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  • A NOO DE IMAGINRIO JURDICO E A HISTRIA DO DIREITO

    RICARDO MARCELO FONSECA

    Procura-se deserto apropriado para uma

    miragem.

    Karl Kraus1

    1.

    Parto, desde logo, da seguinte hiptese: o

    imaginrio (ou, mais especificamente, o imaginrio jurdico) pode constituir

    uma dimenso interessante para a anlise do passado do direito. Em particular,

    o passado jurdico brasileiro do sculo XIX parece ser particularmente frtil

    para este tipo de anlise.

    No mbito da historiografia jurdica ,

    naturalmente, bastante sensvel para a prpria definio de seu estatuto o modo

    como se considera a dimenso do mental (outillage mental, como dizia

    Lucien Febvre). Afinal, se se levasse em conta que a dimenso jurdica

    dependente, fraca e condicionada com relao outra dimenso da histria

    (esta sim real) o ofcio do historiador do direito teria que ficar restrito s

    anlises econmicas ou sociais. Mas no s por uma questo de identidade

    disciplinar que esta questo importante para a histria do direito: creio que

    tambm j adquirida a convico de que o direito no uma esfera passiva e

    condicionada com relao s estruturas mais palpveis e mensurveis da

    realidade histrica. O direito se intersecta no modo como funciona a economia, Texto apresentado no III Encuentro Latinoamericano de Histria del Derecho, em Morelia, Mxico, no dia 5 de

    outubro de 2011. 1 KRAUS, Karl. Aforismos. Porto Alegre: arquiplago, 2010, pg. 91.

  • 2

    sendo uma sua nervatura essencial; o direito no reflexo, mas faz parte do

    modo como articulada a prpria tecitura da esfera social, que naturalmente se

    esgara sem uma dimenso ordenamental. O direito, ainda, tem uma relao

    complexssima com a poltica, podendo articular seus parmetros mas tambm

    conformar e limitar o modo como so tematizadas suas diretrizes. Enfim, o que

    se diz que o direito naturalmente inserido de modo inevitvel no contexto

    em que ele acontece tem a sua espessura, a sua especificidade e sua dinmica.

    Se assim , a prpria lgica interna do direito deve

    ser levada a srio em termos historiogrficos. O modo como se comporta a

    dimenso mental do direito tem, tambm, sua prpria histria e sua prpria

    dinmica, que precisam ser estudados nos seus diferentes contextos. o que

    importante historiografia jurdica j tem feito, seja abordando a noo de

    cultura jurdica (Giovanni Tarello), seja a noo de pensamento jurdico

    (Paolo Grossi e sua escola), seja a noo de histria dos conceitos jurdicos

    (inspirada sobretudo em R. Koselleck).

    Pois dentro desse territrio que parece interessante

    sugerir ao historiador do direito, como opo de manejo terico-metodolgico,

    o possvel emprego da noo de imaginrio jurdico.

    2.

    No mbito da filosofia poltica dos anos 70 do

    sculo XX, a dimenso do imaginrio toma um lugar relevante dentro da

    reflexo de Cornelius Castoriadis que, junto com Claude Lefort, representou

    naquele contexto uma tentativa de reviso do pensamento social e poltico do

    marxismo que reagia vulgata sovitica. De fato, estes filsofos franceses

    (Castoriadis, em verdade, um grego radicado na Frana) representavam

    emblematicamente, cada um a seu modo, a reao do pensamento de esquerda

    ao tipo de reflexo stalinista (chamada marxismo-leninismo) que ento era

  • 3

    ainda hegemnico. E Castoriadis, em particular num livro de 1975 intitulado

    Linstitution imaginaire de la societ, defendia a tese heterodoxa (visto que

    naturalmente se afastava do economicismo) no sentido de que a prpria

    sociedade seria produto, em grande medida, de uma instituio imaginria.

    Para Castoriadis, de fato, tudo que se apresenta no

    mundo histrico-social est indissociavelmente entrelaado com o simblico2

    embora a dimenso simblica no esgote essa realidade. As instituies, diz o

    autor, s existem no simblico: uma organizao dada da economia, um

    sistema de direito, um poder institudo, uma religio existem socialmente como

    sistemas simblicos sancionados3. Da que ele conceba que um ttulo de

    propriedade, um ato de venda um smbolo do direito, socialmente

    sancionado (...) As sentenas do tribunal so simblicas e suas consequncias o

    so quase que integralmente, at o gesto do carrasco que, real por excelncia,

    imediatamente tambm simblico tambm em outro nvel4.

    E a dimenso simblica, por sua vez, contm um

    componente essencial: o imaginrio. Falamos de imaginrio, prossegue

    Castoriadis, quando queremos falar de alguma coisa inventada quer se

    trate de uma inveno absoluta (uma histria imaginada em todas as suas

    partes), ou de um deslizamento, um deslocamento de sentido, onde smbolos j

    disponveis so investidos de outras significaes que no so suas

    significaes normais ou cannicas (...) Nos dois casos, evidente que o

    imaginrio se separa do real, que pretende colocar-se em seu lugar (uma

    mentira) ou que no pretende faz-lo (um romance)5. No final das contas, as

    2 Antes de Castoriadis mas no ambiente intelectual alemo outro autor j tinha feito um srio empreendimento

    de dissecao da dimenso simblica do homem dimenso esta que compe o imaginrio: conferir CASSIRER, Ernst. Antropologa filosfica. Mxico: fondo de cultura econmico, 1963, pgs. 45 e segs., bem como CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simblicas. So Paulo: Martins Fontes, 2004 (2 vol.)

    3 CASTORIADIS, Cornelius. A instituio imaginria da sociedade. 2a. ed. Rio de Janeiro: paz e terra, 1982, pg. 142.

    4 Idem, ibidem. 5 Idem, pg. 154.

  • 4

    relaes entre o simblico e o imaginrio aparecem, conclui o autor, quando

    nos defrontamos com a evidncia no sentido de que o imaginrio deve utilizar

    o simblico, no somente para exprimir-se, o que bvio, mas para existir,

    para passar do virtual a qualquer coisa mais6. E esse qualquer coisa a mais,

    naturalmente, representa a prpria sociedade instituda, a prpria sociedade em

    funcionamento por meio de diversas instituies como, emblematicamente, o

    direito.

    3.

    E no mbito da historiografia, como aparece e como

    definida a dimenso do imaginrio? O imaginrio faz parte de um conjunto

    de preocupaes historiogrficas que afloraram sobretudo na Frana, na esteira

    da percepo no sentido de que seria possvel fazer uma histria da esfera

    mental da sociedade, ir, como diziam eles, do poro ao sto. J no incio do

    sculo XX houve potentes precedentes deste tipo de historiografia tanto Marc

    Bloch, com seu Os Reis Taumaturgos (1924) quanto Lucien Febvre e seu O

    problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais (1942). Nos

    anos 1960 e 70 esta historiografia teve um novo impulso com Roberto

    Mandrou, Georges Duby, Jacques Le Goff e Alain Corbin, entre outros.

    Na verdade h nuances importantes que atravessam

    as sucessivas fases no mbito da historiografia geral das chamadas histria

    das mentalidades, a histria do imaginrio e as vrias facetas do que hoje se

    chama histria cultural. O que h de comum nelas, todavia, considerar a

    dimenso do mental como sendo dotada de uma espessura histrica. So

    deixados de lado velhos esquematismos da historiografia que consideravam

    que as assim chamadas esferas superestruturais seriam meros reflexos

    passivos, meros efeitos de outra dimenso material da histria. Percebeu-se,

    enfim, que esta dimenso (quer a chamemos da cultura, do mental, do 6 Idem ibidem.

  • 5

    pensamento) , ela mesma, parte da materialidade da histria, interagindo com

    as demais dimenses, delas recebendo (mas tambm nelas incidindo)

    influncias histricas importantes. Enfim, apercebeu-se que a compreenso de

    um dado contexto histrico depende fundamentalmente de se levar a srio a

    dimenso mental, desde que, naturalmente, evite-se a tentao de isol-lo dos

    demais contextos histricos e que se perceba, na riqueza do emprico, o modo

    como esta dimenso dialoga com seu entorno.

    Mas como se poderia definir, mesmo dentro desta

    tradio historiogrfica, a noo de imaginrio? Em verdade ele se coloca de

    modo conceitualmente mais articulado no mesmo perodo em que Castoriadis

    desenvolvia suas reflexes (anos 1960 e 1970), com os herdeiros daquela

    tradio iniciada com Bloch e Febvre. Jacques Le Goff, tomado como caso

    importante, esboa uma definio recorrendo a alguns pontos de referncia7.

    Ele afirma, por exemplo, que a dimenso do imaginrio faz parte do campo das

    representaes, mas com ela no se identifica; o imaginrio faz parte do

    processo de abstrao como a representao mas no traduz uma mera

    percepo da realidade, no mera traduo reprodutiva da realidade, mas tem

    tambm uma dimenso criativa. Como diz Le Goff, a fantasia, no significado

    pleno da palavra, arrasta o imaginrio para alm da representao puramente

    intelectual.8 Existe uma dimenso simblica, que remete o objeto a um

    sistema de valores subjacente (histrico ou idealizado). o que ocorre, por

    exemplo, quando os reis da Frana, nos portais rgios das catedrais, atualizam

    os antigos reis de Jud, ou quando os revolucionrios franceses do fim sculo

    XVIII retomam (e relem) intensamente o passado (sobretudo romano) na

    reinveno das instituies que esto ento em curso. Neste sentido, no se

    pode identificar a dimenso do imaginrio com a dimenso da ideologia, ao

    menos naquele sentido marxiano segundo o qual o real se contrape

    imaginao. Os sistemas mentais criados pelos homens (inclusive os

    sistemas jurdicos) tm existncia concreta e operam efeitos na realidade, de

    7 LE GOFF, Jacqes. Limmaginario medievale. Roma/Bari: Laterza, 1998. 8 Idem, p. VI

  • 6

    modo que so reais, ainda que algumas anlises mais mecanicistas tentem

    desnaturar o seu protagonismo nos mecanismos de funcionamento da

    sociedade. Como diz Evelyne Patlagean, toda cultura tem seu imaginrio9. A

    tudo isso se poderia acrescentar as importantes observaes tambm

    metodolgicas de Georges Duby, segundo as quais, em primeiro lugar, deve-

    se levar em conta que numa dada sociedade coexistem vrios sistemas de

    representaes que so concorrentes. Ademais disso, este conjunto de

    representaes so estabilizantes num dado contexto social.10

    4.

    Pois parece que tudo isso pode ser plenamente

    aplicvel anlise do jurdico (ao menos do passado jurdico do Brasil do

    sculo XIX).

    Primeiro, num mbito mais geral, porque a fronteira

    entre o real e o imaginrio, embora naturalmente exista, no to clara e

    definvel quanto pensava sobretudo uma parte da historiografia oitocentista.

    Todo historiador cauteloso deve estar atento ao modo como as prprias fontes

    supostos fragmentos de realidade podem estar, elas mesmas, carregadas e

    preenchidas por grandes pores do imaginrio.11

    Em segundo lugar, porque o direito, embora

    trabalhe emblematicamente com funes e realidades institudas, exerce

    tambm funes instituintes, que, segundo Franois Ost, supem a criao

    imaginria de significaes sociais-histrico novas e desconstruo das

    9 PATLAGEAN, Evelyne. A histria do imaginrio in LE GOFF (org). A histria nova. So Paulo: Martins

    Fontes, 1998, pg. 291. 10 DUBY, Georges. Histria social e ideologias das sociedades in LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (orgs.).

    Fazer histria 1: novos problemas. Viseu: Bertrand, 1987, pgs. 176/177. 11 a observao de cautela que faz expressamente J. Le Goff em Limmaginario medievale, p. VIII.

  • 7

    significaes institudas que a elas se opem12. Ou seja: inerente prpria

    experincia jurdica uma dimenso imaginria que nela incide cores, imagens,

    significados, memrias.

    Em terceiro lugar porque existem sobretudo no

    mbito do direito - sistemas estabilizantes. Alis, os constructos mentais na

    esfera jurdica quase sempre so, por definio, destinadas a produzir um efeito

    estabilizante, ordenante. E tratam-se de construes que so articuladas

    conceitualmente, so hierarquizadas (seja no repositrio conceitual ou seja no

    prprio modo de aplicao concreto), de modo que no so meros sistemas

    aleatrios (ou imaginados), mas que penetram e incidem na prpria lgica de

    funcionamento da sociedade. E alm de estabilizantes e sobretudo no

    sculo XIX se pode notar isso existem vrios sistemas que so entre eles

    concorrentes e que convivem de modo tenso na direo de construo de uma

    hegemonia sobre o que seria a verdadeira representao sobre o direito. Esta

    caracterstica de sistemas ao mesmo tempo estabilizantes e concorrentes

    que caracterizam a dimenso do imaginrio parecem ser particularmente

    pertinentes quando se olha a experincia jurdica brasileira (qui latino-

    americana) do sculo XIX. De fato, o imaginrio jurdico brasileiro neste seu

    momento de formao (ao menos na forma culturalmente mais articulada) tem

    como caractersticas constitutivas alguns traos antitticos, ao mesmo tempo

    marcados por uma tenso interna mas tambm por uma implicao que, de

    algum modo, do os contornos ao modo de ser do direito desta poca, ao

    espectro mental dos juristas, ao imaginrio jurdico brasileiro, enfim.

    Enquanto que a historiografia geral ao falar de

    imaginrio sublinha sobretudo uma tenso que sempre existe nesta dimenso

    mental entre o erudito e o popular, no caso do imaginrio jurdico

    brasileiro oitocentista se poderia deslocar, de modo talvez mais apropriado,

    12 OST, Franois. Contar a lei: as fontes do imaginrio jurdico. So Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004, pg. 19.

  • 8

    para outras dicotomias13: primeiro, e de um lado, aquela existente entre uma

    idia de direito que liberal, legalista ou, numa palavra, moderno. o que se

    v na pretenso de codificar o direito brasileiro do sculo XIX (obrigao e

    meta que j est inscrita no prprio teto da Constituio de 1824); alis, a meta

    de estabelecer (a exemplo do que j estavam fazendo os europeus e os vizinhos

    latino-americanos) uma constituio com algumas feies liberais; de

    progressivamente centralizar a produo jurdica nos parlamentos; de valorizar,

    numa batalha simblica que ento est em curso e a todo vapor, a dimenso

    central da lei.

    De outro lado, todavia, h uma idia de direito

    ainda fortemente calcada no costume, nas referncias normativas avessas s

    idias de um legalismo e que esto culturalmente vinculadas a uma sociedade

    hierarquizada e pluralista numa palavra, pr-moderna. o que se v pela

    renitncia na jurisprudncia oitocentista das referncias s ordenaes filipinas,

    importncia da doutrina (sobretudo pela via portuguesa) do chamado ius

    commune tudo isso em grande medida pelo fato do Brasil no ter codificado

    seu direito civil no sculo XIX e tambm da presena, em pleno sculo XIX,

    de um sistema poltico jurdico que funcionava ainda muito calcado na

    pluralidade e na fora dos poderes locais.

    Uma outra dicotomia importante e que de certo

    modo ligada anterior seria exatamente aquela existente entre, de um lado,

    as tradies jurdicas europias (particularmente portuguesas) que foram

    recebidas na poca anterior independncia e, de outro lado, o modo peculiar

    local, criativo, adaptado no qual tais tradies se acomodaram num tecido

    13 As dicotomias a seguir apresentadas, porm, no devem ser tomadas como foras que estejam em oposio a

    partir de modelos puros, tomados estes da realidade europia continental. O modo como eles convivem no Brasil oitocentista e ao conviverem implicarem-se e acomodarem-se que fazem da experincia jurdica brasileira do sculo XIX algo historicamente tpico, cuja anlise no pode jamais se esgotar (embora deva pressupor) as categorias jurdicas europias e/ou norte-americanas ento circulantes. A tarefa historiogrfica central, ento, parece ser desvendar o modo de sua recepo (para usar um termo caro historiografia jurdica) num contexto com razes histricas prprias e peculiares, entendendo como, afinal, dentro desta complexidade, este direito funcionava.

  • 9

    histrico to diferente: numa sociedade multicultural, com vrias etnias

    indgenas, com forte presena escrava, numa sociedade ainda fortemente

    hierarquizada, com focos locais de poder (dada a estrutura poltica e jurdica

    pluralista que foi recebida) com uma densidade muito grande frente s

    pretenses ps-independncia de unidade de poder estatal. Se verdadeiro que

    no Brasil no houve a figura presente na America espanhola do derecho

    indiano, tambm verdadeiro que no se pode classificar a experincia

    jurdica brasileira (nem nos oitocentos, nem nos sculos anteriores) como um

    mero transplante do ius commune (ou, mesmo a partir da independncia, do

    modelo liberal moderno) europeu. Houve, no Brasil, algo de diferente, peculiar,

    resultado destas tenses de diferentes contextos e diferentes imaginrios,

    contexto este que ainda precisa ser melhor desvendado.

    Tudo isso formava um tecido jurdico muito

    complexo que creio que hoje constituem uma agenda de pesquisas histrico-

    jurdicas que, apesar das foras contrastantes estabilizantes e

    concorrentes, funcionava e garantia uma certa estabilidade (jurdica) ao

    sistema. Constitua, enfim, os contornos (certamente complexos, cheios de

    nuances e particularidades) do imaginrio jurdico brasileiro.

    5.

    Dois indicadores destas peculiaridades podem ser

    vistos na jurisprudncia e na doutrina.

    A jurisprudncia do perodo era, de fato, expresso

    desta complexidade com uma diversidade de elementos e fontes culturais

    impressionante. Sobretudo no mbito do assim chamado direito privado, os

    tribunais eram artfices de um caldeiro onde se misturavam elementos como

    doutrina e legislao estrangeira (cujo uso era autorizado pela Lei da Boa

  • 10

    Razo de 1769), de legislao eclesistica e tantas outras referncias culturais

    pertencentes ao mundo do antigo regime; e ao mesmo tempo havia

    referncias novssima legislao do Brasil independente (legislao esta que,

    como conceito, estava sendo neste exato momento revalorado e ressignificado),

    Constituio, premissa da diviso dos poderes, idia de cidadania

    (malgrado dentro de uma dimenso censitria e numa sociedade escravista), e

    estava presente a cultura do cdigo (ou a vontade de cdigo), porque se

    cdigo civil no havia no Brasil do sculo XIX, ele estava, de todo modo,

    indiscutivelmente presente na discusso dos juristas do sculo XIX.

    A doutrina era tambm expresso exemplar desta

    complexidade, que construiu um sistema de interpretao onde a mescla de

    elementos que hoje podem nos parecer opostos e contrastantes era a tnica. E

    aqui me permito, por brevidade, citar somente um exemplo emblemtico: o de

    Augusto Teixeira de Freitas considerado por muitos o grande jurisconsulto

    do imprio do Brasil, o autor do primeiro e mais importante projeto de cdigo

    civil no Brasil oitocentista (o esboo), considerado ainda por tantos um dos

    juristas mais original da Amrica Latina e o precursor de uma srie de

    diretrizes que mais tarde, no final do sculo XIX, viriam a ser implementadas

    no BGB alemo.14

    Mas olhando de perto, este jurista se mostrava bem

    mais complexo e um tanto fugidio a todos estes rtulos. Teixeira de Freitas era

    um personagem de transio e, nessa medida, representativo do perodo de

    tenso entre modelos opostos por que passava o prprio direito privado

    brasileiro do sculo XIX. Mostrava-se nos limites da adeso ao canto da sereia

    legocntrico e estatlatra, mas no pagava tributos a uma perspectiva

    meramente exegtica passiva do intrprete com relao ao ordenamento

    jurdico. De outro lado e nesse ponto fazia jus influncia que teve de toda a 14 As observaes a seguir a respeito de Teixeira de Freitas foram desenvolvidas com mais vagar em FONSECA,

    Ricardo Marcelo. Teixeira de Freitas: um jurista traidor na modernizao jurdica brasileira in Revista do Instituto Histrico e Geogrphico Brazileiro, numero 452, 2011 (no prelo).

  • 11

    doutrina do ius commune atribua cincia um papel protagonista e

    conformador. Personagem complexo, como se v.

    Mas Teixeira de Freitas mais do que um

    personagem de transio (como tantos outros o foram). Na medida em que

    tomou para si a tarefa de consolidar o direito civil brasileiro antes de

    produzir o projeto de cdigo (aludo aqui famosa Consolidao das Leis

    Civis de 185715, e que constituiu um trabalho preparatrio ao projeto de

    codificao), cumpriu tambm, at algum ponto, uma tarefa de produo de

    um ordenamento jurdico. que no pode ser descartada a evidncia no sentido

    de que a Consolidao, depois de lanada, acabou por servir em grande

    medida de guia da legislao civil brasileira vigente, fungindo as funes de

    um cdigo antes mesmo do cdigo16. De fato, no pode ser desprezado tambm

    o modo como Teixeira de Freitas, ao aparentemente apenas consolidar a

    legislao pr-existente, na realidade no modificava apenas a linguagem e o

    estilo (o que no so fatos de pequena importncia), mas aparentemente

    tambm atribua um sentido diferente subvertia mesmo os prprios textos

    que deveria apenas reunir. Em outros termos: na oportunidade da

    consolidao dos textos vigentes, no apenas transformava a linguagem, mas

    o modo como selecionava, escrevia e expressava as matrias tinham um forte

    vis de reinterpretao e recriao, exatamente nos moldes como os juristas

    do ius commune agiam na sua atividade de interpretatio17.

    15 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Introduo, in BRAZIL. Consolidao das Leis Civis (publicao do

    governo). Rio de Janeiro: Typographia universal de Laemmert, 1857. 16 Em pesquisa de doutorado sobre o direito de propriedade no Brasil do sculo XIX, verificou-se que num total de

    56 julgados sobre o tema de domnio e propriedade, a Consolidao das Leis Civis aparece como um texto citado 44 vezes, o que significa que constava em 22 julgados (quase 40%, das decises ali consultadas portanto). Percebe-se, assim, o efeito que esta atividade de Teixeira de Freitas foi crucial em termos institucionais no mbito da cultura jurdica brasileira do sculo XIX. STAUT JR., Sergio Said. A posse no direito brasileiro da segunda metade do sculo XIX ao cdigo civil de 1916. Curitiba: (tese de doutorado UFPR), 2009, pg. 196.

    17 CALASSO, Francesco. Medio evo del diritto: 1o: Le fonti. Milano: Giuffr, 1954, pgs. 479 e segs. e GROSSI, Lordine giuridico medievale. Roma/Bari: Laterza, 1995, pgs. 162 e segs.

  • 12

    Dou um exemplo: aquele referente ao domnio. No

    incio do Titulo I (Do domnio) do Livro II (dos direitos reais) de sua

    consolidao, Teixeira de Freitas define o domnio do seguinte modo: Art.

    884. Consiste o domnio na livre faculdade de usar e dispor das cousas, e de as

    demandar por Aes reaes. Diz o jurista baiano que este dispositivo se inspira

    em vrias disposies dos livros 3o e 4o das Ordenaes (que ele cita na nota de

    rodap). Mas observando com ateno os dispositivos das ordenaes no se

    percebe esta relao direta. Por exemplo, o titulo XXXI do Livro 3o. das

    Ordenaes (disposio que ele coloca como fonte para seu artigo 884), trata

    da hiptese de demanda que envolver coisa mvel e o demandado no tiver

    bens de raiz (parece bem mais uma disposio de cunho processual do que de

    direito material); j o titulo X do Livro 4o. das Ordenaes trata das hipteses

    de vendas e alienaes de coisas sobre as quais pendem litgios judiciais; j o

    titulo 11 do Livro 4o das Ordenaes trata da proibio de constrangimento de

    vender os bens a outros (sobretudo da prpria famlia); e, finalmente, o titulo

    XXXVI do Livro 4o das Ordenaes trata da hiptese de algum morrer sem

    nomear algum para a propriedade de foro.

    Como se v, Teixeira de Freitas foi um verdadeiro

    inventor (travestido de compilador de um direito supostamente vigente). Ao

    buscar ser o tradutor de uma experincia jurdica que a todos parecia confusa e

    labirntica, acabou por ser dela o traidor, visto que, em alguma medida,

    superou-a e subverteu-a, ao nela projetar (dizendo estar s consolidando) o

    que nela no existia O adgio da lngua italiana que relembra como o tradutor

    de um texto est sempre prximo de sua prpria traio (traduttore/traditore)

    parece caber como uma luva ao assim chamado jurisconsulto do imprio. E

    os textos traduzidos/inventados por Teixeira de Freitas, para o bem e para o

    mal, a partir de ento impregnaram e fizeram parte da experincia jurdica

    brasileira da segunda metade do sculo XIX.

    6.

  • 13

    Em suma, tudo isso ao meu ver demonstra que a

    convivncia (se no harmnica, pelo menos um tanto estvel) entre leis e

    Ordenaes, idia de cdigo e uso da doutrina estrangeira do antigo regime,

    referncias ao Estado e legislao cannica, entre tentativas de traduo de

    diferentes contextos e experincias jurdicas (e tambm entre as invenes de

    tradies que tambm acabaram sendo operadas), tudo isso, enfim, constituiu

    os ingredientes em que os juristas e a cultura jurdica brasileira do sculo XIX

    operaram, formando um imaginrio jurdico dotado de grande especificidade

    histrica. Um imaginrio jurdico, ento, que no pode ser analisado tendo-se

    em conta a sua conformidade com a tradio europia ou ento, ainda pior,

    vislumbrando-se uma suposta genialidade originria (e portanto originalidade

    absoluta) em alguns dos nossos eclticos juristas do sculo XIX. Um

    imaginrio jurdico que tenta expressar a realidade, que tenta refletir a

    realidade, mas ao mesmo tempo que imagina uma realidade (usando

    referncias culturais que encontram efetividade naquele terreno histrico). Um

    imaginrio jurdico que, ento, em parte cria uma realidade jurdica, (criao

    esta que causa efeitos reais na sociedade brasileira da poca). Um mundo

    jurdico peculiar (produto de um imaginrio jurdico que precisa ser

    desvendado) que expressa e em grande medida explica um mundo histrico

    (aquele do Brasil do sculo XIX) igualmente peculiar.