto a crtica desconstrucionista diluiu o conceito de cultura na noo de texto, dedialogia ou, decididamente de fiction, e enquanto a prpria antropologia o repensou emtermos de fragmentao, negociao, hibridismo, inconsistncias, fluxos de relaes, aidia essencialista de cultura torna-se, no campo poltico, tanto um instrumento de auto-afirmao identitria, quanto uma linguagem jurdica de atribuio de direitos. Dessemodo, a cultura como sinnimo de identidade especfica e irredutvel entra novocabulrio da poltica e se torna uma linguagem de negociao entre movimentossociais e Estado nacional.

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    Esse deslocamento paradoxal em que a eroso de uma categoria no planoterico retorna como poderoso instrumento prtico -nos obriga a enfrentar esse efeitoda teoria (Bourdieu, 1989) no qual o plano das relaes se molda imagem dasconfiguraes que os modelos lhe atriburam, e a recolocar a abordagem antropolgicaem outro patamar analtico. Nosso argumento se desenvolve no sentido de demonstrarque se uma antropologia da cultura no mais possvel, devemos nos colocar o problema de uma antropologia do poltico que se d como objeto compreender aomesmo tempo os processos contemporneos de reposio de alteridades em termos deidentidades e a produo de linguagens de negociao que produzam consenso em tornodos modos coletivamente aceitveis de convivncia entre as diferenas. Por que estamos partindo do suposto de que este objeto pode ser entendido como poltico e, por que uma

    abordagem antropolgica nos parece ser a mais adequada para enfrent-lo, parte doproblema que estamos buscando equacionar neste ensaio.

    As implicaes terico-metodolgicas desta interpolao no esto ainda muitobem definidas. Tendo em vista a instrumentalizao poltica do conceito de cultura, trata-se de re-definir o objeto da antropologia e os parmetros que orientam sua abordagem. AAntropologia do Poltico conforme aqui proposta pretende oferecer um novo registro parapensar muitas das questes fundamentais que a Antropologia, formulou em termos decultura, identidades e diferenas entre ns e eles. Esta perspectiva reposiciona a questoda alteridade, concebendo-a como um campo de relaes prtico-discursivas sobre asdiferenas. Relaes estas que, ao propor comparaes, tradues e sistemas dediferenas, acabam por produzir modalidades variadas de pertencimentos. Nesse sentido,sugerimos ser necessrio um reposicionamento terico da disciplina que tenha comofoco, no o exame da alteridade pensada como um conjunto de especifidades que tmsentido nelas mesmas, nem mesmo a sua transformao ou o conflito entre os diferentes esuas diferenas, mas as dinmicas sociais de sua produo e apropriao simblica por

    agentes situados.O modo como esta abordagem permite lidar com um conjunto de fenmenos

    insatisfatoriamente percebidos e trabalhados pela Antropologia Poltica Clssica e a pelaAntropologia da Poltica contempornea sero aqui objeto de detalhado exame. Emparticular no se pretende tomar por objeto as formas nativas de poltica como fez a

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    antropologia clssica nem tampouco o impacto das relaes de poder sobre as culturastradicionais ao estilo da antropologia das relaes coloniais. Ao buscar compreender osprprios processos de produo e generalizao das diferenas no faz sentido recortar ouniverso de investigao a partir dos portadores das diferenas ou das culturas, mas simobservar como, onde e para que fins a diferena agenciada. O estatuto terico de umaantropologia desta natureza o que nos propomos a estabelecer, de maneira aindapreliminar, neste trabalho.

    De modo a alcanar de maneira clara e ordenada os objetivos acima esboadoseste texto est organizado em torno de dois principais objetivos: por um lado, prope umrecorte do objeto antropolgico de maneira a superar o pressuposto de que aespecificidade da abordagem disciplinar est indissoluvelmente associada ao estudo da

    alteridade cultural em si mesma, como algo dado. Como dissemos, quando se querenfrentar o problema do estatuto poltico da diferena no mundo contemporneo, o quedeve ocupar a Antropologia em nosso entender no o escrutnio da diversidade culturalmas sim os processos de apropriao, por parte dos atores, das categorias utilizadastradicionalmente pela antropologia para descrever justamente aqueles outros que eramconsiderados externos a tal campo de disputas ou apenas objeto dele, isto , grupostnicos, culturais, religiosos, populaes tradicionais. Por outro lado, ainda que se

    pretenda aqui dar um novo estatuto

    poltico

    noo de diferena no esforo deconstituir a especificidade terica da antropologia do poltico, procuraremos recuperar eintegrar nossa compreenso do poltico a tradio antropolgica dos estudos dosfenmenos polticos aquela que, partindo do estudo dessas mesmas populaes

    estabeleceu um rico campo de reflexo antropolgica , e tambminsightsprovenientesda sociologia e da filosofia poltica (bem como de sua crtica). Estamos sugerindo que,para dar conta da nova agenda imposta pela reconfigurao das relaes entre cultura epoltica, necessrio precisar as bases de umaantropologia do poltico, desenhadas aomesmo tempo em dilogo e contraponto, com o que se consolidou no corpo da disciplinacomo uma antropologia poltica- concebida como uma sub-disciplina da antropologiasocial, com objeto e mtodos prprios e que supe a poltica como um subsistema socialdistinto dos demais (como o econmico, o religioso, o jurdico etc.), mas cujos limites

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    hoje so evidentes -, e com duas de suas variantes brasileiras: a antropologia do contatocolonial e a antropologia da poltica.

    Evidentemente esse esforo no se inicia em terreno virgem. Por isso, em primeiro lugar procuraremos demonstrar que a noo antropolgica de poltica comeaa delinear-se no confronto da antropologia clssica com os desafios colocados pelasgrandes sociedades africanas organizadas em torno de sistemas de linhagens. Naquelescontextos etnogrficos pr-modernos parecia difcil distinguir o campo especfico da poltica. Ainda assim, a noo de poltica- enquanto estado e formas de autoridade embora no tenha sido analiticamente criticada para adequar-se aos novos contextos nosquais era aplicada, acabou por constituir-se em modelo antropolgico abstrato cujoobjeto era passvel de distino dos idiomas culturais particulares. Paradoxalmente, essa

    projeo de uma idia ocidental de poltica sobre sociedades que no faziam essadistino permitiu algum avano na concepo antropolgica de poltica: a Antropologiapode colocar-se o problema da diversidade das formas polticas sem ver-se obrigada aacionar o conceito de cultura. Veremos que nesse processo a noo de poltica seamplia para incluir outras funes do poder, tais como regulao de conflitos, formas deautoridade, etc. que a antropologia passou adesignar como sistema poltico.

    Em seguida, demonstraremos que, com a crise do sistema colonial nos anos 1950,a questo do confronto colonizador/colonizado colocou o problema da cultura no campoda luta poltica seja em termos de desenraizamento, seja em termos de resistncia. Aantropologia do contato colonial re-introduziu, pois, em seu instrumento analtico acategoria cultura alterando, no entanto, seu alcance e significao. Seusdesdobramentos para pensar outro tipos de relao colonial, tais como as relaes entresociedades indgenas e o Estado brasileiro, acabou por produzir em novos termos umaantropologia das polticas indigenistas.

    Recuperando criticamente as conquistas da antropologia poltica clssica,

    procuraremos finalmente avanarna direo de uma antropologia do poltico.1O que se

    1 .Pierre Clastres foi um dos primeiros autores a propor, ainda que de modo ensastico, umarevoluo coperniciana da Antropologia Poltica. Embora seu esforo se desenvolva no plano maisfilosfico - posto que no pretende redefinir os conceitos e as hipteses da Antropologia Poltica clssica ,mas pensar o exerccio da prpria cincia - sua influencia sobre a reflexo deste campo pode considerar-sedefinitiva. Em seu ensaio Coprnico e os selvagens (1974), o autor faz um balano critico da obra deJ.W. Lapierre (Essai sur le fondement du Pouvoir Politique) de modo a rever a idia de poder poltico

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    pretende, veremos a seguir, no propor uma teoria geral da poltica ou dos sistemaspolticos, nem tampouco pensar os fundamentos do poder poltico, mas sim retomar, emnovos termos, o problema clssico da representao poltica, ao colocar a questo daconstruo dos agentes polticos por meio do agenciamento das diferenas. Nos estudosmais recentes sobre os movimentos sociais ou sobre as prticas polticas jinstitucionalizadas, o problema da instituio simblica dos mediadores atravs dasprticas discursivas sobre as diferenas no aparece porque a questo da representaono vista como problemtica. Parece no fazer sentido perguntar-se sobre osfundamentos simblicos da atividade de representao de atores sociais que seapresentam como representantes da vontade de uma determinada coletividade com a qualmantm uma relao de identidade pensada como primria ou primordial. Nos recortes

    empricos aqui propostos privilegiaram-se aqueles que tornam os mecanismos inerentes aquesto aqui proposta, mais evidentes. Desse modo, o nosso problema est sendoconstrudo em um terreno que est aqum da poltica institucional ou das polticas doEstado e de seu poder colonial: nosso foco a noo de agente e suas prticas simblicasacionando para compreend-las o conceito de mediao cultural.No mais possvelpensar antropologicamente a poltica sem recolocar em termos novos sua relao com acultura e vice-versa.

    II. O Domnio da Poltica na Antropologia

    Os estudos dos fenmenos polticos foram bastante tardios no campo daantropologia. Pode-se dizer que condies histricas particulares, tais como a prtica degoverno indireto nas colnias africanas, estimularam os estudiosos britnicos a setornarem, na dcada de 1950, os primeiros a ensaiar uma objetivao consistente dos

    subjacente Antropologia inglesa clssica. Segundo ele, esses trabalhos partem do suposto de que as

    sociedades arcaicas podem ser classificadas em funo de dois modelos funcionais de poder: sociedadescom poder poltico e sociedades sem poder poltico. Esse tipo de classificao (mais ou menos poderpoltico) no consegue dar conta do principal problema que interessa Clastres, que o da compreenso danatureza mesma do poder, sua origem e seu fundamento. E mais ainda, segundo Clastres, o modelo depoltica referido nesse tipo de anlise poder compreendido como relaes de mando e obedincia alm de diluir as funes polticas no registro social espelha os referentes que organizam a compreenso dopoder de nossa prpria sociedade. Se o poder poltico universal, e Clastres assim o considera, associedades arcaicas nos ensinaram a pensar o poder sem coero ou violncia. Para maiores detalhes arespeito desse debates sobre a Antropologia poltica na obra de P. Clastres ver tambm o interessanteensaio de Sergio Cardoso A Antropologia poltica na obra de Pierre Clastres, 1995.

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    sistemas de governo nativos como problema antropolgico. Na mesma poca osfranceses, engajados em uma poltica de assimilao e integrao administrativa,enfatizavam os fenmenos de mentalidade.

    As sociedades africanas ainda no eram bem conhecidas. Faltavam estudossistemticos que viabilizassem o ensejo de uma teoria geral das formas locais deorganizao da autoridade. Esse empreendimento foi levado a bom termo pela breveparceria de Radcliffe-Brown, E.E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes em Oxford que nocurto perodo anterior II Grande Guerra produziu uma srie de estudos sobre povos docontinente africano, ancorados principalmente no parentesco e em formas de organizaodas hierarquias e do mando. Na dcada subseqente essas descries etnogrficas foramreunidas em torno de um interesse comum e passaram a ser percebidas como formas

    locais de sistemas polticos: essa abordagem acaba se tornando o eixo central deumnovo paradigma da antropologia britnica a antropologia poltica.Os SistemasPolticos Africanos, organizado por Meyer Fortes e E. E.Evans-Pritchard publicado em1940 pode ser considerado um dos marcos fundadores desse campo (Kuper, 1973). Pelaprimeira vez tnhamos um leque expressivo de formas de organizaes sociais africanasexpostas de maneira sistemtica e comparativa que permitiam constituir tipologias emfuno de princpios de arranjos polticos. Nesse processo, a poltica se constitui, pelomenos analiticamente, como um campo especfico, separado de seu idioma cultural e dosoutros domnios sociais. Os autores distinguiram nessa obra dois grandes tipos de sistemapoltico: os dotados de formas claras de estado e os sistemas sem estado. Tratava-se, pois,de compreender, no primeiro caso a particularidade dessas formas a importncia doterritrio e do consenso na eficcia da autoridade do chefe e no ltimo as estruturassociais vicrias da coero que asseguravam a manuteno do equilbrio social.

    No resta dvida que ao colocar a questo da presena/ausncia do Estado comoparmetro da observao etnogrfica de povos no europeus, essa Antropologia Poltica

    se faz herdeira do debate clssico na Filosofia Poltica que desde Maquiavel define associedades pelas suas formas de governo, consideradas a essncia do poltico. Noentanto, se nesta tradio, a diferena entre as instituies polticas e outras formas deorganizao social da autoridade no fora ainda colocada como problema, e a idia desociedade subsumia-se na idia de governo, as sociedades africanas colocavam o

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    problema inverso: exigiam do observador um tour de force para identificar e qualificar as instituies polticas de maneira separada das categorias de parentesco e/ou religiosas.Tratava-se de constru-la j que no era uma expresso evidente da realidade social.Era preciso determinar a funo especfica de outras instituies sociais j que muitassociedades no pareciam produzir esse tipo de aparato.

    Exposta ao confronto com a diversidade etnogrfica a Antropologia Poltica acabapor transformar radicalmente a concepo de poltica que a embasava. Nesse tipo desociedades, organizadas em ordens de segmentao por idade e linhagens, asdificuldades para especificar a poltica levavam os estudiosos a enfrentar a seguinteaporia: se a unidade poltica o prprio grupo, tudo poltica como pretende S. F. Nadel(1940) quando chama de instituies polticas aquelas que asseguram a direo e a

    manuteno da sociedade Kede na Nigria ou E. R.Leach (1954) que identifica unidadepoltica e sociedade; se, por outro lado, se contesta a universalidade dos fenmenospolticos, a Antropologia Poltica no poderia constituir-se em campo especfico sendoincapaz de definir um objeto prprio e metodologias correspondentes. Trata-se, afinal, damesma aporia suscitada pela antropologia da religio, pouco trabalhada pela antropologiasocial britnica mas bastante desenvolvida na etnologia alem ou na antropologiaculturalista americana, parcialmente herdeira daquela, via Boas. O que distingue o fato

    religioso de outros fatos culturaisQual o domnio do religioso e quais so seusinstrumentos analticos O privilgio dado pela viso romntica do culturalismo religio acabou por tornar esta ltima uma espcie meta-categoria cultural. Isso, comoveremos, no ser sem conseqncias polticas.

    As tentativas de superar essa contradio levaram os autores a enfatizar as funes do poder, tais como, a garantia da cooperao, a defesa da integridade, a regulao dosconflitos, a elaborao das regras, a socializao dos indivduos, etc.Assim, embora essaantropologia buscasse ser crtica aos modelos eurocntricos de compreenso das formasde governo, partindo do suposto de que a noo de Estado soberano no pode ser aplicadas realidades africanas, essa matriz que d forma sua categorizao dos instrumentosde produo das relaes de autoridade/obedincia. Com efeito, as formas de controle doterritrio, as estruturas administrativas, as normas e direitos e as formas de estadoestavam no cerne de sua descrio dos sistemas polticos. Na tipologia que estabelecem

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    est implcita uma especificao crescente de poder institucionalmente constitudo quevai das sociedades de pequena escala que no conhecem a coero, passa pelassociedades organizadas em linhagem, nas quais a regulao est assegurada pelaalternncia entre as alianas e confrontos entre segmentos de parentesco, at associedades cuja moldura uma organizao administrativa. Ao contrrio das primeiras,estas ltimas seriam mais capazes de manter unido, em uma nica organizao, umgrande nmero de pessoas e ainda, mais propensas a produzir distines de status e fazercoincidir unidade administrativa e territorial. Domina, portanto, essa concepo a funointegradora da poltica.

    Mas ao vasculhar as possibilidades etnogrficas de organizao das formas decoero, esses estudos contriburam, ainda que a sua revelia, para dissipar a confuso

    entre poltica e aparelhos polticos e/ou estado. Embora a poltica seja ainda aquicompreendida basicamente como coero e se possa perceber, em baixo relevo, o modelode estado-nao operando em suas categorizaes distintivas das formas maiselementares de integrao da estrutura poltica, a existncia de sociedades sem aparatospolticos obriga, de qualquer modo, a deslocar a observao do poder de imposio daobedincia para outras formas sociais. Constri-se desse modo, progressivamente, umnovo ponto de vista no qual o sistema poltico, concebido como sub-sistemarelativamente autnomo do sistema social, a mesmo ttulo que religio, economia e parentesco, substitui a noo de poltica, marcando a especificidade disciplinar daantropologia poltica. Alm disso, o estudo de sociedades acfalas colocara na pautada antropologia poltica o estudo dos mecanismos de produo de consensos que, a nossover, constituem um dos principais objetos da antropologia do poltico que propomos nestetrabalho.

    As crticas a essas primeiras proposies da antropologia poltica, basicamente asua distino por demais rgida entre sociedades segmentarias e sociedades estatais, levou

    a um deslocamento de foco que nos interessa particularmente para a formulao de nossaabordagem. Os estudos das sociedades africanas na dcada de 1950, abandonam os fatosde estrutura e voltam sua ateno para a ao, ou mais especificamente, para a interaode indivduos e grupos no campo das relaes de poder. Assim se com a consolidao deuma antropologia poltica fizemos, a passagem da idia da poltica enquanto aparato de

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    governo para a noo de sistema poltico parte do sistema social que garante atotalidade homeosttica e a preservao da unidade social -, a crtica deste modelo levar formulao de uma nova agenda que se desloca do sistema poltico para a aopoltica. Esse desdobramento obrigar a antropologia a uma melhor explicitao do queela entende como ao poltica e formas de poder. Para delinearmos rapidamente osfundamentos e as contribuies dessa teoria antropolgica da ao nos ocuparemosbasicamente de duas grandes correntes: a inaugurada por Edmund Ronald Leach que, emdilogo com Lvi-Strauss, enfatiza a dimenso simblica das prticas sociais; adesenvolvida pela Escola de Manchester que, privilegia a anlise dos contextossociolgicos das prticas.

    Um dos trabalhos precursores da primeira tendncia foiSistemas Polticos da

    Alta Birmnia, de Edmund Leach, que Georges Balandier definir mais tarde como umestudo exemplar de antropologia poltica (Balandier, 1967). Contestando a nfase naidia funcionalista de sistema, que privilegia os processos que tendem integrao e coeso social, Leach se pe como problema a distancia entre as normas ideais sistematizadas pelos modelos e as prticas efetivas. Para ele, as prticas no podem sercompreendidas como simples aplicaes de uma normatividade ideal. As regularidadessociais deveriam explicar-se pelo efeito acumulado das estratgias antagonistas dos atoressociais, mergulhados em um quadro de referncia criado por regras frequentementeconflitantes e ambguas.

    preciso ressaltar a introduo, na antropologia poltica de Leach, da noo deestratgia. As prticas se tornam ao poltica quando se do no plano dastentativasde mudanas das regras de definio e distribuio da autoridade; assim, a idia demanipulao de alternativas se torna central em sua interpretao dos mecanismos deao ao enfatizar a dimenso experimental ou ensastica das tentativas conflituosas defixao das regras. Contrariamente aos seus precursores, Leach considera que as

    estruturas sociais constituem um problema de ordem lgica, e no morfolgica, poisconsistem em um conjunto de idias sobre a distribuio de poderes entre pessoas egrupos. Para o autor, o poder deve ser compreendido como o conjunto de atributos dosdetentores de certas posies sociais, assim como a poltica consiste na manipulao

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    desses atributos pelos indivduos. Os sistemas polticos devem ser entendidos, pois, comosistemas de relaes entre categorias nativas em um conjunto estrutural consistente.

    A antropologia poltica de Leach pe em foco, consequentemente, as categoriasmentais no lugar das instituies, propondo uma anlise da poltica que no estinteressada em observar como as pessoas se agrupam e como estes grupos se relacionamempiricamente (por localidade, parentesco, sexo, idade etc.), mas como as categorias soutilizadas para agregar. Categorias espaciais (aldeia, grupos de aldeia, comarca),categorias de parentesco (genealogias) e categorias relativas ao controle de bens, soutilizadas como smbolos nas discusses sobre status, autoridade e obrigaes.

    Em resumo, o trabalho de Leach proporciona alguns ganhos fundamentais paraos desdobramentos sucessivos da antropologia poltica.Em primeiro lugar abandona a

    perspectiva que considera os sistemas polticos como as instituies sociais vicrias dapoltica que , por meio da resoluo de conflitos , tem por funo mantersociologicamente as partes sociais unidas em uma totalidade estvel. Em segundo lugar,avana a proposio de que a poltica uma prtica simblico-ritual que tem comofinalidade, por meio da manipulao das categorias, a mudana permanente no modo deperceber as distines e relaes de status e por meio dos rituais, a legitimao dessapercepo. Finalmente, ao analisar os sistemas polticos Kachin na Alta Birmnia, o autorse v obrigado a distinguir cultura e poltica. No plano da cultura Kachin prevaleceuma grande heterogeneidade de sistemas sociais e lingsticos. No possvel, pois,produzir um modelo sobre seus princpios organizativos e valores. A agregao social serealiza no plano das categorias polticas atravs das terminologias que expressam omodo como os agentes percebem suas relaes estruturais, e no plano ritual por meio dasaes que produzem status e garantia de autoridade. A antropologia deve, pois, mover-sena direo de uma anlise dos princpios lgicos de ordenao das categorias nativas, ouna formulao matemtica que o autor adotou mais tarde (1961), do conjunto de variveis

    que, nas categorias, expressam um padro de relaes.Nesse mesmo movimento de abandono da problemtica das funes integrativas

    da poltica , autores da escola inglesa de origem sul africana tais como M. Gluckman(1958), antes imbudo da idia de que o objeto da antropologia era apresentar amorfologia social, passam a colocar a ao poltica, entendida como conflito e

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    manipulao das regras, no centro de sua anlise da cultura. Este autor inaugura ummtodo de observao que denominou anlise situacional que procura observar edescrever eventos momentos pblicos nos quais as tenses entre grupos de origemtnica diversa se expressam - de modo a esclarecer como, em uma estrutura de relaessociais especfica, indivduos se comportam publicamente em suas relaes com osoutros. Nesse modo de aproximao etnogrfica que privilegia a observao de umevento poltico particular em detrimento da relaoentre culturas ou sociedades asfronteiras entre o tradicional, leia-se culturas nativas e o moderno (cultura ocidental)se tornam inteiramente fludas tornando inoperantes as tipologias polticas sociedadespr-estataisversusestatais - anteriormente esboadas.

    Mas, entre as novidades trazidas pela abordagem gluckmaniana est a tentativa de

    re-introduzir a noo deculturaem seu modelo interpretativo da ao poltica. Ele o faz,no entanto, redefinindo o alcance do conceito. O autor distingue as relaessociolgicas- que seriam da ordem da estrutura -dos comportamentos, repertriospadronizados atravs dos quais personagens expressam conflitos e tenses advindas dasmudanas sistmicas. O uso desses repertrios depende do tipo deinsero dopersonagem nas relaes sociolgicas e da potencialidadedo padro para expressarconflitos e interesses relativos quela posio. Nessa re-apropriao da noo de culturacomo modo de expresso, ela perde seu carter orgnico, sistmico e integrador ,tornando-se basicamente instrumento, seletivamente apropriado pelos atores, para amanifestao de interesses. A cultura assim concebida passa a ser narrada agora emtermos de eventos pontuais, o caso, onde os comportamentos no so mais tomadoscomo forma de relaes estruturais entre grupos abstradas em termos de sistema. Anfase da observao se desloca gradualmente da sociedade como um todo parasegmentos, fraes; e do informante e suas declaraes sobre as regras para atoressituados e seus comportamentos especficos.

    Nesse deslocamento a compreenso antropolgica da poltica altera-se profundamente. Ela se d agora como objeto o problema das normas mutuamenteconflitantes e da manipulao das regras uma vez que a consistncia de um sistema dada pela ao dos indivduos em situao (Gluckman, 1961). Sob seu impulso, osantroplogos da Escola de Manchester orientaram sua reflexo para uma interpretao

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    das dinmicas do poder centrada na idia de rebelio, percebida como um processopermanente, e na idia de ritual enquanto meio de expressar os conflitos e super-los.

    Esse primeiro esboo de uma teoria antropolgica da ao, ancorada em parte naidia weberiana de interesse e no conceito antropolgico de rito, permite alocar o polticodo corpo mesmo da experincia social. Esse reposicionamento se faz atravs daincorporao ao campo da anlise antropolgica do modo como o repertrio cultural e asrelaes so percebidos e avaliados pelos atores. Veremos mais adiante, como serpossvel aproveitar estesinsightsque colocam em foco o modo como os atores utilizamas categorias na elaborao de uma teoria da mediao, escopo maior de nossa propostaneste ensaio.

    Quando a movimentao poltica contra a dominao colonial tomou conta do

    ambiente intelectual nos anos 1950, produziu-se uma crise do enfoque antropolgicocentrado no parentesco e sistemas polticos; os estudiosos, sobretudo os baseados fora daGr-Bretanha, se tornaram mais atentos aos contextos locais e procuraram ampliar suaslentes demodo a colocar a questo das relaes das sociedades tradicionais com ocolonialismo. Foi este tipo de enquadramento que deu forma antropologia poltica talcomo ela comea a esboar-se como campo disciplinar prprio no Brasil.

    Georges Balandier, promotor dos estudos africanos na Frana a partir de meadosda dcada de 1950, introduziu no campo francs os trabalhos de Max Gluckman. Suaabordagem histrico-sociolgica privilegiou o estudo das sociedades africanas urbanas.Sua idia mais poderosa e que teve, como veremos adiante, imensa fortuna nos estudosantropolgicos brasileiros sobre as relaes entre populaes indgenas e nacionais, foi ade situao colonial. Inspirado na anlise situacional de Gluckman que coloca maisnfase no acontecimento do que na estrutura, Balandier amplia o conceito para incluir osentido de uma reciprocidade de perspectivas entre colonizadores e colonizados (1955).Assim, as relaes introduzidas pelo colonialismo no podem ser compreendidas apenasem termos de perturbaes trazidas pela economia moderna, mas devem considerar quea sociedade colonizada e a colonial formam um sistema. O conceito de situaocolonial exige, pois, que se aborde o problema das relaes de poder em vrios planossimultneos: o da ao administrativa, das polticas de pacificao, das doutrinas deassimilao, dos contextos culturais e modos de vida, da reconstituio de unidades

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    tnicas via chefias locais, da heterogeneidade dos atores e grupos quanto sua origem e core da multi-lateralidade das relaes de dominao e subordinao.

    Mais do que um conceito, trata-se, pois, de um verdadeiro programa de trabalho.De qualquer modo, nos parece que uma das resultantes mais frutferas dessa proposio,aos menos para as finalidades deste ensaio, o modo como ela articula o poltico aotnico. As sociedades coloniais estudadas por Balandier, so essencialmente compostaspor grupos heterogneos que atuam como faces mais ou menos rivais e sodesigualmente distanciadas do poder colonial: estrangeiros brancos coloniais ou no,estrangeiros no-brancos, mestios, nativos etnicamente divididos. Cada uma dessasfraes tem relaes diferenciadas com o poder administrativo colonial. Desse modo, oautor prope a superao do dualismo, at ento consensual na antropologia, que v a

    relao entre dominantese dominados como homloga oposio: cultura europiaversus cultura local. As dinmicas sociais que operam na situao colonial no dizemrespeito ao encontro de alteridades absolutas, nem de instituies do mesmo tipo em cadasociedade mas, ao contrrio, produo de etnicidades dotadas de papel poltico.

    III. Antropologias do Contato Colonial

    O debate em torno do colonialismo mudou profundamente, portanto, o estatuto da

    alteridade antropolgica. Enquanto os autores que nos ocuparam at o momento, secolocaram como problema compreender, do ponto de vista de um observador externo, asrelaes particulares de autoridade e mando em sociedades sem instituies polticas, aquesto colonial j nasce como questo poltica, isto , como asseverao de que adominao a forma por excelncia das relaes que se estabelecem entre a sociedade doobservador e a sociedade do observado.Ao levar s ltimas conseqncias o suposto deque poltica implica em conflito o prprio Ocidente, e seus aparatos coloniais, soincludos na anlise.

    Foi na esteira desse plano de trabalho que, buscando renovar, na dcada de 1960,o quadro analtico das relaes entre populaes indgenas e sociedade nacional at entomuito marcado pela matriz culturalista, organizou-se no Brasil uma primeira antropologiapoltica. Esses estudos nos interessam particularmente porque suas tentativas de analisaras relaes entre as diferenas em termos de alteridades coloniais contribuem para

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    explicitar as insuficincias de certas categorias analticas tais como cultura e identidadepor um lado, e poltica como sinnimo de dominao, por outro. interessante observarque um vis caracterstico deste movimento analtico foi fazer coincidir poltica e aparatoadministrativo colonial. Desde o incio, a preocupao relativa prtica e teoria docontato entre populaes indgenas e sociedade e Estado nacionais, deu mais nfase aoestudo do Estado e suas polticas do que s sociedades indgenas, isto ,o interesse desteprograma antropolgico recaiu, em primeiro lugar ou predominantemente, no nasformas nativas de organizao poltica (ou mesmo nos fenmenos de mentalidade), comose deu na primeira antropologia poltica britnica, mas nas formas e efeitos da relaocolonial, ou seja, nastransformaesdas formas de organizao social e poltica nativa e,por extenso, na poltica indigenistapropriamente dita.

    A razo desse destaque pode ser reconduzida talvez especificidade histrico-poltica brasileira: afinal, a passagem de objeto de poder colonial a sujeito de soberanianacional coincide com a fundao das cincias humanas, que aqui se caracterizam peloforte marco nacional. A antropologia, ligada no comeo do sculo medicina e ao direito(juntando as teorias cientficas raciais questo do estatuto jurdico dos componentestnicos da nao) se articula, a partir da institucionalizao da disciplina, na dcada de1930 sociologia e cincia poltica. De qualquer forma, o objeto desta cincia nodeixa de ser o povo brasileiro, e seu objetivo o projeto poltico nacional de soluo deproblemas sociais.

    Do mesmo modo em que se pode identificar uma forte correlao entre os estudosetnolgicos britnicos dos sistemas polticos e a situao histrica particular do governoindireto, o desenho deste domnio nos estudos etnolgicos brasileiros enquanto relaescoloniais tambm respondeu a um determinado entendimento da configurao dasrelaes entre Estado e populaes nativas e, principalmente, ao lugar que a antropologiaencontrou nela. Se o modelo (formal e ideal) do indirect rule, baseava-se em uma

    administrao local exercida atravs de instituies polticas tradicionais africanas, aadministrao do Estado brasileiro sobre as populaes indgenas configurou-se, grossomodo, conforme os traos bsicos do modelo colonial portugus. Este ltimo, nacomparao entre poderes coloniais em frica feita por Crowder (1978), surge como omais direto dentre os poderes coloniais: sua pretenso ou simples justificativa era

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    civilizar o nativo e integr-lo, promovendo a adoo da lngua portuguesa edispensando o uso de instituies locais. Quando os chefes nativos ocupavam cargospolticos ou administrativos coloniais, isso no implicava (em frica especialmentedepois dos anos 1930) a preservao de qualquer tradio ou forma de legitimao nativa.Eram os administradores portugueses que detinham o poder de coero e aplicavam a justia, recolhiam os impostos e controlavam as fronteiras e fluxos de nativos.

    O sistema de administrao republicano adotado Brasil, implementado peloServio de Proteo ao ndio a partir de 1917 e baseado na instalao de Postos Indgenaschefiados por funcionrios brancos do Estado, teria a mesma lgica fundamental domodelo portugus, ainda que diante da institucionalidade republicana tivesse sidonecessrio criar um novo instituto legal, a tutela, que concebia a populao nativa

    como relativamente incapaz .O importante papel dos antroplogos na constituio de um modelo jurdico de

    incorporao das populaes indgenas ao processo de construo da nao teve comocontrapartida uma antropologia que tendeu a dirigir o seu olhar no para a anlise dasinstituies polticas nativas tradicionais, mas para osefeitos da tutela, para osmecanismos de submisso poltica e para os sistemas intertnicos fundados na idia deintegrao. Essa marca de origem da antropologia brasileira ajuda a explicar porque otema do contato entre ndios e brancos se impe etnologia desde muito cedo eindependentemente de afiliaes tericas. Mesmo a etnologia de matriz culturalista,menos interessada em questes diretamente associadas ao domnio do poltico, se viudiante da necessidade de dar traduo ao tema do contato por meio da noo deaculturao (Galvo e Wagley, 1949; Schaden, 1965).

    A primeira abordagem da questo poltica na etnologia brasileira esteve associada justamente crtica da categoria de aculturao, j que tal categoria colocava no planodas trocas culturais um processo tramado fundamentalmente por meio de relaes de

    poder. As primeiras formulaes crticas dos anos 50 resultaram em uma antropologia doetnocdio ou do processo civilizatrio, para usar a expresso de Darcy Ribeiro, seuprincipal formulador. Esta antropologia no constituiu, porm, um programateoricamente articulado, e sim uma produo subsidiria e engajada dos etnlogosenvolvidos com os temas clssicos da etnologia. Uma crtica categoria de

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    aculturao capaz de dar lugar a desdobramentos propriamente tericos s emergiria noincio dos anos de 1960, por meio do conceito de frico intertnica (Cardoso deOliveira, 1963) que, elaborado a partir da confluncia de diversas orientaes tericasnem sempre convergentes, encontra largo desenvolvimento e uma capacidade defomentar a produo antropolgica para alm do campo da etnologia, estendendo-se dasociologia das relaes raciais, tal com realizada em So Paulo, at as teorias damodernizao e as anlises do indigenismo latino-americanos. O conceito acabou porpromover uma importante linha de pesquisas sobre o campesinato brasileiro, focada nanoo de frente de expanso (Velho, 1972) que emergia da composio entre fricointertnica e colonialismo interno, diferenciando-se da categoria mais representativa dasituao norte-americana de frente pioneira.

    As formulaes de Cardoso de Oliveira s ganhariam forma final em funo deum conjunto de apropriaes e dilogos tericos muito dspares: por um lado, acomposio do programa de Balandier com a teoria dos grupos tnicos de Barth (1969) -que, em seu trabalho sobre as fronteiras dos grupos tnicos, substitui o conceitoessencialista de etnicidade pela idia de produo social das diferenas culturais-,por outro a incorporao deinsightsretirados dos estudos sobre a integrao dos negrosna sociedade de classes de F. Fernandes (1965) e finalmente dos estudos sobreidentificao da psicologia interacionista americana. Tudo isso foi acrescido de umadeclarada ambio analtica de apreender estruturalmente os fenmenossuperestruturais, explicitamente referida a Lvi-Strauss. Essebricolage interpretativobuscava dar escopo terico a um objeto cuja formulao inicial partia de uma evidnciaemprica a-criticamente postulada: a identidade tnica tomada como um fenmenoirredutvel ao processo de aculturao (Cardoso de Oliveira, 1976: xvi).

    O desenvolvimento que Cardoso de Oliveira deu noo de frico intertnica,caminhou na direo de atribuir ao conceito de etnicidade uma dimenso sistmica: osistema intertnico , constitudo pelossubsistemas tribal e nacional, seria estrutural sociedade brasileira e a frico intertnica seria o equivalente lgico da luta de classes( Ibid .). Assim, ao introduzir essa noo irredutvel de etnicidade e ao se perguntar sobreo potencial de integrao dos grupos indgenas, o autor retomava a lgica dualista:nsversuseles.

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    Pacheco de Oliveria (1988) concentra sobre este ltimo ponto sua crtica noode frico intertnica, de forma a propor uma nova formulao para a teoria do contatocultural. Este autor distingue dois momentos nas formulaes de Cardoso de Oliveira justamente para recuperar aquela que seria a formulao primeira, mais flexvel e deaplicao mais ampla, que tem seu marco na apropriao do programa de Balandier. Apartir dela, Pacheco de Oliveira prope uma correo de rumo, que tambm umaredefinio de seu objeto fundamentalde interesse: ele deixa de ser a identidadetnica para tornar -se a diversidade das situaes de contato, pensada em relao sua composio interna, escala, interdependncia e conflitos entre as unidades sociaisnelas implicadas (ndios e brancos). Na sua busca de alternativas conceituais emetodolgicas linguagem e aos procedimentos culturalistas e estrutural-funcionalistas,

    o autor busca claramente repor a reflexo nos trilhos da antropologia poltica. Passandopor autores como Bailey e Salisbury, ele retorna a Gluckman para ficar com dois de seusconceitos-chave: campo e situao.

    Em Bailey e Salibury encontrar solues para trabalhar com a idia de que aanlise da mudana social no pode pretender ficar restrita aos limites da aldeia ou dogrupo social que o foco do interesse do pesquisador. Ambos os autores, embora pormeio de conceitos diferentes, propem uma anlise que apreenda tais grupos tribais, depequena escala, como estruturas multifuncionais e pouco diferenciadas quando situados ecompreendidos em uma estrutura maior. No caso de Bailey a estutura maior o Estado Nao e o conceito gerado para descrever esta situao o de encapsulamento. EmSalisbury, tais grupos so pensados como grupos corporados de circunscrio e aestrutura maior pode ser simplesmente uma estrutura administrativa colonial ou nacional.De qualquer forma, e apesar das diversas crticas e distanciamentos que Pacheco deOliveira produz com relao a ambos os autores2, ele retm deles a idia de que emsituaes como estas, as mudanas sociais estaro referidas, em primeiro lugar ou

    fundamentalmente, estrutura ou esquema maior de poder, geralmente de natureza

    2 Trata-se de crticas importantes, que no exporemos aqui, mas que podemos sumariar: resquciosde estruturalismo clssico, reduo das respostas sociais soma das respostas individuais, desconsideraodas condicionantes culturais e relativas aos costumes e valores, imaginao da mudana social como umprocesso unidirecional que vai das cidades s aldeias, suposio de um indivduo genrico, livre e calculistacomo o do modelo liberal ocidental, papel passivo das comunidades e grupos tribais diante dos estmulosdas estruturas administrativas maiores, que no leva em conta a possibilidade de manipulao,reinterpretaro e resistncia, entre outras.

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    administrativa, tornado referncia para a definio dos papis e dos parmetros devariao e disputa, assim como origem dos estmulos modificao de estruturas e aodesencadeamento de um processo cumulativo de mudana social. Metodologicamente,ganha espao a noo de campo (e variaes como arena), proposta por Baile, comoo definidor do recorte etnogrfico a ser trabalhado : nele a anlise da poltica umaanlise da atividade e no da estrutura poltica, assim como se trata de campo polticoe no de estrutura poltica.

    Para Pacheco de Oliveira as noes de campo e de situao social sosolidrias, na medida em que a definio de uma situao implica a definio de umcampo e vice-versa. A diferena fundamental est no entanto, na forma pela qual a noode situao implica trabalhar com as noes de equilbrio, padres de interdependncia e

    de tempo histrico. Retomando a noo de situao de Gluckman, como ferramentaanaltica, Pacheco de Oliveira ressalta sua dimenso histrica. A situao social definida por Glukman como a composio de trs fatores : um conjunto limitado deatores, aes e comportamentos destes atores e um evento ou conjunto de eventosdefinidos no tempo. A sua unidade no previamente dada por nenhum destes fatores,mas constituda pelo equilbrio relativo que se constitui entre eles : a situao socialdescreve condutas manifestas para retirar delas relaes abstratas, no estandocircunscrita a qualquer unidade previamente definida, como grupo, etnia, comunidade oumesmo sociedade. O prprio fato tnico no pressuposto, mas definido, neste tipo deanlise, pelo levantamento das interdependncias existentes entre os atores. Por outrolado, o que define a atuao dos atores no uma pura racionalidade (que os reduziriamtodos a um mesmo indivduo abstrato e moderno), mas fatores histrico-culturaisespecficos, que devem ser revelados por meio de uma anlise histrica da relao entre asituao de dependncia imposta pela presena branca e o conjunto de normas fixadas emcada contexto histrico. a partir desta anlise que Pacheco de Oliveira reinterpreta acategoria de situao socialcomo solidria noo de situao histrica, definidapor meio da observao e demarcao dos diferentes padres de interdependncia que sesucedem no tempo, assim como pela anlise das razes que levam passagem de um aoutro.

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    Temos, portanto, como resultado a proposio de uma modalidade deantropologia poltica do contato intertnico sustentada em trs conceitos inter-relacionados e interdependentes :campo, situao sociale situao histrica. Delaresultaro anlises sobre a interao entre ndios e brancos propriamente dita, mastambm dois outros campos de investimento etnogrficos, que se distinguiro mais porseus objetos que por distanciamentos tericos. De um lado, o interesse em esmiuar asituao e o campo das relaes coloniais leva ao deslocamento dofoco da anlisedos prprios grupos indgenas para a agncia colonial por excelncia, o rgo indigenistaoficial. Surge, pois, uma sociologia da poltica indigenista que abandona o campo dadenncia ou a crnica e a tipologia do processo civilizatriopara tornar-se umainvestigao dos saberes, normas e prticas que o Estado brasileiro produz no trato com a

    populao indgena (Lima, 1992). De outro lado, o fenmeno no s de manuteno dasidentidades tnicas, mas do seu aparente ressurgimento, que podia ser observado emexpanso desde os anos 1930 e 1940, ganha, a partir dos anos de 1970, um impulsointeiramente renovado, em funo de sua associao constituio de um campoindigenista que, ultrapassando o contexto nacional, conecta a questo indgena com temasemergentes na esfera pblica internacional. Surge, ento, uma srie de estudos ainda soba orientao de Pacheco de Oliveira (1999), sobre as chamadas etnogneses indgenasinicialmente focadas na regio Nordeste do Brasil, cuja contribuio retomar a reflexosobre identidade e etnicidade em termos totalmente novos, associados anlise dareelaborao ritual das identidades, da produo social das memrias, da anlise dainstitucionalizao do indigenismo e da prpria poltica indgena etc.

    Herdeiras de uma antropologia que privilegia os atores, as antropologias docontato colonial recortam as relaes tnicas como foco principal de sua ateno,tornando as relaes entre diferenas culturais eminentemente polticas. No entanto,embaraada pelo contexto ideolgico do perodo, a antropologia poltica que ento

    emerge reduz a noo de poltica idia de dominao. As relaes intertnicas s podem ser, pois, concebidas como relaes de subjugao do outro ao eu,contaminando nesse empenho a prpria posio do observador. A equao proposta poressa antropologia poltica o estudo das polticas e a crtica do Estado, por um lado, e odeciframento do que irredutvel nas identidades indgenas, sua etnicidade, por outro. Ao

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    deslocar o foco do problema da etnicidade para a situao de contato, a abordagem deJoo Pacheco abre caminho para que se possa pensar a produo social das diferenascomo propunha Barth.

    Vimos, no entanto, que esta abordagem acaba por enfatizar, prioritariamente asrelaes das populaes indgenas com o estado nacional. Falta ainda estabelecer, a nossover, os instrumentos que nos permitam pensar antropologicamente um momentoanaliticamente anterior: os processos sociais e simblicos que formulam as diferenasinterconectando repertrios de vrias naturezas nativos, cientficos, ideolgicos,religiosos, etc. - e apresentando identidades que possam legitimamente representar-se. esse o reordenamento do problema que propomos, em que o contato deixa de ser marcado pelo dualismons-eles, dando lugar idia de mediao. Mas, antes de

    explorarmos mais detalhadamente nossa posio, preciso nos voltarmos para um outroconjunto de trabalhos antropolgicos que, tambm herdeiros da antropologia polticaclssica, procuram produzir uma olhar antropolgico da poltica em nossa prpriasociedade.

    IV. Antropologia da Poltica

    Num percurso inteiramente distinto, em meados dos anos de 1990, um grupo

    interinstitucional de antroplogos brasileiros reuniu-se em torno de uma pauta comum,tambm derivada da antropologia poltica. O esforo inaugural se deu a partir dascampanhas e das eleies municipais de 1996, tendo como princpio unificador a idia deque uma campanha eleitoral como momento legitimado de disputas, permitia florescer,de modo complexo, aspectos cotidianos da poltica e da vida social, muitas vezes poucorevelados em pesquisas que percebiam os resultados eleitorais como finalidadeexclusiva (Barreira e Palmeira, 1998: 10). Com isso ganhava corpo de programa acrtica iniciada pelas investigaes de Moacir Palmeira e Beatriz Herdia sobreconcepes de poltica entre populaes rurais em municpios pernambucanos e gachosao longo das eleies de 1988 e 1990, convertida em debate disciplinar por Palmeira emum artigo de 1992.

    Palmeira parte da constatao de que, apesar da variedade e riqueza das respostasoferecidas pela sociologia e pela cincia poltica sobre a direo do voto (o que chamam

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    de paradoxo da participao), elas se sustentam em uma mesma concepoabsolutamente consensual, isto , tomam o voto como uma ao individual, intencionalenvolvendo escolha, voltada para objetivos precisos e previamente definidos. Trata-se dealgo dado, auto-evidente (Palmeira, 1992: 26). O contraponto oferecidoaponta em duasdirees. Primeiro, define-se o voto no como uma escolha individual, ideolgica,racional e secreta, mas uma adeso pblica a um determinado coletivo, produzida peloacionamento de laos primordiais muito diversos, tais como os familiarese morais(compromissos, dons e contra-dons). Segundo, a poltica uma categoria nativa querecorta um tempo, o tempo da poltica- as eleies no se resumem ao confronto doscandidatos e votao dos eleitores, elas delimitam um perodo que se distingue do fluxocotidiano e no qual so possveis rearranjos no sistema de adeses, tendo por base os

    movimentos, conflitos, trocas de lealdade etc., operados no intervalo entre eleies(Palmeira, 1992: 29).

    Palmeira encerrava o texto de 1992 observando que no pretendia formularproposies gerais acerca da poltica, das eleies e do voto porque para a antropologiatoda generalizao deve passar pela comparao (dos conjuntos simblicos que dosentido s relaes sociais em cada sociedade). No entanto, a iniciativa de produzir umalarga colaborao entre vrios antroplogos, de diversas instituies, com trabalhos decampo em diferentes regies e sobre mltiplos aspectos envolvidos nas eleies de 1996,vinha suprir justamente tal necessidade de comparao, preparando as bases deproposies gerais, apresentadas na forma de um programa de trabalho, intitulado, ento,de Antropologiada poltica (NuAP, 1998). O programa pretende utilizar tudo o que aantropologia aprendeu durante mais de um sculo de contato com a poltica das outrassociedades para construir um olhar compreensivo sobre a nossa poltica (NuAP, 1998:9), pensada como um determinado domnio emprico. Para isso, o Ncleo atua em trsdimenses: a anlise das representaes ou concepes da poltica, enquanto categoria

    nativa; a anlise dos rituais da poltica ou de sua ritualizao; a anlise da violncia napoltica, entendida no como o contrrio da poltica, mas como sua forma extrema,revelador do lugar da poltica nas sociedades modernas.

    A antropologiada poltica distinguir -se-ia, pois, das Antropologias Polticasanteriores na medida em que recusava uma de suas vertentes por imputar arbitrariamente

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    o rtulo de poltico a instituies nativas, substancializando a poltica em um domnioemprico e, ao mesmo tempo, reduzindo tais instituies a uma funcionalidade pensadasempre a partir da ausncia do Estado. Seu programa escolhia assim, definir uma pautaque tivesse por critrio fundamental o ponto de vista nativo, isto , o estudo do que na prpria sociedade estudada seria designado como poltica, assim como na busca deuma perspectiva que no levasse a uma nova substancializao (justamente asubstancializao nativa da poltica) da interseo deste domnio emprico da polticacom domnios que, tambm do ponto de vista nativo, seriam vistos como outros comrelao poltica, tais como os domnios da vida social e cultural. Desse modo, uma pesquisa realmente antropolgica sobre poltica realizada junto a um movimento ougrupo social no deveria consistir apenas no estudo do prprio movimento ou grupo em

    si, nem do seu contexto imediato e nem mesmo no estudo das relaes entre ambos, masem uma anlise da poltica orientada pela perspectiva que os nativos tm a seu respeito(Goldman, 2006).

    H, evidentemente, uma enorme plasticidade no desenho dos produtos prticosdeste programa, caracterizada especialmente pela ambio de interessar-seconcomitantemente, pela estrutura social e pelo ponto de vista nativo, pelo Estado dasregras formais e pela nao dos processos sociais em ao (Peirano, 2006: 135) Emdecorrncia desta ambio,o objetivo de um estudo antropolgico sobre poltica deveriaconsistir, em ltima instncia, na elaborao de uma perspectiva sobre o nosso prpriosistema poltico equivalente quela elaborada, por exemplo, por Evans-Pritchard para os Nuer, que analise, assim, a democracia como parte dos Western Poltical Sistems,(Goldman, 2006: 33).

    Quaisquer que tenham sido os resultados acumulados at o momento por essaabordagem, parece-nos que a perspectiva assim definida como uma antropologia dapoltica contribui teoricamente ao impor a um campo de anlise praticamente exclusivo

    aos socilogos e cientistas polticos, um recorte novo do seu prprio objeto, em ao menostrs aspectos: na ampliao do campo de anlise designado como poltica(representaes, faccionalismos, vida comunitria, famlia, redes sociais, identidadetnica, ritualidade etc.); na proposio de uma abordagem positiva do sistema e dosmodos de fazer poltica, at ento pensados apenas a partir de suas faltas com relao ao

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    modelo ideal; e, finalmente, na reintroduo da dimenso sociolgica (micro-sociologia eda micro-poltica) em um campo que tendia, cada vez mais, s anlises internalistas, parao qual as eleies tornavam-se eventos autnomos e dotados de lgica prpria (Palmeirae Goldman, 1996: 8). Mas possvel que a maior contribuio terica desta antropologiada poltica para nossos objetivos esteja justamente nas formulaes iniciais e seminais deMoacir Palmeira, quando este converte a categoria nativa tempo da poltica em objetode reflexo sistemtica. (Palmeira, 1996).

    Voltando a tais formulaes, possvel compreender que para as populaesestudadas pelo autor, a poltica no uma atividade permanente, ainda que tambm noseja um domnio delimitado de atividades. Isto , est concentrada em um determinadoperodo, mas, neste perodo, torna-se um fato totalizador, que cruza os vrios domnios

    do social por estar associada demonstrao pblica de uma adeso. Lembrando queoutros autores (como Weber e Radcliffe-Brown) j haviam apontado a possibilidade dassociedades polticas no serem permanentes, afirma que a singularidade do casoanalisado que isso possa ocorrer em uma sociedade em que ela est associada aofuncionamento do Estado, ou seja, uma associao poltica caracterizada, entre outrascoisas, por sua permanncia. O tempo da poltica, para Palmeira, o momento em queessas faces so identificadas e em que passam a existir plenamente, em conflito aberto,dividindo municipalidades inteiras em reas permitidas e proibidas. Os prprios locais pblicos so mapeados e passam a expressar e ritualizar aquela adeso s faces emque a municipalidade passa a estar dividida. Mas, poderamos acrescentar, da mesmaforma que existir plenamente para tais faces significaexistir publicamente,a adesoritualizada no apenas a adeso s faces, mas, sobretudo, a adeso prpria situaode disputa em torno da diviso do mundo social. Ainda que, do ponto de vista dos debatesa que Palmeira est referido, tal constatao sirva para afirmar que o processo eleitoralserve para que os indivduos e grupos situem-se de um lado da sociedade (e que este lado,

    ao contrrio do que a literatura sobre mandonismo local e coronelismo afirma, no umlado fixo da a importncia do processo eleitoral como momento de produo e deajuste das adeses), o que nos interessa aqui , antes, reconhecer que, no tempo dapoltica, estar no jogo e ser visto no jogo to ou mais importante do que ter umdeterminado lugar no jogo. Ainda que, evidentemente, esteja em questo tanto a

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    tentativa de acesso a certos cargos de mando, quanto o peso relativo de diferentes partesda sociedade o que decisivo para a ordenao das relaes sociais durante um certotempo isso d uma razo ltima ao processo, mas no avana muito na anlise daforma especfica que ele assume.

    V. Para uma Antropologia do Poltico: o Conceito de Mediao .

    Dissemos que os estudos de antropologia poltica que colocavam em foco o modocomo os atores utilizam as categorias interessavam particularmente nosso entendimentodo poltico. No entanto, no se pode negar o fato que, quando nos voltamos para o estudode sociedades de grande escala torna-se invivel pensar a poltica em termos de suasfunes integrativas, tal como est posto naqueles estudos, sem levar em conta osaparelhos administrativos de produo cooperao e regulao de conflitos. Como darconta, pois, da lgica da ao dos atores abandonando a problema da integrao dosistema poltico?

    A noo ampliada de poltica utilizada pelos estudos do grupo encabeado porMoacir Palmeira nos ajuda a caminhar nessa direo. Ao enfatizar menos o sistemapoltico do que outros domnios da vida social tais como a vida comunitria, a famlia, asredes sociais, as identidades tnicas, etc. ela nos ajuda a explicitar e delimitar melhor o

    campo de observaes que ser objeto da antropologia do poltico que aqui propomos,sem que seja preciso lanar mo da idia de sistema. Com efeito, tomado neste contextode observao especfico, a nfase nos atores nos permitir uma abordagem antropolgicaque economiza o esforo de procurar produzir grandes modelos tericos-estruturais sobrenossos sistemas polticos ou sistemas normativos. A antropologia do poltico que estamospropondo busca, ao contrrio, construir uma abordagem mais restrita que nos permitacompreender, a partir da interao dos agentes em suas redes familiares, sociais einstitucionais, os mecanismos de produo de consensos em torno dos modos derepresentao e apresentao das diferenas. Ora, vimos que, segundo Leach, ascategorias so utilizadas simbolicamente para agregar. No entanto, essa virtude no intrnseca a elas mesmas. preciso observar como so operadas pelos agentes em suasrelaes contextualizadas de modo a constituir grupos capazes de se auto-representar.

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    Para a anlise dessa atividade de agenciamento material e simblico estamos acionado oconceito de mediao cuja utilidade especificaremos a seguir.

    Vimos acima que as teorias do contato contriburam para ressaltar a importnciapoltica das categorias relativas aos processos de produo de identidade. Elas nosajudam a formular o problema que nos interessa aqui examinar: esse particularagenciamento entre cultura e ao poltica to reiterativo na cena contempornea.Ainda assim, pudemos demonstrar que , para pens-lo, preciso superar o supostoimplcito nas antropologias do contato, ainda muito marcadas pelo paradigma docolonialismo, que postulam em sua descrio dos processos de dominao o lugar de umoutro a ser modificado por um ns.

    As crticas ao paradigma do colonialismo, ao reposicionarem ideologicamente o

    lugar da alteridade, minaram inteiramente as condies de possibilidade de umaantropologia que tivesse como objeto a compreenso, de um ponto de vista externalista,do modo de vida de um outro povo. Essa nova formulao do problema se explicita econsolida nos anos 1990, no contexto do debate sobre a globalizao. O deslocamento depopulaes, as disporas, e muitos outros fenmenos equivalentes, levaram a umamutao profunda das condies que autorizavam a percepo das relaes coloniais apartir de posies pensadas como binrias transformando em sua passagem o estatuto e asformas de produo das alteridades e/ou diferenas. O paradigma ps-colonial segundoStuart Hall (1996), enfatiza a anlise das relaes transversais e descentradas no intuitode captar as interconexes operantes no jogo das relaes transculturais. Nessaperspectiva ooutrodeixa de ser um termo dado e auto-evidente para tornar-se um sistemade posies no qual as diferenas so constantemente reformuladas dentro de uma cadeiadiscursiva. Conceitos como hibridismo, sincretismo, identidades diaspricasprocuraram descrever, no interior desse paradigma, situaes transculturais nas quais impossvel separar entidades culturais distintas para pensar suas relaes.

    Embora esses conceitos no faam avanar muito o entendimento dos processosde reposio discursiva das diferenas (uma vez que do por concluda a anlise aodesignar as novas identidades como hbridas), a re-alocao do lugar da diferena chave para o tema que aqui nos interessa. Ele permite que a antropologia polticaabandone o problema colonial formulado em termos de contato- relao entre um ns

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    e um eles (sociedade nacional e sociedades indgenas) - e que se possa recolocar oproblema das relaes interculturais como prope Hall, enquanto formas, historicamentesituadas, de formular a diferena como posio no interior de um sistema discursivo.

    A partir desse modo de colocar a questo temos que os processos de produo deidentidades, e seu uso poltico, s podem ser compreendidos atravs da observaoemprica do modo como agentes particulares, a partir de repertrios disponveis,produzem seus modos de representar suas diferenas na interao com os outros. Emtrabalho anterior onde analisamos as relaes entre missionrios cristos e as populaesindgenas no Brasil (Montero [org.], 2006) demonstramos que, no quadro das crticas aosistema colonial, os processos de interculturalidade to tpicos do mundo atual podem sermelhor compreendidos se utilizarmos o conceito de mediao como ferramenta de anlise

    antropolgica. Inspirados, em parte pelos estudos de Balandier, da Escola de Manchester,e pelo debate da antropologia ps-colonial colocamos o problema das diferenascivilizacionais entre ndios e missionrios cristos no plano das interaes na vidaprtica. Tratava-se,pois, de compreender as circunstncias e o modo como agentesnegociam as significaes de certos cdigos culturais que em determinadas situaesaparecem como portadores de especial capacidade de representar os interesses dos atoresem relao.

    O conceito de mediao nos permitiu abordar o problema dosmecanismos de produo de consensoem torno de certos modos de postular as diferenas, por meio deuma abordagem antropolgica menos interessada na constitucionalidade das estruturaspolticas e suas funes integrativas ou assimiladoras, do que na interao dos agentes.Diferentemente de um entendimento mais sociolgico da idia de mediao, que sublinhaa capacidade de certos agentes em intermediar interesses dos grupos que representam junto ao estado, nosso uso do conceito se move em direo definio de umcampoderelaes simultaneamente prtico e discursivo no qual so propostas comparaes,

    tradues e a codificao de sistemas de diferenas, que resultam em variadasmodalidades de pertencimentos. Assim, no lugar do encontro de alteridades absolutasou entidades culturais essencialmente distintas, suposto tanto nas teorias do contatoquanto na etnologia clssica, o exame dos agenciamentos entre ao poltica e re-alocao das diferenas reposiciona a anlise antropolgica que passa a ter como foco,

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    a) Os agentes

    Por no ter desenvolvido melhor o conceito de agente e suas implicaes, isto ,por ter considerado os atores sociais simples personagens em uma cena interativa, a

    antropologia do colonialismo, tomou-o, em grande parte, como auto-evidente, noenfrentando o problema analtico implicado na sua constituio. Reduzindo o ator a umpersonagem culturalmente pr-definido em funo da posio social que ocupa, seurepertrio cultural especfico foi pensado simplesmente como um instrumento da polticade resistncia/adeso ao colonialismo. Quando Gluckman (1958), por exemplo, faz umadetalhada anlise de uso nativo da cultura pelos atores na soluo de conflitos emsituao colonial, a resultante acaba sendo, finalmente, muito pouco abrangente,

    reduzindo-se questo da permanncia / desaparecimento de um padro. Assim, apesardessas inovaes que introduzem uma observao das prticas culturais em sua relaocom a poltica essa literatura tendeu, com raras excees, a manter o binarismons/outros implcito na oposio colonizador/colonizado no corao mesmo das relaesinterculturais entre os atores.

    O tipo de anlise que estamos propondo coloca no centro de sua ateno oproblema da agncia. Toda interconexo de diversidades exige um trabalho designificao promovido por agentes em relao. Tomaremos, pois, o agente no sentido aele dado por Bourdieu, enquanto um produto resultante da relao entre uma posiosocial e uma viso de mundo. Descrever a posio de um agente parte do problema eno um ponto de partida posto que ele se define atravs de uma trajetria cujo percursodeve ser interrogado. Por outro lado, compreender os interesses ligados posio socialajuda a compreender os modos de apropriao dos enunciados. Nesse sentido, a noo deagente corporifica posies de mediao que resultam do cruzamento, no espao social eem um determinado tempo, de um tipo particular de trajetrias com uma srie de

    enunciados. Se tomarmos para nossos propsitos essa noo de agente, tais personagensdeixam de ser avocados como uma priori emprico disponvel de antemo para nossodeciframento, porta-vozes que levam ao estado as demandas de um grupo social cujosmodos de pensar e sentir so conhecidos de antemo; examinar o sistema de posies que

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    constitui o agente como produtor e mediador das diferenas , pois, parte do problemaque aqui nos colocamos.

    Alm disso, no possvel pensar a agncia sem a sua encenao. no processomesmo de expresso dos modos de ver, sentir e representar as diferenas que emergem osagentes com mediadores simblicos das diferenas. Desse modo, diferentemente, dosatores que figuram nas situaes abordadas por Gluckman e que representam umaposio pr-definida na estrutura social o chefe nativo, o governador, o mdico etc. anoo de agente implica perguntarmos como tais atores ou grupos agenciam suasposies e as representaes sobre elas em nome de diferenas percebidas e sentidas,enfim, como os agentes se constroem por meio de processos simblicos de legitimao.Assim, ao invs de repertoriar o universo das crenas e sua adequao aos

    comportamentos como fez Gluckman, a investigao que tem por foco a agncia enfatizaas lgicas inerentes s prticas de representao. O que o trabalho da mediao faz categorizar a alteridade, compar-la e generaliz-la; isto , projeta as diferenas em umgrau de relao mais abstrato para que as alteridades se mantenham em relao e no seexpulsem mutuamente. Trabalharemos com a hiptese de que a atividade derepresentao das diferenas ser tanto melhor sucedida no sentido de sua legitimaoquanto maior for sua capacidade de agenciar as diferenas particulares em categoriasgeneralizadoras.

    Assim, as prticas de representao devem ser analisadas em sua dupla dimenso:o quadro categorial que mobilizam tal como j havia sugerido Leach e os modos rituaisque do verossimilhana aos agenciamentos das categorias. Para compreender asdiferentes formas e possibilidades de mediao a antropologia do poltico deve se voltarpara a anlise desses campos semnticos que os agentes mobilizam em suas lutas pelopoder de representao. preciso sublinhar, no entanto, como j nos ensinou aantropologia clssica, que as prticas de mediao so opacas aos atores. As lgicas

    prticas (Bourdieu, 1980) implicadas no trabalho de mediao conciliam constantementedomnios que o modo de pensar cientfico nos habituou a perceber como distintos taiscomo o mundo tcnico, o mundo econmico, o mundo poltico e o mundo ritual. Elas seexpressam atravs dasestratgiasdos agentes, escolhas realizadas enquanto o jogo aindaest sendo jogado, em funo de antecipaes incertas de probabilidades, e clculos

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    intuitivos de riscos e adversidades. Mas, por exercer-se no meio das urgncias do mundoreal, os atores no podem dispensar sobre suas prticas o mesmo olhar distanciado doanalista que, por estar fora do jogo, tem o privilgio da totalizao.

    Esse privilgio do senso prtico como o eixo de anlise da agencia contribui, anosso ver, para um entendimento renovado do que fazem os agentes: atravs de suascompetncias especficas no manejo de cdigos de significao fundadas em modos

    de apreciao constitudos na e pela experincia vivida propem conexes de sentidoplausveis e/ou verossmeis para a situao. Assim, a Antropologia do Poltico quepropomos privilegia o deciframento das relaes que concorrem para a construo dosmodos de percepo e apreciao das diferenas (agenciamentos) que instituem osagentes ao mesmo tempo em que so institudas por eles. Nessa dupla acepo de

    constituio de modos de apreciao ou juzo e constituio de agentes tornadoslegitimamente capazes de representar as diferenas, situa-se o fulcro de nossa abordagem.

    b) Do agente como ator ao agente poltico

    O trabalho de mediao das diferenas, que mobiliza agentes diferentementesituados, cujos interesses e esquemas categoriais estimulam um leque variado deestratgias, se torna visvel por meio de performances rituais. A literatura antropolgica,inspirada nos trabalhos de Victor Turner e Geertz tem compreendido os ritos em suadimenso teatral, no modo como encenam um sistema de valores e conflitos em umdado momento. O rito colocaria em movimento uma memria que atualizaria inmerasverses contraditrias do mesmo fato permitindo que as diversas verses existam e secontraponham. Mas o que nos interessa resgatar do conhecimento antropolgicoacumulado sobre as sociedades africanas e da polinsia a idia de que a dimensosimblica inerente aos rituais nos permite alargar a noo de poltica de modo aincorporar os processos, necessariamente simblicos, de produo de reconhecimento e

    de legitimidade.A noo de agenciamento das diferenas tendo em vista as polticas de

    reconhecimento produz um verdadeiro teatro do reconhecimento sem a anlise do qualuma Antropologia do Poltico no estaria completa. A encenao materializa asidentidades e, tornando-as visveis, consegue torn-las convincentes. Ainda assim, seria

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    preciso introduzir uma varivel no uso corrente das noes de performance, teatralizaoou ritualizao, que recupere nossos comentrios acerca do espao-tempo da poltica,feitos a partir das proposies de Palmeira, e que nos permita propor uma ponte entre aencenao das diferenas e a produo de direitos polticos. Parece-nos que a noo

    habermasiana de publicidade essa rede de comunicao de contedos e tomadas de

    posio que se condensam em opinies em torno de certas questes nos ajuda aavanar nessa direo. Ao invs de enfatizar a expressividade da encenao, Habermas(1997) enfatiza, por meio da idia de controvrsia, o modo como a publicizaoformula distintas verses a respeito de um tema. Nessas situaes de encenao dasdiferenas e sua negociao h uma mudana conflituosa na percepo dos problemasque gera um crescimento da ateno pblica sobre ele e uma busca intensificada de

    solues. Segundo Habermas a expanso do arco de atenes por todo o arco da opiniopblica que a controvrsia gera acaba envolvendo os aspectos normativos do problema eredundando em regulamentao de direitos. Nesse caso partiramos do suposto que opotencial generalizador das categorias colocadas em ao pelos agentes nos ritos deencenao das diferenas situa-se na sua capacidade de conexo com os cdigos prpriosda linguagem do direito. Esses operadores transformam a linguagem comum e a fazemcircular de modo mais generalizado por toda a sociedade em termos de normatividade.

    O que propomos como uma antropologia do poltico tem, portanto, como foco, omodo como os agentes mediadores ritualizam e negociam as categorias portadoras deidentidades para a ao na esfera pblica, propondo, desta forma, uma articulao entrecultura e poltica. Por meio do acompanhamento das trajetrias dos agentes a anliseantropolgica deve ser capaz de percorrer as mutaes nos processos de significao e delegitimao que se realizam nas apropriaes cada vez mais generalizantes de sentido aolongo desse arco que vai do ator, mais localizado, ao agente poltico com maiorcapacidade de representar. Quanto mais o ator se desliga da estrutura espao-temporaldas interaes simples, mais ele se constitui em agente poltico capaz de expressar-se pormeio das estruturas comunicacionais da esfera pblica. Nesse plano as manifestaes dosagentes se expressam em tornode controvrsias que ao mesmo tempo fixam os temasconsiderados merecedores de publicidade e definem os posicionamentos em torno deleacumulando informaes e elaborando argumentos que justifiquem uma opinio. Se

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    assumirmos como til essa proposio temos que tomar como problema a anlise doprocesso de constituio das controvrsias, por meio do jogo de disputas comunicativasque as instituem na esfera pblica e que definem as fronteiras que separam, em umdeterminado espao-tempo, os assuntos e atores privados, dos temas e agentes pblicos,isto , polticos.

    Ainda que exista um consenso na literatura recente a respeito da potencialidadedos conflitos tnicos tornarem-se um dos instrumentos mais contundentes e eficazes naluta pelo reconhecimento de novas formas de direito, continua em aberto a questo decompreender os mecanismos simblicos que sustentam e autorizam as experincias particulares, individuais e coletivas, de reivindicao de especificidade cultural, assimcomo o seu vnculo com a conformao de tais demandas por direitos. As noes

    correntemente acionadas pela sociologia e pela historiografia, sustentadas nas noes deinveno e manipulao, apesar de terem cumprido sua funo analtica em ummomento inicial do debate, tornaram-se insuficientes. Para alm do seu cartertautolgico (efetivamente toda tradio inventada e toda identidade manipuladasegundo os contextos de interao), tais noes denunciam uma concepo racionalista emanipulatria dos agentes (e de sua agncia). Portanto, continuaria sendo insuficientelanar mo da noo de mediao para dar conta da experincia social e simblica daidentificao e do reconhecimento, se ela no conseguisse escapar (avanando e norecuando) do estreito crculo desenhado pelas idias de inveno e manipulao. Umavez que esses discursos no resultam mecanicamente da imposio de uma agendaexterna proposta seja pelas Ongs, seja pelo estado, nem nasce espontaneamente da vidalocal, preciso, por um lado, compreender seus modo de produo e operao de sentidoe por outro, de constituio dos prprios agentes. Uma mediao que no pensadaapenas como uma ao que se estabelece entre agentes e agncias, mas como um campode produo de significados que trabalha na constituio dos prprios agentes

    Honneth (2003) sugere que na base social do tipo de conflito que instaura a luta por reconhecimento est uma experincia moral de desrespeito cujos termos seelaboram nos contextos sociais particulares. Mas para que essa experincia dedesapontamento pessoal se torne ao social preciso, segundo o autor, que se construauma ponte semntica capaz de constituir uma identidade coletiva. Essa proposio nos

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    parece particularmente interessante porque enraiza a anlise deste tipo particular decontrovrsia que se desenvolve no plano discursivo, por meio da incorporao doshorizontes sub-culturais nos quais certas experincias so percebidas como formas dedesrespeito e pela compreenso do modo como estas experincias mais ou menos privadas se tornam motivos morais de uma luta pelo reconhecimento. Ao colocar a lutasimblica, ainda muito devedora de uma antropologia do conhecimento que privilegia ascategorias e as formas de classificao, no plano moral, mais emocional do que cognitivo,o autor sugere que sem o encapsulamento da experincia na produo de significaesno possvel compreender a transformao das experincias privadas emcontrovrsias e, acrescentaramos, vice-versa .

    Compreendida desse modo, a noo de conflito moral de grande importncia

    para a re-captura da teoria da etnicidade por uma Antropologia do Poltico. A idia deuma unidade social definida em termos morais, com base em um desrespeitocompartilhado, aponta para a definio de unidades polticas a partir de uma relao dealteridade, sem que seja preciso atribuir qualquer substncia a tais grupos, nem confinartal noo de alteridade aos mecanismos estritamente locais de definio de fronteirastnicas. o conflito em torno dos limites entr e o respeito e o desrespeito, em umasociedade de comunicao ampliada, capaz de conectar no espao da esfera pblicadiferentes experincias restritas de desrespeito, que define as suas fronteiras.

    Assim, a noo de conflito moral acrescenta valor teoria baseada na noo defronteira. Ainda que os grupos insistam na metafsica do de dentro e do de fora agenciando os contedos culturais tomados como essenciais pelos sujeitos implicados-, a anlise antropolgica pode e deve atribuir um justo lugar esta simblica, sem tornarsua anlise presa da mesma metafsica. Se a noo de fronteira tnica descreve umasituao de excluso horizontal - ela depende de algum consenso em torno dos limitesque separam os grupos e pode ser pensada como funo de um etnocentrismo, a noode conflito moral, por estar sustentada na noo de desrespeito, implica inserir nadescrio da produo desses limites uma noo de hierarquia. O desrespeito que implicao recurso a uma instncia superior superior mesmo ao plano do Estado-nacional -implica um desequilbrio de poder entre as partes, que coloca a parte desrespeitada no plano da minoria poltica daquele contexto.

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    Enfim, na agenda de uma antropologia do poltico, preciso ter em conta que, se aconfigurao do espao pblico depende das formas de publicizao que pe emandamento, a anlise dessa passagem das experincias privadas para as aes derepresentao depende da compreenso dos termos a partir dos quais determinados atoresse sentem desrespeitados e o modo como se constroem, a partir dessas experinciaspontuais, as unidades sociais de ao, suas fronteiras e seus contedos, que do suportesimblico s reivindicaes por direitos.

    VI. Poltica e Cultura na Esfera Pblica Brasileira : uma Agenda

    Tomando como problema as controvrsias em torno da produo, reproduo e

    apropriao das diferenas, nos propomos examinar, do ponto de vista da mediao, osmecanismos de agenciamento na re-aloao das diferenas e a configurao dospertencimentos. Como isso se d parte do problema na agenda da antropologia polticaque estamos propondo. Buscando uma primeira sntese da abordagem aqui propostadiramos que os atores se constituem (ou no) em agentes polticos na lgica do jogopoltico das controvrsias quando, a partir delas elaboram demandas por direitos, tendoem vista constiturem-se como sujeitos de direitos.

    A ampliao da participao de novos atores sociais, entre eles os movimentossociais e as organizaes civis de marca tnica, ao longo do processo de democratizao,levou, por um lado, definio de um cdigo poltico novo o cdigo dos direitos que legitima a existncia de um campo de inter-relaes da sociedade com o Estado e,por outro, ao crescimento da categoria de diferena cultural como instrumento denegociao poltica. Neste contexto, propagou-se um modo de entender a reproduo dasdesigualdades sociais na chave de leitura da persistncia do preconceito e dadiscriminao racial, tnica e cultural, percepo esta que pautou a formulao de umapoltica de reconhecimento, a partir da Constituio de 1988, e que procurou traduzir-seem polticas pblicas em todas as reas de ao governamental: educao, sade, crdito,assistncia jurdica. Esta mudana se deu mediante uma alterao profunda das categoriascognitivas por meio das quais o Estado pensa e pensado. A nova sensibilidade dopoder pblico para com as especificidades tnicas e culturais est relacionada re-

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    definio simblicas da identidade nacional. O papel dos intelectuais e da comunidadeacadmica, que sempre foi central no processo poltico donation building, hoje operapara o amplo auto-reconhecimento pblico do Brasil como uma nao multitnica emulticultural, envolvendo-se nas controvrsias em torno das polticas pblicas relativass comunidades tradicionais ou s polticas de ao afirmativas.

    Neste contexto, a Poltica de Reconhecimento emerge e pensada, em geral,como promotora de aes que visam o respeito e a manuteno das formas de vida socialpensadas como diferenciadas com relao ao padro hegemnico. Elas so formuladascomo constituindo uma forma de defesa contra as mudanas historicamentecompulsrias, tais como as polticas de assimilao, de converso, de branqueamento.

    As polt