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Apresentação

O que v. tem em mãos representa um reforço para as aulas presenciais que

serão ministradas no transcurso desse primeiro capítulo do Curso de Direito Registral

Imobiliário da UniRegistral – Universidade Corporativa do Registro.

Estamos iniciando uma importante fase na história dos Registros Imobiliários

pátrios. Pela primeira vez, um curso de direito nasce das aspirações dos registradores e

germina no interior de uma entidade que os representa. A Arisp – Associação dos

Registradores Imobiliários do Estado de São Paulo, com o apoio do Irib – Instituto de

Registro Imobiliário do Brasil e da Anoreg-SP – Associação dos Notários e

Registradores do Estado de São Paulo, realiza o Primeiro Capítulo de um curso que se

projeta para ser um fórum permanente de discussões e debates.

Como tive ocasião de declarar, a idéia da criação e instituição da UniRegistral

– Universidade Corporativa do Registro – é fomentar e estimular o desenvolvimento de

uma comunidade de estudiosos do direito registral que vem vicejando há muito em

nosso meio. Um dos grandes inspiradores deste projeto, sempre reitera a idéia de que

devemos transmitir nossos tesouros aos novos registradores, desafiando-nos a continuar

a nossa história, a perseverar em nossa substância, certo de que as nossas tradições

devem ser legadas aos jovens que aspiram a esse nobile officium.

RICARDO DIP se lembraria de BELTRÁN DE HEREDIA, na obra que escreveu

sobre a vida e a obra de FRANCISCO DE VITORIA. Diz o eminente desembargador que “a

UniRegistral está promovendo uma relectio de Direito registrário... (...) uma relectio

acadêmica, ao modo como se proferiu, p.ex., a Relectio de Indis de Vitoria, não uma

recapitulação de matéria já tratada, mas uma dissertação em que se volta às lições já

meditadas e proferidas: é, de algum modo, uma repetição, mas uma repetição (ou

relección, em castelhano, uma relição) que estende e aprofunda, colhe os frutos

maduros que antes se haviam semeado”.

Estamos no seio do que propriamente se pode chamar de um verdadeiro Liceu

do Direito Registral Imobiliário brasileiro, cujo epicentro é a entidade que os representa

em terras bandeirantes.

Desejamos a todos os participantes um proveitoso percurso em muito boa

companhia.

São Paulo, 20 de junho de 2008.

SÉRGIO JACOMINO

Secretário da UniRegistral.

Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 2

Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br

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CURSO DE DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO

Apresentação

Programa

1. O paradigma da independência jurídica dos Registradores e dos Notários - Ricardo Henry

Marques Dip

2. Sobre a crise contemporânea da segurança jurídica - Ricardo Henry Marques Dip

3. Sobre a função social do Registrador de Imóveis - Ricardo Henry Marques Dip

4. Sobre a qualificação no Registro de Imóveis - Ricardo Henry Marques Dip

5. Princípios do Direito Registral Imobiliário - Álvaro Melo Filho

6. Princípio da legalidade e registro de imóveis - Flauzilino Araújo dos Santos

7. Títulos judiciais e o Registro Imobiliário - Marcelo Martins Berthe

8. Sobre a qualificação de títulos judiciais no Brasil - Flauzilino Araújo dos Santos

9. Qualificação registral de títulos judiciais e crime de desobediência - Sílvia Dip

10. São taxativos os atos registráveis? - Ricardo Henry Marques Dip

11. Processo administrativo ordinário no juízo corregedor - Vicente de Abreu Amadei

12. A penhora e o procedimento de dúvida - Sérgio Jacomino

13. Averbação premonitória, publicidade registral e distribuidores: a probatio diabolica e o

santo remédio - Sérgio Jacomino

Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 3

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CURSO DE DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO

PROGRAMA

Módulo 1 - Princípios de Direito Registral I

a) Princípios antenormativos.

b) Princípios supranormativos.

c) Princípios endonormativos.

d) Princípios transnormativos.

e) Princípio de segurança jurídica.

f) Princípio de legalidade – Qualificação registral.

g) Princípio de inscrição.

h) Princípio de publicidade.

Tema para discussão e debate: O Direito Registral se esgota na norma?

Professores

Des. José Renato Nalini

Dr. Flauzilino Araújo dos Santos

Des. Ricardo Dip

Dr. Vicente de Abreu Amadei

Debatedores

Dr. João Baptista Galhardo

Des. Narciso Orlandi Neto

Dr. Sérgio Jacomino

Data: 20.06.2008 das 18h às 22h e 21.06.2008 das 9h às 18h

Módulo 2 - Princípios de Direito Registral II

a) Princípio de instância.

b) Princípio de legitimação.

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c) Princípio de prioridade.

d) Princípio de continuidade.

e) Princípio de especialidade.

f) Unitariedade da matrícula.

Tema para discussão e debate: Princípios registrais e a qualificação de títulos

judiciais. Desenvolver o tema da ordem judicial em face dos princípios

do Registro Imobiliário.

Professores

Des. José Renato Nalini

Dr. Flauzilino Araújo dos Santos

Des. Ricardo Dip

Dr. Vicente de Abreu Amadei

Debatedores

Dr. Alexandre Laizo Clápis

Dr. Flaviano Galhardo

Dr. Francisco Ventura de Toledo

Data: 27.06.2008 das 18h às 22h e 28.06.2008 das 9h às 18h

Módulo 3 - O estatuto profissional do Registrador Imobiliário

a) Atividade Registral no Brasil.

b) A Constituição Federal de 1988 – Um novo paradigma.

c) Do serventuário de Justiça ao Registrador – O estatuto jurídico profissional.

d) A Lei 8.935, de 1994.

e) A EC 45 – A atração dos órgãos prestadores de serviços de Registro.

f) O ingresso na atividade – Concursos Públicos.

g) Fiscalização pelo Judiciário – Limites e parâmetros.

h) Colegiação e sindicalização de registradores.

i) Territorialidade e monopólio natural.

j) Perda da delegação.

k) Aposentadoria.

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l) Direito aos emolumentos.

Tema para discussão e debate: A sucessão nos cartórios.

Professores

Dr. Celso Fernandes Campilongo

Dr. Diego Selhane Perez

Des. Kioitsi Chicuta

Des. Ricardo Dip

Debatedores

Dr. Alexandre Augusto Arcaro

Des. José de Mello Junqueira

Dra. Patrícia Ferraz

Dr. Sérgio Jacomino

Data: 04.07.2008 das 18h às 22h e 05.07.2008 das 9h às 18h

Módulo 4 - Direito formal e material –

O que se inscreve e como se inscreve

a) No Registro de Imóveis – Que se registra?

b) Morfologia titular – Os títulos inscritíveis.

b1) Títulos administrativos

b2) Títulos notariais

b3) Títulos privados

b4) Títulos judiciais

b5) Títulos estrangeiros

b6) Teoria do título e modo.

b7) O sistema registral brasileiro

c) Taxatividade ou exemplaridade dos fatos inscritíveis?

c1) Teoria do numerus clausus dos direitos reais

c2) Tipicidade dos fatos inscritíveis

d) Destaque: títulos judiciais e o Registro de Imóveis

d1) Penhora – Inovações legislativas

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d2) Averbação premonitória (art. 615-A do CPC)

d3) Arresto, seqüestro e indisponibilidade de bens

d4) Arrolamento de bens (cautelar)

d5) Arrolamento fiscal de bens (Lei 9.532, de 1997)

d6) Caução processual e hipoteca judiciária

d7) Protesto contra alienação de bens

Tema para discussão e debate: Registro de títulos que versem sobre direitos

pessoais. Dar exemplos e justificar a opção do legislador.

Professores

Dr. Everaldo Augusto Cambler

Dr. Márcio Pires de Mesquita

Dr. Marcelo Martins Berthe

Dr. Sérgio Jacomino

Debatedores

Dr. Flauzilino Araújo dos Santos

Des. José de Mello Junqueira

Dr. Mário Pazutti Mezzari

Dra. Tânia Mara Ahualli

Data: 11.07.2008 das 18h às 22h e 12.07.2008 das 9h às 18h

Hotel Pergamon

Rua Frei Caneca, 80 - Consolação

São Paulo - Brasil - CEP 01307-000

Tel.: 55 (11) 3123.2021

Toll free 0800 551056

www.pergamon.com.br

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1.

O PARADIGMA DA INDEPENDÊNCIA JURÍDICA

DOS REGISTRADORES E DOS NOTÁRIOS

RICARDO HENRY MARQUES DIP

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.

1

Sem ter, minimamente, em cogitação, o objetivo de instituir um paradigma, e,

principalmente, não contando entre meus defeitos – que alisto, por infelicidade, em

grande número – o anelo de ser original, tenho, nada obstante, a consciência de que, a

partir de uma deslustrada palestra que perpetrei em Porto Alegre, em fins de 1990,1

tracei, para a comunidade registral-notarial brasileira, os primeiros vestígios daquilo que

hoje se tem designado por paradigma da independência jurídica dos registradores

públicos e dos notários.

Julgo ser este um momento propício para cogitar, com apoio em sua humilde

história, do papel que teve e, acaso, da função que ainda se espera ou se pode esperar

desse paradigma. Sem ilusões, de um lado, sem frustrações, de outro. Sem, para logo, a

vaidade de um inaugurador de teorias, vaidade de que todos podemos ser vítimas – a

quantas anda, com efeito, na nova teologia, a esquecida lista dos pecados capitais,

elenco em que eu lia, ao tempo da minha infância, primeirissimamente a soberba ou o

orgulho? –, mas, em todo caso, sem, depois, as lamúrias, muita vez abúlicas, típicas dos

que não encarnam a possibilidade de ser.

1 Sobre o Saber Regional, atas do I Congresso de Registros do Rio Grande do Sul,

Revista de Direito Imobiliário n. 31-32, jan.-dez. de 1993.

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Talvez seja este um dos mais relevantes e discretos dos conselhos sociais para

os nossos tempos: freqüentemente a dificuldade de realizar um modelo político ou

jurídico teórico razoável acha-se na falta de comprometimento atual para sua realidade

futura. Lembra-me aqui uma celebrada passagem de Heidegger: para uma possibilidade

chegar a ser uma atualidade é antes preciso poder vivê-la como possibilidade. Também

no ambiente político, sem o comprometimento grave com a potencialidade específica de

um dever-ser, nenhuma possibilidade chega a ser. Há assim um momento existencial

prévio em que a realidade ulterior, se se quer seriamente que venha a ser, demanda um

empolgamento, um compromisso de a extrair das causas possíveis, de fazer a realidade

possível a partir da consciência engajada na possibilidade mesma dessa realidade:

enfim, uma responsabilização pessoal pelo nosso tempo.

Exemplo vivo desse quadro pode apontar-se no fato político ou jurídico dos

autoritarismos e totalitarismos que freqüentaram este século XX. Se a esses regimes

político-jurídicos não tivessem respondido os povos com a responsabilidade de uma

potência que chegou a ser, ainda estaríamos hoje lacrimejando ao lado do muro de

Berlim. É possível que alguns embarguem o desfecho estendido desse relativo êxito

histórico lembrando não só a persistência ainda de regimes totalitários, mas, por igual

ou talvez até com maior preocupação, a novidade pós-soviética da sutileza totalitária de

regimes rubricados como democráticos.2 Outros objetarão ainda com a previsão

2 Cf. a esse respeito o excelente estudo de Miguel Ayuso, ¿Después del Leviathan?,

Madrid: Speiro, 1996, passim; cf. ainda meu pequeno estudo: Apontamentos sobre as mudanças

das leis e o direito adquirido à luz do jusnaturalismo clássico: palestra proferida no Tribunal de

Alçada Criminal de São Paulo, em 18.06.1997.

(3) Em modesta reflexão intitulada "Uma Festa do Direito", incluída na obra coletiva que

organizei com escritos de Narciso Orlandi Neto, José Renato Nalini, Kioitsi Chicuta e Vicente

de Abreu Amadei, Registros Públicos e Segurança Jurídica (Porto Alegre: Antonio Fabris,

1998), fiz concisa referência ao tema: “Não me conto entre os pessimistas que, vendo em tudo

sinais da „decadência do Ocidente‟, aguardam o final catastrófico de toda a história, mas

tampouco me conto entre os otimistas que se fiam no mito do progresso indefinido pregado pelo

iluminismo: guardo no fundo mais recôndito da alma uma virtude que também não escapou da

caixa de Pandora: a esperança. Por mais que essa virtude eu esteja a referi-la,

fundamentalmente, a uma situação extra-histórica, estou convencido de que a resistência pode

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histórico-teológica de uma catástrofe intra-histórica. Essas objeções não afetam o

núcleo da apontada lição heideggeriana: o ritmo cultural não é retilíneo, e a visão de um

cataclismo intra-histórico não interdita a esperanto que se projeta de maneira

escatológica.3 Na expressão empregada por Armando Valladares,

4 é alguma vez mesmo

contra toda a esperança que se protesta e se reage contra o erro e as injustiças, é contra

toda a esperança que se sabe que a libertação na e para a verdade só é muita vez

possível quando se faz antes um dever-ser existencial, quando se reconhece e se

compromete previamente como possibilidade de sua realização.

2

Comumente, a história de uma teoria não tem maior significado para sua

verificação e é muito possível que a pequena memória desse nosso paradigma não se

exclua inteiramente do tratado comum do histórico das teorias. Ainda assim, uma razão

política parece aqui justificar a rememoração.

constituir um katéjon, um obstáculo que retarde e reduza a inevitável catástrofe intra-histórica.

Penso que as linhas de combate estão em toda parte: de um lado, a revolução, de outro, a

contra-revolução” (p. 25).

3 Em modesta reflexão intitulada "Uma Festa do Direito", incluída na obra coletiva que

organizei com escritos de Narciso Orlandi Neto, José Renato Nalini, Kioitsi Chicuta e Vicente

de Abreu Amadei, Registros Públicos e Segurança Jurídica (Porto Alegre: Antonio Fabris,

1998), fiz concisa referência ao tema: “Não me conto entre os pessimistas que, vendo em tudo

sinais da „decadência do Ocidente‟, aguardam o final catastrófico de toda a história, mas

tampouco me conto entre os otimistas que se fiam no mito do progresso indefinido pregado pelo

iluminismo: guardo no fundo mais recôndito da alma uma virtude que também não escapou da

caixa de Pandora: a esperança. Por mais que essa virtude eu esteja a referi-la,

fundamentalmente, a uma situação extra-histórica, estou convencido de que a resistência pode

constituir um katéjon, um obstáculo que retarde e reduza a inevitável catástrofe intra-histórica.

Penso que as linhas de combate estão em toda parte: de um lado, a revolução, de outro, a

contra-revolução” (p. 25).

4 Armando Valladares, Contra Toda Esperanza, Panamá: Kosmos, 1985.

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O modelo brasileiro de independência jurídica do registrador e do notário não

surgiu historicamente para remate de uma crise científica ou construção de uma nova

ciência normal, mas como um simples critério para fomentar a sistematização de uma

doutrina registrária até então demasiado esparsa. Em rigor, não cabe sequer falar, entre

nós, numa invenção desse paradigma,5

como não se entrevê tenha ele dado ensejo à

emergência de uma crise científica. A razão de toda essa simplicidade é a de uma outra

simplicidade, a de sua história franciscana: em verdade, nós não tínhamos, até então,

uma comunidade científica. A ciência normal do registro imobiliário no Brasil, até cerca

de uma década, não é mais do que um apêndice do direito civil – o que não lhe retira,

longe disso, a importância, nem nega a seus expositores o valor que tinham e ainda têm

induvidosamente. Mas, por ausência de mínima estrutura de comunicação permanente

entre os estudiosos do direito “registral”, não se podia falar por então em comunidade

científica dos registros.

Não foi a relativa difusão do paradigma da independência jurídica dos

registradores e dos notários a causa da formação da comunidade científico-registrária

no País, nem o paradigma teve o papel de redirecionar o fio condutor dos estudos

registrais, mas sim de servir como critério catalizador de um sistema fundado em uma

reorientação registralista paralelamente já encetada. Referido modelo da independência

jurídica surgiu por ocasião dos primeiros passos de gênese da comunidade científico-

registral6 e quase, pois, como efeito de uma reorientação ainda um pouco tímida dos

5 De fato, a teoria da independência jurídica dos registradores e notários não constituía

nenhuma novidade na doutrina mundial.

Gestada, isto sim, por obra das reuniões do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e,

paralelamente, pelas reflexões dos juízes do registro (assim, por exemplo, os que se

congregaram no que se poderia chamar, em expressão do Des. Bruno Affonso de André, de

escola paulista do registro).

6 Gestada, isto sim, por obra das reuniões do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil

e, paralelamente, pelas reflexões dos juízes do registro (assim, por exemplo, os que se

congregaram no que se poderia chamar, em expressão do Des. Bruno Affonso de André, de

escola paulista do registro).

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estudos registrários, que então começavam a se autonomizar – ou, como já me pareceu

preferível dizer, se ontonomizavam7 –, distinguindo-se do gênero próximo direito civil.

Ao propor-se como um modelo teórico para a atuação jurídica do registrador

(e, em paralelo, do notário), reconhecendo uma independência operativa que não se

explicitara de comum na doutrina e na jurisprudência registrárias, o novo paradigma

adquiriu – sem que eu assim precipuamente o pretendesse8 – uma função política de

aglutinação dos registradores,9

refletindo, por acréscimo, na adoção de teses anexas,

entre elas as da necessária ontonomização do direito registral.

3

No plano fundacional desse paradigma é que se acha, a meu ver, o melhor de

sua manifestação.

É preciso observar que a idéia de paradigma de uma ciência – isto é, a noção de

que em torno de uma teoria paradigmática ou concepção standard se institui ou se reúne

7 Emprego esse termo – que elenco entre os de patente fealdade estilística –, em

categoria verbal, vincando-o ao conceito objetivo de ontonomia, noção intermédia entre a

autonomia e a heteronomia. Ontonomia, diz um autor de nossos tempos, é “o reconhecimento

ou desenvolvimento das leis próprias de cada esfera do ser ou da atividade humana, com

distinção das esferas superiores ou inferiores, mas sem separação nem interferências

injustificadas” (Raimundo Paniker, Ontonomía de la Ciencia. Madrid: Gredos, 1959. p. 11).

8 Mas, a bem da verdade, eu previra o fato, e essa previsão deu motivo a que se

acautelasse a difusão do modelo.

É plausível que a percepcão da independência haja servido, numa primeira etapa, para

incrementar a consciência da responsabilidade pessoal dos registradores e dos notários, embora,

em estádios posteriores, uma certa frustração haja reduzido, em muitos casos, o papel dessa

consciência.

9 É plausível que a percepcão da independência haja servido, numa primeira etapa, para

incrementar a consciência da responsabilidade pessoal dos registradores e dos notários, embora,

em estádios posteriores, uma certa frustração haja reduzido, em muitos casos, o papel dessa

consciência.

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uma comunidade científica10

– inclui, de maneira essencial, sua verificabilidade e

refutabilidade. Significa dizer que a conclusão teórica deve ser razoável e aberta à

crítica racional; se seu objeto permite, há de ser experimentável, mas, quando não, ao

menos experiencial. A verificabilidade de uma tese paradigmática e, sem prejuízo de

sua persistente refutabilidade, a resistência racional à sua refutação dependem,

decisivamente, de seus antecedentes teóricos, das premissas que fundam seu

conseqüente.

Nesse passo, algumas das sustentações modelares da natureza jurídica das

funções registrária e notarial são movediças, escorando-se em condicionamentos

externos. Não se nega que tenham possibilidade e até conveniência política e, mais

além, certa resistência transitória (scl., enquanto persista o condicionamento externo

autorizador), mas não têm a estabilidade que se poderia obter se suas premissas, ainda

que compatíveis com os condicionamentos externos, fossem, de algum modo,

independentes destes.

Nisso, ao amparar-se o modelo em fundamentos distintos dos

condicionamentos externos, dotou-se o paradigma aqui versado de forte verificabilidade

e sólida resistência à refutação científica.

Abdicando de repousar o paradigma na regulativa de regência (primeiríssimo

dos condicionamentos externos num regime submetido ao princípio da legalidade),

tratei de lastreá-lo na teoria dos saberes jurídicos.

Vejo facilitada a compreensão dessa última teoria pelas recentes e profundas

reflexões de Francisco Elías de Tejada,11

Juan Vallet de Goytisolo,12

Martinez Doral13

e

Leopoldo Eulogio Palacios,14

estudos que complementei com a releitura da obra que

10 Cf., a propósito e por evidente, Thomas S. Khun, La estructura de las revoluciones

científicas. Trad. de Agustín Contín. México: Ed. Fondo de Cultura, 1993, passim.

11 Francisco Elías de Tejada, Tratado de Filosofía del Derecho, Sevilla: ed. Universidad

de Sevilla, 1974.

12 Juan Vallet de Goytisolo, por então, especialmente, com a leitura de sua Metodología

Jurídica. Madrid: Ed. Civitas, 1988.

13 José María Martinez Doral. La estructura del conocimiento científico. Pamplona:

Eunsa, 1963.

14 Leopoldo Eulogio Palácios, Filosofia del Saber. Madrid: Grecos, 1962.

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reputo mais decisiva para a filiação de meu pensamento jurídico – Los Fundamentos

Metafísicos del Orden Moral, de Octávio Derisi15

– e cotejei com um valioso trabalho

histórico de João Mendes Júnior.16

No fim das contas, em resumo, cheguei à conclusão de que o saber jurídico

próprio dos registradores (e também dos notários) não era comum, nem técnico, nem

filosófico, nem científico, mas um saber jurídico prudencial,17

porque “a verdade das

conclusões práticas não é, certamente, objeto de ciência senão que de prudência”.18

A compreensão de que o objeto primeiro e próprio do conhecimento jurídico

do registrador não é a norma de direito, mas uma coisa, de par com a consideração da

analogia do termo “direito” e a conseqüente hierarquização dos diversos analogados ao

prius analógico de “justo” propiciaram-me a conclusão de que era absolutamente

inviável, ao menos fora dos superados espartilhos normativistas, reputar especulável o

objeto da cognição jurídico-prudencial. Longe de ser uma essência pronta e apreensível

pelo intelecto, o objeto jurídico apresentado ao registrador é um operável particular –

algo que se projeta para por-se além das causas, algo para-existir. Sem contar o

registrador, pois, em seu saber próprio, com a possibilidade de contemplar meramente

uma essência inteligível acabada, sua tarefa de jurista (ou, como hoje se diz muito

freqüentemente, de operador jurídico) não podia mais do que ser uma decisão para um

caso particular em uma circunstância concreta.

Apresentada, efetivamente, ao registrador, uma pretensão concreta de

inscrição, não lhe é demandada uma referência científica sobre a inscritibilidade do

título mas, isto sim, uma decisão singularizada que realize a inscrição, que atualize a

15 Octávio Nicolás Derisi. Los Fundamentos Metafísicos del Orden Moral. Madrid:

Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Instituto “Luis Vives” de Filosofía, 1969.

16 João Mendes de Almeida Júnior. Órgãos da Fé Pública. São Paulo: Saraiva, 1963.

Recentemente, essa obra foi reeditada mercê do empenho do Instituto de Registro Imobiliário do

Brasil (cf. Revista de Direito Imobiliário n. 40, jan.-abr. de 1997).

Enrique Zuleta Puceiro. Teoría del Derecho. Buenos Aires: Depalma, 1987. p. 26.

17 Para o que segue, cf. sobretudo Martinez Doral, op. cit., p. 73 et seq.

18 Enrique Zuleta Puceiro. Teoría del Derecho. Buenos Aires: Depalma, 1987. p. 26.

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inscritibilidade.19

O saber filosófico do direito diz, fundamentalmente, de sua

legitimidade; o saber científico do direito prepara, suposta a legitimidade, o material

ajustado às decisões de casos; o saber técnico do direito atua materialmente o decidido;

é o saber prudencial, contudo, o que opera a decisão: “Optar livremente por uma, entre

as várias possibilidades de ação reclamadas por uma situação particular, não é algo que

possa deduzir-se logicamente em virtude de nenhuma teorização” (Martinez Doral).

Sem embargo de apartar-me, com firme inteireza, do irracionalismo

voluntarista,20

não menos sempre me opus ao conceitualismo jurídico puro, de maneira

que, aferrado à razoabilidade das decisões, não deixando embora de humilhar-me o

risco de nelas intrometer-se o erro, afirmei, com todas as letras, que a prudência é

incompatível com a falta de liberdade e, pois, que um saber jurídico-prudencial é de

todo incompaginável com a ausência de liberdade jurídica.

Alguma vez, no exercício de minha amada e terrível atividade de juiz, quando

me ponho a refletir sobre a impotência de chegar, na solução de um caso, à certeza

absoluta, quando me ponho a pensar que, por mais me empenhe, por mais me esforce,

por mais pondere, sempre as circunstâncias do caso desbordam os limites reduzidos da

norma, não posso menos do que concluir que, para julgar de modo absoluta e

invariavelmente reto aquilo que é contingente, só há uma e definitiva possibilidade

ontológica: ser Deus!

E como o próprio do saber judiciário é exatamente o prudencial, tanto quanto o

é o saber próprio do registrador e o do notário, a similaridade de seus saberes típicos

põe em relevo a similitude das limitações e as dificuldades que dizem respeito às tarefas

judiciais, registrárias e tabelioas.

19 Cf. meu estudo, Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, atas do Encontro de

Registro de Imóveis de Maceió, 1991, Revista de Direito Imobiliário n. 29, jan.-jun. de 1993. p.

33 et seq.

20 “Para o voluntarismo jurídico, que podemos representar, de forma exemplar, na

doutrina kelseniana, a eleição que leva a cabo o criador do direito entre as várias possibilidades

que a norma superior lhe deixa abertas é uma decisão totalmente irracional. Não há ali nenhum

ato de conhecimento, mas somente um ato e vontade „livre‟, de opção injustificada” (Martinez

Doral, op. cit., p. 76-77).

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4

Na prudência judicial – vale dizer para o meu caso, no tipo de meu próprio

saber judiciário – dá-se a concorrência de duas espécies de conhecimento,21

a cuja

complexa congregação se atribui o nome saber prudencial. Por primeiro, põe-se nele

um conhecimento de caráter universal, que diz respeito aos princípios22

e leis, incluídas,

quanto a estas, as humanas positivas, que são condicionamentos externos e variáveis

para a ação. Depois, tem-se um conhecimento de natureza particular, que concerne às

circunstâncias do caso singularizado. Para o primeiro tipo de conhecimento intervém a

inteligência propriamente dita, ainda que na função prática, ao passo que, para o

segundo, a chamada cogitativa humana ou ratio particularis, distinguindo-se seus

correspondentes estratos de certeza.23

Compreendendo claramente a possibilidade de, por meio do saber prudencial,

atingir a verdade,24

não por isso se afirma a possibilidade de, a propósito dessa verdade,

obter uma certeza que, quanto ao caso singular, não seja a própria de uma

argumentação sobre matéria contingente: uma conclusão apenas provável.25

21 Cf., a propósito, a concisa lição de Juan Alfredo Casaubón. El Conocimiento Jurídico.

Buenos Aires: Educa, 1984. p. 19-20.

Cf. brevitatis causa, Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia.-IIae., Q. LXXIX, art.

4.°, ad tertium, e, no plano jurídico: Martinez Doral, op. cit., 85 el seq., e Carlos Ignacio

Massini. La Prudencia Jurídica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983, p, 147 et seq.

22 Primeiramente os sinderéticos, mas não só: também os especulativos.

23 Cf. brevitatis causa, Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia.-IIae., Q. LXXIX,

art. 4.°, ad tertium, e, no plano jurídico: Martinez Doral, op. cit., 85 el seq., e Carlos Ignacio

Massini. La Prudencia Jurídica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983, p, 147 et seq.

24 ) Cf. Georges Kalinowski. Le probléme de la vérité en morale el en droit. Lyon:

Emannuel Vite, 1967, passim.

25 Cf. brevitatis studio: Leonardo Van Acker. Introdução à Filosofia – Lógica. Livraria

Acadêmica e Saraiva, 1932. p. 301-302; Ioseph Frübes. Tractatus Logicae Formalis. Roma:

Pontifícia Universidade Gregoriana, 1940, p. 284 et seq.; José María de Alejandro. Gnoseología

de la Certeza. Madrid: Gredos, 1965, p. 175 et seq.

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Para logo, de um lado, o conhecimento humano sensível pode conhecer os

entes particulares, mas não pode conhecer suas essências individuais, e, de outro lado, o

conhecimento intelectual, hábil a apreender as essências, não as apreende

individualmente.26

Mais além, a retidão do saber prático acha-se em sua conformidade

não com uma obra já acabada – o que seria próprio do saber contemplativo humano –

mas com o princípio diretivo do ato da razão.27

Não fossem já essas dificuldades, calha ainda que também as normas de

conduta não se apresentam como abstrações destituídas de sentido,28

mas como

enunciações de dever ser cuja exata compreensão não pode prescindir da experiência

vital.29

A prudência, em todo seu gênero, é uma sabedoria essencialmente prática,

equivale a dizer, em palavras de um autor de nossos tempos, a ciência ou a arte de viver

retamente e como se deve,30

e, especificamente, quanto à jurisprudência, pode dizer-se

que é a sabedoria de decidir juridicamente de modo reto. Quase tanto como dizer com a

lição celebrizada por Santo Tomás: prudentia est recta ratio agibilium.31

Ainda que em certas hipóteses, seja aproximável a premissa maior a uma

realidade contemplável – é o que se pode designar por premissa quase-especulativa da

argumentação prudencial –, a verdade é que a concreção silogístico-prática diz respeito

a um caso peculiar, a uma conduta cercada de circunstâncias singulares e irrepetíveis,32

interditando, de um lado, a perspectiva racionalista, de cunho matematizante, que estaria

26 Agustin Riera Matute. La Articulación del Conocimiento Sensible. Pamplona: Eunsa,

1970. p. 149.

Luís Cencillo. Conocimiento. Madrid: Syntagma, 1968. p. 267-268.

27 Martinez Doral. Op. cit., p. 86.

28 Luís Cencillo. Conocimiento. Madrid: Syntagma, 1968. p. 267-268.

29 Isso até mesmo se pode dizer, em certo sentido, das conclusões da lei natural: cf., a

propósito, brevitatis causa, meu pequeno estudo Da Ética Geral à Ética Profissional dos

Registradores. Porto Alegre: Irib – Sérgio Antonio Fabris, 1998, cap. I.

30 Santiago Ramírez. La Prudencia. Madrid: Palabra, 1981. p. 40.

31 Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. XLVII, art. 8.º, respondeo.

32 Ver Massini, op. cit., p. 87.

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a aguardar das decisões prudenciais certezas quase metafísicas ou, de outro lado, a

perspectiva decisionista,33

calcada no irracionalismo gnosiológico.

5

Repousando o paradigma sobre explícitos fundamentos epistêmicos

aristotélico, tomistas, não por isso, é certo, estaria o modelo a depender exclusivamente

dessa base filosófica. Ainda que se possam extrair efetivamente dessa escora teórica

tanto a firmeza do paradigma no plano de sua verificabilidade quanto sua resistência à

refutação, não é indispensável a seu reconhecimento que se empolgue à raiz a

epistemologia de Aristóteles e de Santo Tomás.

De toda sorte, não é pouco benefício para um paradigma jurídico a admissão de

que se conforta, mais além de amoldar-se à normatividade particular e imanente, numa

razão de ser jurídica transcendente. De fato, um paradigma que, longe de reduzir-se à

mera correção formal de uma possível leitura normativa intra-sistemática, vai além da

simples consistência interna e ancora-se num sistema de filosofia, tem a seu favor, para

logo, a maior clareza do que, não raro, nos modelos teórico-jurídicos imanentistas, são

pressuposições filosóficas implícitas. Se, ademais, o lastreamento explícito dá-se por

meio de uma fundação filosófica solidificada ao largo da história,34

realista e objetiva o

bastante para permitir-se configurar-se como um sistema e um método abertos à

contribuição de novos achados, então é preciso reconhecer não só a razão da atualidade

e da robustez da verificabilidade na concepção standard mas também a justificação

maior de sua resistência à refutação.

Contra o fato da ausência de oposição teórica ao paradigma, pode ser que se

objete sua acanhada vigência política. Mas isso é só opor o ser atual ao poder ser que

pode ser e, demais desse aspecto, é exatamente confrontar o potestativismo com o

33 Cf. brevitatis causa, o verbete “decisionismo” in Dicionário de Política, de José

Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho (São Paulo: T.

A. Queiróz, 1998. p. 153).

Não é por menos que se fala em philosophia perennis.

34 Não é por menos que se fala em philosophia perennis.

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cognoscitivismo, tomando por mostra de refutação do paradigma o que apenas deriva do

exercício de império: dá-se, portanto, uma refutação factual, é verdade, numa certa

ordem segmentar, sem que se vejam afetados a sustentação teórica do paradigma e um

certo e indispensável consenso doutrinário.35

A refutação de um paradigma jurídico não

se reconhece por sua vigência política mas, na esfera teórica, por seu vigor doutrinário

e, no plano factual, pelo consenso dos juscientistas.

Se, no âmbito de elaboração de regras complementares não estritamente de

natureza técnica e nomeadamente no campo do direito penal-disciplinário, dá-se acaso,

aqui e ali, uma atuação potestativa oposta do standard da independência jurídica dos

registradores e dos notários, isso se passa no plano dos fatos, na esfera da eficácia, não

repercutindo no valor lógico e na vigência doutrinal do paradigma.

O modelo da independência jurídica do registrador e do notário, como foi

antecipado, ajusta-se, entre nós, ao direito posto: notário e oficial de registro são

“profissionais do direito”, “dotados de fé pública” (art. 3.º, da Lei 8.935, de

18.11.1994), gozando “de independência no exercício de suas atribuições” (art. 28, Lei

cit.). Daí que, submetidos à legalidade, têm o dever de observar “as normas técnicas

estabelecidas” pelo Poder que o fiscaliza (inc. XIV, art. 30, da Lei cit.).36

Esse modelo, fundado em uma sólida teoria dos saberes jurídicos, corroborado

pela tradição37

e compaginado, pois, com o direito posto – incluso o constitucional –,

não se compatibiliza, é verdade, com o fato da poietização da profissão jurídica dos

notários e registradores, nem com o fato da administrativização do objeto jurídico

primeiro de sua tarefa: a autonomia de vontades contratantes, no caso dos notários, e a

propriedade privada, no dos registradores. Tampouco o paradigma da independência

jurídica de oficiais de registro e tabeliães é acomodável ao fato de comumente entender-

se que a mais rigorosa das punições administrativas a eles cominadas, a de perda de

35 Nenhuma concepção standard sobreviveria com esse título se não fosse objeto de

algum consenso da comunidade científica.

Veja-se a propósito João Mendes de Almeida Júnior, op. cit., passim.

36 Normas técnicas: por exemplo, art. 4.º da Lei 8.935, de 1994.

37 Veja-se a propósito João Mendes de Almeida Júnior, op. cit., passim.

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delegação, esteja ligada a um simplíssimo elemento normativo de tipo – a falta grave38

–, sem menção da conduta que o carregue.

Decidir que futuro haverá para as instituições do registro e das notas é escolher

já, como faz quem se adverte responsável pelo tempo que passa, se essas instituições

detém liberdade jurídica para sua atuação profissional. Sem essa liberdade, correm risco

de com ela morrerem a autonomia de vontades e a propriedade particular. Nisso há

também um risco da decisão, mas esse risco é o que valoriza a liberdade.

38 Em todo caso, não me parece que seja assim no direito posto: cf. o pequeno estudo

que consta em obra que escrevi juntamente com José Renato Nalini: Registro de Imóveis e

Notas – Responsabilidade Civil e Disciplinar. São Paulo: Ed. RT, 1997.

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2.

SOBRE A CRISE CONTEMPORÂNEA DA SEGURANÇA JURÍDICA

RICARDO HENRY MARQUES DIP

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.

Da célebre sentença de Aristóteles —―o homem é, por natureza, um animal

político‖1 — extrai-se o corolário de que o homem é naturalmente inclinado ao fim da

Sociedade política, isto é: ao bem comum político. Da politicidade não poderia dizer-se,

entretanto, que é um próprio específico2 humano, se o homem não tendesse

naturalmente ao fim ou bem comum da cidade. Por sua natureza3 inclinam-se os homens

1 Aristóteles, Política, Bkk. 1.253 a.

2 Embora o próprio seja um acidente da substância, tem com esta uma vinculação

necessária e invariável. Se é certo que, predicável acidental, o próprio não pertence à essência

das coisas, deriva, contudo, de seus princípios essenciais: ―Proprium enim non est de essentia

rei, sed ex principiis essentialibus speciei causatur‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I,

q. 77, art. 1, ad 5um). Trata-se, pois, de um acidente necessário dos sujeitos. Por isso, o próprio,

sem ser essencial, é, contudo, natural a esses sujeitos. Dessa maneira, o próprio substitui

materialmente o universal lógico que lhe corresponda; assim, todo homem é animal social; todo

animal social é homem; ou, em exemplo de Van Acker, todo homem é risível; todo risível é

homem (Introdução à Filosofia – Lógica, ed. Acadêmica e Saraiva, São Paulo, 1932, p. 226).

3 O homem está inclinado à virtude por sua própria natureza: ―homo a natura habet

inclinationem ad virtutem‖ (S. Tomás de Aquino, op. cit., Ia.-IIæ., q. 85, art. 1, respondeo).

Essa inclinação diz-se natural, porque em parte provém da natureza seja específica, seja

individual dos homens: não existem hábitos humanos inteiramente naturais (v. S.Tomás de

Aquino, op. cit., Ia.-IIæ., q. 51, art. 1, respondeo, e q. 63, art. 1, respondeo).

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para tudo aquilo que os aperfeiçoa4 —o que conhecem e apetecem como seu bem

5, com

título de fim6. Não se trata só de uma propensão humana aos bens que são próprios das

pessoas singulares, mas também de uma tendência natural a bens que são comuns, entre

eles o da cidade —ao qual, até mesmo, se inclinam os homens de modo formalmente

diverso7 e superior ao de sua atração natural pelos bens particulares

8. Deve-se isso ao

fato de que os bens possuem tanto maior bondade quanto sejam o fim comum de um

maior números de entes.9 O bem comum político é um todo

10 em que se incluem,

ordenadamente11

, os muitos e vários bens ou perfeições singulares, de sorte que o bem

4 Bem é aquilo a que todos tendem (Aristóteles, Ética a Nicômaco, Bkk. 1.094 a), o

que todos apetecem —bonum est quod omnia appetunt (S. Tomás de Aquino, op. cit., I, q. 5, art.

1, respondeo)—, exatamente porque é um bem. O homem, naturalmente político, apetece o bem

comum como um bem de sua natureza social.

5 S. Tomás de Aquino: ―…id quod ad omnibus appetitur omnibus videtur bonum‖ (In

Decem Libros Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum Expositio, Livro 10, lição 2, n. 1.975).

6 ―…res quae naturaliter sunt proportionatæ ad aliquem finem, dicuntur appetere

illum naturaliter‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 16, art. 4, respondeo);

―…appetibile quod movet appetitum, est finis; ea vero quæ sunt ad finem non movent appetitum

nisi ratione finis‖ (S. Tomás de Aquino, De Potentia, q. 10, art. 7, ad 6um).

7 Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa.-IIæ., q. 58, art. 7, ad 2um: ―O bem

comum da cidade e o bem singular de uma pessoa não diferem apenas segundo o muito ou o

pouco, mas conforme uma diferença formal —formalem differentiam; pois uma é a razão do

Bem comum e outra a do bem singular, da mesma sorte que se distinguem o todo e a parte‖.

8 E não como efeito de uma exclusiva busca egótica do bem singular : cfr. Charles de

Koninck, De la primauté de bien commun contre les personnalistes, ed. L‘Université Laval e

Fides, Québec-Montreal, 1943, p. 129-133.

9 ―…bonum commune dicitur finis communis‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica,

Ia.-IIæ., q. 90, art. 2, ad 2um). Cfr. Carlos Cardona, La Metafísica del Bien Común, ed. Rialp,

Madrid, 1966, p. 28.

10 Cfr. Jean Madiran, Le principe de totalité, ed. Nouvelles Éditions Latines, Paris,

1963, passim.

11 ―O bem particular está ordenado ao bem do todo como a seu fim…‖ (S. Tomás de

Aquino, Suma Contra os Gentios, Livro 1, n. 86); ―é manifesto que o bem da parte é para o bem

do todo‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 92, art. 1, ad 3um); ―é manifesto que

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comum da cidade emerge da ordem e da disposição adequada desses bens particulares12

.

E a essa reta ordem e disposição da polis dá-se o nome de justiça13

.

A só existência de disposições naturais no homem, vocacionado, por sua

mesma natureza, pois, a ser justo e a observar a primazia do bem comum político, não

significa, todavia, a automática passagem da potência ao ato correspondente14

. Seria

isso próprio de uma natureza impecável. O crime, porém, é quase tão antigo quanto a

humanidade15

e não cessou jamais de existir na história do homem decaído16

:

―L‘histoire de l‘humanité‖ —disse Maurice Hauriou— ―est le commentaire perpétuel

du meliora proboque, deteriora sequor‖17

. Essa antinomia entre o apetite natural das

virtudes e o fato dos homens criminosos revela a essência do trágico na história

humana18

, com seu rigoroso encadeamento lógico-factual19

e seu remate catastrófico20

.

todas as partes são ordenadas à perfeição do todo‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Contra os

Gentios, Livro 3, n. 112).

12 S. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Livro 3, n. 94.

13 Aristóteles, Política, Bkk. 1.253 a.

14 A perfeição ou bem —diz Carlos Cardona— ―no viene dada en la criatura con el

ser substancial, sino que es alcanzada mediante la operación por la que pasa de la potencia al

acto‖ (op. cit., p. 15).

15 ―Le phenomène criminel est vieux comme le monde. (omissis) Depuis ls premiers

temps de l‘Histoire, la criminalité n‘a jamais cessé de se manifester dans tous les civilisations

et dans tous les lieux de la Terre‖ (Roger Merle e André Vitu, Traité de droit criminel, ed.

Cujas, Paris, 1997, n. 1).

16 Para o pensamento cristão genuíno, desde o pecado adâmico debilitou-se a natural

inclinação do homem para as virtudes: ―naturalis inclinatio ad virtutem, diminuitur per

peccatum‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 85, art. 1, respondeo).

17 ―…l‘histoire des mœurs n‘est que le long martyrologe de la loi morale, l‘histoire

des défaillances et des trahisons de la volonté humaine aux prises avec la loi, celles des

désobéissances à la loi…‖ (Maurice Hauriou, Aux sources du droit –Le pouvoir, l‘ordre et la

liberté, ed. Bloud & Gay, Paris, 1933, p. 40).

18 Um trágico plenário —a um só tempo seqüência rigorosa e catastrófica no plano

natural e no sobrenatural— está grandiosamente concebido em I promessi sposi de Alessandro

Manzoni, para quem deve esperar-se justiça no mundo, como quem espera um ato do governo

de Deus: diante de uma grave situação de injustiça, Lucia Mondella sugere a Renzo Tramaglino

que espere alguma solução, porque ―qualche santo ci aiuterà‖; e Renzo, esperançoso, diz várias

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Para mais, como se vê da apontada sentença de Ovídeo, a virtude cívica da justiça não é

intelectual: o homem pode tornar-se, de fato, assim o afirmou Aristóteles, o mais ímpio

e pior de todos os animais21

: é que vê o bem e escolhe o mal. Sem a justiça não é

possível a paz na cidade, a tranqüilidade que deriva da ordem —pax omnium rerum,

tranquillitas ordinis22

—, e ordem que é a disposição adequada das coisas diferentes e

das coisas iguais23

, em uma só palavra, justiça. Foi de logo preciso na história dos

homens e ainda continua e sempre continuará preciso —ubi societas, ibi jus—, o temor

do castigo24

, temor que se exprime pela disciplina das leis25

e que tem, além disso, a

missão de ensinar ao homem o que é justo ut in pluribus.

A vocação natural dos homens para o bem comum e a justiça exige, portanto,

indispensavelmente, algum modo de objetivação do direito, algum modo pelo qual

vezes: ―a questo mondo c‘è giustizia, finalmente‖ (ed. Grandi Tascabali Economici Newton,

Roma, 1989, p. 78).

19 Termo mais adequado esse —―encadeamento lógico-factual‖— do que a expressão

―fatalidade‖ para explicar o sentido de trágico.

20 Duas distinções, uma entre, objetivamente, a discatástrofe e a eucatástrofe, e, outra,

subjetivamente, entre o desespero e a esperança, separam o trágico pagão do trágico cristão. A

angústia trágica do cristão não é desesperadora porque ele confia na misericórdia. Daí o

paradoxo de S. Ambrósio —felix ruina, quae reparatur in mellius—, a impressiva enunciação

litúrgica do Exsultet da vigília pascal —O felix culpa, quae talem ac tantum meruit habere

Redemptorem! —, e o ensinamento paulino na Carta aos Romanos, 11-32 (―Deus encerrou

todos esses homens na desobediência, para com todos usar de misericórdia‖), lição que Journet

diz constituir a chave da história universal (v. Charles Journet, ―Notes sur le tragique‖, in

Exigences chrétiennes en politique, ed. Egloff, Paris, 1945, p. 379) , solução que se reconduz ao

prototrágico cristão —p.ex., a prova de fé com o decreto da morte de Isaac ou os padecimentos

de Job.

21 Aristóteles, Política, Bkk. 1.253 a.

22 S. Agostinho, De civitate Dei, Livro 19, cap. 13, n. 1.

23 ―Ordo est parium dispariumque rerum sua cuique loca tribuens dispositio‖ (S.

Agostinho, De civitate Dei, livro 19, cap. 13, n. 1).

24 Na célebre expressão de S.ISIDORO de Sevilha: ―Factæ sunt autem leges ut eraum

metu humana coerceatur audacia, tutaque sit inter inprobos innocentia, et in ipsis inpiis

formidato supplicio refrenetur nocendi facultas‖ (Etimologias, Livro 5, n. 20).

25 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, respondeo.

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possam os homens ser ensinados acerca do objeto da justiça —i.e., do direito, que vem

antes26

da justiça: ―A justiça é algo segundo‖ — disse Josef Pieper. ―A justiça

pressupõe o direito‖27

. Saber qual é o direito, que é objeto da virtude da justiça,

demanda o concurso de leis, aqui tomado esse conceito numa acepção amplíssima, a

compreender as normas naturais e as humanas, o direito das gentes, as normas genéricas

e as estamentais, as escritas e as costumeiras, várias classes de princípios28

, as

instituições jurídicas, os decretos dos governantes, alguma vez as respostas dos

jurisprudentes, a doutrina firme dos Tribunais, limitadamente as sentenças judiciárias

singulares, como determinação conflitual do direito, e as convenções particulares, sua

determinação privatum condictum29

.

Aristóteles afirmara já, em conhecida passagem do primeiro livro da Retórica,

que ―corresponde às leis bem dispostas determinar por si, o quanto seja possível, tudo,

e deixar aos que julgam o menos possível‖30

, e, numa prudente lição de filosofia

jurídica —lição confirmada pela Escolástica hispânica31

—, já se recomendou ―deixar

26 Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Livro 2, cap. 28.

27 Josef Pieper, Las Virtudes Fundamentales, tradução castelhana, ed. Quinto

Centenario, Bogotá, 1988, p. 89. De que segue, portanto, não ser a justiça, em rigor, um fim do

direito: ―el derecho positivo tiene por objeto determinar lo propio de cada uno en cada

circunstancia, no en vista de la justicia (omissis), sino de lo que a cada uno le corresponde de

acuerdo con las exigencias de su naturaleza, su condición en la sociedad y los imperativos del

bien común‖ (Tomas Casares, La Justicia y el Derecho, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires,

1974, p. 12).

28 Assim, os princípios gerais de Direito, os ético-jurídicos, os tradicionais de cada

País, os políticos e os extraídos da natureza das coisas: cfr. Juan Vallet de Goytisolo,

Metodología de las Leyes, ed. Revista de Derecho Privado, Madrid, 1991, p. 345 et sqq.

29 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa.-IIæ., q. 57, art. 2, respondeo. Cfr. Juan

Vallet de Goytisolo, Metodología de la Determinación del Derecho, ed. Centro de Estudios

Ramón Areces e Consejo General del Notariado, Madrid, 1996, tomo 2, p. 1.041 et sqq.

30 Aristóteles, Retórica, Bkk. 1.354 b; cfr. ainda: Política, Bkk. 1.287.

31 Brevitatis causa, Domingo de Soto, De Iustitia et Iure, Livro 1, q. 5, art. 1;

Francisco de Vitoria, De potestate Papae et Concilii relectio, ns. 7 e 12, e Luis de León, De

Legibus, cap. 6.

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pouquíssimos assuntos ao arbítrio humano‖32

.33

A abolição do reino da lei jurídica não

leva, de fato, à lei do amor34

como aventurava um anarquismo otimista, mas ao realismo

da lei do mais forte35

. Afastada da natureza do homem, o homem―ni ange ni bête, mais

homme‖ —como disse Pascal36

—, a abolição da autoridade política37

conduz a um

resultado anti-social: ―qui veut faire l'ange fait la bête‖ 38

.

Objetividade das leis, primeiro, na sinalização daquilo que é justo em

princípio: a segurança do direito, que se obtém com o ditame prévio correspondente;

segundo: como garantia de aplicação do direito —e, quando o caso, da força39

— contra

os perigos que turbam a vida social: é a segurança pelo direito; terceiro, e por fim,

32 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad 1um.

33 No debe inducirse una conclusión de ptolomeismo jurídico, porque los apuntados

juicios de Aristóteles y S. Tomás se han de comprender juntamente con las ideas de soberanía

social, subsidiariedad, estabilidad legal y derecho mínimo. La llave de la prudencia legislativa y

de gobierno, como ha dicho Taparelli, está en que el Estado no debe hacer, ni dejar de hacer,

pero, sí, ayudar los particulares a hacer todo lo que pueden hacerlo por si propios. En resumen,

es en el ámbito de lo que se toca al Estado legislar y juzgar, solamente en eso, que la autoridad

política no debe dejar la materia a la discreción de los jueces.

34 ―Supprimez toute organization sociale, ce n‘est pas la ‗loi d‘amour‘ qui s‘établit,

c‘est la loi de la violence, violences des forces naturelles extra-humaines ou violence des

humains entre eux, qui ne rencontrent plus les freins matériels et moraux traditionnels édifiés

par la civilisation‖ (A. L. Galéot, Les systèmes sociaux et l‘organisation des nations modernes,

ed. Nouvelle Librairie Nationale, Paris, 1920, p. 137).

35 Assim o compendia o célebre adágio atribuído a Lacordaire: ― Entre le faible et le

fort c'est la liberté qui opprime et c'est la loi qui libère‖.

36 Blaise Pascal, Pensées, n. 140-522.

37 Galéot: ―L‘anarchie est bestiale et conduit les hommes à la misère. (omissis)

L‘ordre seul est humain‖ (op. cit., p. 393).

38 Pascal, op. cit., n. 358-678.

39 Diz Juan Vallet de Goytisolo, in Panorama del Derecho Civil (ed. Bosch,

Barcelona, 1963): ―La esfera del Derecho vive inmersa entre las del Amor y de la Fuerza ou el

Poder‖ (p. 7); ―Sin suficiente Poder para imponer lo justo coactivamente a quienes no lo

respetan, normalmente se caerá en el desorden y en la anarquía‖ (p. 8); ―El Poder será más

fácil y la subordinación más llevadera, cuanto más les acompañe el Amor, y tanto más difícil

quanto menos Derecho y más arbitrariedad predomine‖ (p. 33).

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objetividade das leis para atuar como garantia contra suas modificações arbitrárias40

.

Essa objetivação disciplinar, pois, embora cumpra o primeiríssimo papel de sinalizar a

res justa —conclusiva ou determinativamente, conforme o caso—, assim interessando à

virtude da justiça, também apresenta uma vertente gnosiológica e psicológica, o que se

chama segurança de orientação: os homens precisamos, com efeito, saber em que nos

fiar, a que nos ater, quais são as regras do jogo, as regras da vida jurídica em concreto.

Isso é indispensável para que possamos exercitar o direito de observância de nossos

deveres de justiça e de exigir que, a nosso próprio respeito, se observem também os

deveres jurídicos que correspondam. Trata-se aí de um aspecto da objetivação

disciplinar em que, por meio de uma asseguração jurídica —vale por dizer, a segurança

de uma regulação obrigatória41

—, faz-se propícia a aquisição pessoal de uma certeza do

direito. Passa-se isso secundariamente, no nível gnosiológico, porque o de que então se

cuida é de dar algo a conhecer —o que se prescreve, proíbe, permite ou impera—, sem

que, nessa estrita perspectiva de limitação noética, emerja discussão quanto à justiça do

que se comunica.

Essa distinção de planos, contudo, na objetivação das leis não implica

separação entre, de um lado, o justo, e, de outro, a segurança e a certeza do direito e

pelo direito. Não basta, com efeito, a mera objetivação normativa para instituir o direito,

pois, assim já o advertira Cícero, em conhecida passagem do De Legibus, ―Se os

mandatos dos povos, os decretos dos imperadores, as sentenças dos juízes fundassem o

direito, direito seria o roubo, o adultério, a falsificação do testamento, se em seu apoio

tivessem os votos ou aprovação da multidão‖. São de tempos mais próximos, no mesmo

sentido, a observação de Tocqueville —―A ordem sem a justiça é a barbárie‖— e as

fortes expressões de Baumann: ―Não pode existir uma ordem socialmente correta e

moralmente reprovável‖; ―uma comunidade que, para sua convivência haja fixado

40 Cfr., a propósito, Gustav Radbruch, Le but du droit, in Annuaire de l‘Institut

International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed. Sirey, Paris, 1938, tomo 3,

p. 54.

41 Cfr. Arthur Fridolin Utz, Ética Social, tradução castelhana de Alejandro Ros, ed.

Herder, Barcelona, 1965, tomo 2, p. 16.

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normas com cominações penais contrárias à lei moral, não é uma comunidade jurídica,

mas uma quadrilha de ladrões‖42

.

Em contrapartida, se a segurança in-justa é inadmissível, não menos o será —e

aqui até mesmo, supõe-se, como um impossível factual— uma justiça in-segura, in-

certa, apenas conjecturável, por exemplo, em modelos utópicos de Sociedades políticas

nos quais, a pretexto de contínuas deliberações acerca da res justa, se entendesse

dispensável a autoridade correspondente à definição e à estabilidade da res judicata. De

modo que a cada ação processual se seguiria uma discussão interminável e, acaso de

fato ela se findasse, a prolação de uma sentença irrelevante, inexecutável por princípio,

renovável por definição, redundaria no caráter frustrâneo do próprio fim da deliberação,

que é decidir ou eleger. De fato, se se quer deliberar incessantemente —numa espécie

de jacobinismo jurídico43

—, o marco final é o infinito44

.

Conclui-se, pois, que a segurança jurídica é uma condição da justiça —præter

justitiam, disse Luño Peña, sed pro justitia45

—, e ela também, a exemplo da justiça,

interessa ao bem comum político46

. Não surpreende, portanto, que, reconhecida a

segurança jurídica como algo de essencial à vida política —um seu princípio47

, valor48

,

42 Jürgen Baumann, Derecho Penal, tradução ao castelhano por Conrado A. Finzi, ed.

Depalma, Buenos Aires, 1981, p. 3.

43 Cfr., brevitatis causa, a crítica de Jean Dabin, La philosophie de l‘ordre juridique

positif, ed. Sirey, Paris, 1929, p. 622.

44 Assim o disse Aristóteles, na Ética a Nicômaco, Bkk. 1.113 a.

45 ―La Seguridad no es la Justicia. Es un valor que está fuera de la Justicia, pero al

servicio de la Justicia. Es el valor adjetivo de la Justicia: ‗Præter Justitiam, sed pro Justitia‘‘‖

(Enrique Luño Peña, Derecho Natural, ed. Hormiga de Oro, Barcelona, 1954, p. 219).

46 Embora diga Georges Renard: ―C‘est que le droit a pour but, non seulement de

réaliser la Justice, mais de procurer la Sécurité…‖ (L‘institution, ed. Flammarion, Paris, 1933,

p. 53), melhor é a lição de Casares, para quem, afirmada a lição tradicional de que o objeto da

justiça é o direito, não é possível já dizer que o objeto do direito é a justiça. Ou uma coisa ou

outra: o objeto do direito é o bem comum, e só analogicamente é admissível afirmar que uma lei

é justa, na medida em que ela, isto sim e propriamente, assegura ―a los súbditos posibilidades

efectivas de plenitud personal mediante la promoción del bien común‖ (op. cit., p. 13).

47 Assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed.

Almedina, Coimbra, 1998, p. 250, enunciando-o: ―o indivíduo tem do direito poder confiar em

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ou ambas as coisas49

—, ela se formule como um direito fundamental. Essa referência à

segurança —sobretudo à seguridade pessoal, vale por dizer, uma segurança pelo

direito— já se encontra na

a) Declaração da Virgínia de 177650

, em cujo artigo 1o se lê que os homens

possuem direitos inatos, entre eles o relativo aos meios para buscar e conseguir a

felicidade e a segurança —happiness and safety; também na

b) Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, no mesmo

ano de 177651

;

c) na Declaração francesa des Droits de l‘Homme et du Citoyen, de agosto de

178952

;

d) na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de março-

maio de 194853

;

que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre seus direitos, posições ou relações

jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos

previstos e prescritos por essas mesmas normas‖.

48 Cfr., por muitos, Paul Roubier: ―…nous avons réconnu l‘existence d‘une primière

valeur, qui est la sécurité juridique‖ (Théorie générale de droit, ed. Sirey, Paris, 1951, p. 318).

49 Para quem o valor, rectius: um bem, não tem caráter subjetivo, de sorte que pode

constituir um fim, que é o primeiro dos princípios da ação.

50 The Virginia Declaration of Rights, 12-6-1776, art. 1.o: ―That all men are by nature

equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a

state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the

enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing

and obtaining happiness and safety‖.

51 The Declaration of Independence of The United States of America, 4-7-1776: ―…to

institute new government, laying its foundation on such principles and organizing its powers in

such form as to them shall seem most likely to effect their safety and happiness‖.

52 Déclaration des droits de l‘homme et du citoyen, 4-8-1789, art. 2.o: ―Le but de toute

association politique est la conservation des droits naturels ei imprescritibles de l‘homme. Ces

Droits sont la liberté, la propriété, la sûrété, et la résistance à l‘opression‖

53 Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre, aprovada durante a

IX Conferência Interamericana de Bogotá, realizada de 30 de março a 02.05.1948; art. 1o:

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e) na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações

Unidas, dezembro de 194854

;

f) na Convenção para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades

Fundamentais —o Convênio Europeu de Direitos Humanos— de novembro de 195055

;

g) no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Organização das

Nações Unidas, em dezembro de 196656

;

h) no Pacto de São José da Costa Rica —Convenção Americana de Direitos

Humanos—, de novembro de 196957

; nas Constituições de numerosos Países, de modo

direto e explícito, p.ex., nas vigentes Constituições de Espanha58

, Bolívia59

, Chile60

,

Paraguai61

, Peru62

, Portugal63

, Uruguai64

, Brasil65

, ou de maneira indireta, v.g., nas

―Todo ser humano tiene derecho a la vida, a la libertad y a la seguridad de su persona‖. Em seu

art. 16, a mesma Declaração refere-se ao ―derecho a la seguridad social‖.

54 Declaración Universal de Derechos Humanos, 10-12-1948, art. 3.º: ―Todo

individuo tiene derecho a la vida, a la libertad y a la seguridad de su persona‖.

55 Convention de sauvegarde des droits de l‘homme et des libertés fondamentales, 4-

11-1950, art. 5.o:―Toute personne a droit à la liberté et à la sûreté‖.

56 Pacto Internacional de Derechos Civiles e Políticos, 16-12-1966, art. 9.º: ―Todo

individuo tiene derecho a la libertad y a la seguridad personales‖.

57 Convención Americana de Derechos Humanos, 22-11-1969, art. 7.º: ―Toda persona

tiene derecho a la libertad y a la seguridad personales‖.

58 Constituição espanhola de 1978, art. 17-1: ―Toda persona tiene derecho a la libertad

y a la seguridad‖.

59 Constituição Política do Estado da Bolívia, 1995, art. 7.o: ―Toda persona tiene los

siguientes derechos fundamentales, conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio: a) A la

vida, la salud y la seguridad‖.

60 Constituição Política da República do Chile, 1980 (reforma em 2000), art. 19: ―La

Constitución asegura a todas las personas: (…) 7- El derecho a la libertad personal y a la

seguridad individual‖

61 Constituição da República do Paraguai, 1992, art. 9.o: ―Toda persona tiene el

derecho a ser protegida en su libertad y en su seguridad‖.

62 Constituição Política do Peru, 1993, art. 2.o: ―Toda persona tiene derecho: (…) 24-

A la libertad y a la seguridad personales‖.

63 Constituição da República portuguesa de 1976, art. 27-1: ―Todos têm direito à

liberdade e à segurança‖.

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Constituições do México66

e da Argentina67

. A Declaração de Roma sobre a Seguridade

Alimentar Mundial, concluindo a reunião de Cúpula da Organização das Nações

Unidas, em novembro de 1996, afirmou que a segurança alimentar é um dos direitos

fundamentais; uma Corte Constitucional, na América do Sul, alistou entre esses direitos

a segurança social das pessoas de terceira idade.

Não se trata só, contudo —e isso releva muitíssimo—, de uma exclusiva

segurança jurídica, a abranger o econômico e social, uma segurança cifrada ao

relacionamento inter-humano. Ademais, duas outras espécies de segurança são ansiadas

pelos homens: uma, tocando sua relacionação com a natureza física, a segurança diante

64 Constituição da República Oriental do Uruguai, 1967, art. 7.o: ―Los habitantes de la

República tienen derecho a ser protegidos en el goce de su vida, honor, libertad, seguridad,

trabajo y propiedad. (…)‖.

65 Constituição Federal brasileira de 1988, art. 5o: ―Todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,

nos termos seguintes‖.

66 Na Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, de 1917, com alterações

posteriores, difundem-se referências à segurança jurídica — enquanto segurança pelo direito.

Destacam-se aqui, brevitatis causa, dois artigos, o 5.o —―A ninguna persona podrá impedirse

que se dedique a la profesión, industria, comercio o trabajo que le acomode, siendo lícitos. El

ejercicio de esta libertad solo podrá vedarse por determinación judicial, cuando se ataquen los

derechos de tercero, o por resolución gubernativa, dictada en los términos que marque la ley,

cuando se ofendan los derechos de la sociedad. Nadie puede ser privado del producto de su

trabajo, sino por resolución judicial‖ — e o 25: ―Corresponde al Estado la rectoria del desarrollo

nacional para garantizar que éste sea integral y sustentable, que fortalezca la soberanía de la

Nación y su régimen democrático y que, mediante el fomento del crecimiento económico y el

empleo y una mas justa distribución del ingreso y la riqueza, permita el pleno ejercicio de la

libertad y la dignidad de los individuos, grupos y clases sociales, cuya seguridad protege esta

Constitución‖.

67 Constitución de la Nación Argentina, de 1994, arts. 14-18. Em particular, seu art.

19: ―Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral

pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de

los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni

privado de lo que ello no prohíbe‖.

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do cosmos; outra, escatológica, tangendo os novíssimos, o destino último do homem, a

segurança do mais além68

. O desejo de ordem, de paz e de segurança —disse Helmut

Coing— ―está profundamente enraizado na vida anímica do homem‖69

.

A despeito da universalidade antropológica dessas exigências, pareceria que,

outrora, a avistável vinculação essencial entre justiça e segurança jurídica, importando

na impossibilidade de sua separação, induzisse a doutrina dos juristas a pensar na

segurança jurídica como uma dessas realidades elementares e evidentes sobre as quais

não vale a pena despender o tempo. De modo que a idéia de uma regulação social

obrigatória, estável e conhecida como certa — o que, bem se vê, não se resume ao

cânon da lei stricto sensu — estaria incluída como nota do conceito objetivo de bem

comum político. Em outras palavras, a res justa — abstrata ou concretamente

considerada — teria sempre de ser, de algum modo, uma res certa, embora, à evidência,

não toda res certa pudesse, por si só, estimar-se coisa justa. A positividade é condição

necessária da segurança jurídica, mas não lhe é suficiente.

Talvez, em todo caso, seja bastante o atributo de promulgação das leis, objeto

de permanente reclamo da doutrina, para nisso reconhecer uma implícita referência à

segurança do direito e, potencialmente, à segurança pelo direito. De toda sorte, não

faltaram antiqüíssimas referências explícitas à segurança jurídica, p.ex., já num diálogo

platônico70

, e López de Oñate71

registrou a propósito algumas alusões do Pro Cluentio

de Cícero. Há também, nessa matéria, um conhecido acercamento pontual de S.ISIDORO

de Sevilha, pelo ângulo da certeza jurídica, ao indicar que a lei deve ser clara — não se

68 Cfr. Luis Carlos Cabral, Justicia y Seguridad, in VV.AA., Acerca de la Justicia, ed.

Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1978, p. 20.

69 Prossegue o autor: ―El último [la seguridad], sobre todo, y como ya se ha indicado

numerosas veces, va junto con el terror del hombre ante la inseguridad de su existencia, ante la

imprevisibilidad y la incertidumbre a que está sometido‖ (Helmut Coing, Fundamentos de

Filosofía del Derecho, tradução de Juan Manuel Mauri, ed. Ariel, Barcelona, 1961, p. 67).

70 Sauer, apud José Luis Mezquita del Cacho, Teoría de la Seguridad Jurídica, ed.

Bosch, Barcelona, 1989, tomo 1, p. 17, nota n. 1.

71 Flavio López de Oñate, La Certeza del Derecho, tradução ao castelhano por

Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redin, ed. EJEA, Buenos Aires, 1953, p. 80

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dê que por sua obscuridade induza a erro72

. Mais amplamente S. Tomás de Aquino, em

várias passagens, tangeu a questão: v.g., ao recomendar a necessidade das leis para

deixar pouquíssimos assuntos à decisão dos juízes73

; quando confirmou a lição de

S.Isidoro acerca das qualidades da lei positiva74

; com afirmar que a lei deve ter a

máxima estabilidade possível75

; ao ensinar que as leis não devem modificar-se à vista de

qualquer melhoria, senão que em caso de grande utilidade ou necessidade —pro magna

utilitate vel necessitate76

; ao dizer que o fim da lei humana é a tranqüilidade temporal

do Estado —temporalis tranquillitas civitatis77

. Suárez e Luis de León também

versaram o tema: o primeiro, p.ex., ao versar sobre a necessidade de uma causa justa

relativa ao bem comum para a revogação de leis justas78

, e Luis de León ao ensinar,

v.g., que as leis, salvo um interesse muito grande e evidente —evidens atque maxima

utilitas— não podem mudar-se sem prejuízo da comunidade79

. E se, depois, muitos

autores ainda incursionaram no plexo da segurança e da certeza do direito —como,

brevitatis causa, os referem largamente López de Oñate e Mezquita del Cacho—, o fato

é que a matéria, anteriormente ao século passado, não recebeu tratamento doutrinário de

vulto.

Já nos primórdios do século XX, todavia, desencadeou-se a meditação detida e

confessada sobre o tema da seguridade jurídica, em conseqüência, com palavras de

RADBRUCH, da depreciação da segurança80

. Depreciação objetiva ou factual,

depreciação subjetiva ou da certeza e depreciação afetiva ou do sentimento de

72 S. Isidoro de Sevilha, op. cit., Livro 5, n. 21: ―…manifesta quoque, ne aliquid per

obscuritatem in captionem conteineat‖.

73 O que, de resto, já se encontrava em Aristóteles, Retórica, Bkk. 1.354 a; ver S.

Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad 2um.

74 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 3, respondeo.

75 ID., Suma Teológica, Ia.-IIæ.. q. 97, art. 1, ad 2um: ―…mensura debet esse

permanens quantum est possibile‖.

76 ID., Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 97, art. 2, ad 2um.

77 ID., Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 98, art. 1, respondeo.

78 Francisco de Suárez, Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore, Livro 6, cap. 25, n.

4.

79 Luis de León, op. cit., cap. 8, n. 165.

80 Radbruch, op. cit., p. 56.

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segurança81

. Uma desvalorização, enfim, que atingiu o âmago da segurança burguesa, o

tipo de segurança a que se ordenava o ideário do século XIX. O núcleo duro da

concepção burguesa —―tudo sempre marcha de modo racional e seguro‖— tendia a

uma segurança utópica e plenária, cuja natureza não era social, nem econômica; a

despeito de expressar-se como uma proclamação de aparência mundana e temporal, o

anseio pela segurança ampla e absoluta tinha ao fundo um caráter espiritual. Não há

novidade alguma nessa afirmação, já expressamente desfiada, p.ex., numa página

admirável de Berdiaeff82

. Parece mesmo que não há modo de a política evadir alguma

ressonância religiosa: é célebre que, declarando-se Proudhon83

surpreso com esse liame

fático entre política e religião, foi sua surpresa que causou surpresa a Donoso Cortés84

:

já Tertuliano havia dito, exagero interpretativo à parte, que os homens são naturalmente

cristãos85

; Louis Salleron, que o homem é um animal religioso86

, e o mexicano Basave

81 Realidade psicológica patente, mas à qual não se há de reduzir o conceito integral de

segurança (v. a propósito, Louis Le Fur, Le but du droit : bien commun, justice, sécurité, in

Annuaire de l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed.

Sirey, Paris, 1938, tomo 3, p. 6; v. Helmut Coing, op. cit., p. 67).

82 ―O burguesismo é um estado e uma orientação do espírito, um modo especial de

sentir a vida. Ele não é de ordem social ou econômica e é mais do que uma categoria

psicológica e ética: é uma categoria espiritual, ontológica‖ (Nicolas Berdiaeff, De l‘esprit

burgeois, tradução francesa de Elisabeth Bellençon, ed. Delachaux e Niestlé, Neuchatel-Paris,

1949, p. 41).

83 Pierre Joseph Proudhon, Les Confessions d'un Révolutionnaire, apud Juan Donoso

Cortés, Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo, Livro 1, cap. 1, in Obras

Completas, ed. BAC, Madrid, 1970, vol. 2, p. 499.

84 ―Nada hay aquí que pueda causar sorpresa, sino la sorpresa de M. Proudhon‖

(Donoso Cortés, op. cit., vol. 2, p. 499). Na Carta al Cardenal Fornari, escreveu Donoso:

―Entre los errores contemporáneos no hay ninguno que no se resuelva en una herejía‖ (op. cit.,

vol. 2, p. 744-745).

85 Tertuliano, no Apologeticus: ―O testimonium animæ naturaliter christianæ‖ (apud

Roüet de Journel, Enchiridion Patristicum, ed. Herder, Barcelona, 1967, n. 275).

86 ―L‘homme est un animal religieux‖ (Louis Salleron, …ce qu‘est le Mystère à

l‘Intelligence, ed. du Cèdre, Paris, 1977, p. 17)

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del Valle, que o homem é um ser teotrópico87

. O fato é que, questões integradas ao

conteúdo da fé, as últimas relativas à vida e ao homem foram objeto de neutralidade

asséptica no cânon do pensamento burguês88

, e ali se substituíram pela fé no visível e no

palpável: Léon Bloy disse então impressivamente que S.Tomé era o patriarca dos

positivistas89

. De onde a confiança creditada ao panjuridismo90

, aparato de manifestação

de uma incontrastável vontade91

do Estado92

. Confiou-se, em acréscimo, na fórmula

econômica do capitalismo —acolhendo-lhe, de caminho, as raízes religiosas93

que

prometiam resolver o problema da salvação escatológica ora mediante o paradoxo94

de

uma sentença arbitrária, ora por meio de uma singela letra de câmbio espiritual com que

se sacramenta a sola fides. Apoiada a concepção decimonônica fundamental numa

87 Agustín Basave Fernández del Valle, Filosofia do homem, tradução brasileira de

Hugo di Primio Paz, ed. Convívio, São Paulo, 1975, p. 168-171.

88 Cfr. Otfried Höffe, Justiça Política, tradução brasileira de Ernildo Stein, ed. Vozes,

Petrópolis, 1991, p. 28-29.

89 ―…saint Thomas est le patriarche des positivistes‖ (Léon Bloy, Exégèse des lieux

communs, ed. Gallimard, Paris, 1968, p. 71).

90 Sem que o panjuridismo equivalha, sem mais, a uma fórmula panlegística, porque a

observância da lei, nos credos protestantes, não se remete ao destino escatológico dos homens

(Francisco Elías de Tejada, Tratado de Filosofía del Derecho , ed. Universidad de Sevilha,

1977, tomo 2, p. 137).

91 Il cuore della modernità, disse Francesco D‘Agostino, é ―il suo essere radicata

nella volontà di potenza‖ (Il diritto come problema teologico, ed. G. Giappichelli, Turim, 1995,

p. 85).

92 Luigi Sturzo avistou nesse quadro um signo panteístico: cfr. ―O Panteísmo de

Estado‖, in VV.AA., Heresias do nosso tempo, tradução portuguesa do Pe. António Marques,

ed. Tavares Martins, Porto, 1960, p. 121 et sqq.

93 Obrigatoriamente, Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,

tradução brasileira de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi, ed.

Pioneira, São Paulo, 1967, maxime p. 65-109.

94 Tanto no plano teológico, quando no de sua transposição política, o voluntarismo

decisório calvinista —―…para Calvino la justicia es pura y simplemente la voluntad de Dios

cuando actúa como juez‖ (Tejada, op. cit., vol. 2, p. 137)— remata no paradoxo de que a

segurança depende do arbítrio de Deus ou do juiz humano: reduz-se o direito à consciência do

magistrado que profere a sentença, àquilo que decida intima animæ pars (ID., p. 139).

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racionalização absoluta da existência terrena95

—o homem cria o mundo todos os dias,

por sua atividade econômica96

— e no milenarismo97

de uma ordem social perfeita98

,

toda moral burguesa estava dirigida, em essência, à idéia de segurança99

. De que

seguem suas tópicas: eu lavo as mãos qual Pilatos; ser como é preciso; e é preciso ser

de seu próprio século; todas as opiniões são respeitáveis; quando se está no

comércio… negócios são negócios; é preciso morrer rico100

; certo: o dinheiro não traz

a felicidade, mas…101

etc.

Em março de 1937, na cidade de Roma, instalou-se o 3.o Congresso do

Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia Jurídica: nele, entre

outros grandes pensadores, proferiram conferências Louis Le Fur, Giorgio Del Vecchio,

Recasens Siches, Carlyle, Délos, Gustav Radbruch. A só enunciação do título dos temas

desse Congresso —em seu gênero, o fim do direito, e, de modo específico, o bem

95 ―É o culto de Baal que assinala o início da nascente civilização burguesa… Toca a

essa civilização destruir todo culto sagrado‖ (Berdiaeff, op. cit., p. 55-56).

96 Versando acerca da visão do mundo no cristianismo burguês, diz Marcel de Corte:

―Un tel monde n‘offre plus rien de mystérieux, d‘effrayant, d‘obscur: le bourgeois le connaît,

distinctement, puisqu‘il le crée chaque jour, à l‘entour de soi, par son activité industrielle ou

mercantile‖ (Essai sur la fin d‘une civilisation, ed. M. Th. Génin e Librairie de Médicis, Paris,

1949, p. 196). Também aí se adverte o funcionalismo com que se sobrevalora a poiesis,

menosprezando-se as ações pessoais imanentes.

97 Diz Berdiaeff: ―Tendo perdido o sentido da culpabilidade, do pecado, o burguês

orienta sua vontade para realizações ilusórias e deixa submeter-se pelo ‗mundo‘. Sua idéia

motriz é a de obter o poderio e o bem estar, sem aceitar o Gólgota. Eis aí o milenarismo

burguês‖ (op. cit., p. 54). O triunfo do espírito burguês ocorre, segundo o autor, desde que, ―na

cristandade, a cidade terrestre passa por celeste e que o cristão deixa de sentir-se peregrino sobre

a terra‖ (p. 59).

98 É ainda de Berdiaeff: ―O arquiteto da torre de Babel é um burguês‖ (op. cit., p. 53).

99 ―Toda nossa moral atual estava orientada essencialmente para a segurança‖ (Jakob

Burckhardt, apud Radbruch, op. cit., p. 56).

100 Cfr. Léon Bloy, op. cit..

101 ―L‘Argent…‖ —diz Bloy— é, para o burguês, ―le Rédempteur ou, si on veut,

l‘image du Rédempteur‖ (p. 65). O dinheiro não traz a felicidade: ―c‘est vrai, songe

profondément le Bourgeois, l‘argent ne fait pas le bonheur, surtout lorsqu‘il est absent‖ (p. 103).

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comum, a justiça e a segurança — punha à mostra que a doutrina passava a ocupar-se

de um problema que até então lhe parecera desprezível. A revolução bolchevique de

1917, a guerra mundial de 1914, a grande depressão dos anos 30, sucessiva ao crack da

Bolsa de Valores de Nova York em 1929, a ascensão de Hitler em 1933, a guerra civil

espanhola de 1936, entre outros acontecimentos —alguns dos quais menos aparatosos

mas acaso tão ou mais profundos e intensos no plano espiritual102

— influíram na perda

da cega fé burguesa: desmoronara a utopia da segurança plenária. Era hora já, senão

tardia, de meditar sobre a segurança jurídica e suas relações com a justiça e o bem

comum.

Na sessão inaugural do referido Congresso de Roma, Le Fur afirmou com todas

as letras que a justiça e a segurança jurídica não são realidades antinômicas: ao revés,

são mesmo ―les deux éléments, les deux faces du bien commun‖103

. O fim do Direito,

prosseguiu o autor, é o de criar, pela justiça, pela ordem e pela segurança, as condições

que permitam ao grupo social a realização do bem comum. Mas segurança e justiça não

se podem separar: ―Tout se tient dans la vie de l‘homme, il n‘y a bonté ni beauté, ni

vérité ni justice dans le désordre‖104

. Joseph Délos, professor da Faculdade livre de

Direito de Lille, declinou ali célebre definição de segurança jurídica105

: ―a garantia

102 Pense-se, a propósito, nos efeitos do Decreto do Santo Ofício, em dezembro de

1926, condenando expressamente o jornal Action française — e indiretamente o movimento da

Action française: cfr., a propósito, o paradigmático livro de Gustavo Corção, O Século do Nada,

ed. Record, Rio de Janeiro-São Paulo, s.d., passim.

103 Louis Le Fur, Le but du droit : bien commun, justice, sécurité, in Annuaire de

l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed. Sirey, Paris,

1938, tomo 3, p. 3.

104 ID., op. cit., p. 7.

105 Confirma-se o acerto dessa noção de Dabin em muitas das conceituações pósteras

de segurança jurídica; v.g., ―una exigencia objetiva de regularidad estructural y funcional del

sistema jurídico a través de sus normas y instituciones‖ (Antonio-Enrique Pérez Luño, La

Seguridad Jurídica, ed. Ariel, Barcelona, 1991, p. 21); ―En términos generales, hay seguridad

jurídica cuando el sistema ha sido regularmente establecido en términos iguales para todos,

mediante leyes susceptibles de ser conocidas, que sólo se aplican a conductas posteriores —y no

previas— a su vigencia, que son claras, que tienen cierta estabilidad, y que son dictadas

adecuadamente por quien está investido de facultades para hacerlo‖ (Atilio Anibal Alterini, La

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dada ao indivíduo de que sua pessoa, seus bens e seus direitos não serão objeto de

ataques violentos ou que, se eles vierem a produzir-se, ser-lhe-ão asseguradas, pela

sociedade, proteção e reparação‖106

. Depois de registrar que ―pour le positivisme et le

volontarisme juridiques, le droit positif est du droit par son origine, et non par son but

social‖107

, averbou Délos que a segurança importa na existência de um formalismo

jurídico, que ―protege contra o arbitrário, a imprecisão e o imprevisto‖108

. Estar em

segurança, disse o autor, é ter a segurança de que a situação estável não será

modificada a não ser por meio de procedimentos societários; procedimento, de

conseguinte, regulares —conformes à regula— e legítimos —conforme a lex109

. Por seu

turno, RADBRUCH disse então, muito graficamente: ―O bem comum, a justiça e a

segurança exercem um condomínio sobre o direito…‖110

, e Recasens Siches afirmou

que ―o direito não nasceu como culto puro da justiça, mas para saciar uma sede de

segurança‖ 111

.

Inseguridad Jurídica, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1993, p. 19); ―aquel presupuesto y

resultado del orden social, por el que la persona humana, principalmente, dentro de su libertad,

y en la convivencia social, se ve garantizada en el ejercicio de sus derechos y deberes de

carácter jurídico mediante la determinación de las normas preestabelecidas y su cumplimiento,

en la delimitación que el bien común marcará al ordenamiento jurídico mismo, en pro de la

justicia‖ (Jesús Lopez Medel, Introducción al Derecho –Una concepción dinámica del derecho

natural, ed. Fragua, Madrid, 1976, p. 117-118).

106 Joseph T. Délos, Le buts du droit : bien commun, sécurité, justice, in Annuaire de

l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, op. cit., p. 41: ―la

securité est la garantie donnée à l‘individu que sa personne, ses biens et ses droits ne seront pas

l‘objet d‘attaques violentes ou que, si celles-ci viennent à se produire, protection et réparation

lui seront assurées par la société‖.

107 Id., op. cit., p. 29.

108 Id., op. cit., p. 41, nota.

109 Id., op. cit., p. 41-42. Equivalência, por certo, controvertível, a não ser que, como

nós sustentamos, se recuse caráter de verdadeira lei à norma injusta.

110 Radbruch, op. cit., p. 58.

111 Luis Recasens Siches, Le but du droit, le bien commun, la justice, la sécurité, in

Annuaire de l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed.

Sirey, Paris, 1938, tomo 3, p. 127.

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Desde aqueles anos logo anteriores à II Guerra Mundial, passando pelo drama

do Tribunal de Nuremberg, em que o direito moderno confessou a perda de sua

inocência —suposto a possuísse na origem—, o fato é que já não se deixou de interpelar

a questão da segurança, a ponto de que seja até um lugar comum profano. Hoje fala-se

de seguranças específicas, pessoal, social, cidadã, de emprego, no trabalho, dos dados,

do tráfego negocial e do tráfego viário, segurança de orientação, alimentária,

informática, médio-ambiental112

, do uso de tesouras para aparar o bigode e do cinturão

de segurança, no tráfico viário… Viu-se acaso com excessivo otimismo o conflito

possível entre justiça e segurança113

, talvez porque se confiasse —num renovo de

fideísmo— na força dos consensos internacionais. Pouco tempo bastou para revelar que

a trivialização do termo segurança indicava antes a persistência de sua falta e de seu

anseio do que sua presença em nossos dias: vê-se hoje, muito largamente, a realidade de

uma segurança da insegurança114

. Faz alguns anos, boa parte das ameaças à segurança

jurídica provinha da prática de Estados que se reconheciam por totalitários —e a essas

ameaças, que López de Oñate qualificava de teóricas, ajuntava ele a escola do direito

livre115

. Salvo agora que alguns Estados ainda exibem resíduos de totalitarismo

aparatoso, já não se ostentam tão ingênua e abertamente, como outrora, as concepções

jurídicas que, a seu tempo, cuidavam de justificar o socialismo marxista e o nacional-

socialismo. Todavia, elas ainda se acham, um tanto obscurecidas, aqui e ali —apraz-lhes

muito o nome democracia—, como também se encontram sinais da herança do direito

livre em movimentos de direito alternativo, uso alternativo do direito, livre exame das

normativas etc., tudo isso num sincretismo de prática oscilante e de uma superficial

articulação teórica, acomodando-se à vaga pós-moderna de aditividade indistinta.

112 Cfr., a propósito, Pérez Luño, op. cit., p. 8 et sqq.

113 ―No se da, pues, en rigor, el conflicto trágico entre justicia y seguridad jurídica‖

(Werner Goldschmidt, La Ciencia de la Justicia, ed. Aguilar, Madrid, 1958, p. 89).

114 Pérez Luño, op. cit., p. 20 ; a segurança continuava a ser apenas ―una de grandes

aspiraciones insatisfechas del género humano‖ (p. 13).

115 López de Oñate, op. cit., p. 108 et sqq.

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Se o problema da segurança insegura, em nossos tempos, responde ainda

diretamente116

às ameaças que López de Oñate classificou como fáticas117

a) perda de claridade e simplicidade das leis e

b) hipertrofia legislativa—, suporta, pois, novos e acaso mais graves riscos

como o sincretismo de articulações ideológicas ou teóricas vagamente libertárias,

difusamente democráticas etc.. Entre essas ameaças sincréticas podem alistar-se:

c) o agnosticismo jurídico,

d) o situacionismo jurídico,

e) a crise do princípio da legalidade,

f) a falta de regularidade e de eficácia dos mecanismos de aplicação do

direito118

, com o corolário da demolição da jurisprudência como doutrina firme e o

perdimento da segurança de orientação,

g) a omissão estatal em questões jurídicas relevantes, incluso relativas à

segurança física dos súditos,

h) a irrazoável redução de certos prazos prescricionais, até mesmo uma

tendência de abolir algumas hipóteses de prescrição,

i) a extensão dos elementos normativos do tipo penal e das referências a

infrações administrativas,

j) a superação excepcional de limites preclusivos,

k) investidas contra a independência jurídica dos juízes, notários e

registradores,

l) ataques à instituição registrária.

A persistente perda da clareza e da simplicidade das leis e a intensificada

hipertrofia legislativa, ameaças contra a segurança jurídica já diagnosticadas por López

de Oñate, respondem, alguma vez de modo propositado, ao que se designou por

circiterismo normativo. A ambigüidade dos enunciados regulativos e o excesso no

número das leis conduzem a um difícil, complexo, quase impossível conhecimento das

116 É que não se ignora a existência de ideologias a justificar uma e outras dessas

ameaças antes de tudo, porém, factuais, como as qualificou López de Oñate, porque não

alcançam o grau de um paradigma científico.

117 Id., op. cit., p. 93 et sqq.

118 Cfr., a propósito, Alterini, op. cit., p. 19-20.

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normas, já não se diz isso só quanto aos profanos119

, mas até mesmo no concernente aos

juristas120

. O exagero das leis deprecia as normas — é a crise do princípio da

legalidade121

; a instabilidade das normas, com o arbitrário de suas mudanças,

desvaloriza a firmeza da jurisprudência dos tribunais; tudo contribui a debilitar ou até a

abolir a segurança de orientação. Mas ao lado dessa inflação quantitativa e do abuso das

mudanças das leis, emergem ainda a falta de eficácia do direito — marcadamente com a

relaxação das penas — e a omissão legislativa a propósito de questões de grave relevo

para a vida social, nutrindo a insegurança de orientação, o descrédito da lei e o desamor

do bem comum. Quando se ouve falar da lei como um fato normativo para-

revolucionário, suscetível de ignorar direitos adquiridos e alterar, a cada passo, as

regras do jogo — que está o próprio Estado a jogar — é compreensível que os súditos

considerem esse Estado não como sua autoridade superior mas como um poder

adversário que institui leis sem outro limite que o de sua misteriosa vontade estatal e

desordena o bem comum político, muita vez como se ele equivalesse e resumisse ao

bem do caixa público. Aqui se pode lembrar a imagética de Pierre Gaxotte, insculpida

de admirável ânimo libertário, a retratar antologicamente o Estado pró-totalizador:

119 ―Autre conséquence de l‘inflation juridique, le principe ‗nul n‘est censé ignorer la

loi‘ devient de plus en plus fictif‖ (Nicolas Nitsch, L‘inflation juridique et ses conséquences, in

Archives de philosophie de droit, ed. Sirey, Paris, 1982, tomo 27 —―Sources‖ de droit—, p.

162).

120 ―Le juriste ne sait plus, ne suit plus —ne peut plus suivre— le mouvement

d‘incrimination en droit pénal‖ (Mireille Delmas-Marty, Le flou du droit, ed. Presses

Universitaires de France, Paris, 1986, p. 33).

121 Cfr. Daniel Mockle, Crise et transformation du modèle légicentrique, in VV.AA.,

L‘amour des lois, direção de Josiane Boulad-Ayoub, Bjarne Melkevik e Pierre Robert, ed. Les

Presses de l‘Université Laval e L‘Harmattan, Québec, 1996, p. 139 et sqq.; Michel van de

Kerchove, Le problème des fondements éthiques de la norme juridique et la crise du principe de

légalité, in VV.AA., La loi dans l‘éthique chrétienne, ed. Facultés universitaires Saint-Louis,

Bruxelas, 1981, p. 72 et sqq.; Wolfgang Naucke, La progresiva pérdida de contenido del

principio de legalidad penal como consecuencia de un positivismo relativista y politizado,

tradução castelhana, in VV.AA., La insostenible situación del Derecho Penal, ed. Universidad

Pompeu Fabra, Granada, 2000, p. 538 et sqq.

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―A autoridade‖ —disse ele— ―não nos aparece hoje a não ser sob a figura de

um funcionário sentado atrás de uma escrivaninha e investido dos mais amplos

direitos… Essa personagem é eterna, imutável, idêntica a si própria… Recenseia,

registra, espiona. Conhece nossos rendimentos e inventaria nossas heranças. Sabe se

possuímos um aparelho de rádio, um cachorro ou um automóvel. Instrui nossos filhos e

fixa o preço do nosso pão. Fabrica nossos fósforos e vende-nos nosso tabaco. É

industrial, armador, comerciante, corretor e médico. Tem arquivos, florestas, estradas de

ferro, hospitais, bancos e usinas. Monopoliza a caridade. Se nós pertencemos ao sexo

masculino, faz-nos comparecer à sua frente, pesa-nos, mede-nos, examina o

funcionamento de nosso coração, de nossos pulmões e de nosso baço. Não podemos dar

um passo ou fazer um gesto sem que disso se advirta e encontre um pretexto para

intervir‖122

.

Sob o título agnosticismo jurídico podem agrupar-se diversas tendências

jurídicas contemporâneas: uma, que recusa a própria verdade da ordem prática; outra,

que nega a possibilidade do conhecimento que importa ao direito, seja de caráter fático,

seja de caráter normativo; uma terceira, subjetivista: há verdade na esfera do direito e da

ética, verdade que só se valoriza, entretanto, dentro dos limites da apreensão do sujeito

gnosiológico123

. Essas vertentes confortam-se com o lugar comum contemporâneo da

falta de limites para a interpretação124

, de modo que os enunciados normativos e os fatos

nunca terminam de interpretar-se: perpetua-se a interpretação, num livre exame

contínuo, a roda de Ixión —―seule la main de Dieu‖, comenta Élissalde125

, ―arrête la

plume de l‘interprète‖; não se pode atingir nenhuma certificação, sequer moral. Se,

contudo, não há verdade, ou a verdade que há não se pode conhecer, ou, cognoscível,

não pode ser mais que subjetiva, a segurança é apenas um fato, o fato resultante do

poder: não se poderia já falar em segurança jurídica —i.e., regular, conforme ao

direito—, mas apenas numa contra-segurança da maior força. No entanto, a poesia de

122 Pierre Gaxotte, La révolution française, ed. Complexe, Bruxelas, 1988, p. 5-6.

123 Cfr. Georges Kalinowski, Le problème de la vérité en morale et en droit, ed.

Emmanuel Vite, Lyon, 1967, passim.

124 Cfr. Yvan Élissalde, Critique de l‘interprétation, ed. Vrin, Paris, 2000, passim.

125 ID., op. cit., p. 24.

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ANTONIO MACHADO diz muito bem que ―la verdad es lo que es,/y sigue siendo

verdad/aunque se piense al revés‖126

, e, noutra parte:

―El ojo que ves no es

ojo porque tú lo veas;

es ojo porque te ve‖127

.

É verdadeiro o episódio128

de um juiz que, com todas as letras —e, por sinal,

eruditas—, afirmava não ser possível uma apreensão objetiva da verdade, seja quanto à

diagnose dos fatos constitutivos, seja quanto ao próprio direito: normativo ou res justa.

Por mais argumentos lhe fossem opostos —―¿Tu verdad? No, la Verdad,/y ven conmigo

a buscarla./La tuya, guárdatela‖129

— não acabava nunca de convencer-se de que, com

símile subjetivismo, não era razoável ser juiz. Foi preciso que, com alguma

impiedade130

, lhe chegasse aos ouvidos o registro de que seu subjetivismo era um tanto

farisaico, porque nosso juiz nunca fora visto a sair das salas por meio das paredes ou a

saltar pelas janelas… As portas, enfim, também para ele, eram de uma realidade

palpável. Foi leal com a mostra: abdicou do relativismo —desta vez, novamente, com

grande erudição.

O direito de situação —situacionismo ou decisionismo— é um parente do

homônimo ético: em lugar da normativa — ou, ao menos, com a variação secundária131

de sua ―interpretação‖ — emerge um juízo concreto, hic et nunc, fundado

essencialmente no poder factual de quem decide. Isso corresponde ao que Michel Villey

designou hermeneutismo132

— uma releitura incessante, criadora, livre e subjetiva dos

126 Antonio Machado, Proverbios y Cantares, 136-30.

127 ID., 161-1; também: ―Los ojos por que suspiras,/sábelo bien,/los ojos en que te

miras/son ojos porque te ven‖ (161-40).

128 De que, pessoalmente, eu tive pequena parte, num Tribunal de São Paulo.

129 Antonio Machado, op. cit., 161-85.

130 Confiteor Deo omnipotenti etc.

131 Vale por dizer, que a ―interpretação‖ secunda o juízo casual.

132 Michel Villey, Philosophie du droit, ed. Dalloz, Paris, 1984, tomo 2, p. 170-171.

ÉLISSALDE, todavia, reivindica a primazia do neologismo herméneutisme (op. cit., p. 13).

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textos e dos fatos133

. Entre seus lugares comuns arrolam-se a peculiaridade do caso —

não se confunde isso com a eqüidade, porque essa referência ao peculiar do caso atua

como simples retórica, sem recorrer ao fundamento exceptivo in re que autorizaria o

reconhecimento da eqüidade contra legem —; o juiz não é um computador; a simbiose

entre o aplicador da lei e o caso; a insuficiência da dogmática e da lógica134

. Já se

referiu, noutra parte, a um episódio judiciário135

característico desse decisionismo: após

largo debate num tribunal, definiu-se, por maioria, uma questão puramente de direito;

proclamada a súmula, apregoou-se novo processo para julgamento, e um dos juízes, que

na questão anterior, aderira expressamente à maioria, modificou seu entendimento —

sem mínima apresentação de novos argumentos; alertado sobre a divergência com seu

próprio voto anterior, afirmou o juiz, com todas as sílabas: ―Meu entendimento é

sempre variável. Não tenho compromissos com a lógica‖. Símile gênero de

irracionalismo judicial está à raiz da realidade de uma justiça lotérica, na dicção de

Allain Peyreffite136

, e que já ensejou a BORGES reportar a origem da pena de multa à

loteria da Babilônia137

, e a uma personagem de Pitigrilli, o juiz Paul Pott, a afirmação

de que o método ―mais racional, mais sério, mais científico, mais positivo‖ para a

sabedoria —incluída a aplicação da justiça— é a desfolhação de malmequeres 138

.

133 Nesse quadro, o poder é o que conta, com um valor quase hierático.

134 Com que se poderia estar de acordo, se, de par com a insuficiência, não viesse

implícita a afirmação da desnecessidade da lógica e da dogmática.

135 Cfr. nosso, ―José Frederico Marques — e o cânon processual penal brasileiro‖, in

José Frederico Marques, Estudos de Direito Processual Penal, ed. Millennium, Campinas,

2001, p. XX.

136 Allain Peyreffite, Les chevaux du lac Ladoga, in De La France, ed. Omnibus,

Paris, 1996, p. 594.

137 Jorge Luis Borges, La lotería en Babilonia, in Ficciones (cfr. Obras Completas, ed.

Emecé, Buenos Aires, 1974, p. 456 et sqq.).

138 Pitigrilli, O Homem que Inventou o Amor – O Experimento de Pott, tradução

brasileira de Rúben Ulisséia, ed. Vecchi, Rio de Janeiro, s.d., 5a ed., p. 206.

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No que concerne aos institutos próprios do direito formal —tipo e tipificação,

coisa julgada, prescrição, decadência, preclusão, perempção, notas e registros

públicos139

—, encontram-se ameaças fáticas pontuais contra a segurança jurídica, p. ex.:

a) com injustificáveis reduções de prazos para a prescrição aquisitiva —o que

vai avantajando a titulação de anômalos fatos possessórios em curso conflitual contra as

situações jurídico-dominiais—;

b) com a adoção segmentar de casos imprescritíveis — o que, além de

retroceder a controvérsia à própria legitimidade em geral das prescrições, termina,

muitas vezes, por afetar questões relativamente menores (v.g., casos penal-

disciplinares140

);

c) com a crescente referência legística a elementos normativos, tanto na

tipificação penal, quanto na esfera dos ilícitos administrativos141

;

d) com a desconsideração propositada da preclusão temporal para, na esfera

judiciária, admitir, de fato, a reformatio in mellius, abrandando sentenças penais sem

recurso dos réus142

.

Os registros públicos — ao lado das notas143

— constituem o mais relevante

dos instrumentos jurídicos preventivos. Como todo instituto de direito formal, o registro

público ordena-se aos objetivos de clarificação e demarcação exterior 144

—em outros

139 Deixam-se à parte a lei — já antes referida — e as forças de segurança (polícia,

exército etc.).

140 É o que ocorre, no Brasil, com a Lei 8.935/1994, de 18 de novembro, que versa

sobre os notários e registradores públicos. À persecução das ali tratadas infrações disciplinares

não corresponde nenhuma referência sobre o influxo de prescrição.

141 Cfr. nosso, O Novo Direito Penal Disciplinar dos Notários e Registradores, na obra

escrita com José Renato Nalini, Registro de Imóveis e Notas – Responsabilidade Civil e

Disciplinar, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997, p. 11 et sqq.

142 Paradoxalmente, ao vedar a reformatio in pejus indireta, os tribunais adotam uma

sentença já inexistente como título de uma preclusão de quantidade ou qualidade da pena.

143 Para cuja importância —a das notas — é paradigmático José Castán Tobeñas,

Función notarial y elaboración notarial del derecho, ed. Reus, Madrid, 1946, passim.

144 Cfr., a propósito, Paul Roubier, Théorie générale du droit, ed. Sirey, Paris, 1951, p.

91.

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termos, ao escopo de conferir, objetivamente, segurança jurídica e, subjetivamente, a

certeza que lhe corresponda, por meio de formas, prazos e procedimentos. Acrescenta-

se aos registros uma cautelaridade geral que, num certo sentido, os avantaja

socialmente até mesmo à coisa julgada, porque esta se restringe, de comum e

propriamente, às partes de um processo e atua como um póstero conflitivo, ao passo que

os registros têm, positivamente, oponibilidade universal — à margem os efeitos que se

atribuam à presunção ou, se se quiser, à ficção de seu conhecimento145

— e operam ao

tempo e com objetivo anteconflitual. Além disso, o registro de imóveis —que é o

registro público por excelência146

— exercita uma função de garantia segunda com

coordenar, conservar e publicar as situações jurídicas que têm por objeto a propriedade

predial privada, essa que, por si só, já constitui um garante efetivo e primeiro das

liberdades concretas dos indivíduos e dos corpos intermédios entre esses e o Estado.

Ainda que o registro imobiliário não se dirija exclusivamente a inscrever fatos jurídicos,

lato sensu, relativos à propriedade particular de imóveis, abrangendo os desdobramentos

do domínio, e, num plano juscomparatístico, possa até estender-se a fatos relativos a

direito pessoal147

, é certo que a relevância primeira148

do registro imobiliário está na

coordenação, conservação e publicação das situações jurídicas dominiais.

145 Brevitatis causa: Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos,

ed. Almedina, Coimbra, 1966, p. 251 et sqq.; José de Oliveira Ascensão, Efeitos substantivos do

Registro predial na ordem jurídica portuguesa, in Ponencias y Comunicaciones Presentadas al

II Congreso Internacional de Derecho Registral, ed. Colegio Nacional de Registradores de la

Propiedad y Mercantiles de España – Centro de Estudios Hipotecarios, Madrid, 1975, tomo 2, p.

38 et sqq.

146 ―…la publicidad registral por antonomasia es la que atañe a los inmuebles‖

(Ricardo de Ángel Yágüez, ed. Universidad de Deusto, Bilbao, 1975, p. 85).

147 Como, p.ex., ocorre no Brasil, com a Lei 6.015/1973, de 31-12.

148 O que não exclui fins secundários, assim, p.ex., de caráter urbanístico (cfr. Manuel

Medina de Lemus, La propriedad urbana y el aprovechamiento urbanístico, ed. Colegio de

Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España –Centro de Estudios Registrales,

Madrid, 1995, passim; Mercedes Fuertes, Urbanismo y Publicidad Registral, ed. Marcial Pons e

Centro de Estudios Registrales de Cataluña, Madrid, 1995, passim; Martín Marcos Jiménez,

Parcelaciones y Reparcelaciones Urbanísticas y el Registro de la Propiedad, ed. Montecorvo,

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Isso tudo põe à mostra o caráter institucional149

do registro de imóveis, de que

se exigem o exercício de funções relevantíssimas para a ordenação social e, muito

particularmente, o desempenho da missão de sobregarantia, ao assegurar juridicamente

a propriedade privada imobiliária e, com ela, as liberdades concretas até mesmo frente

ao Estado. Adivinha-se que motivos ideológicos se insinuem nos ataques teóricos que,

vez por outra, guerrilham contra a instituição do registro de imóveis: demolir a

sobregarantia registral é uma fórmula direta de desorganizar a propriedade imobiliária

privada, aplainando a trilha do combate ao domínio particular. Mas, ao lado de ameaças

teóricas — em geral, pouco ou nada consistentes —, o registro imobiliário sofre ataques

factuais, que o afetam, sobretudo, no plano da independência jurídica do registrador

(v.g., por meio um direito penal disciplinar atipológico ou de intervenções do Poder

Público marginadas de expressa regulação).

Ladeando aqui a persistente controvérsia doutrinária que toca com a natureza

das funções e das atividades do registro imobiliário, penso que se poderá admitir — ao

menos com recortes voltados a atender à pluralidade do direito comparatístico — que o

registro de imóveis seja, quodammodo, um serviço público150

. E se o conceito de

serviço público não equivale ao de serviço estatal por natureza — já observara Hauriou

que, historicamente, uma parte considerável do que se chama de serviços públicos é

resultante do mero fato de uma assunção estatal de serviços que os particulares antes

exercitavam por si próprios151

—, é razoável afirmar a funda conveniência, quando não a

Madrid, 1976, passim) e agrário (v. Ramón María Roca Sastre e Luis Roca-Sastre Muncunill,

Derecho Hipotecario, ed. Bosch, Barcelona, 1995, tomo 1, p. 14).

149 Cfr., brevitatis studio: José Manuel García García, Derecho Inmobiliario Registral

o Hipotecario, ed. Civitas, Madrid, 1988, tomo 1, p. 54 et sqq.; JESÚS LÓPEZ MEDEL, Modernas

Orientaciones sobre la Institución Registral, ed. Fragua, Madrid, 1975, passim; Francisco Mesa

Martín, Aproximación al institucionalismo. El Registro de Propiedad como institución jurídica,

in Ponencias y Comunicaciones Presentadas al II Congreso Internacional de Derecho

Registral, op. cit., tomo 2, p. 130 et sqq.; Ángel Cristóbal Montes, Introducción al Derecho

Inmobiliario Registral, ed. Librería General, Zaragoza, 1986, p. 144-147.

150 Cfr. Jesús López Medel, Teoría del Registro de la Propiedad como Servicio

Público, ed. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España –Centro de

Estudios Registrales, Madrid, 1991, passim.

151 Maurice Hauriou, Principes de droit public, ed. Sirey, Paris, 1916, p. 572 et sqq.

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necessidade, da organização e do controle do registro de imóveis pelo Estado, na

medida mesma em que a ordenação e a conservação da propriedade imobiliária privada

interessa essencialmente ao bem comum político. Isso, porém, não significa que o

registro de imóveis deva exercitar-se diretamente pelo Estado. Não são incompatíveis

os atributos de gestão privada e de organização estatal de um serviço152

, e saber,

concretamente, se o registro imobiliário deve ou não exercitar-se de modo direto pelo

Estado é algo que demanda a consideração das circunstâncias históricas e circundantes

de cada País: no Brasil, p.ex., há uma conaturalidade histórica, por sinal que frutuosa,

entre gestão particular e registro de imóveis153

. Como quer que seja, exerça-se por

funcionários públicos ou por particulares colaboradores do Poder Público154

, o registro

de imóveis exige de seu titular o predicado da independência jurídica.

Com efeito, o registrador, ao termo de seu indeclinável procedimento de

qualificação155

, conclui por uma decisão jurídica, positiva ou negativa, de um caso

152 Cfr., brevitatis causa, Roger Bonnard, Précis de droit public, ed. Sirey, Paris, 1946,

p. 243 et sqq.; Jean Rivero, Direito Administrativo, tradução portuguesa de Rogério Ehrhardt

Soares, ed. Almedina, Coimbra, 1981, p. 192 et sqq.; Francis-Paul Bénoit, Le droit administratif

français, ed. Dalloz, Paris, 1968, p. 769 et sqq.; Celso Antônio Bandeira de Mello, Prestação de

Serviços Públicos e Administração Indireta, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, p. 31 et

sqq.

153 Lê-se no caput do art. 236 da Constituição brasileira de 1988: ―Os serviços

notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público‖.

154 Como se extrai do enunciado normativo do art. 236 da Constituição Federal

brasileira de 1988, os registradores de imóveis não são agentes políticos — porque, em resumo,

não se dirigem a formar a superior vontade estatal‘não são servidores públicos —porque, em

síntese, não são pagos pelos cofres públicos; mas, isto sim, particulares colaboradores do

Poder Público, a exemplo dos tradutores e intérpretes públicos, dos leiloeiros, dos reitores de

universidades privadas etc., pessoas que exercitam função pública em nome próprio, ainda que

sob a fiscalização do Poder Público.

155 Qualificação registral imobiliária —definiu-se noutra parte— é ―o juízo prudencial,

positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no

império de seu registro ou de sua irregistração. Para logo, trata-se de um juízo, vale dizer, uma

operação formalmente intelectiva que une ou separa os conceitos, tornados em relação às coisas

mesmas que representam de modo reflexivo e abstrativo, mas de um juízo prudencial, ou seja:

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particular. Ainda que o marco dessa decisão seja, por primeiro, a res certa — cuja

relação com o justo é de caráter legisprudente —, o fato é que o registrador atua como

um juris-prudente. Vale por dizer que o tipo adequado do saber registral é, em seu

gênero, o da recta ratio agibilium, objeto da virtude da prudência156

. Já por isso, avista-

se, no nível epistemológico, a indispensabilidade do atributo da independência

jurídica157

do registrador. A esse plano, além disso, converge uma razão política, porque

o registrador, atuando como guardião jurídico da propriedade privada e, assim, como

garante mediato das liberdades concretas do povo — incluso em face do Estado—,

exerce função social essencialmente ordenada à segurança jurídica. E não se pode falar

seriamente em função social da propriedade imobiliária se não se respeitar a função

social de seu maior guardião, o registrador de imóveis.

a) juízo que é propriamente da razão prática, não da especulativa;

b) que se ordena a operações humanas singulares contingentes;

c) e que, não dispensando atenta consideração dos princípios da sindérese e das

conclusões da ciência moral, acaba, para além do conselho e do juízo dos meios achados, por

imperar uma determina atuação‖ (nosso Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, in Revista

de Direito Imobiliário, ed. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e Revista dos Tribunais ,

São Paulo, janeiro-junho de 1992, n. 29, p. 40).

156 Cfr. nosso Sobre o Saber Registral (Da Prudência Registral), in Revista de Direito

Imobiliário, ed. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e Revista dos Tribunais , São Paulo,

janeiro-dezembro de 1993, ns. 31-32, p. 7 et sqq.

157 Cfr. nosso O Paradigma da Independência Jurídica dos Registradores e dos

Notários, in Revista de Direito Imobiliário, ed. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e

Revista dos Tribunais , São Paulo, setembro-dezembro de 1997, n. 42, p. 5 et sqq.

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3.

SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DO REGISTRADOR DE IMÓVEIS*

RICARDO HENRY MARQUES DIP

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.

Ao encerrar uma pequena palestra, no XVII Encontro do Comitê Latino-

Americano de Consulta Registral, um importante congresso que recentemente se

celebrou em Morélia, capital do Estado de Michoacán, no México, pareceu-me bem

afirmar que o registrador, ―actuando como guardián jurídico de la propiedad privada y,

así, como garante mediato de las libertades concretas del pueblo —inclusive frente al

Estado— ejerce una función social esencialmente ordenada a la seguridad jurídica‖1.

Não há, por certo, maior originalidade nessa afirmação. E, em particular, com

efeito, referências, ao menos implícitas, à função social do registrador sempre visitaram

a doutrina — a esse propósito, poderia ilustrar-se o tema, invocando-se aqui, por

exemplo, uma gráfica expressão de Monasterio Galli, que com ela mais diretamente, é

certo, designava os notários e não os registradores, aos quais últimos, contudo, é de todo

pertinente a extensão da referência, advertindo esse autor funções jurídico-preventivas

tamanhamente relevantes que não hesitava em agrupá-las numa instituição singular e

transpessoal: a da Magistratura da Paz Jurídica2. Não menos de relevo, ainda a título

exemplificativo, são as seguidas referências da doutrina à natureza institucional do

* Palestra proferida em Moscou, no XVII Congresso Internacional de Registro

Imobiliário.

1 In Sobre la crisis contemporánea de la seguridad jurídica, atas do XVII Encuentro

del Comité Latinoamericano de Consulta Registral, Morélia, 11.03.2003.

2 Apud José Castán Tobeñas, Función Notarial y Elaboración Notarial del Derecho,

ed. Reus, Madrid, 1946, p. 31.

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registro de imóveis —e, pois, no plano subjetivo, também à daqueles que têm a missão

de geri-lo: os registradores—, menções de que se decotam predicados de estabilização e

de continuidade social3. Também despontam em nossos dias seguidas alusões à tarefa

dos registradores de imóveis no ponto em que se ordenam a auxiliar a incumbências

urbanísticas4 e agrárias

5, bem como a subsidiar o controle dos interesses tributários e,

tendência crescente, convocar inscrições relativas a imóveis de propriedade não-

particular6 e a limitações e restrições de Direito público

7. Sem recusar o relevo da

3 Cfr. brevitatis studio, Francisco Mesa Martin, Aproximación al institucionalismo. El

Registro de Propiedad como institución jurídica, in Ponencias y Comunicaciones presentadas

al II Congreso Internacional de Derecho Registral, ed. Colegio Nacional de Registradores de la

Propiedad y Mercantiles de España –Centro de Estudios Hipotecarios, Madrid, 1975, tomo 2, p.

131 et sqq.; Jesus Lopez Medel, Filosofía de la Institución Registral y cambio social, in

Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral,

ed. Colegio Nacional de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España –Centro de

Estudios Hipotecarios, Madrid, 1985, tomo 2, p. 1.691 et sqq.; ID., Teoría del Registro de la

Propiedad como Servicio Público, ed. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles

de España –Centro de Estudios Registrales, Madrid, 3ª ed., 1991, passim; José María Chico y

Ortiz, La propiedad y el Registro de la Propiedad: Conexiones y perspectivas, in Revista

Crítica de Derecho Inmobiliario, Madrid, 1985, n. 566, p. 9 et sqq.

4 A título ilustrativo, cfr. Manuel Medina de Lemus, La propiedad urbana y el

aprovechamiento urbanístico, ed. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de

España –Centro de Estudios Registrales, Madrid, 1995, passim (bibliografia em p. 355 et sqq.);

Mercedes Fuentes, Urbanismo y Publicidad Registral, ed. Marcial Pons e Centro de Estudios

Registrales de Cataluña, Madrid, 1995, passim (bibliografia em p. 173 et sqq.).

5 Cfr. Francisco Corral Dueñas, La aportación registral al agrarismo, in Revista

Crítica de Derecho Inmobiliario, Madrid, 1986, n. 573, p. 333 et sqq.

6 V.g., José Lopez Medel, Publicidad registral de bienes de dominio público, in

Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral,

cit., tomo 1, p. 231 et sqq.; Roberto Parejo Gamiz, Protección Registral y dominio público, ed.

Revista de Derecho Privado e ed. de Derecho Financiero, Madrid, 1975, passim; Etienne

Badillo Anazagasty, Registración de las limitaciones de derecho público al derecho de

propiedad y de bienes de dominio público o demaniales, in Ponencias y Comunicaciones

presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1, p. 3 et sqq.; José

T. Bernal Quirós Casciaro, Acceso del dominio público al Registro, in Ponencias y

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inclusão dos registradores prediais no roteiro da colaboração com o Estado em matéria

de uso regular do solo — particularmente, na esfera dos parcelamentos e

reconcentrações de parcelas8 —, edificações, direito de superfície

9, cultivos, regular

pagamento de tributos etc., é preciso reconduzir a aferição desse papel social do

registrador ao núcleo da própria instituição registrária — não o restringindo à tarefa de

secundar o Estado —, se queremos compreender essencialmente em que consiste a

função social registrária. Com efeito, essas funções secundárias do registro predial que

acabamos de pontualmente alistar são atributos de caráter acidental, são predicados

adjetos que se voltam ao subsídio de incumbências próprias e primeiras de funções do

Governo político, funções essas que, remetidas, de algum modo, à colaboração registral,

são até mesmo, em alguns aspectos, discutíveis quanto a seu valor social: assim, p.ex., a

imposição de obstáculos tributários à registração do tráfico de imóveis é sabidamente

um fator de clandestinismo e, portanto, de maltrato à segurança jurídica. Diante da

contingência e da acidentalidade dessas apontadas funções de colaboração registral, a

Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1,

p. 25 et sqq.;;

7 Assim, p. ex., Alberto F. Ruiz de Erenchun, Registraciones de las limitaciones de

derecho público al derecho de propiedad, in Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI

Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1, p. 345 et sqq.; José Luis Laso

Martínez, Limitaciones del derecho público al derecho de propiedad, in Ponencias y

Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1,

p. 269 et sqq.

8 Cfr. Martín Marcos Jimenez, Parcelaciones y Reparcelaciones Urbanísticas y el

Registro de la Propiedad, ed. Montecorvo, Madrid, 1976, passim; José Manuel García García,

La reparcelación y la compensación en relación con el Registro de la Propiedad, in Revista

Crítica de Derecho Inmobiliario, Madrid, 1985 (n. 567, p. 287 et sqq.) e 1986 (n. 576, p. 1.349

et sqq.).

9 Cfr. José María Cadenaba Coya e Emilio García Pumarino Ramos, El derecho de

superficie y el Registro de la Propiedad, in Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI

Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1, p. 417 et sqq.; Cayetano Utrera

Ravassa, El aprovechamiento urbanístico en suelo sin aprovechamiento, in Ponencias y

Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1,

p. 733 et sqq.

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possibilidade de sua supressão, com o recobro de seu exercício pleno e direto pelo

próprio Estado, põe em evidência o inconveniente de cifrar a consideração do papel

social do registro — e do registrador — a esses vários contributos, por mais que

importantes, de toda sorte secundários. Se assim é, cabe investigar mais adequadamente

por qual razão de ser, por aquilo a que se ordena e justifica sua essência, a instituição

do registro imobiliário haverá de possuir — como, a confirmá-la, se recruta de sua

história — uma função societária substancial, é dizer: suposto de demais funções,

permanente, essencial, a cuja negação se tenha mesmo de concluir, forçosamente e em

boa lógica, abolida a própria instituição do registro de imóveis e refutada sua histórica e

contemporânea relevância para a vida regular da Sociedade política.

Fez-se alusão à história, porque não se pode perder de vista o fato de que, ao

largo do tempo, se foi desvelando a imprescindibilidade de um sistema publicitário

relativo aos bens imóveis, nada obstante a pluralidade com que se concretizaram, sob o

influxo das circunstâncias singulares de cada povo, os modos como essa publicidade se

efetivou. Assim, como é fartamente conhecido, a praxe social de publicar as situações

jurídicas imobiliárias remonta à história da Babilônia e do antigo Egito, documenta-se,

entre os hebreus, no Velho Testamento, acha-se na Grécia dos teóricos e na Roma dos

práticos, freqüenta a Cristandade medieval, sobrevive na Modernidade e, ainda que com

alguns hiatos de instabilidade, chega aos nossos dias10

, em que sua ressurreição e

robustecimento são testemunhos vivos de seu valor para a cidade. Quando se vê, de fato

e malgrado a variação de seus acidentes, que a publicidade predial se manifesta de

forma tão constante entre os povos, da Antigüidade aos nossos tempos, não se sabe já

evitar a conclusão de ser ela conatural à história mesma dos homens e indispensável

politicamente: um efeito tão geral e reiterado não pode provir de causa vária e

pontualizável, senão que remonta a natureza mesma das coisas humanas, vale por dizer,

neste caso, a politicidade natural do homem, sua vivência indispensável em

relacionação com outros homens e com o mundo das coisas. Dos homens pode dizer-se

que não vivem, con-vivem com seus semelhantes e, além disso, convivem com as coisas

do mundo. E essa última convivência — maxime no que respeita à apropriação — exige

modos de visibilidade, de conhecimento, de notícia, com que a cada um se assegure

10 Cfr., por todos, Nicola Coviello, Della Trascrizione, Nápolis, 1897, vol. 1, p. 14 et

sqq., e Salvatore Pugliatti, La Trascrizione, ed. Giuffrè, Milão, 1957, vol. 1, tomo 1, p. 33-164.

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melhor o que é seu. O conjunto desses modos — ora com seu jeito próprio babilônico,

egípcio ou grego, ora com as técnicas mais apuradas da modernidade e de nossos dias

— é um permanente histórico que, de par com seu progresso, desiderato de geração

após geração, manifesta a essencialidade dos registros públicos de imóveis para a vida

da cidade.

Nessa linha de consideração, dizer, como se afirmou no já referido Encontro de

Morélia, que o registrador de imóveis é, pela razão primeiríssima de seu ofício —tal a

aferível da própria história da publicidade imobiliária—, um garante direto da

propriedade predial particular e, bem por isso, um garante mediato das liberdades

concretas do povo, é, de fato, reconhecer que sua missão política essencial se remete

fundamentalmente à função plenária —pessoal e social— do domínio privado. Em

outros termos, a função de garantia direta da propriedade imobiliária particular e de

garantia mediata das liberdades concretas assina ao registrador predial um específico

papel político, que é indissociável da teleologia da instituição registrária, ainda que a

secundar a função política ou social do domínio privado. Não é demais repetir aqui a

célebre lição de que, na ordem prática, o fim constitui o primeiro dos princípios, de tal

maneira que a consecução dessas garantias do domínio particular — constitutivo de um

fim excelente na polis: garantir a potencialidade e o exercício concreto das liberdades

— é o princípio fundamental da instituição registrária e, bem por isso, ordenador

primeiro de suas outras causas.

Essas referidas funções instrumentais de garantia, tendo por objeto material a

propriedade privada, devem reconduzir-se, no plano de sua justificação, ao conceito de

licitude e de função social do domínio particular, de tal modo que a função política dos

registradores esteja em garantir, juridicamente, na normalidade da vida social, o

exercício pleno da propriedade privada, tanto, de um lado, nos marcos de uma dimensão

pessoal naturalmente lícita — pois não se ordenam os homens para a polis, tal que

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fossem apenas partes da cidade11

—, quanto, de outro lado, nos lindes do uso da

propriedade retamente ordenada ao prius do bem comum político12

.

No âmbito dessa dialética tensiva de relacionação entre as dimensões pessoal e

social do domínio privado, conhecidas são as dificuldades que problematizam, já faz

tempo, a formação de um paradigma acerca da função social da propriedade particular.

Num plano de fundo mais destacadamente negativo, em que sobressai o fundamento de

uma recusa capital de aventurável direção egótica e abusiva do domínio privado —

recusa que tem conduzido, de fato, ao reconhecimento, se não ético, ao menos

juspositivo de limitações do domínio particular e à admissibilidade de restrições legais à

propriedade privada, p.ex., no âmbito dos direitos de vizinhança; no da preservação do

entorno natural e histórico; no da negativa de interdição de atividades de terceiros, em

espaço aéreo ou no subsolo correspondentes a uma porção superficial apropriada, desde

que não interfiram no exercício dominial —, parece haver menor dissenso entre diversas

correntes de pensamento que se aplicam ao tema da função social do domínio particular.

Esse acordo, adivinha-se, deve tributar-se muito a um certo quadro histórico em que

avultou a idéia de função social da propriedade como reação a conhecidos excessos

liberais. Em outras palavras, numa esfera fundacional, que preferentemente se insinua,

como se observou, de modo negativo, o acordo primeiríssimo dá-se em volta do

reconhecimento de que a propriedade particular não está isenta de limites por sua

mesma essência —ou como alguém referiu, em seu ―núcleo ontológico‖—, ao revés da

tese que, alheia à dimensão social do domínio privado, se remete à idéia da

possibilidade absoluta e irresponsável do abuso dominial13

. Seguidamente, além dessas

limitações, congregam-se várias correntes em afirmar a admissibilidade de restrições

11 “Homo non ordinatur ad communitatem politicam secundum se totum et secundum

omnia sua” (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 21, art. 4, ad 3um).

Paradigmático: Jean Madiran, Le principe de totalité, ed. Nouvelles Editions Latines, Paris,

1963, passim.

12 Essencial: Charles De Koninck, De la primauté du bien commun contre les

personnalistes, ed. L‘Université Laval –Fides, Québec-Montréal, 1943, passim.

13 Cfr., brevitatis causa, Carlos Mario Londoño, Libertad y Propiedad, ed. Rialp,

Madrid, 1965, maxime p. 23 et sqq.

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políticas, determinadas positivamente e relativas a circunstâncias culturais, temporais e

espaciais.

Como ficou dito, as perspectivas da função social da propriedade privada, em

nossos dias, são muito devedoras da situação histórica que pode situar-se, ao menos por

uma comodidade de expressão, no século XIX, embora desde logo caiba reconhecer

que, no campo das idéias, seja caso de retroceder o mundo decimonônico às centúrias

anteriores, como fizeram ver, entre outros, Paul Hazard — sobretudo em La crise de la

conscience européenne14

—, Gonzague de Reynold15

e Calderón Bouchet16

. Sem

desprezar, pois, a retrocessão da origem ideológica do século XIX ocidental — a cujo

propósito, por exemplo, o século XVI atuou, em palavras de Emmet Hughes, como uma

grande caldeira, na qual, já então a fervilhar, as ambições econômicas tratavam de

libertar-se da Ética17

—, pode dizer-se, a despeito de que haja nisto uma reconhecida

simplificação, serem as idéias modernas e contemporâneas sobre a função social da

propriedade particular um reflexo, em larga medida, da questão social singular que,

instaurada nos últimos anos do século XVIII, tomou corpo ao longo da centúria

seguinte. É, sobretudo, porém, no exclusivo plano da realidade econômica e social dos

fins do século XVIII e de todo o século XIX que se inspira uma parte muito

considerável das concepções atuais acerca da função política do domínio privado. Elas

nem sempre, contudo, se estatuem — eis aqui um ponto importantemente destacável—

como avessas dos fatores espirituais do burguesismo decimonônico. Já Werner Sombart

havia registrado que a exigência da vida econômica, individual e social — para todos e

cada um dos homens —, não importa na caracterização de uma natureza econômica

supostamente invariável para todos, por exemplo, igual para um antigo artesão e para

um empresário americano moderno, senão que, assim concluía o grande sociólogo

alemão, o espírito animador da vida econômica pode variar —e de fato sempre variou—

14 Paul Hazard, La crise de la conscience européenne, ed. Fayard, Paris, 1961, passim ;

ID., La pensée européenne au XVIIIème siècle, ed. Boivin, Paris, 1946, passim.

15 Gonzague de Reynold, Le XVIIe siècle, ed. de L‘Arbre, Montreal, 1944, passim.

16 Rubén Calderón Bouchet, La Ruptura del Sistema Religioso en el Siglo XVI, ed.

Dictio, Buenos Aires, 1980, passim.

17 Emmet John Hughes, Ascensão e Decadência da Burguesia, tradução ao português

por Cypriano Amoroso Costa, ed. Agir, Rio de Janeiro, 1945, p. 50 et sqq.

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indefinidamente18

. Natureza econômica do homem não é o mesmo que tipo econômico

humano. Para Sombart, no íntimo do tipo do homem econômico do século XIX

encontra-se uma alma infantil, a inspirar e dominar a vida sob o ideal de quatro valores:

a) o da grandeza corpórea e sensível; b) o da rapidez do movimento; c) o da novidade; e

d) o do sentimento de poder19

. Sombart, todavia, parece que tendeu a equivaler os

fatores espirituais do burguesismo, por assim dizer, clássico a elementos de caráter

psicológico — desse modo, tratando de explicar o conceito de ―espírito da vida

econômica‖, disse ele que essa noção se tomava no sentido de ―fatores espirituais ou

psíquicos”20

. Neste passo, mais aguda se mostrou a análise do grande pensador russo

que foi Nicolas-Alexandrovitch Berdiaeff, para quem o burguesismo constitui“um

estado e uma orientação do espírito, um modo especial de sentir a vida”, em outros

termos: uma cosmovisão —também com seu influxo na vontade e nos sentimentos— e

não uma simples prática social ou econômica, nem apenas, este é aqui o ponto

fundamental, ―uma categoria psicológica e ética‖, senão que, isto sim, “uma categoria

espiritual, ontológica”21

. Dessa maneira, ainda que se possa falar de uma sociedade

burguesa no século XIX —um fenômeno relacional tomado metaforicamente como uma

substância—, Berdiaeff viu mais profundamente que, ao lado dessa acepção exterior,

imprópria e apenas social do burguesismo decimonônico, caberia falar de um

burguesismo mais profundo e espiritual, atado, com uma espécie de fé secular, à

visibilidade do mundo corpóreo —“o burguês é escravo do palpável…”22

— e voltado a

uma tentativa de racionalização absoluta da existência humana, com o corolário de uma

“harmonia social perfeita”23

, a que se lançava o burguês ao ponto de justificar, sem

quebra de sua cosmovisão de matiz persistentemente egótico, um submetimento

18 Werner Sombart, Le bourgeois –Contribution à l’histoire morale et intellectuelle de

l’homme économique moderne, tradução francesa de S. Jankélévitch, ed. Payot, Paris, 1926, p.

10 et sqq.

19 Id., op. cit., p. 209.

20 Id., op. cit., p. 11.

21 Nicolas Berdiaeff, De l’esprit bourgeois, tradução francesa de Elisabeth Bellençon,

ed. Delachaux et Niestlé, Neuchatel-Paris, 1949, p. 41.

22 Id., op. cit., p. 48.

23 Id., op. cit., p. 53.

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plenário ao poder exterior —o burguês, disse Berdiaeff, ―não pode existir sem

autoridade exterior e é para ele, em primeiro lugar, que a autoridade se criou”24

(eis aí

como se conjugam egotismo e submissão ao poder externo). Essa potestas social tem a

missão suprema, para o burguesismo clássico, de construir tudo geometricamente,

inclusos novos homens e uma nova Sociedade política. A cosmovisão do tipo burguês

decimonônico nutria-se, assim, aqui e ali, com ou sem adequada ciência de sua fonte, da

seiva filosófica que lhe vinha das fantasiosas concepções de Thomas Hobbes e de

Rousseau — marcantemente as relativas aos mitos de estado de natureza, pese embora

seus signos opósitos nestes autores, e de contrato social — e também fortalecia-se nas

origens do pensamento moderno, indo buscar ao cartesianismo, como fez ver Régine

Pernoud, a idéia de tábua rasa inspiradora da matriz política de ―uma sociedade ideal,

geométrica, reduzida a elementos simples, na qual nada é mais fácil do que partir

novamente do zero‖25

.

Por isso, se bem a questão social dos séculos XVIII-XIX — com suas notas de

proletarização e de pauperismo resultantes da prática das concepções liberais26

— possa

explicar as razões da particular emergência da preocupação com o uso social dos bens

particulares, o que nem sempre se advertiu —e, acaso, ainda não se vê com

freqüência— foi, primeiro, que a função societária do domínio privado não é só nem

principalmente uma resposta de cariz econômico dirigida ao estrito quadro histórico

daquela referida questão social. Em segundo lugar, que a idéia singela de um aparente

antiliberalismo exterior poderia resultar, como de fato ocorreu em alguns casos, numa

simples inversão do burguesismo clássico: a esse propósito, Léon Bloy, examinando o

tópico burguês ―pobreza não é vício‖, assinalou que se tratava aí de uma antífrase,

porque, ao revés, para o burguês, ―la pauvreté (disse Bloy) est l‘unique vice, le seul

peché‖27

. Mas, ao adversar o burguesismo decimonônico, o que, algumas vezes, se

24 Id., op. cit., p. 48.

25 Régine Pernoud, As origens da burguesia, tradução portuguesa, de F.S., ed.

Publicações Europa-América, Coleção Saber, Póvoa de Varzim, 2a ed., 1973, p. 116.

26 Cfr. José Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de

Carvalho, Dicionário de Política, ed. T. A. Queiroz, São Paulo, 1998, p. 444, sub voce ―questão

social‖.

27 Léon Bloy, Exégèse des lieux communs, ed. Gallimard, Paris, 1968, p. 43.

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insinuou nas concepções a ele nominalmente opostas foi a idéia de um burguês posto ao

avesso, em que a pobreza passou a configurar uma grande, senão mesmo a única virtude

social —dir-se-ia então “la richesse est l’unique vice, le seul peché”. É até saliente que

essa possibilidade de inversão não constitui, na lógica interna do burguesismo, de todo

estranhável ao ideário do antigo burguês, porque, com rigor, não se poderia excluir que

o tipo de burguês clássico era um nostálgico do bon sauvage. E esse modelo da

imagética roussauniana acomoda as recorrências comuns ao miserabilismo, incluídos os

atuais, até porque se conforta vistosamente com a sedução de um igualitarismo que

parece possível — o da miséria —, e, por óbvio, sustentável. Dessa maneira, uma parte

importante das correntes que se foram formando acerca da função social do domínio

alimentaram-se dos mesmos nutrientes filosóficos que robusteceram o tipo do burguês

decimonônico28

, limitando-se a enfrentar, na linguagem de Werner Sombart, o corpo do

burguesismo liberal, mas não seu espírito, a adversar-lhe aspectos exteriores, não,

porém, a alma do liberalismo: o mundo do burguesismo clássico não se constituiu pela

situação econômica dos homens, bem o disse Berdiaeff, senão que pela regência mais

profunda do dinheiro separado do espírito29

, situação espiritual que permite avistar

existirem, ao lado de ricos burgueses, burgueses pobres30

. Virou-se ao avesso o burguês

decimonônico, mas em sua pele interna muita vez sobreviveu o espírito do burguesismo.

Já não se trata, pois, de um quadro segmentar da história, situado no século XIX: o

burguesismo persiste em todo tempo.

Postos em prática os ideais que se aninhavam no espírito do burguês

decimonônico —a saber, como os apontou Sombart, grandeza corpórea e sensível,

rapidez de movimento, gosto pela novidade e sentimento de poder —levaram eles, na

esfera dos bens imóveis, conforme diagnosticou Hedemann, ao endividamento, à

28 Cfr., a propósito, Philippe Breton, Le culte d‘Internet, in Le Monde diplomatique –

Manière de voir, maio-junho de 2002, n. 63, p. 21, primeira coluna.

29 Berdiaeff, op. cit., p. 44.

30 ―O rico espiritualmente avaro de sua riqueza e cobiçando as outras, submetido pelo

‗mundo‘, é um burguês… Mas o pobre, que cobiça suas riquezas e deseja tomar seu lugar, é,

tanto quanto ele, burguês...‖ (Berdiaeff, op. cit., p. 51).

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pulverização e ao egoísmo da terra31

. A esses efeitos históricos do liberalismo político e

econômico, sinalizando o maltrato da natureza das coisas — de que é nota gráfica a

rotineira mobilização dos imóveis para garantia do crédito —, podem opor-se, é certo, e

em muita parte elas se adotaram, medidas pontuais (p. ex., o robustecimento do instituto

do bem de família; incentivos em favor do fortalecimento da estabilidade da moradia

familiar, sobretudo no campo; fomento de cultivos e edificações), mas não se podem

adversar esses efeitos liberais, em seu espírito, sem a recuperação do conceito realista

da Sociedade política e do papel que nela desempenham o primado do bem comum e as

liberdades concretas dos indivíduos e dos corpos intermédios. Por isso, em que pese a

uma concordância inaugural de variadas correntes em torno de apontar uma função

social para a propriedade particular, mais além desse passo a questão é toda outra

quando se trata de sua conceituação positiva: o consenso que se forma quanto a ela

talvez não vá mais longe que o da mera designação. Reconhece-se até mesmo que seu

objeto é freqüentemente vago32

, genérico, lábil, tanto mais se diversificando, com

diluição do consenso, quanto mais se aventem especificar-se essa função social.

Malgrado essas divergências pontuais, é possível, de toda sorte, extrair um núcleo duro

que explique, no tocante com a função política da propriedade particular, o encontro33

mínimo de correntes tão diversas, laicas e religiosas, sempre suposto que suas

afirmações estejam a satisfazer o dever fundamental da veracidade: assim é que, ao

admitir-se a existência de uma função social da propriedade privada, a) reconhece-se

com isso, à evidência, um direito de propriedade particular e a exclusividade do titular

dominial quanto a servir-se normalmente da coisa dominada. Todavia, ao afirmar-se a

função social dessa propriedade particular, b) está-se também a dizer que ela tem

limites34

, que ela é suscetível de restringir-se, equivalendo a dizer que ela se ordena a

31 Apud Juan Vallet de Goytisolo, Estudios Sobre Derecho de Cosas, ed. Montecorvo,

Madrid, 1973, p. 333.

32 Brevitatis studio, cfr. Louis Salleron, Qu‘est-ce que la propriété?, in Six études sur la

propriété collective, ed. Portulan, Paris, 1947, p. 32.

33 Cfr. José Antonio Alvarez Caperopichi, Curso de Derechos Reales, ed. Civitas,

Madrid, 1986, tomo 1, p. 40-41.

34 Cfr. Jacques Leclercq, Leçons de Droit Naturel, ed. Wesmael-Charlier e Société

d‘Etudes Morales, Sociales et Juridiques, Namur-Louvain, 1955, tomo IV, p. 138.

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um bem superior. o bem comum político. Desse modo, proclamar a função social da

propriedade privada é, de uma parte e por primeiro, reconhecer a existência de um

direito exclusivo do titular de domínio, exercitável e oponível em face dos indivíduos,

dos corpos intermédios entre eles e o Estado e até mesmo deste mesmo Estado — de

que se segue a inclusão do tema na esfera do dever ético público35

—, e, de outra parte,

afirmar a existência de deveres do proprietário.

Compendiada assim a discussão nos extremos desse binômio tensivo direitos-

deveres dominiais, sua apreciação pode reconduzir-se, no fim e ao cabo, à relacionação

entre o bem particular e o bem comum político ou bem da cidade. Importa aqui referir

que, entre os juristas romanos, o direito de propriedade privada situou-se no âmbito do

jus gentium — um direito comum a todos os homens (i.e., a todas as gentes36

) — e,

nessa trilha, que o Digesto previa o direito de o primeiro ocupante apropriar-se das res

nullius, reportando-se ao caráter natural37

desse direito. No concernente aos imóveis, os

juristas romanos afirmaram, na mesma direção, que as terras, naturalmente comuns

embora a todos os homens, haveriam de dividir-se entre eles, também naturalmente (jus

gentium), para evitar conflitos. Símile afirmação encontrar-se-á também, séculos mais

tarde, nas Etimologias de S. Isidoro de Sevilha: são de Direito natural simpliciter, disse

ele, a união do homem e da mulher, o reconhecimento dos filhos e sua educação, a

posse comum de todas as coisas — communis omnium possessio —, a liberdade para

todos e o direito a adquirir tudo quanto o céu, a terra e o mar encerram38

. Esse Direito

natural, afirmou S. Isidoro, é comum a todos os povos ―y existe en todas partes por el

simple instinto de la naturaleza — ubique instinctu natura –, y no por ninguna

promulgación legal‖. É no campo do Direito de gentes — assim chamado por S.ISIDORO

em vista de sua vigência em quase todos os povos — que incluiu ele os imóveis,

35 Johannes Messner, Ética Social, Política y Económica a la Luz del Derecho Natural,

tradução castelhana de José Luis Barrios Sevilla, José María Rodríguez Paniagua e Juan Enríque

Díez, ed. Rialp, Madrid, 1967, p. 1.037.

36 Cfr. o paradigmático livro de Santiago Ramírez, El Derecho de Gentes, ed. Studium,

Madrid, 1955, passim.

37 “Quod enim nullius est, id ratione naturali occupanti conceditur” (Digesto, Livro

41, título 1, n. 3).

38 S. Isidoro de Sevilha, Etimologias, Livro 5, n. 4.

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litteratim: ―O direito de gentes manifesta-se na ocupação de terras, construções de

edifícios, fortificações, guerras, prisioneiros, servidões, restituições, tratados de paz,

armistícios…‖39

. Já no século XIII, ao tratar da justiça, na IIa.-IIæ. de sua Suma

Teológica, S.TOMÁS DE AQUINO dedicou a questão 66 ao tema do furto e da rapina, e,

ali, nos artigos 1o e 2

o, ocupou-se de responder a duas indagações: a) se é natural ao

homem a possessão de bens exteriores —utrum naturalis sit homini possessio

exteriorum rerum— e b) se é lícito a alguém possuir uma coisa como própria —utrum

liceat alicui rem aliquam quasi propriam possidere. No respondeo do art. 1o da

apontada questão 66, S. Tomás distinguiu nas coisas externas a natureza e o uso, para

concluir que, no tocante com o último, ―o homem tem o domínio natural das coisas

exteriores‖ — habet homo naturale dominium exteriorum rerum, afirmação a que

retornou para solver a primeira objeção prévia que ele próprio formulara, como era da

metódica da Suma: “o homem (respondeu o filósofo) tem o domínio natural dessas

coisas, quanto ao poder de usá-las”. É no art. 2o da versada questão 66 da IIa.-IIæ. da

Suma que S. Tomás expôs decisivamente a matéria de que aqui nos ocupamos. Por

primeiro, no respondeo desse artigo, disse ele que o poder de gestão e de disposição das

coisas exteriores é lícito ao homem e, além dos três motivos que elencou ali em favor

dessa licitude, razões adicionais podem ainda alinhar-se a seu pensamento, como, inter

alia,

a) o fomento da inclinação criadora dos homens no âmbito econômico,

b) a satisfação de uma expectativa de segurança familiar,

c) o favorecimento da estruturação natural da Sociedade política,

d) a repartição do poder na Sociedade e

e) a garantia das liberdades concretas 40

.

A noção mesma de que o domínio privado constitui, como acabamos de ainda

uma vez indicar, uma garantia das liberdades — põe à mostra duas condições para sua

reta configuração, ambas com matiz pessoal e social: uma no plano extensivo, a outra,

de caráter qualitativo. A primeira, porque, tanto melhor será essa garantia, quanto mais

se difunda a propriedade particular: sua fluidez — vale dizer, sua possibilidade e

acessibilidade — por meio do trabalho normal é indispensável a seu efetivo papel de

39 Id., Livro 5, n. 6.

40 Juan Vallet de Goytisolo, op. cit., p. 122-123.

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garantia. Como disse Louis Salleron, ―a propriedade privada é boa e é excelente‖, mas é

preciso “que ela seja fluida”41

. Nesse âmbito extensivo, o favorecimento do tráfico

imobiliário — rompendo-se entraves financeiros, jurídicos, fiscais, psicológicos e

sociológicos42

que dificultam ou até interditam a aquisição dominial —, além de

subsidiar a satisfação do objetivo de garantir as liberdades pessoais, impede que a

concentração de bens em mãos de alguns poucos particulares leve a um excesso de

poder no nível da soberania social suscetível de influir na soberania política. Disse

muito bem Rafael Gambra que os males da propriedade se curam com mais

propriedade43

.

A outra e segunda das referidas condições de retidão do domínio privado como

garante das liberdades está posta na estabilidade suficiente da situação dominial —

porque não se fomentam verdadeiramente aquisições de bens dos quais não se esperem

desfrute razoavelmente seguro e conservação temporal adequada. Há, pois, razões em

prol da segurança jurídica estática — asseguração de estabilidade política do domínio

— e da segurança dinâmica, fluidez social da propriedade, e é fácil advertir que essas

seguranças se hierarquizam: o primado da segurança estática advém de sua condição

indispensável a uma justificável fluidez: os possíveis adquirentes de um bem estão a

pôr-se sempre esta questão, assim observou Salleron, qual a de saber se vale a pena

adquirir o bem, e a resposta positiva supõe a segurança da posse, do gozo e da duração

no tempo44

, vale por dizer, a segurança estática. Não se justifica o trânsito dominial se

se antevê insuficiente a garantia de estabilidade do domínio.

A esta altura de nossas indagações, seria tentador considerar que o registro de

imóveis — na medida em que, como é tradicional afirmar, tem por fim a segurança

jurídica nessa dúplice apontada vertente, estática e dinâmica — nisso desvela a

derradeira importância de sua função política, qual a de conservar, primeiro, a

41 ―Or la propriété privée est bonne, et excellente. Ce qu‘il faut, c‘est qu‘elle soit

fluide‖ (Louis Salleron, Diffuser la proprieté, ed. Nouvelles Editions Latines, Paris, 1964, p.

17).

42 Id., op. cit., p. 16.

43 Rafael Gambra, La Propiedad: Sus Bases Antropológicas, in VV.AA., Propiedad,

Vida Humana y Libertad, ed. Speiro, Madrid, 1981, p. 10.

44 Salleron, op. cit., p. 15-16.

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estabilidade jurídica das situações reais imobiliárias e, seguidamente, a de garantir

juridicamente a fluidez dos direitos correspondentes. Como é fartamente sabido, de

maneira diversa do que se passa com o domínio das coisas móveis — cujas situações

estática e de tráfico, de comum, se satisfazem com a tradição e a notoriedade da posse

—, quando se trata de bens imóveis, a complexa situação da cidade, sobretudo a

moderna e contemporânea, exige um sistema juridicamente ordenado de publicação

jurídica das situações quodammodo jurídicas que lhes correspondam. Estancar neste

passo a discussão, se bem já se tenham apontado fundamentos tradicionais da função

social do registro imobiliário, frustraria, contudo, a consideração de um ponto nuclear

da primeira tarefa juspositiva referente ao domínio privado. Uma vez mais cabe recorrer

às lições de S. Tomás de Aquino ao assinalar, a propósito da atribuição pessoal de bens,

que ―la distinción de posesiones no es de derecho natural, sino más bien derivada de

convención humana, lo que pertenece al derecho positivo…‖45

. Esse texto é

fundamental — e sua importância nunca é demasiado sublinhar. Numa passagem

anterior da Suma, S. Tomás ensinara não haver razões, numa perspectiva absoluta, para

que um imóvel pertença a uma pessoa de preferência a outra, mas, remetendo a

Aristóteles46

, observou que, já numa visualização relativa, haverá motivos — p. ex., a

conveniência do cultivo ou do uso pacífico da res — para que o imóvel seja apropriado

por um ou por outro47

. Esse é o primeiro cometido juspositivo que se refere à

propriedade privada: definir o que é de um e o que é de outro, demarcar as possessões,

evitar, pela só forma e de maneira preventiva, boa parte dos conflitos sobre o domínio

predial.

Uma relacionação de submetimento das coisas aos homens — ou, noutra

perspectiva, uma relação de domínio humano sobre coisas — não pode consistir, no

ambiente da cidade, em um relacionamento apolítico, tal não estivesse o homem, por

natureza, destinado a viver em sociedade, envolvido pelas concretas exigências de uma

vida relacional inter-humana e com as coisas. Se a natureza, que impõe aos homens um

vínculo de dominação das coisas, não responde, assim se viu, a quem deva atribuir-se a

titularidade de cada um desses concretos relacionamentos entre os homens e as coisas,

45 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa.-IIæ., q. 66, art. 2o, ad 1um.

46 Cfr. Aristóteles, Política, Bkk. 1.263 a.

47 S. Tomás de Aquino, op. cit., IIa.-IIæ., q. 57, art. 3 o, respondeo.

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essa relação, atualizável por meio de atividades ordenadoras, demanda o concurso do

Direito positivo e da organização política. Se não basta a posse de alguns bens —

nomeadamente os imóveis — para, a seu respeito, acautelar a estabilidade e a fluidez

dominial, cumpre à cidade organizar um sistema que garanta a primeiríssima das

funções do domínio particular enquanto ordenado à polis —vale por dizer, a

primeiríssima das funções sociais do domínio privado: defini-lo em cada caso, demarcá-

lo, delimitar o que é de um do que é dos outros. E essa principal função política do

domínio privado imobiliário está comumente entregue ao registrador predial: é ele o

protagonista de sua execução.

Quanta vez, aventurando-nos a meditar acerca dos princípios registrais —

detendo a atenção, não raro, apenas em seus recortes técnicos —, abdicamos assim de

considerar, para além da curta visão poiética, que a determinação e a especialidade

objetivas identificam e demarcam a res certa; que a fé pública registrária, a legitimação

tabular e a especialidade subjetiva definem o que se atribui a cada um — e a isso, na

ordem normal dos acontecimentos, é o que se deve designar res justa concreta; que o

princípio da legalidade e o do trato sucessivo garantem de comum contra as fraudes, as

falsificações e os esbulhos possessórios. E é por isso, e é porque nos temos acaso

distraído dessa função do registrador que, muitas vezes, corremos o risco de já não

reparar em sua dignidade juris-prudencial e já não estimar como devido seu

indispensável papel societário. E dizer que ele define a res certa, assegura aquilo que, ut

in pluribus, certifica a res justa imobiliária e, com isso, é uma garantia das nossas

liberdades.

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4.

SOBRE A QUALIFICAÇÃO NO REGISTRO DE IMÓVEIS*

RICARDO HENRY MARQUES DIP

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.

SUMÁRIO: Introdução - Do conceito de qualificação - Do conceito específico de

qualificação registral - A qualificação, enquanto decisão prudencial - A qualificação e os

princípios registrais - Outras características da qualificação registrária - Natureza jurídica da

qualificação registral - Supostos e limites gnoseológicos da qualificação registral - Consideração

analítica do juízo qualificador - Qualificação dos títulos judiciais - Agentes, prazos e recursos da

qualificação registral – Breve anotação crítica - Nota final - Obras a que o texto remete.

“Já por diversas vezes imaginei escrever um romance sobre a aventura dum

yachtsman inglês que em virtude de cometer um ligeiro erro de cálculo na sua rota, veio a

descobrir a Inglaterra, sob a impressão de que se tratava duma nova ilha nos mares do Sul.

(...)

“O homem do iate pensou que era o primeiro a encontrar a Inglaterra, e eu pensei

que era o primeiro a encontrar a Europa. Tentei, por mim próprio, encontrar uma heresia e,

quando já lhe tinha dados os últimos retoques, descobri que se tratava de ortodoxia”

(Chesterton, Ortodoxia).

“Zolli comparava a sua conversão à experiência de alguém

que passeia na fronteira do seu país e de repente se encontra

* Contribuição aos estudos do XVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil

(Encontro Elvino Silva Filho), realizado em Maceió-AL, no período de 21 a 25.10.1991.

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em uma terra nova, embora a paisagem não mude”

(Tommaso Ricci, a propósito da conversão de Israel Zolli – 30 Dias, março de 1991).

“... como siempre en los momentos que suelen preceder a las épocas de creatividad,

la ciencia se vuelve sobre sí misma. Indaga en el sentido de su propia tradición...”

(Zuleta Puceiro, Teoría del Derecho).

Introdução

Ao elaborar este pequeno trabalho como contribuição aos estudos do XVIII

Congresso dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil esbarrei no volume de

informações relativas à matéria a que me dediquei – a qualificação registral. Bastaria

dizer que só um dos livros de Chico y Ortiz a respeito do tema (Calificación Jurídica,

Conceptos Básicos y Formularios Registrales) possui quase setecentas páginas; demais,

a bibliografia a que tive acesso, em boa medida graças à contribuição de Sylvio Paulo

Duarte Marques, reúne dezenas de livros e estudos autônomos; por fim, os julgados que

pude examinar, em parte por mim pesquisados e classificados ao longo de seis anos,

noutra parte admiravelmente ordenados por Jersé Rodrigues da Silva, superam o

milheiro! Que fazer com tanta documentação, com essa massa informativa tamanha, ao

lado de uns indeclináveis deveres de meu estado familiar e profissional, a cortar-me o

tempo propício à consideração detida de tudo isso?

Felizmente, não é caso nunca de um cultivo feiticista da informação – o cult of

information a que se referia Roszak: antes, é preciso considerar, explica-o Pérez Luño

(11), a “radical historicidade do fenômeno jurídico”, impondo aos estudiosos do direito

a tarefa irrenunciável de “contribuir a hacer fluida la comunicación entre la experiência

jurídica y el contexto temporal en el que ésta se produce y desenvuelve”. Este meu sábio

amigo e mestre que foi Alexandre Correia costumava recordar, com uma indisfarçável

ironia contra os idealismos, a estória de um conjecturável tratado alemão sobre os

elefantes: seus doze volumes de duas mil folhas cada, versando a geografia dos lugares

em que o elefante pode viver e a geografia dos locais em que ele não pode viver, os

alimentos que o elefante pode comer e todos os alimentos que ele não pode comer,

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concluíam-se com uma pequena anotação: “não foi possível comprovar a existência dos

elefantes”. Lembra-me aqui, ainda, que Lorca Navarrete alude a um pensador

português, Francisco Sanchez, que, em fins do século XVI, representava o mais genuíno

ceticismo filosófico: quod magis cogito, magis dubito. (De minha parte, não devo

sucumbir à tentação de que, quanto mais me documente, menos escreva.) Reconhecer,

ao contrário, que os saberes jurídicos, tributários de muitos métodos, se encontram

singularizados na história, num “perene delineamento de problemas e soluções”, como

disse López de Oñate (63), é admitir a realidade, a concretude, a singularização histórica

do direito, sem com isto fechar a mente, numa atitude historicista, à verdade dos

princípios da sindérese, universais e com conteúdo objetivo, e à de conclusões da

ciência moral. Ao reverso, abrir-se aos problemas reiteradamente propostos e a suas

soluções históricas, para neles também apreender o permanente e fundamental, é abrir a

ciência à própria tradição (Zuleta Puceiro), esse “passado que sobrevive e tem virtude

para fazer-se futuro” (Vítor Pradera). Assim, é de algum modo útil, aqui e agora,

considerar a experiência jurídica nacional da qualificação registrária, exatamente para

buscar, em seus problemas e soluções históricos, sua conformação tradicional, sua

“permanência no desenvolvimento” (Antônio Sardinha).

Inclinado a minutar estas linhas, repito, vi-me então às voltas com a massa de

informações doutrinárias e judiciais relativa à qualificação registral, como que a me

cobrar um tempo de que eu não dispunha e a me acusar de descaso com sua autoridade e

seu passado. Aprendi em Santo Tomás que as pessoas necessitadas de direção e de

conselho sabem aconselhar-se a si mesmas, desde que em estado de graça, ao menos

enquanto pedem conselho a outras pessoas, e são capazes de distinguir o bom do mau

conselho (“illi qui indigent regi consilio alieno saltem in hoc sibi ipsis consulere sciunt,

si gratiam habent, ut aliorum requirante consilia, et discemant consilia bona a malis –

Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 14, ad secundum). Nada impede que este

conselho seja buscado por meios vários, entre os quais as leituras, e não encontro

melhor indicação da maneira como devo agora agir diante do vulto de documentos que

me entulham um pequeno escritório, do que com estas sábias palavras de Dínio Garcia

(87): “o volume de informações contribui para a organização dos sistemas até um certo

ponto. Ultrapassados determinados níveis a informação desorganiza, saturando os

canais e aturdindo os destinatários”. Isso se aplica ao meu sistema intelectivo, que tem

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lá seus pobres modos e parece não poder controlar e ordenar “saberes aluvionais”, como

disse Zuleta.

Por isso, dando de ombros, por ora, a parte do rico material informativo que

compulsei – mas que não cito (com Vizcaíno Casas, caberia acrescentar: con perdón) –,

aguardo que o talento e o engenho de outros complementem e suplementem as reflexões

que aqui faço a meu modo.

* * *

A filosofia jurídica deve ser uma reflexão acerca dos fundamentos do direito,

realidade e conceito especificados no gênero ético, e não uma sistematização ou do

direito posto ou de intentos dialéticos de modificação social (o que não vai além de uma

instrumentação poiética). Observa Zuleta que a nova filosofia “progride” sobre a base

de recusas da tradição; por isso, indagação que se esclerosa com a rigidez de uma

constante obsessão do novo, “reivindica para si um tipo de autoridade subtraída por

princípio à crítica”. Encontramo-nos com a “fixação obsessora do tempo que passa”, a

cronolatria epistemológica a que se referiu Maritain no paysan de la Garone.

O resultado é o relativismo, o ceticismo, a ética de situação e o direito de

situação, em suas manifestações irracionalistas que se apóiam, freqüentemente, em

politicismos totalizantes – como é o caso da corrente do direito alternativo, tão caro às

linhas liberacionistas contemporâneas que, sob rótulo teológico, estão fortemente

influídas de ideologia marxista.

O direito atual e sua filosofia são produtos de uma profundíssima crise: a

laicização do direito – que se poderia enraizar em Grotius e Hobbes – responde à mais

ampla talvez secularização de todos os tempos, em que se elabora e se procura impor,

como produto cultural massivo, uma cosmovisão “formalmente desinteressada pelos

problemas do sentido último da vida” (Zuleta). Respira-se a atmosfera despreocupada

de indagações escatológicas, mas sempre como quem vive dentro de um balão de

oxigênio, que a qualquer momento pode ser desligado: o “modelo” do homem coetâneo,

do homem “do seu tempo” é o homem uniforme, o homem mediocre a que se refere

Ingenieros, o homem médio de Ortega y Gasset, o que não ousa ter verdadeira

personalidade, o que busca a metanóia suprema do igualitarismo: pensar, agir e viver

como todos seus vizinhos pensam, agem e vivem, segundo o modelo (que lhe ensinam

ser o) do Homem ahistórico, abstrato, impecável, funcionário admirável de um

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admirável mundo novo. Seu direito é o produto arbitrário ou da vontade do legislador

(normativismo) ou da vontade do juiz (irracionalismo judiciário): ali, a lei que lhe

imponham, não importa com qual conteúdo; aqui, o resultado de uma consciência

fundante de quem julga com descaso do direito positivo, das conclusões da ética e dos

princípios sinderéticos; sempre, em todo caso, com o desprezo, ontológico ou ao menos

gnoseológico, da ordem universal imposta por Deus Criador; muitas vezes ainda,

confessando-se uma certa fé neopelagiana e virtualmente panteísta, credo que, no limite,

para nada considera a dignidade do homem concreto, como o mostra, p. ex., em nossos

dias, o número aterrador dos abortos provocados. O direito coevo, pois, corresponde a

essa cosmovisão nihilista: agnóstico do justo, seu parâmetro – critério exterior – é, no

extremo, o de uma ideologia totalizante que suplanta, ao cabo, o subjetivismo a que

radicalmente se reduziria. Mas o processo de saber amparado nessa paradigma

ideológico é um processo sociologicamente vital, de sorte que o parâmetro totalizante é

ontologicamente fluido: não há princípios entitativos a considerar (se houvesse, romper-

se-ia o agnosticismo), há somente resultados dialéticos artificialmente objetivantes

(objetivação subjetivista, exógena, como critério de leitura casuística), suscetíveis de

captação intuitiva. Daí o prestígio da ética de situação – muitas vezes empregada para a

conciliação de correntes opostas, conjugadas num minimalismo ético, à base de uma

intuição que, hic et nunc, redunde materialmente na admissão de uma verdade moral

objetiva – e do direito de situação, fundado em decisões judiciárias, às quais se

empresta um eminente caráter criador, nos limites dos casos decididos. Essa limitação

ao caso configura, ademais, a única possibilidade “científica” do modernismo: a

estendida tendência nominalista da ciência moderna não poderia mesmo deixar de

atingir a ciência e a metodologia jurídicas, porque uma concepção filosófica

manifestamente antiuniversalista não é idônea para superar os limites dos casos, que

são, no fim, suas únicas realidades mensuráveis (realidades deficientes, que não se

ligam de nenhum modo à realidade do universal), seus exclusivos fenômenos de

captação – apreendidos como única objetividade epistêmica possível. Ora, a

irrepetibilidade concreta dos casos propicia a convicção, de todo equivocada, de que as

soluções jurídicas são pautadas pela concretude da situação: não somente a que, num

certo plano, se desvela no nível fenomênico, com menoscabo das normas e do direito,

“mas também a que, em definitivo, formula o suposto 'direito': a consciência do juiz,

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consciência que ultrapassa seu caráter de imperativo fundamental da ação, para

constituir-se em imperativo fundante da ação. De modo que não há norma exterior,

como não há objeto outro de estimação que o próprio caso; assim como se poderia falar

da moral de situação, surge um direito de situação, agravado por sua identidade com

uma consciência fundante antiintelectual (pois se não há objeto universal...), ditada por

intuições perceptivas ou emotivas” (cfr. nosso Pequenas notas e Registros para a

regulamentação dos Registros e das Notas). Ib.: “Esse modernismo jurídico abdica, por

força de sua lógica interna, do conhecimento das causas e dos princípios (e dos fins,

portanto), remanescendo no âmbito de uma procura de leis supostamente objetivantes,

que se encontram nos fenômenos símiles. Daí resulta o prestígio da casuística,

sobrelevada a ponto de empalidecer a virtude da prudência, e a confiança mais ou

menos implícita em que o somatório das decisões casuais evoluirá no sentido do

progresso”.

Contra essa avalancha de equívocos – e, em todo caso, sem esperança de uma

solução segmentar, que não passe antes por questões superiores – havemos de opor uma

firme resistência jusfilosófica, que comece por restaurar o papel dos princípios

sinderéticos, da ética e – custa acreditar que isso seja uma exortação de um

jusnaturalista! – o papel do direito positivo, enquanto “a lei é essencialmente um

produto ou criação da sindérese e da prudência governativa” (Santiago Ramírez). É

preciso recuperar a sadia subordinação à realidade das coisas.

É dentro dessa linha de idéias que procuraremos situar a qualificação

registrária, juízo e processo prudenciais, que se arrimam decisivamente a essa

hierarquização sindérese – ética – direito positivo, com que se compreendem a medida

normativa e os fatos, que depois se interpretam, concretizando-se ao cabo as exigências

da segurança jurídica, dentro do reto critério de submissão à realidade. Antigamente,

dizia Chesterton, diante da esquisita euforia que alguns pareciam sentir quando se

esfolava um gato, os pensadores costumavam ou negar a existência de Deus – eram os

ateus –, ou negar a união presente entre Deus e os homens – assim os cristãos; agora, os

nossos modernos pensadores, entre os quais socioteólogos e justeólogos – ou como quer

que se chamem – descobriram outra opção para reduzir as diferenças entre os ateus e os

crentes: negam a existência do gato.

* * *

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Por meio do Decreto 1.318, de 30.01.1854, o Imperador Dom Pedro II mandou

que no Brasil se executasse a Lei 601, de 18.09.1850, segundo o Regulamento que por

esse Decreto se editava, assinado pelo Ministro Luiz Pedreira do Couto Ferraz,

Secretário de Estado dos Negócios do Império.

A Repartição Geral das Terras Públicas (criada pela Lei 601), entre outras

atribuições indicadas no Regulamento de 1854, deveria fiscalizar a distribuição das

terras devolutas e promover o registro das possuídas até a data de sua publicação (§§ 5.º

e 8.º, art. 3.º e art. 20 do Regulamento). Para a fiscalização, os Juízes Municipais

exerciam a função de conservadores (art. 87), processando os que das terras devolutas

se apossassem, lhes derrubassem os matos ou neles lançassem fogo (arts. 81 e 88), e

quanto ao registro das terras possuídas, disso se incumbiram os vigários de cada uma

das freguesias do Império (art. 97).

Muito embora esse registro se efetuasse por mero consentimento formal do

interessado (arts. 91 a 95 do Regulamento), os títulos autônomos não conferiam direito

algum aos aventados possuidores (art. 94), o que não implicava descaso com o modo

por que se havia de levar o registro: o vigário, que podia, para melhor proceder à

inscrição das posses, nomear escreventes, sob sua responsabilidade (art. 97), devia

instruir os fregueses acerca da obrigação do registro (art. 98), noticiando as instruções

durante as missas (art. 99); cabia-lhe, ademais, examinar os dois exigíveis exemplares

da declaração de posse (arts. 93 e 101), “e sendo conferidos por ele, achando-se iguais e

em regra” (art. 101), lançava em ambos uma nota, retendo uma das vias em seu poder

para posterior inscrição. Se, contudo, esses exemplares não estivessem afeiçoados às

exigências regulamentares (V. art. 100), os vigários haviam de instruir os apresentantes

do modo por que deveriam ser elaboradas as declarações (art. 102). Se os interessados,

ainda assim, insistissem no registro, não se poderia, contudo, recusá-lo.

Embora reduzidos à tarefa de um confronto de documentos copiados (art. 100)

– caso em que o óbice à recepção impedia o registro posterior – ou à de uma recusa

apenas acautelatória (art. 102), os vigários das freguesias exerciam, na forma

regulamentar, a função de exame e aprovação dos títulos que se submetiam a registro.

Não eram incumbidos de uma tarefa amanuense, de simples copista, mas de uma função

qualificadora, de apreciação e decisão acerca dos registros a que deveriam proceder,

certo que observar as restrições do âmbito dessa qualificação é já admitir sua existência.

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O Regulamento Hipotecário de 1865, que instituiu entre nós o procedimento da

dúvida registrária, igualmente previa a tarefa qualificadora do Oficial do Registro, que,

“duvidando da legalidade do título” (art. 69), quer por lhe parecer nulo, quer por lhe

parecer falso (art. 74), poderia recusar-lhe a inscrição (no mesmo sentido, confiram-se

os arts. 66 e 71 do Regulamento Hipotecário de 1890). O Decreto 18.542, de

24.12.1928, também submeteu o registro dos títulos à aferição de sua legalidade e

validade pelo Oficial (art. 207), e o Regulamento de 1939 tornou a cogitar da

qualificação registral (art. 215), insistindo na dúvida quanto à validade do título. Por

fim, a vigente Lei 6.015, de 31.12.1973, prescreve: “havendo exigência a ser satisfeita,

o oficial indicá-la-á por escrito” (art. 198), com que, adotando um critério difuso de

requisitos para a inscrição predial, subordina a matéria à qualificação, primeiro, do

registrador, depois do juízo competente para a decisão da dúvida registrária.

Consoante se verifica do exposto, é da tradição do direito brasileiro conferir ao

registrador a tarefa de apreciar e decidir, concretamente, acerca de uma inscrição que

lhe é demandada. Isso afasta o registrador de uma atuação meramente executiva e

subalterna, para engastá-lo numa dimensão jurídica e independente, enquanto no plano

decisório. Esse é o dúplice aspecto de fundo da função de qualificação registral:

a) um, que põe à mostra a natureza juris prudencial – não jurisdicional – da

atuação do registrador, que é um operador jurídico, aptificado a decidir, a emitir um

juízo sobre a inscrição, hic et nunc, de determinado título;

b) outro, que revela a independência decisória do oficial registrador, no limite

primário da apreciação e decisão acerca do registro de um título singularizado.

Diferentes causas e condições têm conduzido, entre nós, a que um e outro

desses aspectos se vejam afrontados em nossos dias:

– de uma parte, (a) o minimalismo das responsabilidades pessoais do

registrador, com a abdicação conseqüente da independência da função, o que vem,

freqüentemente,

– de par com (b) uma ciência anêmica do papel institucional reservado aos

registros e aos registradores;

– de outra, (c) o crescente administrativismo que, sob o color de resguardar o

caráter público dos serviços registrários, tende a diminuir, quando não a asfixiar, a

independência dos Oficiais dos Registros (aqui, enquanto no plano de suas decisões

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singularizadas, porque não vem ao caso examinar o tema da gestão privada dos

serviços, matéria entre nós definida na Constituição de 1988);

– demais, (d) o nominalismo prático que, de modo direto, tem substituído,

freqüentemente, o saber técnico influído por saberes superiores, e, de modo indireto,

tem frustrado a elaboração de um plano institucional estável para os registros. Vem de

molde asseverar que, em mais de uma vez, se tem insistido, a partir da adesão aos

princípios, na formulação de um programa para as instituições dos registros e das notas,

que possua objetividade seguramente apoiada na observância do binômio tensivo

serviço público – gestão privada, com coerência intra-sistemática e o amparo de um

consenso doutrinário que só pode provir de planos realistas aptos a evadir ou superar o

confronto de seus fins e meios com a ordem jurídica vigente e com a experiência

registrária. Esse projeto, sendo tais suas características e exigindo apoio amplificado,

deve preferencialmente provir da criação ou do apoio consistente de centros decisórios

autorizados. Não se podem identificar, decerto, a ciência jurídico-registral e a ação

política de algum modo representada num programa institucional, nem se está a recusar,

com a crítica ao nominalismo prático, que a ciência se forme da racionalização das

técnicas, quando a observação empírica dos conhecimentos técnicos adquire os

requisitos da certeza científica (Tejada, I, 25); tampouco se está a negar que a ciência, a

jurídica também, seja sobretudo o resultado de uma tradição de problemas: a abertura da

ciência a sua própria tradição (Zuleta Puceiro, I, 6; II, 17), reconhecendo-se a

necessidade da indução para a ciência do Direito (Vallet, I, 19), sem com isso cerceá-la

com os espartilhos da jurisprudência problemática, continuadora do formalismo

kantiano (Menezes Cordeiro, 52). Esse reconhecimento da importância do método

indutivo é muito diverso do direito de situação que se estabelece não como resultado de

uma tradição de problemas mas antes como fruto de uma ausência de tradição; sua

possível receptividade do legado cultural, em suma, esbarra na negação dos princípios,

nem sempre consciente, ou no desinteresse deles, numa perspectiva substancial:

encerra-se a objetividade da técnica e da ciência na exclusiva atuação, hic et nunc, de

um poder decisório ou de um saber, que mal escondem o voluntarismo ou ao menos a

primazia da subjetividade. Voltada à sucessão de casos isolados, essa corrente (que se

poderia dizer) de existencialismo jurídico termina por fechar-se à possibilidade

efetivamente científica (isto é, de conhecimento certo, universal e pelas causas),

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reduzindo-se a uma sistematização interna (dentro do que se conhece para o próprio

caso ou, quando muito, no limite, para uma dada sucessão de casos símiles, o que está

longe de constituir universalidade). Ficou sobredito que um programa institucional para

os registros há de assentar necessariamente não apenas na coerência da sistemática

interna (o que supõe alguma objetividade), mas, se se almeja eficaz, num consenso

doutrinário, que se forja menos pela uniformidade de vistas nas soluções casuais do que

pela vinculação radical a um conjunto de princípios solidamente estabelecidos e à

realidade das coisas. Não se trata, insiste-se, da assinação de princípios normativos por

meio de uma tarefa redutora da comunidade científica jusregistral (ora, no Brasil, em

gestação) a um ou mais centros de poder, mas sim da adoção de um balizamento

objetivo que autorize, a partir de princípios dotados de universalidade, a confiança num

plano institucional (vale dizer, de ação política) à altura das necessidades presentes.

Nesse terreno jurídico, em que técnica e ciência do direito, prudência decisória e

atuação política mais ampla, andam muito aproximadas, apenas por acidente seria

possível que do mero imperium de centros decisórios, sem o apoio de soluções técnicas

aptificadas na base da subalternação aos princípios ditados pelos saberes superiores,

emanasse a convergência necessária a um programa institucional de ação política eficaz.

O que emana do voluntarismo é a dissociação da autoridade e do poder, não

preferencialmente sob o ângulo da legitimidade política, mas sob a perspectiva de

alguma desarmonia, desproporção ou inadequação entre a prudência de comando

(enquanto poder da inteligência) e o império das soluções (enquanto poder da vontade).

Assim, sobre seu relevo científico, o tema da qualificação registral adquire

vistosa importância em nossos dias, quando se cogita da regulamentação dos registros

públicos, ante a mais recente Constituição do Brasil. Engastando, para logo, a

ubiquação institucional dos registros e dos registradores, a disciplina da qualificação

registrária responde ao reconhecimento da independência decisória dos que, em resumo,

são os guardiões da propriedade privada e, pois, das liberdades históricas e concretas do

povo. Bem se vê a relevância da matéria.

Do conceito de qualificação

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Qualificação é o ato de qualificar (Lalande, 843); qualificar provém do latim

medieval qualificare, qualificação, de qualificatio (Capitant, 92; Antônio Geraldo da

Cunha, 650; De Plácido e Silva, 1.274), com o sentido de classificação, avaliação,

aptificação ou consideração de que [algo] é apto; ou qualis facere, apreciar as

qualidades, fazer o que é bom, o que é honesto (Mena y San Millán, 7). Estar

qualificado por ou ser qualificado para alguma coisa é “possuir a capacidade ou

competência, isto é, a qualidade disposicional para efetuar uma dada tarefa ou alcançar

um dado escopo” (Abbagnano, 785), é “ter qualidade, possuir os títulos ou as

características que dão o direito, civil ou moral, de agir de uma certa maneira, que

tornam 'hábil' (em sentido jurídico) a exercitar uma faculdade” (Lalande, 844).

Qualificar-se é, pois, ter uma dada qualidade em ordem a determinado fim.

Qualificar é reconhecer num sujeito determinado (que alguns chamam de objeto

material) os predicados (ou qualidade) para atingir certos fins. Exs.: um avião se

qualifica como meio de transporte modernamente hábil, isto é, possui qualidade para

realizar os transportes de nossos tempos; reconhecer no avião essa qualidade, é

qualificá-lo para o fim proposto.

A qualidade é um acidente dos entes, categoria especial que é a “diferença da

substância” (Aristóteles, 1.020 a, 34), “aquilo em virtude do que algo se diz tal”

(Aristóteles, 8), que “aperfeiçoa ou determina a substância na sua existência ou na

operação” (Sinibaldi, 180), “que modifica ou determina a substância em si mesma”

(Van Acker, I, 261). Ex.: “o homem é um animal de uma certa qualidade, porque ele é

bípede, o cavalo tem por qualidade ser quadrúpede, o círculo é uma figura que tem por

qualidade ser sem ângulo” (Aristóteles, 1.020 a, 34, 35).

Diante da divisão essencial da qualidade em quatro pares de espécies (hábito e

disposição; figura e forma; qualidade passível e paixão; potência e impotência), releva

aqui anotar que “potência é a qualidade que dá ao sujeito a aptidão para alguma coisa”

(Sinibaldi, 181): o que não é apto para um fim, é impotente para ele, ou desqualificado à

sua obtenção. Demais disso, observa-se que a qualidade não é um acidente apenas físico

dos entes, mas igualmente de “espécie espiritual” (Hessen, 805), em que se salientam as

qualidades de valor (p. ex., éticos ou jurídicos).

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Do conceito específico de qualificação registral

Diz-se qualificação registral (imobiliária) o juízo prudencial, positivo ou

negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no

império de seu registro ou de sua irregistração.

Para logo, trata-se de um juízo, vale dizer, uma operação formalmente

intelectiva que une ou separa os conceitos, tornados em relação às coisas mesmas que

representam de modo reflexivo e abstrativo, mas de um juízo prudencial, ou seja: a)

juízo que é propriamente da razão prática, não da especulativa; b) que se ordena a

operações humanas singulares contingentes; c) e que, não dispensando atenta

consideração dos princípios da sindérese e das conclusões da ciência moral, acaba, para

além do conselho e do juízo dos meios achados, por imperar uma determina atuação.

“Juicio de valor” (Lacruz, I, 395), “juicio de valor normativo” (Sing, 580), “juicio

lógico de análisis fáctico y subsunción jurídica, que desemboca en su resolución,

término del procedimiento: la práctica, denegación o suspensión del asiento solicitado”

(Lacruz, I, 394) : a composição e a divisão de conceitos aí sempre se compreendem em

ordem ao império ou não de um registro determinado. Em resumo, não se cuida de um

juízo especulativo acerca da registrabilidade de um título, mas de uma decisão

prudencial sobre a efetiva operação de um registro determinado.

Qualificar, assim, é algo mais do que simplesmente examinar ou verificar

(Hernández Gil, 150, fala em “examinar y calificar los títulos”; Mena y San Millán, 8),

porque inclui o império que é próprio da prudência, ao passo que o simples exame ou

verificação não passa de uma fase contemplativa do juízo prudencial. Com efeito, a

qualificação registrária diz respeito ao quale (a qualidade no seu suporte substancial

singular), não à qualitas abstraída do indivíduo, e assim não como simples especulação

do sujeito, mas, passando do conselho e do julgamento dos meios para a operação: não

apenas meramente se examina ou se verifica a eventual inscritibilidade de um título

(rectius: sua potencialidade inscritiva), mas se julga e impera um registro, hic et nunc. A

verificação fica a meio caminho da imperação do operável; a qualificação abrange o ato

de verificar (componente especulativo da prudência, enquanto se considera o sujeito) e

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aplica os conselhos e juízos encontrados à operação (por todos, Santo Tomás, Suma

Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 8.º 47, respondeo).

O juízo qualificador (enquanto conclusão do procedimento prudencial) pode

ser positivo (em ordem a seu fim, que é o registro) ou negativo (desqualificação, juízo

desqualificador), de toda sorte consistindo sua mais destacada relevância a imperação de

que se registre ou de que não se registre um título. E, exatamente porque a aplicação ao

operável é o fim do intelecto prático, o ato de império, na qualificação registral, é o

mais relevante dessa complexa decisão prudencial.

A qualificação, enquanto decisão prudencial

A diversidade de efeitos das inscrições prediais – eficácias constitutiva,

declarativa e de mera notícia –, consoante a pluralidade das direitos positivos, faz variar

a amplitude e, de conseguinte, a importância da qualificação registral (Chico y Ortiz, I,

590, 591; II, 248 ss.; García Coni, I, 41; II, 226; III, 101, 116, 117, 118). Compreende-

se, pois, que, nos sistemas em que não há reconhecimento, em regra, de eficácias

convalidante ou constitutiva para o registro, a qualificação registral, na medida em que é

confirmativa de outra prévia qualificação (ut in pluribus, notarial) e de efeitos reais já

constituídos, se revista de menor aparência imperativa (assim, p. ex., os sistemas

limitadores da qualificação aos elementos formais documentários: Chico y Ortiz, I,

591). Mas a qualificação não perde, em todo caso, seu liame com um determinado

registro a perfazer-se ou a recusar-se: a maior ou menor amplitude da atuação

qualificadora, seu caráter mais ou menos analítico, a variedade de eficácias inscritivas,

nada disso infirma a natureza prática do julgamento registrário, vale dizer, seu caráter

prudencial.

A prudência é uma das quatro virtudes cardeais, que se distingue (a) das

demais virtudes do intelecto pela diversidade material de seus objetos (a sabedoria, a

ciência e a inteligência versam sobre objetos necessários; a prudência e a arte, sobre

objetos contingentes; mas a arte diz respeito ao factível, que se realiza em matéria

exterior, ao passo que a prudência concentre ao agível, ou seja: à mesma atividade do

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agente) e (b) das virtudes morais, porque a prudência reside formalmente no

entendimento, não na vontade (Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 5.º,

respondeo). A prudência é o conhecimento do que devemos apetecer e do que devemos

evitar (“appetendarum et vitandarum rerum scientia” – Santo Agostinho), hábito

operativo que, tal como a justiça, tem a peculiaridade de não ser uma virtude apenas

pessoal, senão que se estende também aos demais, à comunidade, podendo falar-se em

uma prudência social, prolongamento da prudência monástica ou pessoal (Santiago

Ramírez, 10; Palácios, I, 23 ss.; Massini, I, 43 ss.).

Como ficou sobredito, a prudência reside na razão, enquanto prática, porque

seu objeto é o contingente singular, e a razão especulativa só pode ter por objeto o

necessário, o universal, aquilo que não se modifica (Santiago Ramírez, 38). Sendo

específico da prudência imperar o bem próprio de cada virtude em dadas e concretas

circunstâncias (Derisi, I, 246), ordenando-se as ações individuais e contingentes (Id.,

164, 165), o que faz essa virtude é aplicar os princípios (e conclusões) universais aos

fatos singulares (Id., 7). A atuação no operável – recta ratio agibilium – indica que a

prudência não está simplesmente no intelecto, mas transita para a vontade, enquanto lhe

pertence essa aplicação à obra: por isso, se diz que a prudência é formalmente

intelectual e materialmente moral (Massini, I, 39).

A consideração dos princípios sinderéticos e das conclusões universais da

ciência moral não exclui a tarefa prudencial de, em cada caso, ditar o que se deve fazer

e o que se deve omitir, em vista das circunstâncias concretas. “La ley moral es muy

amplia, e no hay que olvidar sus determinaciones concretas, que son ya fruto de la

prudencia, y no de la sindéresis ni de la ciencia moral, universales” (Palácios, I, 56). Por

isso, Santo Isidoro de Sevilha incluía na enumeração das condições da lei humana sua

relação com a idiossincrasia de cada país e com o lugar e o tempo: a lei humana deve

ser secundum consuetudinem patriae, loco temporique conveniens. Essas observações

são adequadas ao denominado juízo prudencial (expressão que revela uma certa

impropriedade, se se considera que o juízo é, em rigor apenas um dos três atos da

prudência: 1 – conselho; 2 – juízo; 3 – império –, sequer o mais importante deles,

porquanto o império, consistente em aplicar o conselho e o juízo à operação, se acerca

mais do fim da razão prática, revestindo-se de principalidade nos atos da prudência

(Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 8.º, respondeo)).

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Essa indispensabilidade da singularização prudencial (Palácios, II, 420),

reafirme-se, não recusa sua fundação em princípios e conclusões universais, originários

da sindérese e da ciência moral (Palácios, I, 17 ss.); o contrário é a ética de situação ou

o direito de situação, a consciência não apenas fundamental, mas também fundante,

exclusivamente fundacional. A natureza da certeza varia conforme seu objeto

(Aristóteles, 1.094 b, 12 e 24) e, sendo a matéria da prudência os singulares

contingentes, sobre os quais se exercitam as operações humanas, sua certeza não exclui

toda a solicitude ou diligência (Santo Tomás, Suma Teológica, Q. 47, art. 9.º, ad

secundum), como é próprio da irrepetibilidade das situações particulares, de modo que a

verdade das conclusões nos operáveis não é suscetível de ciência (Zuleta Puceiro, II,

26).

Daí, de uma parte, a inútil sobrevalorização da casuística (Pieper, 65),

excludente da concretude da experiência pessoal de quem decide e das condições

singulares e irrepetíveis dos atos (Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art.

3.º, respondeo), casuística que não passa de um instrumento auxiliar no elenco de

similitudes e de um roteiro gnoseológico da tradição; e, de outra parte, o risco de um

subjetivismo anômico, em que a consciência se projete como base de normatividade

sucedânea.

A qualificação e os princípios registrais

Define-se princípio, em geral, aquilo de que um ente de algum modo depende

(Jolivet,I, 295; II, 197; Sinibaldi, 188; Van Acker, II, 46; Gambra, 149, 150). Mas

aquilo de que pode um ente depender – ou princípio – é fonte do qual ou o ser, ou sua

geração ou seu conhecimento derivam (Aristóteles, 1.013 a, 20). Assim, fala-se em

princípio cronológico, espacial, lógico, metafísico, moral, científico. Os princípios, pois,

abrangem as causas, as condições, as ocasiões, os fundamentos diretivos (Lalande, 808),

os começos temporais e espaciais dos entes.

A causa é o princípio que influi no ente de modo positivo – id quod influit esse

–, com que se distingue da condição, que apenas remove obstáculo ou torna possível a

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produção do efeito, sem modificá-lo, no entanto (Sinibaldi, 188; Lahr, 691; Balmes,

107).

Das quatro modalidades de causa: material, formal, eficiente e final, desponta a

última como a causa das causas, porque sem ela nenhuma causa exercitaria sua

causalidade (Aristóteles, 983 a, 30; “Unde dicitur quod finis est causa causarum, quia

est causa causalitatis in omnibus causis” – Santo Tomás, De Principiis Naturae, n. 10;

Derisi, II, 27; Grenet, 250).

Todos os entes possuem uma razão de ser, princípio que se apóia na

inteligibilidade ou verdade do ser (Derisi, III, 229), e, enquanto se cuide da

inteligibilidade intrinseca – relativa à essência de um ente –, esse princípio corresponde

ao princípio da finalidade (Jolivet,I, 257). Equivale a afirmar que, do modo de ver

essencial, os entes são efeitos produzidos em vista de um fim, e, posto que este se

realize derradeiramente (ultimum in executionem), configura a primeira causa na ordem

da intenção (primum in intentione).

O princípio de finalidade subordina quer os entes apenas materiais, quer os

inteligentes e livres: todos os atos humanos ordenam-se a uma finalidade moral (ou bem

moral (Maritain, I, 46)), e a ordenação moral está inscrita na natureza humana (Derisi,

III, 318). Por isso, pode dizer-se que a norma constitutiva formal – imanente ou próxima

(De Yurre, 75 ss.) – da moralidade é a perfeição da natureza humana, o último fim dos

homens e dos entes (ou ainda, de modo incompleto, a mesma natureza humana,

enquanto nela se manifesta, já constituída, a ordenação final das coisas).

* * *

Numa perspectiva demasiadamente sintética, poder-se-ia falar num princípio

redutor do sistema de publicidade imobiliária, fazendo-o residir na segurança jurídica,

enquanto finalidade – ou mais agudamente, enteléquia do registro. Sem embargo da

relevância desse princípio para a configuração e a atuação dos demais outros princípios

registrais, a excessiva síntese que indica essa redução unitária, afasta, em proveito de

uma universalidade só muito complexamente advertida nos singulares, as vantagens de

uma certa divisão analítica dos princípios. O esforço de tamanha redução – sempre

criteriosamente possível diante do caráter teleológico da segurança jurídica para o

registro imobiliário – não parece justificável quando se cuida da coordenação (em todo

caso implicitada) dos princípios advertidos a partir de uma distribuição analítica. Em

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contrapartida, é certo que o excesso na repartição analítica – e as divisões sempre

respondem a critérios variáveis – inviabiliza a universalização objetiva e termina por

inutilizar a própria consideração do sujeito sob o aspecto redutor de seus princípios

(Sánchez Agesta, 53).

Em resumo, seria possível, de toda sorte com critérios razoáveis, vincular a

qualificação registral não apenas e principalmente ao princípio teleológico da segurança

jurídica – com o qual guarda “intimidade superlativa” (Sing, 588, 589) – o que sempre

de algum modo se fará, para compreendê-la e interpretar seu alcance, mas a cada um

dos princípios em que se divida, por uma razão ou por outra, o sistema registral: não

será demasia, p. ex., relacionar a qualificação ao trato sucessivo, ou ao princípio da

inscrição.

Mas, desde que se adote um critério analítico moderado, é certo que a

qualificação registrária melhor se afeiçoa ao princípio da legalidade. Ou por outra:

expressa-o, serve-lhe de instrumento de atuação.

Nessa linha de idéias, é praticamente uniforme a ubiquação doutrinária da

tarefa qualificadora no âmbito do princípio da legalidade (Afrânio de Carvalho, 249 ss.;

Hernández Gil, 149 ss.; Roca Sastre, 255 ss.; Lacruz, I, 394 ss.; Lacruz e Sancho, 353

ss.; Serrano y Serrano, 96 ss.; Cano Tello, 120 ss.; García García, 551, 552; Cristóbal

Montes, 253; García Coni, II, 217 ss.; Scotti, I, 593 ss.; Péres Lasala, 175 ss.; López de

Zavalía, 393 ss.; Cacciatori, 76, 77; Vásquez Bote, 301 ss.; Fueyo Laneri, 200).

Na verdade, a vinculação mais próxima da função qualificadora ao princípio da

legalidade responde a restrições postas pelo direito normativo. A justiça e a segurança

jurídica, longe de ser realidades e conceitos antinômicos, são aspectos distintos do bem

comum (Lefur, 3), e as exigências de segurança, na medida em que oferecem matéria e

fim ao direito positivo, constituem, ao mesmo tempo, exigências da justiça (Delos, 45);

por isso, o direito normativo contém a segurança jurídica e é sua única possibilidade de

existência (Utz, 135, 136). Daí que, não se podendo aventar uma segurança jurídica

não-positiva, seja por deficiência de certeza executiva, seja por dubiedade de seu objeto,

o direito normativo contenha (mas não institua) e especifique a segurança. É em ordem

a esses lindes que se adverte a proximidade da qualificação ao princípio da legalidade,

reflexo especializador da teleologia registral.

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Outras características da qualificação registrária

Destacadas já, por de maior relevância, a natureza prudencial da qualificação

registrária e, seguidamente, sua vinculação remota à segurança jurídica e próxima aos

limites normativos (princípio da legalidade), cumpre examinar agora outras de suas

características, em alguns passos especificando as notas anteriormente versadas.

a) Juízo concludente, procedimento ou função?

Admitida a natureza intelectiva da qualificação – por isso que prudencial –,

cabe cogitar de sua acepção própria, a saber: – se é o elemento conseqüente de uma

argumentação prática; – se, antes, é a integralidade desse procedimento lógico, porque,

em cada estádio da argumentação, se representa o juízo correspondente (premissas ou

conclusões);– se é a função executiva dessa argumentação, ou seja: a análise do iter

qualificador mostra que sua etapa mais aguda, sob o aspecto gnoseológico, não se põe

na conclusão (“registre-se”, “não se registre” – e, quando caiba, “suspenda-se o

registro”), mas em seu antecedente, de modo que, diante dessa relevância cognoscitiva,

se poderia acaso falar numa função qualificadora (Sing, 582; Hernández Gil, 150).

Sem embargo de que, de maneira analógica, seja possível referir-se a

procedimento e órgão qualificadores, função e argumentação qualificadoras, impende

observar que, em acepção própria, qualificação é o juízo conclusivo da argumentação

prudencial do registrador, na medida em que inclui o império, ato último da prudência.

Não se nega que o antecedente dessa argumentação prudencial dos

registradores seja mais valioso numa perspectiva gnoseológica do que o juízo

conseqüente. Mas isso não demonstra em favor de que a qualificação seja propriamente

coisa diversa da conclusão imperativa. É que, para logo, a prudência se reveste de uma

etapa cognoscitiva (integrando-a a memória, a razão, o entendimento, a docilidade e a

solércia), o que não a destitui de sua natureza eminentemente preceptiva ou imperativa.

Assim, no que maior relevo apresenta dentro do argumento prudencial – o juízo de

império – reside propriamente a qualificação registrária.

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Na verdade, é preciso distinguir a análise predominantemente gnoseológica da

qualificação (em que prevalece o interesse no exame das premissas) da consideração de

sua finalidade, que é a de determinar o registro ou a de recusá-lo (quando os sistemas o

permitam: o de suspendê-lo, condicioná-lo). Esse juízo imperativo (“faça-se algo”,

“omita-se algo”, “registre-se”, “não se registre”) singulariza uma exigência de

segurança jurídica, de resto, partindo de proposições normativas anteriores, que por seu

turno se apóiam, derradeiramente, em normas evidentes. [Concerne-se aqui a um tema

de muitíssima importância, que não vem de molde mais do que indicar: em uma

passagem de seu primeiro tratado filosófico – Treatise on Human Nature –, David

Hume reprova aos moralistas tradicionais a dedução normativa oriunda de juízos

teóricos – o que adiante se denominou “falácia naturalista” (naturalistic fallacy, G. E.

Moore) –, em resumo, sustentando-se a impossibilidade de deduzir um direito ou um

dever a partir de um fato (ser) e impedindo-se, mais além, a estimativa apofântica – vale

dizer, acerca da verdade ou da falsidade – das proposições normativas; Thomas Reid

(apud Kalinowski, I, 171; II, 140 ss.), no entanto, sublinhara já a circunstância de que as

deduções das normas morais segundas se apóiam em normas primeiras, evidentes de si

mesmas; Massini (II, 118; III, 263, 264) conclui que a verdadeira falácia, no caso, é a

positivista, e acena a um texto de Santo Tomás (Suma Teológica, Ia.-IIae., Q. 94), no

qual o Aquinense, cinco séculos antes de Hume, já antecipara a solução do tema,

fundando o direito natural sobre a evidência de seus primeiros princípios, sem derivá-lo

de proposições enunciativas.]

A esse juízo imperativo, conseqüente da argumentação deôntica e

singularização de normas jurídicas e éticas sucessivas, corresponde o termo

qualificação em sentido próprio.

b) Obrigatoriedade da qualificação.

Vai de si mesmo, ante a necessidade de impedir a desvalia da segurança

jurídica por meio de registros de títulos viciados (Scotti, I, 593, 594; Chico y Ortiz, III,

22; Morell, 258), com que se tomaria pouco menos que inútil a proteção jurídica dos

títulos válidos, que a qualificação registral é obrigatória e não se dispensa sob o color

de precedente qualificação de quem elaborou o título ou de outro registrador

(Hernández Gil, 150; Chico y Ortiz, III, 67, 68).

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c) Caráter personalíssimo da qualificação.

A consideração do juízo qualificador no plano de uma juris prudentia – a

prudência registral – aponta no sentido de sua irrecusável pessoalidade, embora no

plano de uma prudência social.

Ainda que se estime a atuação da atividade registrária por meio de órgãos, não

é possível desconhecer sua identidade morfológica com as pessoas que os encarnam e,

pois, sua “humanidad psicofísica” (Sing, 579). Pode dizer-se com Pieper (43) que a

sindérese e a prudência, em unidade viva, formam a consciência, último juízo da razão

prática: a sindérese, consciência dos princípios; a prudência, consciência da situação –

uma e outra conjugadas, aquela como verdadeiro princípio de contradição do saber

prudencial (“synderesis movet prudentiam, sicut intellectus principiorum scientiam” –

Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 6.º, ad tertium). Tudo isso se move

num plano de realidades concretas e irrepetíveis, em que se engasta a liberdade pessoal

irredutível de afirmar a verdade e seguir o bem, ou recusá-la e seguir o mal.

Diz-se ainda personalíssima a decisão qualificadora, impedindo-se sua

delegação (até mesmo, ao cabo e em regra, enquanto decisão derradeira numa dada

instância, a escreventes, auxiliares, como quer que se denominem, prepostos dos

registradores) e a consulta de subalternação ao juízo prévio de superiores hierárquicos

(quando os haja) ou corregedores mediante coordenação (Morell, 258; Hernández Gil,

150; Chico y Ortiz, III, 67).

d) A independência da qualificação.

A sentença prudencial de qualificação, emitida em ordem ao atendimento da

segurança jurídica, reclama a independência decisória de seu agente, “la misma

independencia que tiene el Juez para dictar sus resoluciones” (Hernández Gil, 150).

Não há verdadeira prudência enquanto consciência – sem liberdade, porque a

consciência certa é a norma subjetiva do agir (o que indica, saliente-se, a existência de

uma outra norma para o agível, norma objetiva e fundante), e, impondo a lei um juízo

do registrador acerca da aptidão inscritiva de um título (Scotti, I, 593, 594), não o faz

executor subordinado a ordens singulares superiores, mas juiz, independente e

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responsável (ao menos, sempre moralmente, da registração hic et nunc de determinado

título (Morell, 258; Chico y Ortiz, III, 65, 66).

e) Caráter jurídico da qualificação

O juízo qualificador é juris-prudencial, na medida em que decide, nos limites

normativos, sobre a aptidão singular de um título para obter (ou já ter) determinados

efeitos de direito (Chico y Ortiz, III, 65).

f) Integralidade.

A qualificação deve abranger completamente a situação examinada, em todos

os aspectos relevantes para a registração ou seu indeferimento, permitindo quer a

certeza correspondente à aptidão registrária, quer a indicação integral das deficiências

para a inscrição perseguida (Scotti, II, 49).

Natureza jurídica da qualificação registral

Adversa-se freqüentemente, na doutrina, acerca da natureza jurídica da

qualificação registrária, tema que, já de si complexo ainda com abstração dos vários

direitos normativos, mais se dificulta com as leis particulares de regência. Quatro

correntes, de um modo geral, disputam o acerto da natureza jurídica da qualificação,

afirmando-lhe o caráter: a) jurisdicional; b) administrativo; c) de jurisdição voluntária;

d) singular ou especial. O exame que dessas correntes aqui se faz, suposta a brevidade

que as circunstâncias impõem, tende a limitar-se, sempre que possível, à situação

normativa brasileira e à verificação política conjuntural que lhe diz respeito mais de

perto.

a) A qualificação registrária como de caráter jurisdicional.

A natureza jurisdicional da qualificação registrária teve e ainda tem autorizados

defensores (Caperochipi, 67; Fueyo Laneri, 201; Agulló, Barrachina, Passos y García,

Romaní Calderón, Gallardo Rueda, Camy, Ventura Traveset – apud: Lacruz, II, 98, 99,

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Chico y Ortiz, III, 47, 48 e Roca Sastre, 261), incluindo-se ainda De La Rica y Arenal,

que alude ao caráter cuasi judicial da qualificação, e, num certo aspecto, López Medel,

que se refere a um ámbito jurisdiccional sui generis (I, 190) e à justicia registral (I,

225, 231 ss.)

É certo que a gênese comum da função jurisdicional e das atividades tabelioas

e registrárias (brevitatis causa: João Mendes de Almeida JR., 25 ss., 78 ss.), tanto

quanto a eficácia erga omnes da qualificação e seu procedimento de subalternação do

caso à norma jurídica, conduzem à aparência de alguma identidade entre a função dos

juízes e a dos registradores. Essa identidade parece robustecer-se quando a lei regente

admita uma requalificação judiciária.

Os argumentos, contudo, não vão além de uma aparência de identificação que

está longe de determinar a função jurisdicional como abrangente da registrária. A

comum origem histórica não prova mais que uma atividade material própria do registro

exercitada por juízes; demais, isso ainda ocorre, p. ex., na Alemanha, com os antigos

“juízes territoriais”, sem embargo de modificações restritivas de sua atuação (Pau

Pedrón, 962), ou na Áustria (López Medel, I, 190), o que não demonstra a inclusão da

função registrária entre as formalmente jurisdicionais (Chico y Ortiz, III, 47). A eficácia

do juízo qualificador e a subsunção jurídica que reflete não respondem ao suporte de

uma relação processual, que é própria da jurisdicionalidade; a extensão ampla de efeitos

não significa estabilidade incontrastável da decisão qualificadora (rectius: coisa

julgada), nem a subalternação de um dado caso à ordem normativa é apanágio dos

juízes.

No direito brasileiro vigente, sequer se pode acenar à requalificação judicial

(arts. 198 ss., Lei 6.015, de 31.12.73) sem, ao mesmo tempo, considerar a importante

restrição prevista no art. 204 da mesma Lei.

b) A qualificação com caráter administrativo.

O tema do administrativismo dos registros reclama atualíssima atenção: Chico

y Ortiz (III, 44) refere-se aos imprudentes acercamientos al campo del Derecho

Administrativo, e Leyva de Leyva (272), aludindo ao administrativista à outrance, nele

reconhece um burocrata vocacional.

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Não faltam motivos para uma crescente adesão não apenas teórica, mas

também prática e, sobretudo poética (posta na órbita do factível, não do agível), ao

caráter administrativo da qualificação registrária [apóiam-no, p. ex., González Pérez

(1.030 ss.), Ogayar Ayllón (11 ss.), Scotti (II, 40), Palomino, Aragonées, Royo

Villanova, Garrido Falla, Romaní Puindedolas, Campuzano y Horma, Mendoza Oliván

(apud: Chico y Ortiz, III, 49, e Lacruz, II, 101)].

Esses motivos de forte vocação administrativista do registro emergem, no

Brasil, em parte, de algumas tendências filosófica e ideológica de moda, e, em outra

parte, de certas inclinações conjunturais (que, como não poderia deixar de ser, refletem

implicitamente aquelas tendências e variam de maneira circunstancial). As primeiras

correspondem a uma causa genérica; as influências conjunturais, por isso que

particulares, só podem ser objeto de uma visão localizada.

Dentre os componentes filosóficos e ideológicos referidos, comportam

destaque:

– a concepção nominalista do conhecimento, com particular saliência do

agnosticismo do justo; insiste-se no que já ficou dito: limitada a ciência às realidades

mensuráveis dos casos, cuja irrepetibilidade concreta induz soluções pautadas pela

concretude da situação, a tendência nominalista, derradeiramente, tem a bitola do

subjetivismo do julgador

– quem quer que o seja, Magistrado ou Oficial dos Registros –, de modo que a

consciência de quem julga, sem dúvida sempre um imperativo fundamental para a ação,

passa a constituir o elemento fundacional do operável; advirta-se ainda o

antiintelectualismo que essa orientação alberga, à míngua de objeto universal, recaindo

em intuições perceptivas ou emocionais; em algumas correntes, há uma implícita

anomia, quando muito moderada por uma consideração subjetiva, política e artificiosa

da incidência regulamentar (p. ex., direito alternativo); noutras, não é ausente a pauta

regular de uma subsunção dos casos às normas jurídicas (freqüentemente, aferrada ao

literalismo), sob o color de busca de leis objetivantes das decisões epistemicamente

possíveis apenas nos estritos e bastantes limites casuísticos –, vale dizer: de leis de

repetição de fenômenos redutíveis ao gênero (que se induziu – ou se intuiu – a priori),

não de normas enquanto medidas ou indicativas do justo porque o justo, para essa

tendência, é em si mesmo incognoscível;

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– a vocação estatalizante, não raramente produzida até mesmo em ambientes

que se poderiam estimar a ela hostis, minguando opção para a mal suposta antinomia

liberalismo – estatalismo; a desconsideração dos princípios da totalidade e da

subsidiariedade faz sempre extremar o pêndulo ideológico entre o laissez faire, laissez

passer e o estatalismo, desestimando-se que o liberalismo [refiro-me ao político e ao

moral, deixando o econômico – batizável em alguns aspectos (v. porém as observações

de Palumbo, 105 ss.) – a salvo destas críticas], o liberalismo é das mais fecundas causas

do socialismo.

Quanto à inclinações conjunturais, no Brasil de nossos dias, elas se encontram

sobretudo:

– no debate político em torno da regulamentação do preceito do art. 236 da

CF, arrastando à estabilização expressa ou ao contra-sentido do corporativismo de

Estado, tema a que se voltará adiante;

– na ausência de uma comunidade científica que, à altura das necessidades

presentes, fundasse de modo idôneo a autonomia dos diferentes segmentos do direito

registral (em particular, o direito imobiliário registral), transitando suas conclusões, em

base objetiva, aos centros decisórios judiciais, de que emanam importantes reflexos,

incluindo os políticos. Sem embargo de esforços regionais relevantes (p. ex., no Rio

Grande do Sul), não há propriamente um pensamento científico nacional do registro

imobiliário: comunidade exige permanência, comunicação persistente e unidade estável

(com – unidade); ainda que suposta a bitola da epistemologia positivista, a

intersubjetividade é fundamental para a ciência, é sua objetividade (Zuleta Puceiro, II,

24, 25); e, numa perspectiva não-positivista (em que decididamente nos situamos),

impende verificar que, muito embora a ciência jurídica não exija o suposto de uma

comunidade de investigações, é evidentemente excepcional que pensadores isolados da

tradição de problemas e do conjunto das soluções técnicas possam atingir integral

racionalização na ciência prática (comporta distinguir-se o tema, entretanto, no plano da

ciência especulativa). O que se encontra no Brasil de nossos tempos são valiosas

individualidades, com reconhecida competência científica, abstraídas de uma via

institucionalizada, permanente, de comunicação do saber científico; reduz-se o

intercâmbio de experiências e conceitos a tratativas esporádicas, a uns poucos pareceres

e artigos avulsos ou a congressos (tais os do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil),

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de todo louváveis, mas insuficientes ao objetivo comunitário. Com isso, os

agrupamentos técnicos, de origem estatal, terminam por transitar prevalentemente seu

caráter oficial para os órgãos, funções, procedimentos e juízos registrários, demais de

que a deficiência de uma elaboração autônoma da ciência registral induza uma

“ocupação de espaço” pelo direito administrativo.

Além disso, o problema político posto (ou pretextado) com a regulamentação

do art. 236, Constituição Federal, serve de acicate ao administrativismo. Em boa

medida, a explicação pode reportar-se a um preocupante circiterismo normativo: o

preceito constitucional é anfibológico e propício a compreensões opostas. Mas são as

exagerações que infletem para a inconstitucionalidade, num sentido extremo ou noutro,

ora só reconhecendo a idéia do serviço público (administrativismo), ora só enxergando a

gestão privada. Curioso é que, ante esse binômio tensivo (serviço público – gestão

privada), não faltem, de um lado, o anacronismo de uma redução estatalista judiciária,

acentuando-se um controle hierárquico que já não se encontra no direito posto, e, de

outro, uma evasão precipitada para um controle corporativo que, com apenas

aparentemente marginar a idéia de serviço público, se inserta essencialmente no âmbito

da administração estatal (e nisso peca essa deturpação corporativista – corporativismo

de Estado –, desviando-se do formidável papel que se reserva ao corporativismo de

sociedade). É preciso atualizar as vistas: se se fala em serviço público, cogita-se de um

serviço contínuo e regular, características que se sujeitam à fiscalização correcional

oficial e permanente; se se trata de uma gestão privada desse serviço, pensa-se numa

liberdade de administração, que não pode supeditar-se a interferências administrativo-

estatais; no ponto médio, desaparecida a subordinação hierárquica, o que remanesce é a

correcionalidade coordenativa, para garantia da continuidade e da regularidade do

serviço – fim que reclama um conjunto de meios executórios (incluso disciplinares, sob

pena de manifesta ineficácia), mas um poder correcional limitado à aferição dessas

características do serviço (regularidade e continuidade), sem intervenção nos critérios e

na executividade da administração cartorária. Enquanto não se conciliam as teses

extremas, fermenta-se o caldo de cultura da estabilização simplex dos Registros

Imobiliários, como se serviço público fosse o mesmo que estatal.

c) A qualificação no âmbito da jurisdição voluntária.

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Parte considerável da doutrina registral espanhola tende a estimar a

qualificação como exercício de jurisdição voluntária: Hernández Gil, 150; Morell, 258;

Roca Sastre, 262 ss.; Jerônimo González, Sanz Fernández, De Casso, Sancho Rebullida,

González Palomino (apud Chico y Ortiz, III, 53 ss.).

Em verdade, demanda uma distinção prévia a excludência de filiação de outros

doutrinadores a esse entendimento, a saber: a jurisdição voluntária, enquanto função

incluída na administração pública do direito privado (Zanobini), é típica do Judiciário,

de sorte que remanescem atos dessa administração fora do âmbito judicial. Se se

subdistinguem, pois, a administração pública do direito privado (gênero) e a jurisdição

voluntária (espécie), recusando-se já a existência de uma jurisdição voluntária não-

judicial, é possível admitir uma natureza específica da qualificação, retraçada como

especialização distintiva de um conceito genérico, também abrangente da jurisdição

voluntária (José Frederico Marques, 120, 121; Édson Prata, 181 ss.).

Em todo caso, naqueles sistemas em que o registro se perfaça por juízes, a

questão deve repensar-se segundo a lei de regência.

d) A qualificação em sua natureza específica.

Como ficou sobredito, a contar de uma distinção no gênero "administração

pública do direito privado", é de admitir, ao lado da espécie "jurisdição voluntária", a

existência de tantas outras espécies quantas sejam as modalidades e os agentes dessa

administração. Mas essa distinção é controversa (Carnelutti, p, ex., não estima que a

jurisdição voluntária seja administrativa lato sensu), e não falta quem tome a jurisdição

voluntária por gênero próximo de partes subjetivas em que há distinção dos agentes (p.

ex., Prieto-Castro, que fala na jurisdição voluntária judicial, notarial e registrária – apud

Castanheira Sarmento, 12, 13).

A tendência da doutrina registrária moderna é a de, feita essa distinção de base,

identificar uma natureza própria, especial da qualificação registrária, que se tem como

um tertius genus entre a atividade administrativa e a judicial (contenciosa ou voluntária)

[Chico y Ortiz, 62]. Nessa direção: Lacruz, II, 108 ss.; Cano Tello, 121; Ferreira de

Almeida, 186 ss.; Coghlan, 132, 133; Leyva de Leyva, 283 ss.; Chico y Ortiz, III, 62,

631].

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Não por se incluírem no mesmo gênero próximo (Lacruz, II, 97), perdem

especificidade os atos de jurisdição voluntária e os exercitados por órgãos não judiciais

em ordem) administração pública do direito privado. A doutrina anterior, por não

distinguir as espécies, tendia à inclusão do juízo qualificador no âmbito da jurisdição

voluntária, sem com isso, por certo, afirmar a jurisdicionalidade da função registral

(afastada já pelo gênero próximo), mas abrigando uma confusão de agentes operativos.

A não se distinguirem as espécies, numa divisão tripartite da possível natureza da

qualificação, seria de admitir classificá-la como ato de jurisdição voluntária não

judicial; é, pois, uma subdistinção, expressando uma precisão conceitual, que permite

inferir um caráter singular para o juízo registrário, enquanto repousa numa atividade

pública designadamente convocada à formação de um ato jurídico privado ou ao

estabelecimento de sua plena eficácia.

Leyva de Leyva, frisando o caráter jurídico dos registros públicos,

destacadamente sua finalidade mais intensa (a segurança jurídica) – ao passo que os

registros administrativos assentam no interesse geral –, conclui, com razão, que a

atividade dos primeiros é ordenada ao direito privado. Demais, prossegue o Autor, “el

objeto de la Administración pública de Derecho privado es el Derecho privado” (285),

disso advindo que “la actividad registral de los Registros jurídicos forma parte del

Derecho privado” (ib.).

Essas referências afastam a qualificação quer do exercício jurisdicional, quer

da natureza administrativa (rectius: calcada sobretudo no interesse público): “El

Registro jurídico (Léase, el arquetipo de la Propiedad) no satisface directamente

necesidades públicas, necesidades de carácter general, ni atiende inmediatamente al

interés público” (Leyva de Leyva, 285), antes satisfazendo, ao menos

predominantemente, interesses privados (Id. 291).

Resta, porém, compatibilizar essa natureza especial com a circunstância de

que, para o direito brasileiro vigente, o registro configure um serviço público.

A consideração do registro como serviço público assenta no seu caráter social e

na sua teleologia (ou enteléquia) de segurança jurídica, que não se passa, em definitiva,

num âmbito de somatórios individuais (assim também a perspectiva jusnaturalista de

López Medel, II, 72, 73). É preciso esclarecer e destacar uns tantos pontos:

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– a segurança jurídica não é um conceito e uma realidade antinômicos da

justiça; ao reverso, uma vez ainda se diga: ambas são noções e realidades que integram

como elementos ou faces do bem comum (Le Fur); já ficou dito atrás, não se podem

compreender exigências de segurança separadas da justiça, porque, na medida em que

elas oferecem matéria e finalidade para o direito positivo, passam a configurar,

simultaneamente, exigências de justiça (ex condicto publico) [Delos];

– é um grave erro cogitar de um direito natural tão abstrato e idealizado que

dispense a lei positiva, fora de cujo plano não pode subsistir a sociedade; o direito

natural é o fundamento do direito positivo, não seu remédio subsidiário (Cathrein, 203,

204; Corts Grau, 267); antes as normas jusnaturais exigem as normas positivas

humanas: “ambos os direitos se integram, se complementam e se sustentam

mutuamente” (Luño Peña, 56), até porque não se pode pensar no direito positivo como

simples estatuição de uma antecedente previsão jusnatural (Utz, 135; Rommen, 292); a

circunstância de a lei ser apenas a medida ou a razão do justo (“lex non est ipsum ius,

proprie loquendo, sed aliqualis ratio iuris” – Santo Tomás Suma Teológica, IIa.-IIae.,

Q. 57, art. 1.º, ad secundum) não interfere com sua necessidade para o direito: Vitória

(apud Urdanoz, 188) dizia que justo é aquilo que é lícito segundo a lei, ressalvada a

corrupção da lei (que não é lei: Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 60, art. 5.º);

é que uma das características essenciais do direito positivo é criar a segurança jurídica

(Messner, 266; Utz, 135, 136), para (na lição de Messner, 322):

a) eliminar a ignorância e a incerteza do conhecimento dos princípios gerais do

direito natural;

b) aplicar esses princípios genéricos às circunstâncias concretas e históricas de

cada sociedade: a lei como intimação do justo (Bigotte Chorão, 1, 38);

c) decidir sobre as instituições adequadas, num dado quadro espacial e

temporal, à consecução do bem comum;

d) definir o modo de exercício coativo para a satisfação do ordenamento

jurídico; por isso, pode concluir-se que “a segurança é o que há de mais elementar e

premente como tarefa do poder” (Galvão de Sousa, I, 88);

– definido o caráter público das funções, atividades e serviços ordenados à

segurança jurídica, o que se impõe de sua mesma essencialidade para a existência

social, nem por isso se hão de julgar necessariamente estatais esses serviços, funções e

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atividades, com que se engastaria o radical equívoco de supor que direito público é o

mesmo que direito do Estado (Gil Robles, 5 ss.), ignorando-se o pluralismo jurídico, o

amplificado papel (até mesmo normativo) dos corpos intermediários e as exigências do

princípio de subsidiariedade (Galvão de Sousa, II, 87 ss., 101 ss.; Messner, 331 ss.;

Sánchez Agesta, 80 ss.; Llovera, 175 ss.; Creuzet, 77 ss.; Bigotte Chorão, II, 211 ss.).

[Já sustentávamos, em abril de 1987, conclusão equivalente, afastando os

exageros liberais sem recair no extremo da estatalização: “A essencialidade de um

sistema publicitário predial para a consecução do bem comum, conceito e realidade a

que se ligam tanto a justiça, quanto a segurança jurídica, não seria bastante para

reclamar, senão subsidiariamente, a estatalidade do serviço registral: é um erro pensar, e

de lastimáveis conseqüências, que a indispensabilidade social de um corpo

intermediário ou de uma atividade humana conduza a sua administração pelo Estado.

(...) Não se pense, contudo, que do exposto se há de inferir a conclusão de que o registro

predial deva necessária ou prevalecentemente realizar-se à margem de alguma

estatalidade” (A Constituinte e o Registro de Imóveis (1987), 28, 29). E prosseguíamos,

reportando-nos a Roca Sastre, Bielsa, Garrido Falla e Villegas Basavilbaso:

“Reconhecer, entretanto, algum caráter administrativo no sistema do registro predial,

defini-lo como „serviço público‟, não é o que basta para determinar sua direta prestação

pelo Estado”.]

Uma compreensão temperada da norma do art. 236, Constituição Federal do

Brasil, que lhe recuse os limites das conotações anfibológicas que sua literalidade

permite, mostra que o legislador constituinte esposou, com o binômio serviço público –

prestação privada, a idéia de conveniência de uma instituição social (instituição cuja

existência contínua e regular não pode ficar à mercê do talante individual) exercitada

(ou expressada) por meio de uma gestão particular (que sempre entre nós se revelou

normalmente eficaz). Desse modo, não se estorva a pluralidade de noções construtivas

em torno da instituição social do registro: de um lado, preserva-se a aferição correcional

por meio de coordenação, com a fiscalização judiciário-administrativa da prestação

contínua e regular dos serviços; de outro, fomentando-se um reto conceito corporativo,

de sorte que colégios profissionais possam dar contributo ao desenvolvimento ético,

técnico e científico das funções e atividades registrais; mais além, a primazia

jurisdicional, garantia maior dos direitos (V. Mezquita Del Cacho e López Medel, 201).

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Supostos e limites gnoseológicos da qualificação registral

Para o exame dos supostos epistêmicos e dos limites da qualificação registrária,

é preciso resignar-se a umas tantas particularizações, que se põem sobretudo em

conseqüência do papel que a ordem normativa confere à inscrição predial, porque, ut in

pluribus, a qualificação (repita-se) varia consoante as leis de regência prevejam

inscrições com preponderante caráter constitutivo, declarativo, de mera notícia,

convalidante ou não; é intuitivo, por exemplo, que, para o sistema Torrens, se reclame

uma qualificação mais especializada, à vista da fé pública registral que, de modo

mediato, pela sucessividade de aquisições, retrocede causativamente à primeira

inscrição do sistema. García Coni (II, 224) observa, de modo gráfico, que a qualificação

é de controle nos registros declarativos, de perícia, nos constitutivos, virtualmente

mecânica, nos registros abstratos. Em todo caso, esses limites postos pelos direitos

particulares são apenas tendencialmente influídos pela natureza da qualificação,

porquanto não se exclui a possibilidade de um juízo qualificador uniforme (ou quase)

para não importa quais tipos inscritivos; entre nós, a lei vigente apenas distingue e

especializa a qualificação para o registro Torrens (arts. 277 ss., Lei 6.015, de 31.12.73),

desprezando a variedade dos efeitos possíveis das demais hipóteses de publicidade

inscritiva.

Se o ponto culminante da metodologia jurídica é a determinação do justo em

cada caso concreto (Vallet, II, 393), pode concluir-se que a qualificação registrária –

enquanto juízo decisório da inscrição – é o ponto culminante da metodologia registral.

Não se trata, diretamente, de buscar o quod iustum est, muito embora, conforme já ficou

exposto, a segurança jurídica se inclua no justo legal e, de resto, a realização do justo

esteja longe de constituir um apanágio da aplicação jurídica heterônoma; mas é possível

afirmar que a qualificação registral busca o quod certum est, especificação do justo

legal.

Se se admite, como expressão do justo positivo, além de um direito ex condicto

publico, manifestações jurídicas mediante convênio privado, a ponto de poder cogitar-se

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de uma construção jurídico-notarial (Castán, 145 ss.), pode cogitar-se também de uma

elaboração registral do direito.

A determinação do quod certum est sujeita-se menos à tensão dialética em que

se localiza a determinação jurisdicional do quod justum est: supedita-se mais de perto a

qualificação registrária ao âmbito normativo (não é para menos que a qualificação está

vinculada ao princípio da legalidade). Não é demasiado ainda relembrar que a segurança

jurídica, a que se volta a elaboração registral, é decisivamente aferrada ao direito

normativo posto. É um tanto exagerada, mas em todo caso exprime razoavelmente essa

subalternação ao direito positivo, a antiga lição de Grasserie (279), para quem "o regime

registral é de direito estrito, no qual nenhum sentimento se admite, sequer o de

eqüidade". Não se pode supor que semelhante restrição importe em cortar pela raiz a

amplitude dos instrumentos epistemológicos que se oferecem ao registrador: sempre, de

um lado, resta a indispensabilidade de, compreender qual seja a sentido normativo da lei

(Larenz, 360 ss.), e, de outro, se impõe a necessidade de interpretação, vale dizer, de

mediação entre a regra e a realidade (Vallet, II, 403, 404).

A subordinação do juízo qualificador ao princípio da legalidade não lhe impõe

uma redução literalista para a compreensão do sentido normativo da lei, que descarte a

estimativa de seu contexto significativo e sistemático, a atenta consideração teleológica

e a observação mais ampla dos princípios ético-jurídicos superiores às regulações

particulares (Larenz, 366 ss.; Vallet, II, 411, 412). O que, sim, neste plano, se afasta do

âmbito da qualificação é a determinação eqüitativa do direito, equivale a dizer: a

integração registral de lacunas do direito positivo – exatamente porque o juízo

qualificador, dirigido à segurança jurídica, não pode encontrá-la fora dos limites do

direito normativo posto.

Se, nesse segmento, não se retraçam destacadamente as distinções entre a

jurisdição e a decisão registrária, elas se encontram de modo mais visível no terreno da

interpretação.

De, caminho, já ficou de alguma forma sobredito que compreensão e

interpretação são conceitos distintos: compreender o sentido normativo da lei

(esclarecer-lhe o certum, na linguagem de Vico – apud Vallet, III, 828 ss.) não é ainda

determinar o justo em concreto ou o certum registral (individuado). Falta a mediação

com a realidade, falta atingir o verum: a norma jurídica – disse Sconfeld (apud Vallet,

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II, 417) – “separada de sua aplicação e pensada unicamente em sua abstração numa

temática científica, carece de realidade”. A confusão de ambas essas noções – intelecção

do sentido normativo e mediação entre a regra e as exigências da realidade, hic et nunc

– conduz à leitura a-histórica do direito normativo (Zuleta Puceiro, I, 18 ss.), a ponto de

a preocupação com o significado abstrato da norma excluir a cogitação do significado

do justo, concreto e individuado. Rompe-se, com essa confusão, a possibilidade de

realização prudente do direito, subalternando-se o operador jurídico a esquemas

axiomáticos alheios do operável concreto (Massini, IV, 132 ss.). Restituir o caráter

prudencial à determinação do direito hic et nunc – seja enquanto justo, seja enquanto

certo e singular – é distinguir a interpretação (mediação entre a norma e a realidade),

reconhecendo a contingência dos operáveis concretos; por isso, das reações opostas

desse abstracionismo metodológico acrônico (reações entre as quais se contam remédios

acaso piores do que a enfermidade atacada – assim, o irracionalismo jurídico de nossos

tempos; designadamente sua espécie mais de moda entre nós, o direito alternativo)

sobreleva a do realismo jurídico, que não constitui um sistema, antes é um método de

atingir a verdade, de saber o direito, de alcançar o justo: um método que não dispensa os

princípios universais da sindérese (sensum naturale), não ignora as conclusões da

ciência moral, não desconhece o direito positivo, não descarta a pluralidade de meios

para o conhecimento da verdade e, particularmente, não despreza a realidade das coisas.

[É aqui interessante notar que a extraordinária perdurabilidade e a atualidade

do tomismo – sua “ação presente e sempre eficaz” (Maritain, II, 15) – se devem

exatamente à circunstância de sua subordinação ao real: o tomismo não é um sistema,

senão que “una visión reflexiva de la realidad, articulada sobre las cosas mismas, cuyo

misterio trata de develar” – Ponferrada, 8; por isso, não estranha que ao tomismo adiram

pensadores não-católicos, reformistas (Farrer, Mascall, Emmet) e até um filósofo judeu

(Mortimer Adler).]

Acima já se observou que os limites da qualificação registrária se mostram de

maneira mais vistosa no plano interpretativo, enquanto seus supostos se restringem:

1 – ao título levado a registro,

2 – ao registro existente e persistente e

3 – à relação entre o título exibido e o registro existente.

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O recorte negativo pode sintetizar-se nesta redução: quod non est in tabula et

in instrumentum non est in mundo. A qualificação registrária move-se dentro desses

lindes, inadmitindo-se sua projeção a diligências exógenas desses supostos epistêmicos

objetivos. Não cabe, em geral, a inquirição de uma realidade extratabular, nem a

oposição do conhecimento privado do registrador (Ascensão, 42), tampouco a

consideração de provas não-literais (que não integrem, originariamente ou por

supervenção, o título apresentado a registro). Outras imposições limitativas encontram-

se na inoficialidade, em geral, do juízo qualificador, e da subalternação à res iudicata

(quanto ao tema do título judicial, a seu tempo se voltará). Examinemos, brevemente,

cada um desses pontos.

a) Títulos.

No Brasil, a qualificação registral dos títulos exibidos diz respeito não apenas a

seu aspecto exterior (título em sentido formal), mas igualmente à causa de aquisição ou

de oneração (título em sentido material) [brevitatis causa: De La Rica Maritorena, 1.724

ss.; Scotti, II, 31].

Tampouco se restinge o juízo qualificador ao título ordinário (ou principal),

estendendo-se aos acessórios (ou complementares) [Chico y Ortiz e Catalino Ramírez,

193], nem se limita, sob o color da origem pública dos títulos, a apreciar os

instrumentos privados.

b) Registro.

Para o direito brasileiro vigente, a existência e a persistência de um registro,

cuja eficácia de algum modo se projeta para uma nova inscrição, também recai no

campo da qualificação registral, no limite de sua validez in se. Em outros termos, a

nulidade do registro ou sua deficiência expressiva devem sempre apreciar-se e podem

interditar uma nova inscrição, independentemente de simultânea declaração da primeira

(confira-se nosso Do Controle da Disponibilidade no Parcelamento do Solo, in Direito

Imobiliário – Coletânea – I, edição do Instituto de Ciências Aplicadas). Não se pode,

contudo, manejar a superveniente desconformidade do registro com o título em que se

amparou (arg. do art. 252, Lei 6.015, de 31.12.73) e mais amplamente com toda a

realidade extratabular; não se cuidaria já de apreciação do registro in se mas em relação

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com o título anterior. Diversamente, é de admitir a consideração do conjunto do

registro, vale dizer: não apenas do registro imediatamente anterior mas ainda das

inscrições remotas (Hedemann,130).

c) Títulos relacionados ao registro.

Também, juxta modum, tem-se admitido a estimativa de registros que, de

alguma forma, se relacionem ou com a filiação registrária considerada (registros

colaterais), ou com imóveis contíguos (o que, em outro âmbito, permite as colmatações

de medidas de contorno nas descrições imobiliárias), ou com pessoas intervenientes na

titulação (p. ex., conhece o registrador, diante de determinada inscrição, que o alienante

é pré-morto à elaboração de determinado título), ou, aqui mais uniformemente, com o

livro de Protocolo (para salvaguarda da prioridade). Mas o plano principal de

relacionação entre título exibido e registro anterior diz respeito ao controle da

disponibilidade (lato sensu, abrangendo a especulação adequada da especialidade

objetiva e a aferição do trato consecutivo). Não se admite, em princípio, o cotejo do

título com outro título em curso de registro, mas não seria irrazoável sua estimativa

conjunta em casos extremos de inautenticidade (inclusa a incapacidade não suprida: p.

ex., em outro título se verifica que o alienante é interdito).

d) Instância da qualificação.

A qualificação registrária sujeita-se ao princípio da instância, quanto ao

procedimento, que não se inaugura à mingua de rogação (ne procedat custos ex officio);

a desqualificação, enquanto resultado, impõe-se como tarefa oficial (García Coni, III,

111), porque o registrador é o guardião ou conservador da segurança jurídica

imobiliária. Em todo caso, a oficialidade da desqualificação supõe os lindes objetivos

antes apontados.

Consideração analítica do juízo qualificador

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Dentro dos estreitos limites que aqui se impõem, por exigência de brevidade,

cabe estimar analiticamente a qualificação registrária, figurada desde a perspectiva do

direito particular de regência, sem embargo do muito que influiu e ainda influencia o

direito comparado e a doutrina estrangeira, sobretudo a argentina e a espanhola. (Mais

adiante se examinarão alguns aspectos particulares da qualificação dos títulos judiciais.)

a) Exame da própria competência.

O primeiro dos temas que o registrador considera, em ordem ao juízo de

qualificação, é o de sua competência registral em razão da matéria e em razão do

território (Scotti, II, 47). Freqüentemente, desde logo se aprecia o tema dessa

competência, no ato mesmo de recepção do título, o que a doutrina chama de

qualificação abreviada, que excepciona a integralidade do juízo qualificador.

b) Análise de eventual impedimento próprio.

Prevê-se em lei o impedimento, que é matéria de passo subseqüente ao do

exame da competência própria para a qualificação (art. 18, Lei 6.015, cit.; “competência

pessoal”, no dizer de Cárcaba Fernández, 176; Costa Magalhães, 23), porque a

exigência de segurança jurídica impõe a imparcialidade do registrador (e a do notário:

Vallet, IV, 324), enquanto terceiro que dá forma (freqüentemente) a uma aquisição ou

oneração. [Refiro-me à inscrição constitutiva: ela é forma dos direitos reais imobiliários;

o titulus é mera potência que se atualiza pelo modus adquirendi; ora, próprio da forma é

atuar a potência passiva, que é a matéria, de sorte que a forma consuma a existência da

coisa e se inclui no constituído (Suárez, 922, 1.192 e 1.211).]

c) Rogação.

Não se deve, a pretexto de observar o princípio da instância, transformar a

rogação de registro num ato solene, formalismo incompatível com a dinâmica que se

reclama do sistema publicitário (particularmente se se considera a inscrição de efeitos

constitutivos), mas o fato é que apenas ut in pluribus a recepção dos títulos se confunde

com a instância de seu registro. É que o direito normativo vigente reclama, para a

averbação, requerimento do interessado, com firma reconhecida (par. ún., art. 246, Lei

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6.015, de 31.12.1973), mas, quanto ao registro stricto sensu, basta a apresentação do

título, contanto que não se excepcione a intenção registral.

Nesse passo, o direito brasileiro distingue a qualificação em ordem imediata ao

registro e a qualificação sem efeito diretamente inscritivo (títulos que são apresentados

“apenas para exame e cálculo dos respectivos emolumentos” – par. único, art. 12, Lei

6.015, cit.). Assim, impõe-se esta classificação: 1 – casos de rogação de registro; 2 –

casos em que há mero requerimento de qualificação, sem escopo de imediato registro; 3

– casos anômalos – mas lamentavelmente não de todo infreqüentes – em que títulos

“aparecem” nos Ofícios Imobiliários sem que se saiba, a seu propósito, se há ou não

instância de registro ou de mero juízo qualificador. A solução dos casos passa, muito

comumente, por regulações locais, particulares, mas, de toda sorte, ao registrador cabe

sempre apreciar, sem feiticismos formalistas – o que não implica desapego da forma –,

se se encontra diante de uma ou de outra situação. Não é demasiado observar que, além

do evidente reflexo jurídico da inscrição (p. ex., no limite pense-se em um distrato que

permaneceu exógeno ao registro, exatamente porque não se inscreveu o título

primigênio, que é um destes que repentinamente “aparecem” nos escaninhos da

recepção...), há o tema do dispêndio pecuniário com a registração.

É preciso ainda considerar a persistência da rogação. Não basta o intento

inaugural, senão que se exige sua permanência, presumida em caso de silêncio do

apresentante. A desistência, que se pode eficacizar até a ultimação do registro,

interrompe o iter registral, de sorte que, acaso já proferido o juízo qualificador, perde

ele seu efeito (Scotti, II, 107). Outrossim, admite-se a desistência parcial do

procedimento, suposto que do título decorra mais de um registro (Pau Pedrón, II, 57;

Cárcaba Fernández, 157), sempre resguardada, para a pretensão remanescente, uma

requalificação do registrador, porquanto há casos em que a desistência parcelar engasta

a desqualificação quanto ao restante (p. ex., figurem-se uma compra e venda e uma

hipoteca subseqüente disposta pelo adquirente, no mesmo instrumento notarial, em face

de uma desistência parcelar relativa ao registro da aquisição).

Tendo em linha de conta que, no Brasil, o registro pode (em princípio) ser

provocado por qualquer pessoa, com independência de fundamentação de interesse (art.

217, Lei 6.015, cit.), ainda que o apresentante seja terceiro que pelo registro perseguido

não adquira legitimidade tabular, não pode o beneficiário da inscrição pretendida

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desistir do procedimento por aquele instado. O que se ressalva é ulterior providência de

cancelamento, mas, ainda assim, cumpre ver que há casos de subsistência da

potencialidade de novo registro, desta vez, contudo, comprovado o interesse (art. 254,

Lei 6.015, cit.: não se trata, nesse preceito, apenas do credor que, com o registro, se

tornará registral; qualquer credor poderá rogar a nova inscrição, provando

documentariamente o interesse).

d) Registrabilidade do título in abstracto.

Se, quanto ao objeto, em si (imóvel ou móvel) e em sua ubiquação, e quanto à

finalidade do registro buscado (situação real ou pessoal), o exame primeiro da própria

competência supera uma análise posterior, o mesmo não se pode dizer da

irregistrabilidade in abstracto da causa. A diferença de efeitos é patente: no primeiro

caso, desqualifica-se por incompetência em razão da matéria ou em razão do território;

no segundo, desqualifica-se porque a causa é irregistrável perante o registro competente,

de que emana o juízo desqualificador. A registrabilidade depende da previsão

normativa: se a lei de regência inadmite a inscrição de posse ou de comodato, de leasing

ou de multipropriedade, de protesto contra alienação de bens ou de arrolamento

cautelar, tudo isso deve ser apreciado, no âmbito compreensivo do sentido normativo da

lei, e envolve um ato primeiro de exame da causa, com abstração de seu instrumento.

e) Formas documentais extrínsecas.

Admitidos a registro títulos públicos e particulares, aqueles, judiciais, notariais

e administrativos, verifica-se desse modo a variedade dos requisitos extrínsecos da

documentação a examinar. De maneira geral, em todo caso, se analisam nos

instrumentos, entre outros e particulares pontos:

1 – a viabilidade registrária do documento, segundo sua forma (art. 221, Lei

6.015, cit.; mas o dispositivo não relaciona em numerus clausus: Valmir Pontes, 148);

2 – a determinação (ou individualização) e a especialidade (ou qualificação:

estado civil, profissão, domicílio, nacionalidade) das partes (mas, note-se bem, nada

impede que a especialização subjetiva lacunosa no título ordinário se complete com

documentos acessórios idôneos);

3 – intervenção e outorga das partes;

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4 – exposição (pode dizer-se parte antecedente, síntese expressiva das

premissas do negócio jurídico: nessa parte descreve-se o objeto do ato, justifica-se a

disposição, descreve-se o imóvel, indica-se-lhe a situação real, determina-se-lhe o valor

– Giménez-Arnau, 630 ss.; Emérito Gonzalez, 201 ss.; Chico y Ortiz e Catalino

Ramírez, 209 ss.);

5 – estipulações ou parte dispositiva (conclusão da exposição, conseqüente das

premissas do negócio jurídico, em que “se establecen los acuerdos, pactos y

modalidades del negócio jurídico que la escritura se propone solemnizar” – Giménez-

Arnau, 643);

6 – originalidade do documento, que não pode ser exibido em cópia

reprográfica; também não se autoriza a utilização (enquanto substitutiva de títulos

ordinários ou principais) de certificados de registros conservatórios;

7 – para as escrituras tabelioas, entre outras questões particulares: competência

do notário, ausência de impedimentos notariais patentes (Pelosi, 164 ss.), observância

do procedimento (leitura, correções e entrelinhas regularmente ressalvadas), subscrição

do traslado pelo notário ou seu substituto legal (Costa Magalhães, 23);

8 – para os títulos privados: sua subordinação aos limites legais (art. 134,

Código Civil), reconhecimento dos autógrafos dos intervenientes, comparecimento de

testemunhas, datação;

9 – a apresentação de documentos acessórios.

Muito mais se poderia relacionar (p. ex., o tema de rasuras em matéria

acidental, o das abreviaturas e o das abreviações, o dos espaços em branco, o das

assinaturas a rogo, o da presença de impressão dactilar, o dos documentos estrangeiros,

o da autorização judicial, etc.), mas isso não condiz com os limites a que nos

propusemos. Bastam essas referências.

e) A expressão verbal.

Ao lado de uma compreensão do sentido normativo da lei e antes ainda da

tarefa interpretativa (mediação entre a norma e a realidade), impõe-se ao registrador a

compreensão da causa, equivalente específico da diagnosis del hecho (na linguagem de

Castán) ou do tratamiento jurídico del hecho, no dizer de Vallet. O cotejo mediador

entre a norma e a causa supõe a prévia compreensão de ambas, e seu entendimento

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passa por isto que Bernanos, por uma de suas personagens, dizia ser uma imensa

desgraça humana: a incapacidade da palavra, sua insuficiência, sua deficiência

significativa, sua menor claridade. Dínio Garcia (83) observa que a linguagem natural

adotada pelos juristas (e, mais além, se pensarmos nos títulos particulares, elaborados

por “juristas” in eventum) é fértil em problemas semânticos, “não só em razão da

multiplicidade de significados que em regra acompanha o uso vulgar, mas sobretudo

porque o Direito não recebe pura e simplesmente as palavras da linguagem comum, mas

as transforma”, e, prossegue o Autor (84), referindo-se ao ideal da univocidade da

linguagem jurídica, se ainda “a linguagem das ciências exatas não elimina a incerteza”,

embora a reduza, “como pretender que a ambigüidade seja de todo eliminada no âmbito

do Direito?”

Compreender a causa registral é desvelar sua realidade: é ir do termo ao

conceito formal, para descobrir o conceito objetivo. É este o que mais conta, não a

expressão deficiente; vale o dictum, enquanto expressão do actum; vale a substância,

não o nomen iuris: comodatos onerosos, vendas e compras gratuitas, condições que são

encargos, locações que são enfiteuses... O que se qualifica em ordem ao registro é a

causa, não sua isolada expressão verbal, contanto que aquela se desvende certamente da

intelecção do documento exibido.

f) Capacidade dos outorgantes e validade dos atos dispositivos.

Sob essa rubrica mais ampla, indicam-se não apenas a capacidade jurídica

(arts. 2.º, 4.º e 10, do Código Civil) e a capacidade de agir (arts. 5.º e 6.º, do Código cit.)

dos que intervém na instrumentação da causa, especificando-se temas como o da

representação (p. ex., arts. 17, 84, 384, V, 426, I, Código cit.) e o da assistência (arts.

384, V e 426, I, Código cit.), mas igualmente “outras circunstâncias dimanantes de seu

estado civil ou de sua condição pessoal que exerçam influxo na legitimação e no poder

de disposição necessárias para levar a cabo os atos e negócios jurídicos (p. ex.,

nacionalidade, existência de proibições legais, suficiência de um poder de representação

voluntária, aptidão do representante legal)” (Díez-Picazo, 318, 319). Pense-se na

indisponibilidade de bens, na ausência, na interdição, na emancipação, nas restrições de

aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, nas aquisições pretendidas por espólios

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(tema que pende, entre nós, de importantíssimas distinções), massas falidas e

condomínios em edifício, etc.

A matéria deve ser particularmente examinada desde a perspectiva do direito

posto, sobretudo com a distinção entre nulidade e anulabilidade dos atos jurídicos, na

medida em que são nulos os praticados por pessoa absolutamente incapaz (n. I, art. 145,

do Código Civil) e anuláveis (n. I, art. 147, Código cit.) – bem por isso ratificáveis (arts.

148 e 149, do Código Civil) – os feridos de incapacidade relativa do agente. No

primeiro caso, cabe a desqualificação, por admitido o exame oficial (art. 146, do Código

Civil); no segundo, entretanto, certo que a anulabilidade não se pronuncia de ofício e

não tem efeito antes de julgada por sentença (art. 152, do Código cit.), inviável é seu

reconhecimento no juízo qualificador. Nesse sentido e entre nós, a doutrina, indicada já

por Afrânio de Carvalho (257), de Tito Fulgêncio (322) – que Carvalho Santos (453)

abona –, de Pontes de Miranda (279), do mesmo Afrânio de Carvalho (embora não a

prefira de lege ferenda: 257); veja-se ainda Valmir Pontes (98, 99); entre os

doutrinadores estrangeiros, confira-se Díez-Picazo (322, 323); contra: Philadelpho

Azevedo (53) e Costa Magalhães (23); distinguindo, Serpa Lopes (349), para admitir a

desqualificação por incapacidade relativa ou deficiência extrínseca do ato, recusando-a

quanto às anulabilidades derivadas de vícios volitivos. Como quer que se projete a

questão, no plano da conveniência de um sistema registral hígido (em todo caso, haveria

muitos aspectos a examinar), o fato é que, diante do direito posto, não se pode retirar

efeitos aos atos anuláveis enquanto não houver sentença que assim os julgue; calha

observar que a divisão entre atos nulos e atos anuláveis se apóia no critério da

prevalência do interesse público (para os primeiros) e do interesse individual (quanto

aos segundos), não se justificando que, à margem daquele nível de interesse, o

registrador se ponha em custódia de um interesse parcelar, rompendo a imparcialidade

de sua atribuição – sem justificativa de matiz público. Ademais, ao menos se se pensa

na publicidade declarativa, a inscrição não aumenta a eficácia documental, senão que

torna cognoscível mais facilmente um excesso de eficácia exógena (força probante

absoluta do ato público), que prejudica o tráfico jurídico (Rodrigues Adrados, 64), o que

até, pois, recomendaria a preferência de sua efetivação.

g) Problemas fiscais e urbanísticos.

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Antes da vigência do Decreto 18.542, de 24.12.1928, Tito Fulêncio (323)

ensinava que o título com deficiência meramente fiscal não comportava desqualificação,

com que, ao cabo, compreendia a norma do art. 1.137, do Código Civil, sob a óptica do

preponderante interesse do comprador (art. 677, par. único, do Código cit.). Com o

advento do Decreto citado e a legislação posterior (v.g.: Regulamento de 1939, art. 15;

Dec.-lei 58, de 1937, art. 1.º, IV; Lei 4.591, de 1964, art. 32, a e c; Lei 6.015, de 1973,

art. 289), mais não se pode entre nos sustentar o antigo entendimento do jurista mineiro,

em que pese a sua preservação de lege ferenda. Nesse sentido, a correta conclusão XIX

declarada na carta de Buenos Aires: “Los Estados deben evitar la sanción o derogar la

vigencia de normas que restrinjan, limiten o demoren la registración, sin perjuicio de

arbitrar los medios idóneos para garantizar el cumplimiento de sus disposiciones

administrativas y tributarias” (I congresso Internacional de Direito Registral, 1972).

Quanto ao reflexo registrário de temas urbanísticos fundamentais –

parcelamentos, reparcelamentos e limitações à edificação (Chico y Ortiz, IV, 481 ss.) –,

não é possível perder de vista o conflito doutrinário e ideológico que se encontra

radicalmente na questão, instalado no exercício da propriedade imobiliária privada. Não

se quer afirmar, de um lado, uma confiança extrema e feiticista na absoluta liberdade do

tráfico predial; mas, de outro, o remédio com que se diga corrigir o espontaneismo del

mercado (Martín Mateo, 1.245 ss.) somente se legitima enquanto não vise á negação do

próprio direito de propriedade, freqüentemente convertido em mera e caricaturada

função social. O direito urbanístico parece ser o desaguadouro de já frustrados ataques

ao domínio privado, com que, pretextando a ordenação social do solo urbano, não

raramente se desordena a propriedade. É interessante observar o que, ainda em nossos

dias, vem ocorrendo no âmbito das locações, principal fórmula de solução do problema

habitacional moderno (Vallet de Goytisolo, V, 546), em que sucessivas intervenções

estatalistas no mercado têm conduzido à diminuição das ofertas de imóveis; ora, os

fatores restritivos da elasticidade da oferta conduzem ao empobrecimento social: preços

políticos, preços coativos – com reajustes limitados ou obrigatórios –, preços não-

mercantis, sob o color da utopia do “preço justo” (Lamsdorff-Galagane, 75, 199),

diminuindo a quantidade de intercâmbios, impedem que a elasticidade da oferta atue

como um natural mecanismo corretor do mercado: ou seja, a pretendida correção

estatalista do mercado é o principal impedimento de sua correção. O mesmo vício de

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inelasticidade da oferta que se aponta para o capitalismo privado monopolista, por

evadir a concorrência – fundamento da elasticidade da oferta –, deve ser reconhecido (e

acaso com maior vulto) tanto no capitalismo estatal monopolista, quanto no

açambarcamento do controle de preços; não é, pois, sem razão que regimes estatalistas

se apresentem como herdeiros dos monopólios capitalistas privados, certo que o

resultado de todas essas monopolizações é o alheamento da sociedade do mútuo

enriquecimento no intercâmbio (Lamsdorff-Galagane, 75, 76).

Muito freqüentemente, afirma-se, em nossos tempos, a função social da

propriedade, com que, se diz, esse direito há de suportar limitações e restrições em vista

de sua ordenação ao bem comum. Pode lembrar-se a propósito, ainda hoje, antiga lição

de Vareilles-Somiéres, que ao princípio do século sintetizava: “La proprieté est

seulement le droit de tirer d'une chose tous ses services sauf exceptions. (...) Sur la

chose, le propriétaire peut tout, excepté certains actes (...)” (444). Respondem essas

exceções tanto à natureza das coisas, e então se diz que o exercício do direito de

propriedade suporta limitações impostas pelo direito natural, quanto ao direito positivo,

em que, pesadas as circunstâncias concretas, melhor se ordena o exercício do domínio à

realização de sua função social, a que também, entre nós, se refere a vigente

constituição da República (art. 5.º, XXIII; art. 70, III). Então se fala em restrições de

direito normativo. O que se deve examinar é se as restrições das leis não terminam por

vulnerar, com excessos reprováveis, o direito de propriedade privada – que é necessário

à vida humana (“necessarium ad humanam vitam” – Santo Tomás, Suma Teológica, Q.

66, art. 2.º, respondeo). Se é certo que as limitações e as restrições são, em princípio,

igualmente necessárias à vida humana, bastando recordar, com Messner, que “a

primeira função social da propriedade privada é a delimitação clara entre o que é de um

e o que é de outro” (1.240, 1.241), ó que é indispensável para a paz social, não menos

correto é que as restrições (de finalidade urbanística ou não) que se imponham em nome

da função social do domínio são sempre posteriores à determinação histórica da

essência da propriedade e respeitosas dela. (Acrescente-se, de caminho, que impende

evitar o demasiado dos requisitos administrativos para a inscrição predial, exagero que

fomenta o clandestinismo imobiliário.)

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Qualificação dos títulos judiciais

Vistas uniformes, entre nós, na doutrina e no que, com López Medel, se pode

chamar (sem extrapolações quanto à natureza da função) de justiça registral, conduzem

à admissibilidade da qualificação dos títulos de origem judicial. O apoio que se possa

buscar na doutrina estrangeira [p, ex., a espanhola: Roca Sastre (271 ss.), Lacruz (I,

396), Hernández Gil (151, 152), Cossío y Corral (172, 173), Cano Tello (122, 123),

Mena y San Millán; e a argentina: García Coni (III, 124, 125), SCOTTI (II, 593 ss.)]

tem certamente a dificuldade de que as respectivas leis de regência contém prescrições

que não encontram similar no direito brasileiro vigente. Isso por si só já explica a menor

extensão com que a matéria vem cuidada em nossos doutrinadores, em que pese ao

reconhecimento da pertinência da qualificação registral dos títulos judiciais (p. ex.:

Serpa Lopes, 355; Afrânio de Carvalho, 249 ss.; Walter Ceneviva, 128). Ressalve-se,

porém, que a Lei argentina 17.801, de 28.6.1968, exige uma consideração sistemática de

dois dispositivos gerais (arts. 3.º e 8.º) para assentar os traços da qualificação dos títulos

judiciários, ao passo que o Regulamento Hipotecário da Espanha contém norma

específica; em ambos os casos, como quer que seja, há maior amplitude normativa do

que no direito brasileiro.

Se não se pode falar, propriamente, em que haja no Brasil um direito pretoriano

ordenador dessa qualificação registrária dos documentos judiciais, até porque a lei

regente autoriza quodammodo admiti-la (p. ex., arts. 221, IV, 222, 225 e 226, da Lei

6.015, de 1973), é adequado reconhecer que a especialização desse direito é de origem

Judiciária. O exame de julgados relativos à matéria conduz à impressão de que as

decisões não refletem diretamente o influxo do direito e da doutrina estrangeiros. Antes

(e o afirmo dentro de limites informativos que preciso ressalvar – sempre é bom advertir

que no Brasil há mais de duas dezenas de justiças registrárias estaduais – mas o afirmo

também com o peso de uma considerável experiência judicante nessa área), parece que a

elaboração desse complemento especializador dos requisitos e da extensão do juízo

qualificador de títulos judiciais se ensejou de modo autônomo, à luz de princípios e

regras gerais, sem excluir sequer os mais remotos (no nível do direito civil, processual

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civil, constitucional, tributário, administrativo e até penal – incluso normas de seu

processo).

A despeito dessa autonomia formativa, os resultados a que se podem sintetizar

as conclusões – acaso, com abstração dos julgados que, exceptivamente, e, no limite,

algumas vezes sob a escusa de peculiaridades vertentes, se afastam de um paradigma

redutor – não discrepam, no geral, da doutrina estrangeira invocável (sobretudo a

espanhola e a argentina; seria em todo caso interessante estudar se o descabimento de

adoção entre nós da doutrina alemã, resumida a qualificação germânica ao negócio

abstrato, sem atingir a causa, teria conduzido nossos primeiros jusregistralistas a

encaminhar-se à via autônoma indicada).

Quatro temas fundamentais podem ser retraçados (e discutidos) no plano da

qualificação de títulos judiciais:

1 – a verificação da competência judiciária;

2 – a apuração da congruência do que se ordena ao registro com o processo

respectivo;

3 – os obstáculos registrais;

4 – as formalidades documentárias. Examinar-se-ão brevemente aqui os três

primeiros pontos, já cogitado atrás o último num âmbito mais genérico.

a) Competência.

De consonância com o Regulamento Hipotecário espanhol, art. 100 (até

novembro de 1982 – com a vigência do Real Decreto 3.215 –, correspondia ao art. 99),

o primeiro tema do juízo qualificador dos títulos judiciais é o da competência da

autoridade judiciária em que se formaram (Mena y San Millán, 56; também no direito

argentino: Scotti, II, 605). Diz com razão Mena y San Millán (59) que “es indiscutible

que el Registrador tiene que establecer antes de practicar operación alguna, si lo que se

establece o manda está realmente establecido o mandado”.

A divisão da competência – e particularmente sua estimativa enquanto matéria

de objeção – deriva do direito posto (constitucional, processual civil e organizatório, da

justiça) e guarda extrema relevância para a qualificação. É certo que, ainda no direito

brasileiro, a competência da autoridade judiciária em que se forma o título inscritível

deve ser apreciada pelo registrador, que, no entanto, apenas se limita ao exame da

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competência absoluta. Isso também pode sustentar-se na Espanha, como fazem ver,

mencionando decisão da Direção Geral dos Registros e do Notariado, os anotadores da

Legislación Hipotecaria da Editorial Colex (Madri, 1988, 240): “cabe la sumisión de las

partes a un determinado Juzgado, bien expresa, bien tácitamente, en cuyo caso no puede

el Registrador apreciar incompetencia del Juez, ya que ello supondría erigir al primero

en defensor de los intereses de las partes, que éstas pueden ejercitar en la forma que

estimen más oportuna”. Na mesma direção, Scotti (II, 606), invocando o apoio de De La

Rica y Arenal e da X Reunião Nacional de Diretores de Registro da Propriedade,

realizada em Bariloche, 1973.

No processo civil brasileiro em vigor, a competência relativa, no que respeita

às partes, só pode ser argüida mediante exceção, temporalmente limitada (não se exclui,

contudo, a prioridade lógica e cronológica da objeção, sempre judicial, desde que

ausente ato decisório: a competência, matéria de ordem pública, é o primeiro dado de

aferição epistêmica no processo). Em todo caso, enquanto interesse preponderantemente

às partes, o tema da incompetência relativa não pode ser apreciado pelos registradores,

em afronta da prorrogação legal (cfr. arts. 102, 112 ss. e 304 ss., do Código de Processo

Civil).

b) Congruência.

Impende distinguir a congruência dos julgados, numa perspectiva processual, e

a congruência do título amparador do registro com o julgado que o enseja, matéria que

se situa no nível registral morfológico.

Com efeito, a questão da congruência dos julgados, em si mesmos

considerados, inserta-se no âmbito do princípio processual do dispositivo, na medida em

que as partes dominam não apenas o direito substancial que almejam deduzir em juízo,

mas igualmente os direitos processuais que pretendem exercitar, e seu possível maltrato

é matéria jurisdicional, que não pode submeter-se à aferição registrária. Certamente, não

cabe aos registradores nenhuma função rescisória dos efeitos inscritíveis dos julgados, a

pretexto de sua incongruência processual, porque semelhante atribuição usurparia a

competência jurisdicional (Scotti, I, 610 ss.). (É conhecido um caso em que, julgada

extinta a usucapião após a justificação liminar, a Superior Instância, malferindo a

congruência de alçada, declarou de logo a aquisição pretendida, em acórdão que passou

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em julgado; prevaleceu o correto entendimento de que o registrador não poderia acenar

ao vício processual, cabendo aos interessados a via rescisória ou a reivindicatória.)

Diversamente, pode cogitar-se de uma incongruência morfológica do título

(formal) em relação à sentença ou ao acórdão a que se vincule. Já não se trata de

analisar uma incongruência processual, mas de relacionar eficazmente o título à decisão

judiciária. Ali, o ângulo de exame é causativo, respeita à normalidade da decisão; aqui,

é de efeito, é de relacionação entre o título formado e o julgamento que o propiciou.

Seria possível, em todo caso, anotar, entre nós, alguns precedentes que, prima

facie, sugeririam óptica e solução diversas. Tome-se o exemplo, mais de uma vez

emergente, de processos divisórios com ordenações inscritíveis de caráter demarcatório:

a extrapetição é espécie da incongruência objetiva, de natureza manifestamente

processual, e não pode subordinar-se ao controle registrário. Para evadir a alteração

produzida com maltrato da congruência processual, não é preciso (nem possível)

fulcrar-se nela, bastando que se objete com o princípio do trato sucessivo (vale dizer,

para a hipótese, a ausência, no título, de menção de efeitos contra os confinantes da

linha demarcanda); não se cuida de estimar causativamente a incongruência subjetiva,

mas de impedir que se vulnere a consecutividade tabular.

c) Obstáculos registrais.

Não falta, entre nós, apoio normativo genérico a que o registrador considere os

óbices postos pelo registro vigente às inscrições dos títulos judiciais, particularmente

nos planos da consecutividade do trato (arts. 195 e 237, da Lei 6.015, de 1973), da

especialidade objetiva (§ 2.º, art. 225, da Lei cit.) e da prioridade (arts. 186, 189 e 190,

da Lei cit.). Observa com razão Mena y San Millán (103) que, nesse passo, “se puede

llegar a esterilizar el fondo mismo de una resolución judicial, sin que ello implique

juicio sobre su esencia determinadora”.

Parece este o ponto azado para fazer aqui uma nova recorrência, que ponha em

particular destaque a importância dos princípios registrais no âmbito da ordem jurídica.

É preciso ter presente que a manifesta insuficiência do normativismo ensejou reações

tão voluntaristas e nominalistas, ao cabo, quanto o é o positivismo legalista. À idéia de

um conjunto de leis dos fenômenos sociais que, à maneira das leis físicas, induzisse

soluções ordenadoras pouco menos que absolutas, sucedeu a comprovação de que a

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irrepetibilidade dos fatos refugia das regras objetivantes: a cada fato seria possível,

então, corresponder uma nova lei, de sorte que a acumulação fática rendia ensancha à

hipertrofia regulamentar, sujeita a uma contínua insuficiência: esse nominalismo

extremo terminaria por desembocar em variantes irracionalistas (p. ex.: propositado

circiterismo normativo, correntes de direito livre, direito alternativo) ou no método

tópico, que, na tentativa de suplantar a deficiência do normativismo, recaíram em vícios

acaso piores. [Quanto à jurisprudência tópica, poder-se-ia para logo dizer, com Flume,

que o pensamento jurídico é sempre um pensamento problemático, de modo que o

reconhecimento da existência de problemas, à raiz da ciência e das soluções jurídicas,

não importa numa novidade da tópica moderna, nem implica a negação do pensamento

sistemático; demais, não é correta a identificação simplista do pensamento sistemático

em geral com o pensamento axiomático, de sorte que “„pensamento problemático‟ e

„pensamento sistemático‟ não têm de modo algum de excluir-se um ao outro” (Larénz,

186); demais, a tópica “é impraticável na medida em que se ligue à retórica, pois o

indagar pelo justo não é nenhum problema de pura retórica, por muito que sempre se

possa alargar também esse conceito” (Canaris, 255); além disso, se se prescinde do

direito normativo, abrindo-se ensejo a que o aplicador eleja arbitrariamente o topos

adequado ao caso, há o risco de ele concorrer ao irracionalismo judiciário (Menezes

Cordeiro, 52; a menos que se aferre a princípios primeiros da razão prática e às

conclusões éticas, a exemplo dos juriconsultos romanos – Vallet, II, 158, 159 – o que

conduziria, fatalmente, a uma ética abstrata): mas, ao contrário, para alcançar decisões

corretas, o juiz (principalmente mas não só: também o registrador, o notário, em geral

todos os operadores jurídicos)) o juiz deve “proferir uma decisão que se harmonize, em

primeira linha, com as regras do Direito positivo e com os princípios de valor que lhe

subjazem”, e por isso precisa mais estendidamente “de uma ciência jurídica que não lhe

dê a conhecer só as diversas regras e proposições decisórias, mas lhe revele também as

valorações que a estas subjazem, as suas relações, graus de hierarquia, dependências e

limitações recíprocas, e o jogo combinado das proposições jurídicas fundamentais

(princípios), dos institutos jurídicos e das regulamentações” (Larenz, 185); se a

jurisprudência tópica procura reatualizar a ética, deve reordenar-se menos como artifício

retórico do que como arte a serviço da eqüidade e, em todo caso, dirigir-se ao legislador

de preferência ao julgador.]

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A apreciação metodológica dos princípios registrais deve engastar-se nessa

visualização mais ampla do saber jurídico: a circunstância de o ponto central da

metodologia registrária ser a qualificação (a solução justa, correta ou segura) não

implica o propositado desconhecimento dos limites postos pelo direito normativo, sob a

escusa de supostas previsões injustas. Ao reverso, essa inclusão do juízo qualificador na

base da metodologia do registro responde ao traço teleológico que o justifica: a

conferência da segurança jurídica, enquanto fulcrada no direito positivo. Isso deve

referir os princípios registrais, numa linha acentuada, ao direito normativo, sem,

contudo, perder a consideração: 1 – da sindérese e da ética, enquanto forneçam

indicações para a compreensão da norma; 2 - e, quanto à aplicação, da total

consideração da realidade; assim, não se trata de separar princípios a partir de uma

dedução da lei positiva, mas de, sempre conformes a essa lei, estabelecê-los

compreensivamente à luz dos princípios sinderéticos, das conclusões da ciência moral,

do relacionamento inter-sistemático e dos princípios gerais do direito. Não se recusa que

a descoberta de problemas e a evolução subjetiva dos princípios estejam em íntima

relação (Chico y Ortiz, V, 828 ss.), mas a solução justa – salvo o extremo de uma ofensa

ao direito natural ou a lacunosidade normativa – passa pelo direito positivo (Santo

Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 57, art. 2.º, passim).

Nesse plano, põe-se em evidência uma tensão, ao menos aparente, entre o justo

(enquanto resultado de uma atuação jurisdicional) e a segurança jurídica assinada pelo

registro. Não se trata, por certo, de sobrepor a ordem da segurança à determinação da

justiça, mas de afiná-las, de modo que o justo se confira dentro de uma ordenação

segura, formalmente segura. Longe, pois, de sublinhar uma antinomia inexistente entre

justiça e segurança jurídica, a consideração dos obstáculos registrários (à luz de seus

princípios) para a inscrição de títulos judiciais resulta numa plena realização do bem

comum, certo que justiça e segurança jurídica não se atualizam em contraposição. Não

se está a afirmar que se deve fazer isto ou aquilo unicamente porque se deve,

unicamente porque a lei é obrigatória, mas que se deve fazer o que a lei determina

enquanto contém o justo natural ou o justo positivo (estamos longe, pois, do formalismo

kantiano, de cujo espólio o positivismo jurídico soube aproveitar-se). Mas, em

definitivo, quando se acena a um direito formal, o que se almeja é o efeito protetivo da

forma, com a preexclusão de conflitos (Roubier, 91 ss.), não porque se deve cumprir a

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lei, mas por sua referência a um aspecto material (a prescrição do justo ou do certo,

natural ou positivo; não falta razão a Javier Hervada (306) quando diz que o direito de

Kant “no es un derecho para personas, sino un derecho para esclavos”).

* * *

No que respeita ao trato sucessivo ou consecutivo, podem claramente invocar-

se os motivos últimos da segurança jurídica, a justificar o relevante papel de custódio

tabular que se impõe ao registrador no juízo de qualificação, porque não seria de admitir

que o legitimado registral tivesse vulnerada a situação jurídico-real à míngua de uma

disposição regularmente substituída pelo Judiciário (equivale a dizer que,

morfologicamente, o título há de afetar de modo expresso o titular registral, ainda que

não caiba o controle registrário de sua citação no processo). Põe-se dessa maneira uma

tutela oficiosa do interesse do terceiro hipotecário e da eficácia defensiva do registro.

Nesse âmbito é que se devem situar as freqüentes desqualificações por afronta da

consecutividade.

Note-se, para logo, que os obstáculos (melhor se diria: as garantias) postos pelo

trato sucessivo não visam apenas – nem primeiramente – à segurança dinâmica. Por

certo, dizem-lhe também respeito, mas o principal objetivo do sistema publicitário é a

proteção do legitimado tabular, é a segurança estática. Havíamos já afirmado essa

predominância (com os olhos mais certamente postos na publicidade constitutiva): “a

segurança dinâmica esperada do registro permanece, em certo aspecto, exterior à tábula,

e, de outro lado, restringida ao passado: antes da aquisição dominial ou a constituição

de direito real menor ela é simples confiança nos efeitos da segurança estática; depois

da inscrição aquisitiva, ela só ressona em relação ao pretérito (na eventualidade de

litígios sobre direitos anteriores), porque o adquirente ou credor com garantia real, uma

vez inscrito seu título, passa a gozar da proteção contemporânea decorrente do direito

posicional adquirido” (A Constituinte e o Registro de Imóveis, cit. 21-22). Não se nega

que a relevância e o mecanismo do trato consecutivo sejam históricos (Roca Sastre,

Lacruz) e não apenas derivados do derradeiro fato jurídico (até porque o objeto da

publicidade é a situação jurídica, não o fato – Ferreira de Almeida, 178 ss.), e tampouco

que isso importa na proteção do tráfico; o que se quer afirmar é a superior finalidade da

segurança estática, em que se apóia a dinâmica (Vallet, IV, 327, acentua a circunstância

de que a principal garantia do tráfico é a titularidade dominial e conclui: “La seguridad

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dinámica del tráfico se apoya así en la seguridad estática de la propiedad”). É possível

estimar um tanto exagerada a afirmação de Caperochipi, no sentido de que a

propriedade é o princípio epistemológico de todo o direito – acaso, o exagero se

corrigiria com dizer que “de todo o direito real” –, porque o confronto do socialismo

jurídico (e de outras concepções ideológicas) com o direito clássico ou tradicional

permite configurar outros e relevantes conflitos específicos: p. ex., divórcio, amor livre

contra o matrimônio monogâmico; aborto, eutanásia contra o direito à vida;

heteronomia de vontades contra sua autonomia, no plano obrigacional; estatalização da

herança contra sua transmissão; administrativização dos direitos contra sua pluralidade

elaborativa; auto-suficiência do direito positivo contra o direito natural; irracionalismo

judiciário contra o direito positivo (V. Urquieta, 63 ss.). Haverá, pois, tantos fulcros

epistêmicos quantas sejam as "zonas de combate" entre a concepção do direito clássico

(ou tradicional) e as várias concepções ideológicas modernas. É certo, no entanto, que a

questão mais relevante, na disciplina e nas situações jus-reais, é a da propriedade,

impondo-se sua presença na raiz dos direitos limitados e na da segurança dinâmica.

Ademais, cabe dizer, com Lacruz (II, 382), que o trato sucessivo não é um

suposto necessário ao exercício do atributo de disponibilidade, mas simples requisito de

inscrição, enquanto protetivo formal da titularidade dominial resultante da legitimação

tabular. Ou, nisto de Ferreira de Almeida (233): o trato consecutivo é a transposição

técnica para o registro de uma condição de validez do ato dispositivo.

Nessa perspectiva, é cômodo vincular a especialidade ao trato sucessivo,

sobretudo se aquela se considera em seu plano objetivo. É que a consecutividade

imobiliária deve necessariamente abordoar-se a um objeto (imóvel), determinado e

especializado: “Determinar essa substância corpórea indivídua é identificá-la por

algumas das categorias ou predicamentos que nos dizem qual é o modo de ser da

substância” (nosso Do controle da disponibilidade no parcelamento do solo, cit., 3).

Singularizar quantidade, figura e ubiquação dos imóveis é especializar o objeto sobre o

qual se estabelece em algum aspecto a situação publicada: a consecutividade, ao cabo,

se desenvolve nesse plano relacional que supõe necessariamente. (Avulta a importância

da especialidade objetiva, porque, na medida em que a base do sistema registrário seja o

imóvel, ele – especializado – é o critério atrativo das inscrições; sob o aspecto da

eficácia registral, a consecutividade aparece mais vultosa porque revela, sobretudo, o

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domínio, e é a via de atuação quer da fé pública, quer da legitimação – embora não

necessariamente (Peña y Bernaldo de Quirós 106).)

Tanto o trato sucessivo, quanto a legitimação registral (ou a fé pública, se o

caso) supõem a base objetiva especializada, não apenas porque prevalece o interesse

gnoseológico no âmbito jus-real (vale dizer, direito sobre res corpórea e determinada;

essencialidade da inerência), mas também porque a deficiência na publicidade é de

efeitos acaso mais graves para o tráfico do que a ausência dela. Nesse plano, põe-se a

distinção entre a situação publicitária apenas formal e a situação publicitária material:

naquela, a lacunosa enunciação tabular não permite extrair do registro sua integral

eficiência (trata-se de defeitos de determinação e especialidade, objetiva e subjetiva). A

circunstância de comumente se preservar a validez formal do assento – e, em certos

casos, admitir a seqüência matricial a partir de transcrições com vícios de especialização

imobiliária (mas não de determinação!) – é derivada de uma razão de política fundiária:

o que acrescentaria, eficazmente, a matriculação que já não tivesse efeitos na

transcrição? Diversamente, quando se trate de segregações prediais: o suposto

fortalecimento do tráfico imobiliário não se faz à custa do sacrifício da segurança

estática, nem com adrede risco de engendrar maiores dúvidas que as antes

inrregularmente assentadas (cfr. nosso Do controle da disponibilidade no parcelamento

do solo, cit., passim).

Ademais, ainda, dos obstáculos postos quanto à especialidade subjetiva (com

particular ressonância dos direitos matrimonial e sucessório), realça o óbice transitório

oposto pela prioridade. Afrânio de Carvalho (383, 384) viu muito bem essa

transitoriedade obstativa e não reconheceu eficácia persistente na prenotação: “Se, de

dois títulos sucessivamente protocolados, mas colidentes, o registrador faz a inscrição

do que foi numerado depois, a inscrição prevalece, não obstante, sobre o protocolo. É

certo que o protocolo regula a prioridade, mas o faz internamente, de sorte que,

desrespeitada pelo registrador, subsiste, apesar disso, a vantagem obtida irregularmente

pelo segundo título com a inscrição, porque é esta que regula externamente a posição

dos direitos, em face da qual terceiros os adquirem pela confiança que lhes inspira a

aparência registral”. (Como adverte Pontes de Miranda, também acentuando que a

prenotação assegura apenas internamente a prioridade para o registro, o vício da

inscrição não prescinde do contraditório e da jurisdicionalidade; entre nós,

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freqüentemente, a requalificação registrária, por isso que judicial, deixa nessa matéria

transparecer uma vocação jurisdicional.)

Agentes, prazos e recursos da qualificação registral – Breve anotação

crítica

Haveria muito o que escrever a propósito dos agentes, dos prazos e dos

recursos da qualificação registrária, mas não parece oportuno cogitar mais amplamente

desses pontos. Reduzo-me a umas poucas referências.

No que respeita aos agentes, e de consonância com nosso direito normativo, é

preciso acentuar a natureza e os lindes da requalificação judiciária. Não se passa, à

margem do dispositivo e do contraditório, de um juízo prudencial sui generis para um

ditame jurisdicional, seja quanto aos efeitos, seja quanto à matéria de discussão, sua

perspectiva e suas provas. É porque, muita vez, não se sublinha essa característica que

se vê uma insinuação jurisdicional no âmbito das requalificações registrárias. É

compreensível que os juízes deixem aflorar sua mais digna vocação, a da

jurisdicionalidade, mas (quando o que se faz é requalificar no plano registral) isso

confronta com os mais estritos limites de legalidade em que se move a qualificação

registral (ressalve-se a exceptiva da parte final do art. 198, Lei 6.015, cit.).

Quanto ao prazo para o juízo qualificador, é preciso (de lege ferenda)

distingui-lo do prazo de validade da prenotação, em cuja extensão se cuidará de

eventual saneamento dos títulos. A lei vigente não fez a distinção (art. 205, da Lei

6.015, cit.), e o trintídio previsto, abrangendo qualificação e prenotação, conduz à

deficiência (quando não ausência) de tempo para o saneamento. (Em São Paulo, José

Renato Nalini e outro dispuseram, em provimento, a divisão do prazo legal, de modo a

propiciar tempo útil para a regularização dos títulos durante a vigência de sua

protocolização, mas parece convir estabelecê-lo na lei.)

Por fim, quanto aos remédios contra a desqualificação (e sem prejuízo de

pretensões jurisdicionais e até mesmo do mandado de segurança – em todo caso, a

exigir disciplina singular e explícita), cabe anotar que, ao lado da desprocessualização

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do recurso da dúvida (para espancar a interferência jurisdicionalizante; V. Benedito

Silvério Ribeiro e outro, 18), parece convir a previsão da dúvida doutrinária.

Nota final

Trabalhei faz duas décadas com um jornalista português que, de dono do

Diário de Luanda, com a revolução marxista em Angola, veio para o Brasil com a

caneta, a liberdade e duas mudas de roupa; fomos amigos em tempos difíceis ou, como

se diz em Portugal, "de cortar a mesma côdea" – mas com fundas, firmíssimas

divergências de pensamento; ensinou-me um bocado esse Pereira da Costa, que (para

sua surpresa, justo ele que, influído do existencialismo de Sartre, era um ateu convicto),

o bom Deus já convocou a julgamento. Lembra-me dele que, certa vez, terminava de

imprimir-se o jornal, com uns tantos artigos do português, que não se dera o trabalho de

sequer olhar para os títulos impressos; sua explicação diante deste indiscreto inquisidor

veio fulminante: ele era pago para escrever, não para ler o que escrevia.

Eu, ao contrário, tenho a mania de ler o que escrevo e de implicar com o que

leio, reconhecendo-me naquele grupo de simples arrumadores de letrinhas, a que se

referiu Gustavo Corção (“Quanta letrinha acumulada! quantas baldadas tentativas de

dizer o indizível!”). Por isso, de bom grado me lançaria a reescrever todo este pequeno

estudo, se não fora para, terminada a recomposição, reestudá-lo uma e outra vez, numa

implicância sem fim: passaria a vida reescrevendo tudo – como disse alguém a

propósito de um livro que a admirável Régine Pernoud tencionava reelaborar. Contento-

me com o esboço de uma tarefa notoriamente infinda e inacabável, desde que se conte a

meu favor a submissão à realidade – ao Ser e ao Bem –, essa experiência das coisas –

experimenta de rebus –, com que é possível chegar à inteligência dos princípios

universais das ciências (Santo Tomás, Suma contra os Gentios, Livro II, cap. 83), esse

método realista que, sem desprezar futuras emendas, os esclarecimentos, os

aprofundamentos (eu me recordo da oração de todos os dias: “da mihi intelligendi

acumen, retinendi capacitatem, addiscendi modum et facilitatem, interpretandi

subtilitatem, loquendi gratiam copiosam”), se põe tão apto já para confrontar com a

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atualidade: as soluções éticas e jurídicas (esta é a perspectiva genuinamente cristã, como

faz ver Eric Voegelin) não têm que responder a valorações subjetivas, quando podem e

devem assentar numa elaboração metafísica apoiada, empírica e criticamente, na

realidade das coisas.

Assim, quando se pensa descobrir um caminho inteiramente novo, descobrem-

se o novo e o velho, o passado que se faz presente "e tem virtude para fazer-se futuro":

abre-se a ciência às próprias tradições.

Obras a que o texto remete

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1255: Introdución a la Filosofía de Santo Tomás de Aquino, Madri: Ed. Rialp, 1980,

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* * *

Refere-se ainda o texto à comunicação que fizemos, Benedito Silvério Ribeiro

e eu, ao XV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Vitória, 1988

(texto publicado na Revista de Direito Imobiliário n. 23).

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5.

PRINCÍPIOS DO DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO

ÁLVARO MELO FILHO

Professor da Faculdade de Direito da UFC.

Advogado do Banco Central do Brasil.

SUMÁRIO: Introdução – Desenvolvimento: a) Princípio da Publicidade; b) Princípio da

Fé Pública c) Princípio da Prioridade; d) Princípio da Especialidade; e) Princípio da

Disponibilidade; f) Princípio da Continuidade; g) Princípio da Legalidade; h) Outros Princípios

– Conclusão.

“Los principios registrales nos sirven de guía, economizan preceptos, y sobre todo

facilitan la comprensión de la materia y convierten la investigación jurídica en científica” –

LUIS CARRAL

Introdução

O Registro de Imóveis, quer na sua estrutura, quer no seu funcionamento,

obedece a um sistema, que não é eleito exclusivamente por uma questão de política

legislativa mas também por motivos de ordem técnica e científica.

Nessa perspectiva o domínio dos princípios gerais do registro de imóveis

permite ao legislador a criação de novos institutos e ao intérprete dar a inteligência dos

que no sistema se estruturam, o sentido e a aplicação das normas legais que os

disciplinam, propiciando, assim, a colaboração da ciência jurídica na obra incessante de

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aprimoramento do Direito Registral Imobiliário visando à sua adaptação às

circunstâncias ocorrentes e às transformações dos fenômenos sócio-econômicos.

Há, pois, indisfarçável utilidade no conhecimento dos princípios gerais que

orientam o registro de imóveis brasileiro, especialmente tendo-se presente a advertência

de Picard – “o homem não é feito para os princípios; os princípios é que são feitos para

o homem”.

“Princípio”, na linguagem comum, tem o significado de “começo”, “origem”.

Na linguagem científica o termo é adotado para expressar o elemento predominante na

constituição de um corpo orgânico, ou a essência (razão de ser do próprio ser) de uma

coisa sobre a qual assentam e da qual decorrem todas as demais.

Do ponto de vista da ciência do Direito, Clóvis Beviláqua preleciona que

“princípio é o elemento fundamental da cultura jurídica humana em nossos dias” (in

Comentários ao Código Civil, I, 108). G. Ripert define princípio como a noção primeira

que comanda um conjunto de regras. Vale dizer, os princípios jurídicos são as grandes

regras que presidem à manutenção da ordem geral. Larnaude acentua que, no plano do

Direito, os princípios representam as idéias gerais, admitidas não apenas em função de

textos propriamente ditos, constituições, leis, regulamentos administrativos, mas

também em face das decisões judiciais e da experiência ou da prática. Aliás, no dizer de

Gmur, “a segurança jurídica, objetivo superior da legislação, depende mais dos

princípios cristalizados em normas escritas do que a roupagem mais ou menos

apropriada em que se apresentam” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, de Carlos

Maximiliano, Forense, Rio de Janeiro, 1980, p. 124).

Por outro lado, a arte de ensinar Direito consiste, sobretudo, em discriminar e

ordenar idéias, de maneira a transmitir princípios essenciais relacionados à matéria. No

ensino jurídico, mais do que em outro qualquer, é fundamental compreender os

princípios porque o número de aplicações e de pormenores é infinito.

Roca Sastre (Derecho Hipotecario, 6.ª ed., t. 1/205, Barcelona, 1968)

reconhece o valor teórico e a eficácia prática dos princípios que, além de orientar o

julgador e economizar preceitos, “facilitan el estudio de la materia y elevan las

investigaciones a la categoria de científicas”.

Como ressalta Portalis, no seu Discurso preliminar anexo ao projeto do Código

Civil francês, há uma fórmula válida como guia para os intérpretes do Direito: “Estenda

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os princípios dos textos às hipóteses particulares, por uma aplicação prudente e

racionada; apodere-se dos interesses que a lei não satisfaz, proteja-os e, por meio de

tentativas contínuas, faça-os predominar”.

Não há outro motivo que, na análise de qualquer problema jurídico – por mais

trivial que ele seja (ou pareça ser) – o aplicador de Direito deve antes de mais nada

alçar-se ao altiplano dos princípios, a fim de verificar em que sentido eles apontam.

Nenhuma interpretação será havida por jurídica e, portanto, por boa, se ela direta ou

indiretamente desconsiderar um princípio.

O princípio possui uma função especificadora dentro do ordenamento jurídico:

ele é de grande valia para a exegese e perfeita aplicação, assim dos simples atos

normativos que dos próprios mandamentos constitucionais. O menoscabo por um

princípio importa na quebra de todo o sistema jurídico. É que o Direito forma um

sistema, é um axioma que nem sequer precisa ser demonstrado, já porque axioma (de

universal acatamento, diga-se de passagem), já pela proibição lógica do regressum ad

infinitum (da infinita reciclagem das premissas eleitas).

Foi advertindo contra a insuficiência de visão fragmentária, parcelada, dos

diferentes segmentos da ordem jurídica que o Conselheiro Ribas, na prefação de seu

Direito Administrativo Brasileiro, 1866, p. IX, pontificou: “Não há sciencia sem as

synteses fundamentaes; tiradas estas só resta informe acervo de ideas em cujo labirinto a

intelegencia não pode deixar de tranviar-se. Pelo contrário desque se possuem estas

synteses, dissipa-se o chaos, faz-se a luz e a ordem no pensamento; aparece constituída

a sciencia”.

“As sínteses, de que falava o vetusto Ribas, se constituem precisamente na

compreensão sistemática do todo, o que depende da identificação dos princípios. Só

aquecida ao lume deles pode a interpretação conduzir à inteligência do sistema

constitucional” (Criação de secretarias municipais, in RDP 15/287).

Efetivamente, deixou claro que o princípio é vetor e critério de inteligência das

normas, as quais devem ser sistematicamente compreendidas.

Convém recordar as lições sempre oportunas de Celso Antônio Bandeira de

Mello: “Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um

sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes

normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e

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inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no

que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios

que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por

nome sistema jurídico positivo.

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A

desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento

obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou

inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa

insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia

irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a

estrutura neles esforçada.

Agustin Gordillo, o eminente administrativista argentino, doutor da maior

suposição apostila a respeito: „La norma es límite, el princípio es límite y contenido. La

norma dá a la ley facultad de interpretarla o aplicarla en más un sentido, y el acto

administrativo la facultad de interpretar la ley en más de un sentido; pero el principio

establece una dirección estimativa, un sentido axiológico, de valoración, de espíritu‟

(Introdución al Derecho Administrativo, 2.ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1966, p.

176-177)” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Administrativo, 1.ª

ed., 1981, p. 230).

Compreende-se, então, o que Cretella Júnior denomina de "principiologia", ou

seja, o conjunto de cânones e os postulados que garantem a autonomia de um sistema

dentro do mundo jurídico, constituindo-se no alicerce fundamental de cada disciplina

jurídica, que se mantém firme e sólida, malgrado a variação, fugacidade e profusão de

normas.

Impende ressaltar, outrossim, que um princípio é algo mais geral do que uma

norma porque serve para inspirá-la, para entendê-la, para supri-la, cumprindo essa

missão relativamente a um número indeterminado de normas. Vale dizer, os princípios

jurídicos são critérios formais aplicáveis, em geral, em qualquer circunstância de lugar e

tempo. Não aludem a nenhuma hipótese em concreto, razão pela qual têm um sentido

bastante geral e amplo, extensivo a toda disciplina. Em frase bastante expressiva Gelsi

Bidart afirma que os princípios estão na base de toda disciplina porque a inspiram

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(penetram no âmago), fundamentam (estabelecem a base) e explicam (indicam a ratio

legis) das diversas normas concretas que constituem a estrutura normativa de cada ramo

jurídico.

Por sua vez Camellutti (in Sistema di Diritto Processuale Civile. I. Funzione e

Composizione del Processo, Pádua, 1936, p. 120) salienta que “Os princípios gerais do

direito não são algo que exista fora, senão dentro do próprio direito escrito, já que

derivam das normas estabelecidas. Encontram-se dentro do direito escrito como o álcool

no vinho: são o espírito ou a essência da lei”.

Em termos sintéticos, princípio é uma regra básica, implícita ou explícita que,

pela sua generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito

e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das

normas jurídicas com que ele se conectam.

Sem olvidar a citação de Marin Pérez para quem “lo que para una ciencia son

princípios, para la filosofia son problemas”, Garcia Coni in El Contencioso Registral,

Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 38, evidencia que os princípios do Direito Registral

lmobiliário “constituyen el presupuesto básico para el desarrollo organizativo de los

registros de la propiedad”.

Isto posto, passa-se à análise dos “princípios registrais” que são as orientações

capitais, as linhas diretivas do sistema, a série sistemática de bases fundamentais e o

resultado da sintetização ou condensação do ordenamento jurídico registral. “Princípios

são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de

certeza a um conjunto de juízos ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada

porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que,

apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como

fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus

pressupostos necessários” (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1.º v., Saraiva, 1969, p.

54).

Desenvolvimento

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Ainda que todos os especialistas sejam unânimes em afirmar a existência de

princípios do Direito Registral lmobiliário, são poucos os que se preocupam em expô-

los e estudá-los com profundidade, dando-lhes ordenação e sistematicidade.

A enumeração dos princípios registrais envolve toda uma vasta e diversificada

gama, quanto à importância, à extensão ou ao alcance do tema. Por isso há uma

variedade enorme de opiniões dos autores, sendo possível arrolar-se 12 princípios

diferentes. Aliás, a diversidade de princípios não advém do fato de que uns sejam mais

científicos do que outros, mas das circunstâncias de que seus arautos conduzem o

raciocínio por vias diferentes, e não consideram as mesmas questões da mesma forma. É

interessante notar que nenhum autor aceita mais de seis ou sete princípios, havendo

alguns que só reconhecem dois ou três. Isto demonstra que, às vezes, vários princípios

estão condensados em um só, assim como, outras vezes, um princípio desdobra-se em

muitos.

Reputando útil fazer-se este estudo, conquanto se trata de tema ainda não

abordado de maneira didática e prática, e, à falta de uma maior sedimentação ou

consolidação desse assunto, elaborou-se uma lista incorporando, refundindo e

eliminando alguns princípios propostos pelos diversos tratadistas, decorrendo daí o

seguinte elenco:

a) Princípio da Publicidade;

b) Princípio da Fé Pública;

c) Princípio da Prioridade;

d) Princípio da Especialidade;

e) Princípio da Disponibilidade;

f) Princípio da Continuidade;

g) Princípio da Legalidade;

h) Outros Princípios.

Um exame superficial destes princípios relacionados é suficiente para

demonstrar que em alguns casos trata-se de normas gerais que se desenvolvem através

de preceitos positivos concretos, outros correspondem a verdadeiras instituições

jurídicas, sendo que uns se referem a meros aspectos formais da instituição registral,

enquanto outros têm um autêntico valor e alcance substantivo.

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a) Princípio da Publicidade

Esse princípio é geral a todos os registros públicos, e, através dele, considera-

se que o registro torna público a todos o conhecimento dos atos e fatos registrados.

Para Garcia Coni “la publicidad contemporánea, como las encíclicas papales,

debe ser urbi et orbi, o sea, para la ciudad y el mundo, porque con respecto al derecho

de propiedad hay un retorno a la época del hombre nómade, que no se afinca en un solo

lugar” (in El Contencioso Registral, Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 42).

Pelo registro é possível indicar-se aos interessados o lugar certo onde encontrar

as informações necessárias sobre o estado da propriedade imóvel, e qualquer pessoa,

invocando a publicidade de registro pode pedir as certidões que entender, sem importar

ao oficial o motivo ou interesse que possa ter.

Os registros são, dessa forma, como um sinal exterior, ou meio legal de

publicidade, em garantia dos direitos com relação aos seus titulares e à validade de seus

efeitos, relativamente a terceiros. Os registros são feitos para ficar à disposição do

público e visam a amparar o crédito em geral e prevenir fraudes, além da garantia

natural que outorgam aos negócios.

Muito embora a lei imponha ao oficial a obrigação de mostrar às partes os

livros de registros, o princípio da publicidade não deve dar margem a abusos resultantes

de injustificadas curiosidades, com perigo de dilaceração ou mesmo de alterações nos

registros, por força de manuseios freqüentes e indeterminados, daí por que esse

princípio da publicidade há de ser compreendido, em termos. Assim, a obrigação de

exibição dos livros, por parte dos serventuários, se cinge a apresentar ao interessado,

não todos os livros ou fichas para pesquisa, o que transformaria o direito da parte numa

verdadeira correição, mas o livro ou ficha onde deve figurar o imóvel por ele indicado,

quer sob a base da menção à pessoa do proprietário, quer por meio da especificação do

imóvel.

O interesse da publicidade no registro imobiliário resulta, no dizer de Serpa

Lopes, da “necessidade de se lhe dar uma feição equivalente a uma espécie de estado

civil do imóvel, assinalando todas as suas mutações e recebendo o contato de todas as

circunstâncias modificativas, quer inerente à coisa, quer ao direito de seus titulares...”

(in Tratado dos Registros Públicos, 2.ª ed., A Noite, n. 598, p. 49-50).

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A exibição dos assentamentos constitui a publicidade material do registro, e a

publicidade formal é a que emana de certificação, informes ou cópias autênticas.

Para Tabosa de Almeida (in Revista de Direito Imobiliário, n. 11, p. 56), “a

publicidade formal tem o objetivo de criar a cognoscibilidade geral, possibilitando a

verificação dos atos jurídicos que, através dos livros, se realizam no Registro

Imobiliário. A publicidade material é a fides publica, a fé pública que, no dizer de um

jurista europeu, está em íntima relação com o princípio da legitimação. Alguns autores

reúnem esses dois num só princípio, denominando-o de „princípio de exatidão

registral‟”.

Acresça-se, por oportuno, que a instituição do sistema de matrícula dos

imóveis (Lei 6.015) significou uma mudança radical na sistemática registral brasileira,

substituindo-se a publicidade pessoal ou eclética pela publicidade real ou de fólio real.

Vale dizer, apesar da já existência do Indicador Pessoal e do Indicador Real, efetiva-se o

registro dos títulos, que, não raro, condensam vários imóveis, diversamente do que

acontece agora com o sistema de matrícula através do qual cada imóvel é objeto de um

cadastramento autônomo e individualizado – a matrícula – a partir da qual se

acompanha a história das mutações e a exata situação jurídico-real de cada imóvel.

Cumpre lembrar ainda que, em decorrência do princípio da publicidade, as

pessoas têm obrigação de conhecer o estado jurídico do imóvel, e, dessa maneira,

quando alguém comprar um imóvel que está onerado com uma hipoteca, não poderá

alegar nada contra o credor hipotecário, em função da publicidade dada à hipoteca com

o seu registro.

Na lição de Afrânio de Carvalho (in Registro de Imóveis, Forense, Rio, 1982,

p. 19), o Direito Brasileiro, desde a Lei Imperial de 1864, outorga à publicidade

registral “o duplo efeito de constituir o direito real e de anunciá-lo a terceiros. Antes da

publicidade, o ato cria obrigações entre as partes, mas, uma vez efetuada, perfaz a

mutação jurídico-real, investindo a propriedade ou o direto real na pessoa do adquirente

e, ao mesmo tempo, tornando o direito oponível a terceiros”.

Assim, o princípio da publicidade justifica-se facilmente pela necessidade de

dar a conhecer à coletividade a existência dos direitos reais sobre imóveis, uma vez que

ela tem de respeitá-los. Quando duas pessoas ajustam uma relação real imobiliária, esta

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transpõe o limite dual e atinge a coletividade por exigir a observância geral (erga

omnes).

Em face do princípio da publicidade todos podem e, em alguns casos, devem

saber da situação jurídica do imóvel registrado.

b) Princípio da Fé Pública

Ensina Alfonso de Cossio (in Institucioines de Derecho Hipotecario, 2.ª ed.,

Barcelona, Bosch, p. 201) que “se conoce por „fe pública registral‟ aquel principio en

virtud del cual se substituye en el tráfico jurídico inmobiliario de buena fe la faculdad

material de disposición, por el contenido del Registro, aunque éste no corresponda a la

verdadera realidad jurídica”.

Argentino Neri (in Tratado Teórico e Práctico de Derecho Notarial, Buenos

Aires, Depalma, 1969, v. 2, p. 423) fere, com propriedade, esta temática destacando que

“el fundamento de la fe pública se halla en necessidad que tiene la sociedad, para su

estabilidad y armonía, de dotar a las relaciones jurídicas de fijeza, certeza y autoridad, a

fin de que las manifestaciones externas de estas relaciones sean garantia para la vida

social y jurídica de los ciudadanos y hagan prueba plena ante todos y contra todos,

cuando aquellas relaciones jurídicas entran en la vida del derecho en su estado normal.

Tal es, en fin de cuentas, la imponente razón que há existido para reconocer a la fe

pública como el atributo de garantía erga omnes y la necessidad de fijarla en todo

instrumento aseverado por funcionario público competente”.

O conteúdo da fé pública registral estende-se a todas as soluções jurídicas

levadas a registro, e, por isso, abrange, positivamente, a existência dos direitos reais

registrados, e, negativamente, a inexistência dos direitos reais e proibições não

registrados.

Pelo sistema brasileiro, o título, per se, não prova o domínio porque a

propriedade se adquire pelo registro, donde a parêmia: “Quem não registra não é dono”.

Mas este registro também, por si não faz prova bastante do domínio, por que não é ele

ato originário, como é o título, mas derivado desse título, que poderá portar um vício

insansável. A prova do domínio, pois, segundo o sistema brasileiro, é feita com o título

registrado, do qual decorre, quer entre as partes contratantes, quer perante terceiros de

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boa ou de má fé, uma presunção relativa de domínio, que assim prevalecerá até prova

em contrário.

Em matéria de aquisição da propriedade imóvel pelo registro, adota-se no

Brasil, entre outros, do sistema francês o princípio de registro à vista de um título, e do

sistema germânico o princípio do registro como prova de domínio que, entretanto, induz

uma presunção relativa (juris tantum), jamais absoluta (juris et de jure) de propriedade,

ficando sempre ressalvada ao verdadeiro dono a prova em contrário. Presume-se

pertencente o direito a quem registrou. O registro produz todos os efeitos legais,

enquanto não for cancelado.

A jurisprudência pátria tem-se assim manifestado sobre o assunto:

“A presunção decorrente da transcrição de ser a propriedade de quem a fez é

juris tantum, e não jure et jure, admitindo, assim, prova em contrário” (RE 9.563, São

Paulo, in RT 169/383).

“Ninguém se torna proprietário por força exclusiva de transcrição,

independentemente de título válido.

A presunção do art. 859 do CC é relativa e admite prova em contrário.

Havendo conflito de transcrições, prevalece a que se funda em título válido”

(Ac. do TJSP, na Ap. 88.040, in Revista Forense, v. 185/218).

Dessa forma, através da força probante, fundada no princípio da fé pública do

registro, há presunção juris tantum de que o direito real pertence à pessoa em cujo nome

está registrado o imóvel.

O alcance deste princípio é dado por Afrânio de Carvalho (in Registro de

Imóveis), Forense, Rio, 1982, p. 211-212), ao prelecionar que “a fé pública tem a sua

influência limitada aos negócios jurídicos, vale dizer, aos acordos de vontades ajustados

entre partes, os quais constituem a tessitura do tráfico imobiliário. Fora desse círculo

negocial, a fé pública não opera, o que equivale a dizer que não protege as aquisições de

direitos advindos de atos judiciais, que ficam assim a descoberto. Noutras palavras, é

mais segura a aquisição, onerosa por escritura pública outorgada pelo proprietário do

imóvel do que por arrematação judicial em execução que lhe for movida.”

Além de só cobrir os negócios jurídicos, a fé pública cinge-se a amparar os

direitos que eles conduzem à inscrição, não os fatos carregados simultaneamente com

eles, como a situação geográfica do imóvel, sua extensão, sua exploração econômica,

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suas construções, seu preço. A fé pública protege a inscrição dos direitos, não dos fatos

a eles ligados, de sorte que a eventual inexatidão destes não se convalida em favor do

titular inscrito por ficar fora do abrigo do princípio.

Obedecendo ao disposto no art. 252 da Lei 6.015, c/c o art. 859 do CC, o ato

registral tem plena eficácia enquanto não for cancelado, ainda que se prove que o título

foi desfeito, anulado, extinto ou rescindido. A esse respeito assinala Tabosa de Almeida

(opus. cit., p. 57): “convém enfatizar que, nos termos do art. 252 da Lei Registral

brasileira, o cancelamento do registro é conditio sine qua non para que ele deixe de

produzir seus efeitos legais, não obstante inexato, e ainda que o título causal já não

subsista, em virtude do seu desfazimento, da sua anulação, da sua extinção ou da sua

rescisão. E atente-se para um fato de extraordinária importância jurídica e histórica: o

preceito é secular entre nós, pois vigora, ininterruptamente, desde 1865. O Código Civil,

vigente a partir de 1917, contém vários dispositivos que justificam aquele preceito, o

qual, em face de sua extensão e profundidade, levou o nosso sistema a poucos passos do

sistema germânico, resguardando a fé pública registral inclusive diante da coisa julgada,

enquanto não houver o cancelamento.”

“Fé pública – Distinção entre a menção feita a documento exibido ao tabelião e

a declarações das partes.

Atos formalizados antes da Lei 6.766/79, para excluir sua incidência,

consideram-se apenas os instrumentos que tenham sido registrados em Cartório de

Registro de Títulos e Documentos, ou em que a firma de pelo menos um dos

contratantes tenha sido reconhecida, ou em que tenha havido o recolhimento antecipado

do imposto de transmissão, ou, enfim, em outros casos em que, por forma segura, esteja

comprovada a anterioridade dos contratos.

A fé pública da escritura está em que as partes pactuaram o negócio perante o

tabelião. A circunstância fática da exibição de documento ao instante da lavratura do ato

notarial, em cujo teor aquele não é mais do que referido no conteúdo das declarações

dos outorgantes, não se situa sob o manto da fé pública”. ApCiv 2.024-0 – São Paulo –

Apelante: Luiz Kanashiro – Apelado: Oficial do 9.º Cartório de Registro de Imóveis

(CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 14, p. 132).

c) Princípio de Prioridade

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Os romanos já alardeavam a importância da precedência cronológica da

apresentação dos títulos no Registro de Imóveis através do aforisma: “Prior tempore,

portior jure”. Esse axioma constitui-se no fundamento basilar do princípio da

prioridade que, na prática, corresponde ao princípio emanado da física segundo o qual

dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.

Aliás, pode conceber-se a validade deste princípio pela possibilidade da

existência de dois ou mais títulos contraditórios. E esta contradição pode ser de dois

tipos:

a) Porque se trata de dois (2) direitos cuja coexistência seja impossível: por

exemplo, duas vendas de um mesmo imóvel por um só titular afigura-se como hipótese

de impenetrabilidade ou de “preclusão registral”;

b) Mesmo que se trate de direitos que podem coexistir, como duas (2)

hipotecas onerando um (1) mesmo imóvel, tal coexistência é juridicamente possível, só

que em ordem diferente denominada de grau.

Em face destes aspectos ressaltados, “no se deja para mañana el derecho real

que se puede constituir hoy”.

Assim, em decorrência da dificuldade para coexistir, no mesmo plano, os

direitos reais, quando coincidem sobre um mesmo imóvel, é necessário um critério que

sirva, por um lado, para determinar, dentre vários direitos incompatíveis (por exemplo,

várias pessoas pretendem ser o proprietário único de um mesmo imóvel), qual deve

prevalecer, e, por outro lado, entre vários que sejam conciliáveis, como hão de coexistir

e que preferência terá cada um em relação aos restantes.

Este critério é fixado no Direito Registral lmobiliário brasileiro através do

princípio da prioridade, segundo o qual, tratando-se de direitos de igual conteúdo, o

protegido é sempre o primeiro adquirente, e, na ordenação hierárquica dos direitos

diversos em coisa alheia, significa a possibilidade de se desconhecer o titular de cada

um desses direitos que se tenham constituído posteriormente ao primeiro. Em termos

mais simples, quem primeiro chega ao Registro obtém a proteção registral (desde que

reúna as condições exigidas) em relação aos que surgem depois, de modo que ninguém

que chega posteriormente pode prejudicar os direitos daqueles que já chegaram.

Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 140

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A prioridade é determinada pelo momento da apresentação do título para

registro. Em outras palavras, a propriedade, no Direito Registral lmobiliário, é garantida

pela ordem cronológica na apresentação dos títulos; e, para assegurá-la, o oficial, logo

após a entrega de qualquer documento, dará ao apresentante um recibo extraído de um

livro-talão, indicando expressamente a data da apresentação e o número de ordem que

lhe foi conferido. O título, assim entregue, será examinado quanto a sua legalidade e a

sua validade, fazendo-se o registro se o mesmo estiver em conformidade com a lei.

No magistério de Afrânio de Carvalho (op. cit., p. 217): “O princípio ampara

tanto o direito de propriedade, como os direitos reais limitados ou ônus assemelhados

que tenham ingresso no registro, como o da locação com cláusula de vigência contra o

adquirente. A propriedade tem eficácia, quer entre direitos da mesma categoria, como

direitos de propriedade, quer entre direitos de categoria diversa, como direitos de

propriedade de um lado e direito de hipoteca de outro.

A prioridade desempenha o seu papel de maneira diferente, conforme os

direitos que se confrontam sejam, ou não sejam, incompatíveis entre si. Quando os

direitos que acorrem para disputar o registro são reciprocamente excludentes, a

prioridade assegura o primeiro, determinando a exclusão do outro. Quando, ao contrário

não são reciprocamente excludentes, a prioridade assegura o primeiro, concedendo

graduação inferior ao outro”.

O que importa para determinar a prioridade não é a preeminência do direito,

mas a precedência da apresentação, assim exemplificada pelo autor citado:

Se o mesmo imóvel é vendido pelo dono A, sucessivamente, a dois adquirentes

diferentes B e C, e o C apressa-se em registrar sua escritura de compra e venda antes de

B, é ele que terá a prioridade, é ele que se tornará proprietário, mesmo que sua escritura

tenha sido lavrada posteriormente à de B. Por outro lado, se depois da venda do imóvel

a B e C, e antes que estes efetivem o registro, o proprietário A ainda consegue hipotecar

esse imóvel para garantir um empréstimo tomado ao Banco D, que, mais rápido do que

os compradores B e C registra tal hipoteca antes do registro de qualquer dos adquirentes

B e C, o imóvel transferir-se-á a C (o primeiro dos compradores a registrar) onerado

com o crédito hipotecário de D. Nesse exemplo, o adquirente C ultrapassou a B, sendo,

por sua vez, ultrapassado por D, conquanto o imóvel passará para C já gravado com a

hipoteca constituída em favor de D. Em síntese, a prioridade é o prêmio ou galardão

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atribuído à rapidez em concretizar o registro, dando-se estabilidade e segurança dos

direitos e elidindo o risco da contradição.

No campo doutrinário Pontes de Miranda (in Tratado de Direito Privado, v.

11/330) afirma que “desde a data em que a promove e obtém a protocolização, o bem

imóvel é seu. O negócio jurídico do acordo investe-o de tal poder”. Assevera mais

adiante o insigne autor que “a eficácia mesma da transcrição é desde a data da

protocolização, mas depende do bom êxito do pedido-exigência. Se houver

protocolização e não se procedeu à transcrição, ou porque se retirou a provocação

(pedido-exigência), ou porque foi denegada, a eficácia é nenhuma: se foi feita a

transcrição, a eficácia é desde a data em que se protocolizou o pedido”.

Como ministra Serpa Lopes (Tratado, v. IV/316), “a importância do protocolo

se afere pela magnitude dos efeitos que produz, a partir do momento que inaugura o ato

no Registro de Imóveis.

Essa importância vem até dos dizeres da lei, que o chama de chave do registro

geral.

Se a inscrição ou a transcrição representa o fato principal, a sua eficácia será

até certo ponto dependente da prenotação no protocolo, pois a prioridade do registro

depende da indicação trazida pelo protocolo.

Exerce função precípua quanto a uma das finalidades do registro, que é,

inegavelmente ao lado da constituição de direitos o de requisitos de disponibilidade e de

publicidade, a de um modo de estabelecer a prioridade dos direitos que lhes são afetos”.

Tabosa de Almeida (op. cit., p. 50-51) assinala que: “No Direito brasileiro a

adoção do princípio da prioridade foi explicitada formalmente pelos arts. 190, 191 e 192

da Lei 6.105. No primeiro deles se declara que não serão registrados no mesmo dia os

títulos que assegurem direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel. No segundo o

legislador faz referência direta ao princípio de prioridade, estabelecendo que

prevalecerão, para tal efeito, e quando apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados

sob número de ordem mais baixo, adiando-se, pelo prazo nunca inferior a um dia útil, o

registro dos títulos apresentados posteriormente. E no art. 192 ficou claro que o disposto

nos artigos anteriores (arts. 190 e 191) não será aplicável às escrituras públicas da

mesma data apresentadas no mesmo dia quando determinarem, taxativamente, a hora da

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sua lavratura, prevalecendo, para efeito de prioridade, a que foi lavrada em primeiro

lugar.

Através desses ditames legais o Direito brasileiro acolheu expressamente o

princípio de prioridade, não cabendo entre nós, por esse motivo, aquelas dúvidas que

têm sido suscitadas na doutrina jurídica espanhola em virtude da lacuna legislativa, que

vem sendo preenchida pela jurisprudência dos tribunais”.

Numa síntese bem elaborada, Alfonso de Coscio (op. cit., p. 170) salienta que o

princípio da prioridade é o “único tenido en cuenta por los sistemas de transcripción,

que, sin garantizar la validez de los títulos inscriptos, tan sólo concedián a guien

primeiro se acogia a sus benefícios, un puesto o rango preferente al de sus adversários”.

Todas estas lições doutrinárias estão corporificadas no art. 186 da Lei 6.015,

verbis:

“Art. 186. O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a

preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um

título simultaneamente”.

O princípio da prioridade sofre restrições impostas por regras de Direito

Tributário que dão ao Estado uma posição privilegiada e assecuratória dos créditos

fiscais e parafiscais, estabelecendo, desse modo, exceções à prioridade dos direitos reais

de garantia. Nesse tocante, o código Tributário Nacional, ao tratar das garantias e

privilégios do crédito tributário, assim dispõe no seu art. 186: “O crédito tributário

prefere a qualquer outro, seja qual for a natureza e o tempo de constituição deste,

ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho”.

A jurisprudência brasileira também já consagrou a aplicação do princípio da

prioridade, como se verifica das ementas a seguir arroladas:

“A entrada do título no cartório assegura-lhe a prioridade em relação a outro,

entrado posteriormente” (Ac. 273.618, do TJSP, in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982,

p. 60).

“Registro de Imóveis – Títulos contraditórios – Apresentação no mesmo dia –

prioridade. O critério da Lei 6.015/73, tirado do art. 833 do CC, é o primeiro e único

que o oficial e o Magistrado devem considerar. Repete-se para que não paire dúvida: o

único elemento que permite, entre dois títulos contraditórios, estabelecer o que tem

prioridade é o número que ambos tomaram no protocolo. Se dois títulos de conteúdo

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contraditório foram apresentados no mesmo dia, prioridade tem aquele que recebeu

número menor no protocolo. Não se pode comparar o conteúdo de ambos para tirar,

desse exame comparativo, critério não previsto na lei que rege os Registros Públicos”

(CSMSP – Ac. unân. publ. no DO de 12.07.1983 – ApCív. 1970-0 – Fernandópolis –

rel. Des. Bruno Affonso de André – Orlando Luca de Ceni vs. José Jacob de Menezes)

(in Adcoas, Boletim de Jurisprudência, verbete 94.128).

“Somente a prenotação do título, isto é, a documentação de sua apresentação

no Livro Protocolo (Livro 1), assegura a prioridade prevista no art. 186 da Lei de

Registros Públicos. Não tem esse efeito o lançamento feito no livro auxiliar de

protocolo permitido pelo par. único do art. 12 da mesma Lei” (Ac. 280.482, São Paulo,

29.06.1979, Des. Andrade Junqueira) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 293).

“Ao Oficial cumpre indagar do interessado, desde logo, se se trata de exibição

para prenotação (art. 12, caput, 182 e 183) ou para simples exame e cálculo de

emolumentos, independente desse lançamento (art. 12, parágrafo único), esclarecendo e

advertindo que a segunda hipótese, conquanto formalizada a apresentação num livro

auxiliar da Serventia, não importa concessão de prioridade alguma” (Ac. 280.482, São

Paulo, 29.06.1979, Des. Andrade Junqueira) in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p.

294).

“É desprovida de eficácia para fins de prioridade a apresentação de título ao

Registro lmobiliário sem que fique esta documentada no Livro Protocolo, na forma de

prenotação” (Ac. 280.482, São Paulo, 29.06.1979, Des. Andrade Junqueira, in Registro

de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 294).

“Posto se verse de dispositivo incondizente com o regime de prioridades, o

certo é que o art. 12, par. único, da Lei 6.015/73, enxertado pela Lei 6.216/75, autoriza,

para o só fim de exame e cálculo de emolumentos, apresentação à que não se segue

lançamento do título, no Protocolo, que, em caso de procedência, asseguraria a

prioridade de direitos” (Ac. 280.482, São Paulo, 29.06.1979, Des. Andrade Junqueira,

in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 294).

“Prioridade – Conflito de títulos com a mesma origem – Composição pela

prioridade do registro imobiliário.

Feita a promessa de cessão relativa à aquisição de cotas de um mesmo terreno a

duas pessoas, prevalece o título da que o registrou em primeiro lugar no Registro de

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Imóveis” (Ap Cív 3.429 – Rio de Janeiro – Apelantes: Sebastião de Mendonça Barreto e

Delphim Salum de Oliveira e s/m. – Apelados: os mesmos – TJRJ) (in Revista de

Direito Imobiliário, n. 3, p. 92).

“Prioridade – Antecedência na apresentação e prenotação de títulos

objetivando o mesmo imóvel negociado duas vezes – Critério subsidiário – Prevalência

do conteúdo intrínseco de ambos os títulos – Registro do segundo, se o anterior não

reúne os requisitos necessários.

A impossibilidade do registro simultâneo de títulos objetivando o mesmo

imóvel se resolve com o exame dos mesmos, para verificar se algum deles se impõe à

prioridade, pelo seu conteúdo intrínseco, dado que o critério de antecedência na

apresentação é subsidiário” (Ap Cív 257.341 – São Paulo – Apelante: Laurentina dos

Anjos – Apelados: Augusto César Salles Vanni e Oficial do 2.º Cartório de Registro de

Imóveis) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 2, p. 97).

“Prioridade – Título apresentado para simples exame e cálculo de emolumentos

– Inocorrência de prenotação no Protocolo – Conseqüências – Inteligência do art. 12,

caput, e seu par. único, da Lei 6.015/73.

O art. 12, par. único, da Lei 6.015/73 autoriza, para o só fim de exame e

cálculo de emolumentos, apresentação a que não se segue lançamento do título no

Protocolo, que, em caso de precedência, asseguraria prioridade de direitos. Aquela

forma de apresentação, embora deva ser lançada em livro auxiliar, de nenhum modo

equivale à prenotação para os efeitos previstos no art. 186 da mesma lei” (ApCív

280.482 – São Paulo – Apelantes: Miguel Roberto Cicgitosi e s/m. – Apelado: Oficial

do 3.º Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n.

5, p. 67).

“Prenotação – Efeitos – Título devolvido com exigências – Reapresentação –

Data que deve ser considerada para aquele fim – Inteligência do art. 534 do CC.

O art. 186 da Lei 6.015/73 gera maiores conseqüências que a mera prioridade

para efeitos de cotejo com outro título na batalha da precedência em busca do direito

real. O registro, superado o crivo cartorário, faz retroagir todos os efeitos, para todos os

fins, até a data da prenotação, como se o ato tivesse sido lavrado nessa oportunidade. Aí

a importância do Protocolo, chave de todo o sistema, e que tantos cuidados está a

merecer do legislador.

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Devolvido o título com exigência e conformando-se o apresentante, a data de

sua reapresentação deve ser o marco para efeito de análise de perfectibilização do ato,

inclusive de sua publicidade” (ApCív 26.249 – Porto Alegre – Apelante: João Carlos

Menda Poyastro – Apelado: Banco Mercantil de São Paulo S/A – TARS) (in Revista de

Direito Imobiliário, vol., 10, p. 71).

“Princípio da prioridade do registro – Distinção inexistente entre a transmissão

inter vivos e a mortis causa – Prevalelência do registro anterior até que venha a ser

desfeito ou cancelado.

Embora pelo instituto da saisina ocorra a investidura legal e instantânea dos

herdeiros e legatários nos direitos do de cujus, sendo o domínio adquirido pela sucessão,

e não pela partilha, que é mero ato declarativo da propriedade, esta só vale entre os

herdeiros e só prevalece perante terceiros depois de registrada. Havendo título

anteriormente registrado, com outra origem, prevalece por força do princípio da

prioridade, até que venha a ser desfeito ou cancelado” (ApCív 17.298 – Rio de Janeiro –

Apelantes: Espólios de Justina de Souza Liberalli e/o. – Apelados: Walter Lopes e s/m.

e/o. – TJRJ) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 14, p. 116).

d) Princípio da Especialidade

Denominado também “princípio de determinación” ele apresenta um duplo

aspecto nas palavras de Alfonso de Cossio (op. cit., p. 47): “en primer término, el de

que cada derecho real puede recaer sobre una determinada finca, y junca sobre todo el

patrimonio, ni sobre un número indefinido de inmuebles, y en segundo lugar, que ha de

indicarse numéricamente y en moneda nacional la cuantía del gravamen que se

impone”.

Como preleciona Garcia Coni (op. cit., p. 79): “el princípio de determinación o

especialidad, como también se le llama, se relaciona con el contenido de la registración

en cuanto a la descripción de la cosa, la especie del derecho, la identificación del sujeto

y el monto y plazo del negocio jurídico.

Del mayor o menor grado de determinación dependerá el grado de precisión a

que llegue el Registro, que debe verificar cuidadosamente la integridad y exactitud de

sus asientos em relación a la realidad jurídica extrarregistral”.

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Para Afrânio de Carvalho (op. cit., p. 247) : “o requisito registral da

especialização do imóvel, vertido no fraseado clássico do direito, significa a sua

descrição como corpo certo, a sua representação escrita como individualidade

autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto,

heterogêneo em relação a qualquer outro. O corpo certo imobiliário ocupa um lugar

determinado no espaço, que é o abrangido por seu contorno, dentro do qual se pode

encontrar maior ou menor área, contanto que não sejam ultrapassadas as raias

definidoras da entidade territorial”.

Aduza-se, a propósito, que a venda de imóveis ad corpus e ad mensuram,

prevista no art. 1.136 do CC, colide com o princípio da especialidade e com a

sistemática registral, ao admitir que o imóvel seja alienado sem ser “como coisa certa e

discriminada”, além de possibilitar que “tenha sido apenas enunciativa a referência às

suas dimensões”.

Convém não olvidar a lembrança de Tabosa de Almeida (op. cit., p. 53) que,

embasado na legislação vigente, destaca que: “O princípio de especialidade é aquele que

exige a identificação do imóvel rural mediante a especificação de suas características,

confrontações, localização, área e denominação. Tratando-se de imóvel urbano, a

identificação consistirá na declaração do logradouro em que fica situado, do número de

imóvel e de sua designação cadastral, assim como – seja rural ou urbano – do número

da matrícula, se houver, e do número do registro anterior. Estes conceitos decorrem do

art. 176, § 1.º, II, n. 3, da Lei 6.015, que deve ser aplicado em consonância com o art.

225, mencionando-se os nomes dos confrontantes, sempre que se trate de imóvel rural,

ou apenas designando os imóveis confinantes, se se tratar de imóvel urbano. Se se

cogitar de lote ou de terreno urbano é necessário esclarecer, além do mais, se fica

situado do lado par ou ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da

edificação ou da esquina mais próxima.

Nossa lei registral preencheu os espaços por acaso existentes no nosso CC no

tocante ao princípio da especialidade, a que se reportou genericamente nos n. IV do art.

761 e III do art. 846, embora esses dispositivos se refiram às especificações, situação,

denominação e características do imóvel”.

Infere-se, então, do magistério dos doutrinadores que o princípio da

especialidade visa a resguardar o Registro lmobiliário de equívocos que possam

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confundir as propriedades, causando embaraço à rápida consulta dos títulos. Desse

modo, não havendo possibilidade de confundir-se um imóvel com outro, está atendido o

princípio da especialidade.

É preciso distinguir o princípio da especialidade, aqui estudado, da

especialização das hipotecas legais a que se refere o art. 828 do CC. A especialização

dessas hipotecas, necessárias ao registro no Cartório competente, será requerida pelo

próprio responsável, que declarará o valor da sua responsabilidade e indicará os imóveis

sobre que incidirá o ônus, mediante petição à autoridade judiciária, instruída com a

prova do domínio, livre de ônus, dos imóveis oferecidos em garantia (CPC, art. 1.205).

Iniciado por essa forma o processo de especialização, seguirá o rito processual

estabelecido nos arts. 1.206 e seguintes, do CPC, até a expedição do mandado para o

registro, no Cartório de Imóveis, da hipoteca especializada, com todas as indicações e

requisitos que decorrem do princípio da especialidade para a matrícula e o registro.

Em face das mutações jurídico-reais concernentes ao imóvel, a necessidade de

especialização surge sempre que há uma divisão ou fusão. Na divisão substitui-se a

especialização única do imóvel pela especialização plural dos imóveis que dela

resultam, dando-se individualidade a quantos forem os imóveis. Essa divisão ocorre não

só quando os co-herdeiros ou os co-proprietários concretizam, fisicamente, suas partes

ideais, como também quando se verificam as operações resultantes de loteamentos e

desmembramentos, que importam em desdobramento e abertura de novas matrículas,

uma para cada imóvel, quando ocorrer a transferência a terceiros das respectivas

unidades imobiliárias autônomas e individualizadas.

A fusão, a que se referem os arts. 233, III, e 234 da Lei 6.015/73, é de

matrículas; enquanto a unificação (art. 235) é apenas de registro, embora possa implicar

o cancelamento da matrícula anterior (art. 235, II). A fusão pressupõe não só o mesmo

proprietário, mas também a contigüidade física de dois ou mais imóveis, cuja reunião

possa dar margem à formação de uma só unidade imobiliária, com autonomia para

justificar a existência de uma só matrícula.

A unificação ocorre na hipótese de pluralidade de registros anteriores relativos

a atos de aquisição de domínio imobiliário, sendo injustificável tal providência

relativamente aos atos constitutivos de direitos reais de garantia. E tanto na fusão (de

matrículas), quanto na unificação (de registros), faz-se presente o princípio da

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especialidade, porquanto a área se torna maior e o perímetro diferente, concretizando-se,

assim, a união física de dois ou mais imóveis, que, além de confinantes, pertencem ao

mesmo proprietário.

Com essas considerações, veja-se o que a jurisprudência pátria tem decidido

com amparo no princípio da especialidade:

“Não merece registro o formal de partilha que não apresenta as características e

confrontações dos prédios atribuídos. A identificação deve ser precisa e minudente

porque pressuposto o elemento necessário das matrículas” (Ac. 274.627, Brotas,

09.11.1978, Des. Andrade Junqueira) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 93).

“Princípio da especialização – Imóvel indevidamente caracterizado e descrito

no título – Documentos que o integrariam, não autenticados por uma das partes –

Inadmissibilidade.

Qualquer retificação de inexatidão ou erro em documento particular ou público

só pelas mesmas partes, não por uma delas isoladamente, poderá ser feita.

A natureza jurídica do título prevalece sobre o nome que lhe tenham dado as

partes contratantes.

Como decorrência do princípio da especialização, o imóvel deve ser

perfeitamente caracterizado e individualizado no título. A descrição do bem, ou está

contida no ato, ou depende da anuência de todos, para, produzida posteriormente, vir a

integrá-lo” (ApCív 259. 251 – Itapecerica da Serra – Apelantes: Fariz F. Elias e/o. –

Apelado: Oficial do Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário,

n. 1, p. 83).

“Princípio da especialidade – Descrição do terreno – Incorporação registrada –

Desnecessidade daquela.

O registro da incorporação é requisito prévio do registro das transmissões das

unidade autônomas e das frações do terreno vinculadas às futuras unidades (arts. 29 e

par. Único, e 32 da Lei 4.591/64).

Desde que haja o registro da incorporação, é dispensável a descrição do

terreno, bastando a alusão à sua situação para satisfazer ao princípio da especialidade”

(ApCív 1.919-0 – Campinas – Apelante: Comissão de Representantes do Edifício

Vanessa – Apelado: Oficial do 1.o Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in

Revista de Direito Imobiliário, n. 12, p. 87).

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“Não há obstáculo para o registro de formal de partilha se dele constam a

identificação do imóvel rural, com área, benfeitorias e confrontações, a transcrição

existente e o cadastramento no Incra, ainda mais que não se argúi qualquer divergência

na descrição do bem, presumindo-se ajustar-se àquela transcrição”. (Ac. 516-0,

Guaratinguetá, 25.11.1981, Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis, Saraiva,

1984, p. 59).

“O título que não identifica adequadamente o imóvel, com suas características

e confrontações, não pode ser registrado. Pouco importa que se trate de título judicial”,

(Ac. 1.558-0, Palmital, 03.11.1982, Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis,

Saraiva, 1984, p. 251).

“Se o título não descreve o imóvel tal como se acha descrito na transcrição

antiga, feita na vigência da legislação anterior, mas lhe dá identificação nova,

desconhecida do registro, ainda que resultante de levantamento topográfico e planta,

não merece registro” (Ac. 643-0 - Itapecirica da Serra, 11.11.1981, Des. Affonso de

André) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 44).

“Princípio da especialidade – Obriga a identificação do objeto do contrato –

Referência às transcrições aquisitivas anteriores não supre a falta.

Transcrições aquisitivas anteriores – Referência - Visa apenas resguardar o

princípio da continuidade.

O princípio da especialidade obriga à identificação do objeto do contrato. A

simples referencia às transcrições aquisitivas anteriores não supre a falta, porque sua

menção objetiva, tão-só, resguardar o princípio da continuidade.

É da tradição de nosso direito a exigência da identificação do imóvel objeto do

negócio, mediante referencia à circunscrição em que está situado, à sua denominação, se

for rural, ou à rua e número se for urbano, além da expressa menção aos seus

característicos e confrontações” (Agravo de Petição 252.288, de Itanhaém, j. em

27.08.1976 – rel. Des. Acácio Rebouças – DJ de 02.09.1976).

“O princípio da especialidade exige que cada unidade imobiliária seja completa

e corretamente caracterizada no Registro de Imóveis. A alteração na descrição das

divisas só pode ser feita após procedimento adequado, com a citação dos confinantes e

alienantes” (ApCív 2.363-0 – Lençóis Paulista – Apelante: Omi-Zillo Lorenzetti S/A –

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Indústria Têxtil – Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in

Revista de Direito Imobiliário, n. 13 p. 104).

“Registro de imóveis – Pedido de providências sobre irregularidades praticadas

pelo Cartório. Constatação de várias falhas formais. Falta de observância rigorosa dos

princípios da continuidade e especialidade. Desmembramento de parte de gleba

efetuado com nova descrição de rumos, marcos e característicos, anteriormente

existentes nos assentamentos. Referência, ademais, a ruas e quadras não constantes do

registro. Configuração, porém, de verdadeira regularização de loteamento clandestino

admitida pelo próprio Oficial. Inviabilidade de apreciação de matéria no âmbito

administrativo, sobretudo pela produção de efeitos em relação a terceiros interessados.

Adequação da via jurisdicional. Desacolhimento da representação com recomendação

para que seja evitada a repetição do incorreto proceder” (in Decisões Administrativas da

Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – 1983/84, Proc. 24/84, Ed. RT,

1984, p. 118).

“Mandato em causa própria – Condições para o registro – Observância dos

princípios da especialização e da continuidade – Aplicação dos arts. 176, § 1.º, III, n. 2,

e 237 da Lei 6.015/73.

Não há que distinguir o mandato em causa própria de negócio de compra e

venda, porquanto aquele implica verdadeira transferência de direitos. O título além de

conter os requisitos relativos à localização do imóvel, deve conter todos aqueles

necessários à sua perfeita individuação. Ou, ainda, devem esses elementos existir no

registro anterior, se houver, sendo inadmissível que os característicos componentes da

individuação sejam supridos por documento estranho ao título apresentado” (ApCív

3.620-0 – Araraquara – Apelante: Haydée Mannelli da Silva – Apelado: Oficial do

Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 15, p.

95).

“Arrematação – Registro – Imóvel que não mais figura em nome do executado

– Inadmissibilidade daquele.

Registro de Imóveis – Formalismo das decisões que lhe dizem respeito –

Necessidade de proteção da segurança do sistema, principalmente quanto aos princípios

da continuidade e da especialidade.

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Ainda que a fraude à execução se apresente clara e vistosa, há de ser declarada

pela autoridade jurisdicional competente, a quem caberá, igualmente, determinar o

cancelamento do registro que impeça o cumprimento de sua decisão.

Se o executado já não consta do Registro de Imóveis como proprietário do

imóvel não há como registrar o título em que ele, substituído pelo Poder Público,

transfere ao arrematante o direito de propriedade de que já se despojou.

A segurança que o sistema registrário brasileiro ainda tem apóia-se exatamente

na forma. À medida que se permitirem arranhões aos princípios da continuidade e da

especialidade, principalmente, estar-se-á debilitando aquela segurança” (ApCív 3.547-0

- São José do Rio Preto – Apelante: Flora Bascope Campbell – Apelado: Oficial do 1.º

Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 15, p.

70).

e) Princípio da Disponibilidade

Esse princípio da disponibilidade vincula-se ao princípio de que ninguém pode

transferir mais direito do que tem ou, no dizer dos latinos. nemo dar quot non habet.

Em decorrência deste princípio é imperioso verificar-se se o imóvel está

disponível, vale dizer, se está em condição de ser alienado ou onerado, tanto do ponto

de vista físico, como do prisma jurídico.

Do ponto de vista físico, exemplifica-se tal hipótese: se alguém é proprietário

de um terreno urbano com 5.000m2

e já alienou 3.500m2, não tem disponibilidade para

concretizar o registro de uma escritura de venda de uma área de 2.800m2 do mesmo

imóvel. A jurisprudência já analisou este aspecto consoante se verifica do acórdão

abaixo:

“Disponibilidade – Imóvel de 421 alqueires, segundo a transcrição anterior, à

margem da qual está inscrito um compromisso de 210,5 alqueires – Impossibilidade do

ingresso de uma outra escritura que expressa a venda de 235,33 alqueires – Irrelevância

do excesso decorrer de retificação acordada com o proprietário ou de ter sido a venda

realizada ad corpus ou ad mensuram.

Fracionamento – Área remanescente – Título que descreve minuciosamente o

imóvel seu objeto, tornando prescindível a descrição da parte remanescente – A

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descrição da área remanescente não constitui exigência legal embora constante do

Provimento do Juízo” (ApCív 262.486 – Itaporanga – 15.08.1977 - rel. Acácio

Rebouças – V.u., in Registros Públicos, Ed. RT, p. 88).

Sob o prisma jurídico, a disponibilidade ocorre se, por exemplo, alguém

adquire um imóvel por doação, com a cláusula de inalienabilidade, não poderá dispor

dele para a venda a qualquer outra pessoa, e, se o fizer, o título não poderá ser

registrado.

Valmir Pontes (in Registro de Imóveis, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 30-31), ao

tratar do registro e disponibilidade, preleciona que não poderá ser aceito para registro

ato de alienação ou oneração fundado em divisão ou partilha, sem que estes estejam

registrados. Observa e ressalta neste tocante quatro hipóteses que merecem transcrição:

“1.º) nos casos em que, na divisão ou partilha, um ou mais herdeiros ou

condôminos sejam aquinhoados em excesso, ou a mais do que lhes caiba na distribuição

equitativa dos bens, mediante reposição ou compensação ou mesmo a título gratuito, tal

excesso deverá ser havido como oneroso ou gratuitamente alienado, perdendo o ato, em

relação a esses pontos, o seu caráter declaratório para assumir a feição de ato atributivo

de propriedade; em tais hipóteses, o registro não será o previsto para efeito de mera

disponibilidade, mas para operar a transferência do domínio;

2.º) mesmo quando ainda indivisa a propriedade – desde que não se trate de

sucessão por morte – pode qualquer condômino, independentemente de divisão, ou do

registro desta, alienar ou onerar a sua parte ideal no imóvel (CC, art. 623, III), salvo, na

hipótese de imóvel indivisível, o direito de preferência dos demais condôminos (CC, art.

1.139); com esse direito de preferência, porém, nada tem a ver o oficial do registro, que

não poderá recusar o registro, no caso a que aqui nos referimos, sob o pretexto de falta

de consentimento dos demais condôminos; .

3.º) independentemente de divisão, ou do registro desta – a não ser no caso de

sucessão hereditária – pode o condômino alienar ou gravar individualmente a sua parte

do imóvel, ou uma porção dela, se os demais condôminos, no próprio ato, ou em

instrumento à parte (CC, art. 132), consentirem nessa individuação; o ato assim

praticado, equivalerá a uma divisão parcial, seja para excluir do condomínio o

condômino que onerou ou alienou a sua parte, seja para reduzir a sua participação no

condomínio;

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4.º) em se tratando de sucessão por morte, admissível não é a oneração dos

direitos do sucessor, ainda que este seja tido como condômino do acervo hereditário,

dada a impossibilidade da individuação dos quinhões antes da partilha; a herança,

embora seja um condomínio, tem a natureza peculiar de universalidade de direitos e

obrigações, insuscetível de divisão, ainda que puramente ideal, entre os herdeiros e

demais interessados nela, só pela partilha podendo individuar-se a participação de cada

um; pode o sucessor, porém, fazer cessão gratuita ou onerosa dos seus direitos, mas esse

ato de alienação de direitos hereditários não é suscetível de inscrição ou transcrição.”

Não se pode olvidar, nesta oportunidade, que o Decreto 18.542, de 24.12.1928,

continha a fórmula inicial do princípio da disponibilidade no seu art. 232, verbis: “Serão

sujeitos à transcrição no livro 3 e em qualquer tempo, simplesmente para permitirem a

disponibilidade dos imóveis, ou julgados pelos sursis, nas ações de decisão, demarcação

e partilha, se puser termo à indivisão (Cód. Civil, arts. 532, 533 e 1.572)” (g. n.).

Ainda no que se refere à disponibilidade jurídica há um problema prático que

não pode passar in albis. Trata-se de possibilidade jurídica de um terceiro adquirir um

imóvel sobre o qual exista penhora registrada. A esse respeito o Conselho Superior da

Magistratura de São Paulo, apoiado na melhor doutrina e jurisprudência (Serpa Lopes,

Tratado dos Registros Públicos, v. 11/417 e seguintes, 5.ª ed., n. 401; Revista de

Jurisprudência do TJSP, 15/502, 21/579 e 30/470; RT 430/136, 451/128, 494/ 85),

entende que a existência da penhora, ainda que registrada, não impede a alienação do

imóvel e, conseqüentemente, o registro do título respectivo, uma vez que a constrição

processual não tira ao executado a titularidade do domínio, nem a disponibilidade do

bem penhorado.

Por todos os aspectos reportados, infere-se quão importante é o controle

imediato da disponibilidade da área do imóvel, cujo conhecimento se impõe tão

frequentemente ao registro, como se vê da jurisprudência pertinente:

“Se, do imóvel com testada de 60,50m, foram desmembradas parcelas que

atingem 50,30m de frente, restando uma disponibilidade de 10,20m, não pode ser

registrado título em que o imóvel tem 13,00m de frente. O título está em desacordo com

o disponível no registro” (Ac. 748-0, Itapetininga, 11.11.1981, Des. Affonso de André)

(in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 44).

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“O Oficial do Registro de Imóveis não é mero registrador de títulos. Incumbe-

lhe o exame dos títulos à luz dos princípios norteadores do sistema registrário, inclusive

no que respeita à disponibilidade da área. Mesmo os títulos judiciais estão sujeitos a

esse exame e podem ser objeto de procedimento de dúvida” (Ac. 980-0, São Paulo,

28.12.1981, Des. Affonso de André (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 76).

“O cartório não se pode escudar no pretexto de que não dispõe de elementos

para verificar se há disponibilidade de área ou não; para não realizar o registro ele há de

afirmar, com elementos positivos, que a área primitiva não comporta disponibilidade

para fazer o registro pretendido” (Ac. 1.052, São Paulo, 19.05.1982, Des. Andrade

Junqueira, maioria de votos) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 181).

“Não pode ser registrada a venda, por desmembramento, se já não há

disponibilidade em virtude dos desmembramentos registrados anteriormente, pouco

importando que o adquirente tivesse compromisso registrado sobre o mesmo imóvel

objeto de escritura definitiva” (Ac. 1.412-0, São Carlos, 02.12.1982, Des. Affonso de

André) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 271).

f) Princípio da Continuidade

Dentre as regras basilares do Direito Imobiliário, há de apontar-se o princípio

da continuidade, em função do qual nenhum registro pode ser efetuado sem a prévia

menção ao título anterior, constituindo, assim, a eficácia normal do registro.

Cada assento registral deve apoiar-se no anterior, formando um encadeamento

histórico ininterrupto das titularidades jurídicas de cada imóvel, numa concatenação

causal sucessiva na transmissão dos direitos imobiliários.

O Decreto 18.542, de 24.12.1928, já consagrava este princípio de forma

insofismável, determinando que, em qualquer caso, não se poderá fazer o registro sem

que seja registrado o título anterior, de modo a assegurar a continuidade do registro de

cada imóvel, estabelecendo, de modo expresso, no art. 206, que: “Se o imóvel estiver

lançado em nome do outorgante, o oficial exigirá a transcrição do título anterior,

qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro”.

A Lei 6.015 /73, vigente a partir de 01.01.1976, manteve o mesmo princípio no

seu art. 195, ao dispor que: “Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome

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do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior,

qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro” (g.n.).

É comum ocorrer que B compra um imóvel que pertencia a A, e, logo em

seguida, o vende a C. Nestas hipóteses as partes interessadas, por questão de economia

quanto ao pagamento dos impostos e taxas imobiliárias e despesas cartorárias, tendem a

registrar apenas a última operação, ou seja, a transmissão da propriedade de B para C,

sem qualquer intervenção de A em nome do qual se acha registrado o imóvel. Verifica-

se, no entanto, que, pelo princípio da continuidade, nenhum registro pode ser efetuado

sem o prévio registro do título anterior, obrigando-se às partes interessadas, in casu, A,

B e C, a registrarem as respectivas transferências.

Para o abalizado doutrinador Serpa Lopes (in Tratado de Registros Públicos, v.

IV, 3.ª ed., n. 742), a palavra continuidade quer dizer “ligação não interrompida das

partes de um todo” e, em boa lógica, não é admissível a exigência de ligação das partes

de um todo, quando este ainda não existe, de vez que nem sequer teve início.

“O interesse da continuidade torna-se patente, intuitivo. Não transcrever o

título anterior, implicaria na ilegal quebra de um dos elos da corrente da sucessividade,

imposta pela lei”.

“Tal situação não surge quando do Registro não consta nenhum lançamento a

respeito do imóvel. O domínio do imóvel, se não decorre do Registro lmobiliário, pelo

menos com ele não entra em conflito” (op. e loc. cits).

Como um dos princípios fundamentais do registro imobiliário, o da

continuidade, determina o imprescindível encadeamento entre assentos pertinentes a um

dado imóvel e às partes nele interessadas (in Lei dos Registros Públicos comentada,

Walter Ceneviva, Saraiva, 1979, p. 411). Segundo Afrânio de Carvalho (op. cit., p. 304-

305) “o princípio de continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em

relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de

titularidades à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele

aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam

umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do

transferente.

O encadeamento de titulares, em que se apóia a confiança do público, recebe o

nome de princípio de continuidade. Esse nome, contudo, tem variantes na linguagem,

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conforme a expressão legal usada em cada país para traduzir o princípio, sendo

intitulado no Direito Alemão de inscrição prévia do prejudicado em seu direito, no

Direito Francês, inspirado tardiamente no antecedente, de efeito relativo da publicidade,

designação manifestante imprópria, ao passo que no Direito Brasileiro foi desde o

começo conhecido como registro do título anterior.”

No magistério atualizado de Tabosa de Almeida (op. cit., p. 53-54), “na Lei

6.015 o princípio foi acolhido enfaticamente em numerosos dispositivos, tais como os

arts. 176, § 1.º, II, n. 5, 195, 222, 223, 225, § 2.º, in fine, 227, 228 e 237, os quais

preencheram todas as lacunas porventura ainda existentes na legislação. E, com a

adoção do fólio real, ou seja, do sistema de matrícula do imóvel (arts. 176, 195, 196,

197, 225, § 2.º, 227, 228, 231 e 236), já não há lugar para a mínima dúvida quanto à

plena eficiência do princípio no Direito Registral Imobiliário Brasileiro.

No Direito Espanhol o princípio da continuidade é também denominado de

tracto sucesivo, ou de previa inscripción, e é tido como conseqüência natural do

princípio de publicidade e da presunção de exatidão do registro imobiliário. É a historia

do imóvel, constituída por uma cadeia sem solução de continuidade, de tal maneira que

o adquirente num registro terá de ser forçosamente o transmitente no seguinte. Eis a

admirável síntese de Carmelo Diaz González (op. e vol. cits., p. 253): “El fundamento

de este principio no es otro que el conocido aforismo de Derecho de que „nemo dat quod

non habet‟. Nadie puede transmitir el dominio de uma cosa si no es dueño de ella y,

para conseguir el cumplimiento de esta norma esencial de Direito Privado, en relación

con los bienes inmuebles, se han estabelecido los Registros de la Propiedad Inmobiliaria

en los pueblos civilizados."

Na lição de Orlando Gomes (in Rev. do Direito Imobiliário, n. 1, 1978, p. 12),

“no sistema registral do País, o chamado princípio da continuidade do registro, já

inferido, pela doutrina, dos artigos do Código Civil concernentes ao registro imobiliário

que o exigiram para manter a corrente da titularidade”.

No dizer de Roca Sastre, o objetivo basilar do princípio da continuidade é que

“no se interrumpa la cadena de inscripciones y que el registro nos cuente la historia

completa (sin saltos) de la finca”.

Ainda no campo doutrinário, é Garcia Coni (op. cit., p. 95) que fornece,

sinteticamente, a relevância do princípio da continuidade ao prelecionar que: “Si entre

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uno titular inscrito pudieran intercalarse otros negociales, el Registro no podría

combatir el clandestinismo transmisivo ni tomar conocibles todas las enajenaciones.

Dicho de otra manera, no podría cumplir su cometido cautelar, y casi ya no tendría

razón de ser”.

No plano jurisprudencial o princípio da continuidade registral tem sido objeto

de inúmeras demandas judiciárias como se vê dos acórdãos abaixo:

“Registro de Imóveis – Anterioridade ao Código Civil – Princípio da

continuidade. É sabido que nem todo registro é constitutivo. Há os declaratórios, os

acautelatórios e também aqueles destinados exclusivamente à observância do princípio

da continuidade. São desta espécie os registros das transmissões causa mortis, porque a

transcrição é modo de aquisição do domínio apenas nos atos vivos – art. 531 do CC. O

Registro do título anterior ao Código Civil nada tem, e nem poderia ter, de constitutivo.

Visa exclusivamente ao resguardo da continuidade, que é uma das garantias do sistema.

Não se trata de inovação trazida pela Lei 6.015/73, que só fez repetir preceitos que

apareceram, pela primeira vez, no Regulamento de 1928 – Dec. 18.542/28, art. 206. O

art. 244 do Regulamento de 1939 – Dec. 4.857 – era explícito: „em qualquer caso, não

se poderá fazer a transcrição ou inscrição sem prévio registro do título anterior, salvo se

este não estivesse obrigado a registro, segundo o Direito então vigente...‟ A Lei

6.015/73 repete a norma, mas sem a ressalva, no art. 195: „Se o imóvel não estiver

matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e

o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a

continuidade do registro‟. Não se controverte a absoluta necessidade, hoje, da abertura

de matrícula e do registro do título anterior, qualquer que seja a natureza e ainda que,

por operar os efeitos jurídicos a que é vocacionado, não estivera sujeito a registro

segundo o direito vigente à data de sua celebração” (CSMSP – Ac. unân. publ. no DJ de

30.03.1983 – Ap. 1.778-0 – Santos – rel. Des. Bruno Affonso de André – Indalécio de

Aguiar Bueno vs. Oficial do 1.º Cartório do Registro de Imóveis – Adv. Augusto Parola

Ramos) (in Adcoas, verbete 90.435).

“Registro de Imóveis – Anterioridade ao Código Civil – Princípio da

continuidade. Não é correta a exigência de registro do título anterior, à vigência do

Código Civil. À época os registros públicos eram regidos pelo Dec. 390/1890, este,

como é sabido, não estabelecia obrigatoriedade da transcrição para a aquisição do

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domínio, quer por ato inter vivos, quer causa mortis. O Código Civil não incluiu no art.

532 a obrigatoriedade de transcrição das partilhas em inventário, embora alguns

entendessem que o inc. I do mesmo artigo abrangesse tais atos. A transcrição das

partilhas em inventário foi tornada obrigatória, de forma expressa, somente no

Regulamento de 1928 – Dec. 18.527/28 – não como forma de transmissão do domínio,

mas para tornar efetivamente eficaz o princípio da continuidade” (CSMSP – Ac. unân.

publ. no DJ de 31.03.1983 – Ap 1.762 – Jacupiranga – rel. Des. Bruno Affonso de

André – Bráulio Madeira Simões vs. Oficial do Cartório de Registro de Imóveis) (in

Adcoas, verbete 90.436).

“Ao lado de impor um dever de observância aos particulares, o princípio da

continuidade assegura-lhes também um direito. Se a descrição do imóvel constante do

registro é observada, não há como recusar os atos a ele relativos, ainda que disso saia

arranhado o princípio da especialidade. As falhas encontradas nas descrições antigas são

um peso que o Registro Imobiliário carregará por muito tempo. Não há como impor aos

particulares um dever de correção dessas falhas” (Sentença em processo de dúvida

julgado pelo Juiz Auxiliar da 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, transitada em

julgado) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 10, p. 138).

“Sociedade de fato – Imóvel registrado em seu nome – Inadmissibilidade de

atribuição a herdeiro de sócio falecido, no inventário deste, sem prévia dissolução da

sociedade – Observância do princípio da continuidade.

Não cabe ao oficial reconhecer a existência de sociedade de fato, nem lhe

compete decidir se o sócio daquela pode, em nome próprio, dispor do patrimônio social.

Se o imóvel está registrado em nome de pessoa jurídica, a aparência que resulta do

registro é suficiente para que o oficial só admita as disposições em seu nome feitas”.

(ApCív 2.949-0 – São Paulo – Apelante: Marilisa V. Tavares da Motta – Apelado:

Oficial do 9.º Cartório de Registro de Imóveis – CSMSP) (in Revista de Direito

Imobiliário, n. 13, p. 73).

“Mesmo autorizada por alvará judicial, a viúva meeira não pode transmitir, em

nome próprio, imóvel registrado em nome de seu falecido marido. Antes da partilha,

quem pode transmitir a propriedade é apenas o espólio, pouco importando que a viúva

seja, também, a única herdeira, sob pena de ofensa ao princípio da continuidade.”

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(Sentença em processo de dúvida do Juiz de Direito da 1.ª Vara de Registros Públicos

de São Paulo, transitada em julgado) (in Revista de Direito Imobiliário, n. II, p. 156).

“Se do título apresentado a registro constam nomes que não coincidem com os

constantes do registro anterior, faz-se necessária a prévia retificação deste, para que

violado não seja o princípio da continuidade.

Essa retificação de nomes no registro pode ser feita a requerimento de apenas

um dos proprietários, com fundamento no art. 246, par. único, da Lei 6.015/73,

mediante prova, inclusive justificação” (Ac. 474-0, Laranjal Paulista, (06.02.1981 - Des.

Adriano Marrey) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 384).

“Se a vendedora condicionou a venda à aceitação e respeito aos compromissos

particulares assumidos com terceiros, com maior razão se reputa condicionado o

respeito ao direito decorrente da coisa julgada e da subseqüente arrematação, em praça,

dos lotes vendidos. O registro da carta de arrematação, nessa hipótese, não fere o

princípio da continuidade. Faz-se necessária, entretanto, a prévia averbação da

existência da ação e da execução contra a antecessora do atual proprietário, além da

existência da obrigação de outorga de escrituras dos lotes (o que se determinou de

ofício)”. (Ac. 116-0, Atibaia, 29.01.1981, Des. Adriano Marrey), (in Registro de

Imóveis, Saraiva, 1982, p. 381).

“Viola o princípio da continuidade dos registros o registro de alienação feita

como casado por quem adquira como solteiro” (Ac. 279.610, São Paulo, 29-6-79, Des.

Andrade Junqueira), (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 328).

“Imóvel registrado em nome de terceiro – Registro inadmissível – Observância

do princípio da continuidade.

A ação de adjudicação compulsória não cria nem transfere domínio. Atém-se à

pretensão de suprir declaração de vontade negocial, cuja eficiência jurídica assume.

Logo, conseqüente carta de adjudicação não pode mais do que o poderia o instrumento

do negócio recusado” (ApCív 1.371-0 – Atibaia – Apelantes: José Vicente Mendes e/o.

– Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis – CSMSP) (in Revista de Direito

Imobiliário, n. 12, p. 109).

“Se o registro anterior está contaminado de erro, cumpre que se o retifique para

que se mantenha incólume o princípio da continuidade. Tal erro impede o registro de

título em que o imóvel está descrito de forma diversa, ainda que correta” (Ac. 274.627,

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Brotas, 09.11.1978, Des. Andrade Junqueira) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p.

94).

“A correspondência literal entre o título e o registro anterior nem sempre é

possível e é exigência despropositada. O que se exige é a presença de elementos

minudentes de identificação da coisa. ´Se, no descrevê-la com observância dos

requisitos legais (arts. 176, § 1.º, II, n. 3, e 225 da Lei 6.015/73), ainda que despontem

discrepâncias secundárias, se guardou precisa individuação da coisa, bastante para a

compatibilidade com o registro a que se vincula a certeza do domínio, estão, quantum

sufficit, configurados os pressupostos da continuidade dos registros públicos´” (Ac.

268.792 - Santa Cruz do Rio Pardo, 15.05.1978, Des. Andrade Junqueira (in Registro de

Imóveis, Saraiva, 1962, p. 200).

“Se o imóvel, integrante de loteamento, não passou a integrar o domínio

público, não pode a Prefeitura, desafetando-o, aliená-lo. O registro dessa alienação

violaria o princípio da continuidade dos registros” (Ac. 530-0, Viradouro, 17.02.1982,

Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 111).

“Se a transcrição a que se filia o título não abrange o imóvel a que este refere,

não há como registrá-lo sem a prévia retificação da transcrição ou do título” (Ac. 632-0,

Santo André, 17.02.1982, Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis, Saraiva,

1984, p. 112).

“Não merece registro o título se o imóvel não está registrado em nome dos

transmitentes. Pouco importa que se trate de carta de adjudicação e que o interessado

esteja de boa fé” (Ac. 1.206-0, São Paulo, 23.08.1982, Des. Affonso de André) (in

Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 221).

“Registro de Imóveis – Matrícula.

Omissão da designação cadastral do imóvel. Requisito essencial (art. 176, par.

único, II, 3, da Lei dos Registros Públicos). Menção errônea do transmitente, como

sendo os herdeiros do de cujus e não o seu Espólio. Violação do princípio da

continuidade. Recurso parcialmente provido, para determinar à correção de tais falhas

através de averbação e não do refazimento da matrícula” (in Decisões da CGJ-SP,

1981/82, Ed. RT, São Paulo, p. 63).

“Cancelamento – Registro de Imóveis. Duplicidade de registros de um mesmo

imóvel. Nulidade de pleno direito caracterizada. Segundo registro cancelado. Violação

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do princípio da continuidade. Decretação em processo meramente administrativo. Art.

214, da Lei dos Registros Públicos. Decisão mantida” (in Decisões Adm. da CGJ-SP,

198/82, Ed. RT, São Paulo, p. 70).

“Registro de Imóveis – Registro de penhora, decorrente de mandado judicial.

Imóvel, porém, registrado em nome de terceiro e não do executado. Recusa oposta pelo

Oficial. Conduta irrepreensível e conforme à sedimentada orientação normativa

superior, pautada pelo respeito ao princípio da continuidade. Regular exercício do dever

de examinar a validade e a legalidade dos títulos, ainda que judiciais. Inocorrência de

qualquer falta disciplinar. Hipótese, contudo, de alienação do bem penhorado em fraude

de execução, assim de plano declarada pelo Juízo Cível competente. Admissibilidade,

no caso, do registro da penhora. Pronunciamento do E. Conselho Superior da

Magistratura” (in Decisões Adm. da CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 82).

“Registro de Imóveis – Confisco de bens de sociedade. Ofício da autoridade

administrativa competente, autorizando o levantamento da medida e o concomitante

registro da transferência dos imóveis liberados diretamente a ex-diretores. Inviabilidade.

Admissão apenas da providência liberatória, já que a pretendida transmissão de domínio

ofenderia aos princípios da legalidade e continuidade. Decisão de indeferimento

mantida” (in Decisões Adm. do CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 101).

“Registro de Imóveis – Pretendida retificação de matrícula, para nela enxertar

nova descrição, referente, porém, a outro imóvel. Descabimento. Caracterização de

alteração do próprio objeto da matrícula, sem que, para o imóvel alvitrado, existisse

origem conhecida. Violação do princípio da continuidade configurada. Indeferimento do

pedido e conseqüente cancelamento, de ofício, da matrícula. Decisão mantida” (in

Decisões Adm. da CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 103).

“Cancelamento – Registro de Imóveis. Duplicidade de matrículas e registros de

um mesmo imóvel. Nulidade de pleno direito caracterizada. Vulneração do princípio da

continuidade. Art. 214, da Lei dos Registros Públicos. Determinação de cancelamento

dos atos praticados em segundo lugar. Observância da ordem de precedência. Decisão

mantida” (in Decisões Adm. da CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 105).

g) Princípio de Legalidade

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Este princípio impede o ingresso no Cartório de Registro de Imóveis de títulos

inválidos ou imperfeitos, contribuindo, desse modo, para a concordância do mundo real

com o mundo registral.

A verificação da legalidade e da validade do título e a efetivação de seu

registro, se o mesmo estiver em conformidade com a lei, é uma regra implícita e

subtendida no art. 198 da Lei 6.015.

Vale dizer, o exame prévio da legalidade dos títulos objetiva estabelecer a

correspondência constante entre a situação jurídica e a situação registral, de modo que o

público possa confiar plenamente no registro. Aliás, Hernandez Gil (in Introducción al

Derecho Hipotecário, Madri, 1970, p. 149), após acentuar que esse exame deve ser “de

fondo y de forma”, estendendo-se a todos os aspectos que possam impedir o registro,

aduz, incisivamente, que “los asientos sólo servirian para engañar al publico, favorecer

el tráfico ilícito y provocar nuevos litígios”.

É regra jurídica implícita em todo o sistema registral o exame da legalidade

que, do ponto de vista prático, impõe, no magistério de Valmir Pontes (in Registro de

Imóveis, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 98), a análise dos seguintes aspectos: “Começará

o oficial, naturalmente, por ter em vista a forma dos papéis apresentados, verificando se

se trata de instrumentos ou escrituras públicas ou particulares e se, na elaboração desses

instrumentos ou escrituras, foi preterida alguma solenidade essencial ou omitida alguma

declaração indispensável. Examinará, depois, se foram satisfeitas pelos interessados as

imposições da legislação fiscal, como o pagamento do imposto de transmissão de

propriedade nas transmissões de imóveis inter vivos ou mortis causa e a transcrição, nos

atos públicos, das certidões de quitação dos imóveis para com o fisco. Verificará em

seguida se foram obtidos regularmente os alvarás ou autorizações, judiciais ou

administrativos, necessários à realização dos atos, como no caso de venda de bens de

menores ou de bens sujeitos às cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade ou

impenhorabilidade. Verá se, no caso de alienação de bens de interditos ou de menores

sob tutela, o ato se efetivou pela forma prescrita em lei; se as alienações ou onerações

de imóveis foram devidamente representadas, para o que terá que ver, nos instrumentos

particulares ou no contexto dos instrumentos públicos, quando as leis de organização

judiciária exigirem a respectiva transcrição, o teor das procurações a eles referentes; se

não ocorre, enfim, qualquer nulidade ou irregularidade nos atos, cujo registro lhe seja

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requerido, inclusive sob o ponto de vista da sua autenticidade ou da veracidade das

assinaturas nele apostas.

Nesse trabalho preliminar de verificação, entretanto – trabalho que requer, da

parte do oficial, um mínimo de conhecimentos jurídicos que só os formados pelas

escolas de direito, presumivelmente, devem possuir – o oficial não poderá ir ou não

deverá ir além de certos limites, impostos pela natureza da sua função pública e pela

necessidade dos interesses comuns e das chamadas normas de ordem pública. Casos

haverá em que ao oficial será defeso aprofundar o exame a que é obrigado, como, por

exemplo, no caso de falta de pagamento de foros e laudêmios devidos a senhorios

diretos, e, em geral, nos casos de simples anulabilidade dos títulos por vícios de

consentimento e outros em que não se apresente interesse público ou norma de ordem

pública a resguardar. Não é o oficial do Registro de Imóveis tutor ou curador de direitos

ou interesses privados, nem lhe cabem funções de julgamento que só ao Poder

Judiciário são conferidos pela ordem jurídica, sobretudo em matérias reservadas por lei

à iniciativa dos interessados e nas quais só a requerimento das próprias partes o Poder

Judiciário pode interferir.”

De uma outra perspectiva, Tabosa de Almeida (op. cit., p. 52-53) lembra que:

“o exame da legalidade em nosso Direito, a primeira coisa a analisar, como já foi dito, é

uma espécie de preliminar, relativa à competência do cartório ao qual o documento é

apresentado. Assim é que, principalmente quando se tratar de averbação, o cartório há

de observar, antes de tudo, se se trata de matéria da sua competência. Nos casos de

registro propriamente dito, fácil é verificar se o imóvel a registrar fica situado na sua

circunstância territorial. Mas, na hipótese de averbação, quando se pretender fazê-la no

cartório novo, a certidão do cartório antigo deverá declarar se o imóvel em apreço nele

se acha matriculado; e, em caso contrário, se ainda dispõe de espaço à margem do

registro para o lançamento da averbação. Se não houver espaço, caberá ao novo cartório

fazer a matrícula e logo a seguir a averbação. Entretanto, se houver espaço (arts. 292 –

renumerado pelo art. 2.º da Lei 6.941, de 14.09.1981, passando a designar-se art. 295 - e

169, I), ou se o imóvel já estiver matriculado, caberá ao cartório antigo proceder à

averbação, na conformidade do disposto no art. 169, I, da Lei Registral vigente. Se esses

dispositivos legais forem desatendidos, o ato será nulo de pleno direito, à vista dos arts.

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82, 130 e 145, III, do CC, em virtude de o ato registral não se ter revestido da forma

prescrita em lei”.

Impende ressaltar aqui o esboço de questionário-roteiro elaborado por Afrânio

de Carvalho (op. cit., pp. 351-356) para facilitar e operacionalizar o exame da

legalidade pelos serventuários.

Apenas para ter-se uma idéia da pluralidade de requisitos formais que devem

ser verificados e policiados pelo Oficial de Registro de Imóveis evitando a ofensa ao

princípio da legalidade. Um exemplo bem atual é a indisponibilidade de bens de

administradores de instituição financeira. Na forma do disposto no art. 36 da Lei federal

6.024/74, “os administradores das instituições financeiras em intervenção, em

liquidação extrajudicial ou em falência, ficarão com todos os seus bens indisponíveis,

não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los ou onerá-los, até

apuração e liquidação final de suas responsabilidades”. Assim, com a comunicação do

fato ao Registro de Imóveis, ficam proibidos os registros, ou averbações, envolvendo

tais bens (art. 38, par. único). É esta uma vedação ou óbice legal que se agrega aos

incontáveis preceitos e exigências contidos não só na legislação dos registros públicos,

mas também na legislação tributária, civil, comercial ou de outra natureza, pertinentes e

aplicáveis por força do princípio da legalidade.

São estes os aspectos mais expressivos deste princípio da legalidade

exaustivamente estudado por Afrânio (op. cit., pp. 269-303).

h) Outros Princípios

Em aditamento aos princípios já analisados que, numa ótica puramente pessoal,

constituem os mais importantes em matéria de Direito Registral Imobiliário, é possível

mencionar-se outros princípios registrais reconhecidos e estudados por especialistas

deste ramo jurídico:

– Princípio da Rogação ou da Instância (v. Tabosa de Almeida, op. cit., p. 47-

50, e Afrânio de Carvalho, op. cit., p. 326-356);

– Princípio da Inscrição (v. Afrânio de Carvalho, op. cit., p. 163-192);

– Princípio da Presunção (v. Afrânio de Carvalho, op. cit., p. 193-210);

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– Princípio da Legitimação (v. Tabosa de Almeida, op. cit., p. 56-57, e Garcia

Coni, op. cit., p. 103-105).

Conclusão

“Los princípios de derecho registral son las orientaciones fundamentales que

informan esta disciplina y dan las pautas en la solución de los problemas jurídicos

planteados en el derecho positivo.”

Esta declaração firmada por ocasião do I Congresso Internacional de Direito

Registral realizado em Buenos Aires, em 1972, demonstra, inquestionavelmente, o

“valor teórico y la utilidad práctica de estos princípios” da legislação registral,

formulados diretamente nela ou obtidos por indução ou ainda por abstração de seus

preceitos que dão a conhecer as linhas essenciais do nosso sistema jurídico registral

imobiliário.

Dentro de uma lei que, em si, já é geral em cada uma de suas normas, buscam-

se os Princípios como as regras mais gerais que as dominam, daí a sua utilidade na lição

de Fernando López de Zavalia (in Curso Introductorio al Derecho Registral, Ed.,

Buenos Aires, 1983, p. 292), verbis:

“1. Sirven para comprender al orden jurídico que se examina, como un sistema

que sigue una determinada orientación.

2. Permiten dar una descripción sintética de un determinado orden jurídico que

facilita la comparación con otros órdenes jurídicos en las variantes fundamentales que

los órdenes comparados puedan presentar”.

Quanto à enumeração dos princípios registrais, há que se por em relevo que a

sua determinação não responde a um critério rigorosamente científico, mas a uma mera

valoração mais quantitativa que qualitativa de importância dos preceitos de direito

positivo.

Sanz Fernández (in Instituciones de Derecho Hipotecario, tomo I, p. 230-231)

faz uma enumeração – não definitiva – de princípios registrais com base nos seguintes

critérios :

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“a) Princípios que regulan la esfera de actuación del derecho inmobiliario:

principio de la inscripción, dentro del cual, y como precedente necesario, debe

recogerse la teoria del titulo y del modo.

b) Principios que gobiernan los requisitos previos o presupuestos de la

inscripción: titulación auténtica, princípio de rogación, princípio de tracto sucesivo y

principio de legalidad.

c) Principios que gobiernan los efectos de la inscripción: principio de prioridad,

principio de ligitimación y principio de la fe pública.

d) Principios que gobiernan la organización del registro y fijación de los

derechos reales: principio de especialidad.”

Em adendo às dimensões legais, doutrinárias e jurisprudenciais já evidenciadas

à saciedade no tocante a cada um dos princípios registrais imobiliários analisados,

elaborou-se, nesta conclusão, uma síntese com objetivos estritamente didáticos:

a) Princípio da Publicidade – Segundo Zavalia (op. cit., p. 56-57), “publicidad

registral es la cognoscibilidad permanente y general de hechos jurídicos en base a la

declaración señalativa de un órgano competente, puesta a disposición del público por

los medios previstos por la ley”.

b) Princípio da Fé Pública – A proteção que decorre do princípio da fé pública

consiste em proporcionar ao proprietário do imóvel uma posição inatacável, firme e

segura sempre que haja obtido a titularidade com satisfação de todos os requisitos

legais.

c) Princípio da Prioridade - É aquele em virtude do qual os direitos reais

concorrentes sobre um mesmo imóvel guardam entre si uma ordem de preferência em

função da antigüidade de suas datas de registro.

d) Princípio da Especialidade – Chamado por alguns juristas de princípio da

individualização, corresponde à necessidade de determinar o imóvel como unidade

registral do sistema em suas circunstâncias físicas e com os dados exigíveis para

distingui-lo de qualquer outro.

e) Princípio da Disponibilidade – No sistema registrário brasileiro incumbe ao

Oficial examinar a disponibilidade de área, ou seja, se o imóvel alienado comporta-se

física e corporeamente na área disponível e suficiente a permitir o registro do título

apresentado.

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f) Princípio da continuidade – Tem a finalidade de manter um rigoroso enlace

ou conexão entre os diferentes negócios de modificação jurídica da titularidade através

de uma ordem registral que não permite a interrupção ou salto, de modo que o Registro

reflita um histórico completo do imóvel, relativamente à cadeia de titulares.

g) Princípio da Legalidade – Para Rocha Sastre (in Derecho Hipotecario, tomo

II, p. 255), “el principio de la legalidad impone que los títulos que pretendan su

inscripción en el registro de la propiedad sean sometidos a un previo examen,

verificación o calificación, a fin de que en los libros hipotecarios solamente tengan

acceso los títulos válidos o perfectos”.

Aduz-se, ainda, que, em face da inexauribilidade imanente a toda pesquisa, este

trabalho é ponto de partida e não de chegada. É inconcluso, ou melhor, é uma “obra

aberta” ou “textura aberta” na medida em que nem cerra nem encerra o tema, pois os

princípios registrais analisados não estão enquadrados dentro de uma moldura hermética

e exaustiva.

É evidente que outros princípios podem surgir e ser incorporados ao elenco

explicitado, seja em razão do próprio dinamismo do Direito Registral Imobiliário, seja

como decorrência de observações, críticas e sugestões de quem se aprofunde no seu

estudo ou discorde de suas assertivas.

Em síntese, este trabalho aqui se detém – não porque chegou ao fim do

caminho – mas porque as perspectivas que se abrem são muitas e intermináveis. E este

fim – como todos os fins humanos – decorre da relatividade das circunstâncias e das

limitações de quem sucumbiu à tentação de concluir. Espera-se apenas que esta seja

uma pausa para retomar o fôlego e para prosseguir pelas veredas que se abrem no

horizonte.

Os princípios aqui analisados não representam um repertório acabado de

soluções nem também um conjunto determinado de diretivas. São postulados fecundos,

de grande riqueza potencial pelo variado número de aplicações possíveis, daí porque

este ensaio servirá de bússola para uma segura orientação no cipoal de normas jurídicas

do Direito Registral Imobiliário. E os princípios registrais, como idéias matrizes que

cimentam e iluminam a compreensão dessa matéria, são apresentados mais como

hipóteses de trabalho do que como soluções definitivas, ou seja, dentro de uma postura

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metodológica que os coloca como substância e não rótulo, que aspira a ser semente e

não fruto.

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6.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E REGISTRO DE IMÓVEIS

FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS

1.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo-SP

SUMARIO: 1. Considerações iniciais - 2. Introdução - 3. Princípios registrais - 4.

Princípio da legalidade - 5. Natureza da função registral de qualificação - 6. Os limites da

qualificação registral - 7. Conclusão.

1. Considerações iniciais

O direito registral imobiliário brasileiro tem levado consigo notória fama de ser

obtuso e de difícil compreensão, tanto pela clausura de seus operadores, quanto por

preconceitos movidos por razões subjacentes. Isso torna o Brasil – tão pródigo no

desenvolvimento de outras áreas do direito – carente de uma doutrina nacional acerca

do Registro de Imóveis1, que seja capaz de se impor no mundo jurídico com grandeza

tal que espanque aquela idéia errônea, anacrônica e carcomida de que o nosso sistema

registral não passa de mais um canal de burocracia et cetera.

1 Ver DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (vários estudos). Porto Alegre: IRIB/Sérgio Antonio

Fabris Editor, 2005. p. 182 que fala da “ausência de uma comunidade científica que, à altura das

necessidades presentes, fundasse de modo idôneo a autonomia dos diferentes segmentos do

direito registral (em particular, o direito registral imobiliário), transitando suas conclusões, em

base objetiva, aos centros decisórios judiciais, de que emanam importantes reflexos, incluindo

os políticos”. Afirma, ainda, que “não há propriamente um pensamento científico do registro

imobiliário: comunidade exige permanência, comunicação persistente e unidade estável

(comunidade)”.

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Há que se considerar ser essa uma idéia isolada2, pois sustentada por alguns

poucos prisioneiros de seus próprios conceitos, afastados da realidade e que viajam na

contramão da nossa história socioeconômica, negando-se a ver o Brasil como um país

capaz de estar na vanguarda mundial, apto a disputar e liderar mercados nos quatro

cantos do mundo e atrair investimentos e divisas dentro do novo modelo de crescimento

econômico global, cujo comportamento já nos garante um lugar de eleição no mapa do

futuro.

Há um abafado clamor pelo desenvolvimento de uma teoria registral apta a

convencer os aplicadores da lei da exata dimensão desse instituto, que, subestimada,

culmina na penalização da comunidade produtiva para a qual o registro imobiliário

dirige seus raios de blindagem da segurança jurídica do tráfico imobiliário, em

proporção direta à preocupação manifestada pela sociedade civil, no que se relaciona à

credibilidade interna e externa do país e ao seu bem-estar econômico e social.3

Num passado ainda recente, viveu-se um período em que as principais

reformas estiveram ausentes e a resolução dos grandes problemas nacionais era

sucessivamente adiada. Grandes mudanças já ocorreram. O Estado tem, forçosamente,

reduzido o seu peso na economia. Obviamente, todos nós pugnamos por um Estado

forte, capaz, moderno, eficiente, mas que não seja tutelar.

Eis a razão por que os serviços públicos estão sofrendo um processo de

desburocratização, tornando-se mais eficazes. Há unanimidade quanto à necessidade de

se acabar com a administração pública lenta, pesada, intervencionista e sobre-

2 Os atores envolvidos na construção de uma conjuntura favorável para o desenvolvimento do

país rejeitam a velha lamechice ideologicamente estatizante. Como asseverou o saudoso Miguel

Reale, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil: “Muito embora sejamos

partícipes de uma 'sociedade em mudança', já fizemos, no Brasil, a nossa opção pelo sistema e o

estilo de vida mais condizentes com as nossas aspirações e os valores de nossa formação

histórica. Se reconhecemos os imperativos de uma Democracia Social, repudiamos todas as

formas de coletivismo ou estatalismo absorventes e totalitários. Essa firme diretriz não só nos

oferece condições adequadas à colocação dos problemas básicos de nossa vida civil, como nos

impõe o dever de assegurar, nesse sentido, a linha de nosso desenvolvimento”. Diário do

Congresso Nacional – Seção I, 13.06.1975. 3 O Instituto de Registro de Imóveis do Brasil – IRIB – tem sido fator catalisador para que essa

mudança aconteça, principalmente por meio do diálogo que mantém com importantes setores

governamentais, jurídicos, da cadeia produtiva do país e com organismos internacionais, além

da vasta produção bibliográfica especializada. Acrescente-se, ainda, como elemento coadjuvante

para o êxito na busca desse ideal, o provimento dos cargos de Registrador de Imóveis via

concurso público, de provas e títulos, na medida em que oxigena o sistema com a outorga de

delegações de registros para profissionais oriundos de outras carreiras jurídicas.

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regulamentada. Existe uma palavra muito importante para serviços públicos concedidos:

regulação.4 Regulação é mais do que um vocábulo corrente entre fornecedores e

consumidores de serviços públicos e de chamamento à responsabilidade institucional. É

uma via de mão única na qual trafegam os interesses de administrados, concedentes e

concessionários de serviços públicos. Não há mais caminho para retorno ao modelo da

administração pública ortodoxa, porque os cidadãos, agora não apenas cidadãos, mas

também clientes, pois são usuários dos serviços públicos, não toleram mais a

ineficiência ou a inércia administrativa. Essa circunstância reclama regeneração e

contextualização dos serviços prestados pelos Registros de Imóveis no país. Temos que

responder uma pergunta: o que podemos fazer para melhorar o Registro de Imóveis no

Brasil?5

A autonomia de gestão administrativa e financeira do notário e do registrador,

bem como sua condição de profissional de direito, foram afirmadas pela Lei 8.935 de

18.11.19946 como elementos de sinalização da evolução pela qual o Direito

Administrativo passou nos últimos anos. Nesse contexto, ganhou relevo o estudo das

Agências Reguladoras como novo instrumento para a regulação das atividades

econômicas e de mercados, sobretudo a questão relativa à extensão do poder normativo

do órgão regulador.7

4 O ato de regular visa estimular os investimentos necessários ao desenvolvimento da atividade

concedida, promovendo o bem-estar dos usuários de serviços públicos e propiciando a

eficiência econômica. 5 A emergência da sociedade do conhecimento condicionada e induzida pela Internet reclama,

para a eficácia da publicidade registral, a absorção pelo Sistema de Registro Imobiliário das

Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICs) e a construção de uma infra-

estrutura institucional para interconexão em rede de todos os Registros de Imóveis do país. Essa

expectativa da sociedade está consubstancia na Portaria 149, de 05.07.2007, da Ex-Presidente

do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministra Ellen Gracie, que instituiu grupo de trabalho,

do qual o autor participa como representante da Associação dos Registradores de Imóveis de

São Paulo (ARISP), com o objetivo de desenvolver funcionalidades tecnológicas voltadas à

integração das bases de dados das serventias extrajudiciais com os órgãos do Poder Judiciário.

(Publicado no DJ de 10.07.2007, seção 1, p. 24). 6 Dispõe o art. 21 da Lei 8.935/94 que “o gerenciamento administrativo e financeiro dos

Serviços Notariais e de Registro é de responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive

no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer

normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus

prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos Serviços”. 7 O Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado de São Paulo, por meio da Associação dos

Registradores de Pessoas Naturais de São Paulo – Arpen-SP, dá excelente e pioneiro exemplo

de alto impacto, ao fazer visitas de inspeção do funcionamento das serventias que recebem

ressarcimento dos atos gratuitos de registro civil ou que recebem subvenções (caso das

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2. Introdução

Embora o presente estudo tenha por finalidade e limite abordar o princípio da

legalidade no Sistema de Registro de Imóveis, vamos adentrar no tema através de uma

preliminar visão panorâmica.

De forma geral, o Registro de Imóveis se apresenta no universo jurídico

nacional com uma estrutura de inatacável lógica interna, regida pelos chamados

“princípios registrais”, os quais, não obstante tenham como gênese os “princípios gerais

de direito”, se distinguem da generalidade desses, em virtude da sua aplicabilidade in

concreto, como resposta direta da legislação, ou por esta induzida, para problemas

práticos.

O que são princípios de direito?

Vejamos primeiramente a lição de Miguel Reale, ao ensinar que princípios são

“certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais

asserções que compõem dado campo do saber”.8

Princípio é definido também como “proposição posta no início de uma

dedução, não sendo deduzida de nenhuma outra do sistema considerado e, por

conseguinte, colocada até nova ordem fora de discussão”.9

Segundo o dicionarista De Plácido e Silva, “os princípios revelam o conjunto

de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação

jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica”.10

Denso é o comentário tecido por Celso Antonio Bandeira de Mello acerca dos

princípios em geral. Diz ele: “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um

serventias deficitárias). Essas visitas têm por objetivo auditar o tipo de atendimento que essas

serventias prestam. Como o IRIB mantém uma digníssima Comissão de Ética, composta pelos

respeitadíssimos oficiais Ademar Fioranelli (SP), Ercília Maria Moraes Soares (TO) e Paulo de

Siqueira Campos (PE), não restam dúvidas de que já podemos acionar o Conselho de Ética para

apreciar pontuadas situações relativas aos deveres de casa, para casos em que a “lição de casa”

não é feita, ou é mal feita. Essa é uma proposta que tenho sustentado publicamente, desde o

XXXI Encontro do IRIB (2004). 8 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 300. 9 LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,

1999. p. 861. 10 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 639.

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sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes

normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e

inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no

que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios

que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por

nome sistema jurídico positivo”.11

Augustin A. Gordillo garante que um princípio é muito mais importante do que

uma lei. Segundo o autor, “el principio establece una dirección estimativa, un sentido

axiológico, de valoración, de espíritu. El principio exige que tanto la ley como el acto

administrativo respeten sus límites y además tengan su mismo contenido, sigan su

misma dirección, realicen su mismo espíritu”.12

Antes disso, Gmur já afirmara que “a segurança jurídica, objetivo superior da

legislação, depende mais dos princípios cristalizados em normas escritas do que da

roupagem mais ou menos apropriada em que se apresentam”.13

No Brasil, assim como na maioria dos países que adotam sistemas jurídicos de

origem romanística, os princípios são considerados como fonte subsidiária do direito.

Por isso, no art. 4.º da LICC, no art. 8.º da CLT e no art. 126 do CPC, os princípios

aparecem como uma das formas de suprimento de lacunas.

Mais do que isso, dispõe a Constituição da República que “os direitos e

garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por

ela adotados...” (§ 1.º do art. 5.º).

Resta, assim, revelada a gigantesca importância de um princípio no sistema

jurídico, já que os princípios não são meros acessórios interpretativos, senão os pontos

fundamentais que servem de base para a inspiração, elaboração, interpretação e

aplicação do direito e, estejam implícita ou explicitamente no direito, aplicam-se

cogentemente a todos os casos concretos.14

11 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo:

RT, 1981. p. 230. 12 GORDILLO, Augustín. Tratado de derecho administrativo. tomo 1, vol. 12. 4 ed. Buenos

Aires (Argentina): Ediciones Macchi, 1984. 13 Apud MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11 ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1991. p. 124. 14 Conforme Amauri Mascaro Nascimento, uma concepção positivista leva à identificação dos

princípios com as normas previstas nos ordenamentos jurídicos, nas quais aqueles se encontram,

expressam-se e têm os seus meios de exteriorização, em alguns sistemas caracterizados como

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Os princípios podem ser classificados como universais ou onivalentes,

regionais ou plurivalentes, monovalentes e setoriais.

Onivalentes são os princípios lógicos, razão de ser do próprio pensamento

humano, quando aplicáveis a todas as ciências. Por exemplo: princípio da identidade –

não é possível uma coisa ser e não ser ao mesmo tempo.

São princípios plurivalentes aqueles comuns aplicáveis a algumas ciências que

guardam semelhança entre si, como o princípio da causalidade, das ciências naturais: à

causa corresponde dado efeito.

Já os princípios monovalentes são os que servem de fundamento apenas a uma

ciência; como por exemplo, o princípio da legalidade, que informa toda a ciência do

Direito: a lei submete a todos.

Por fim, há os princípios setoriais, que são os princípios de um ramo de

ciência, podendo-se usar a expressão, também, para designar os princípios próprios de

um setor.15

No campo do Direito, cada ramo autônomo, público ou privado, ao receber

autonomia, é informado por um conjunto de princípios – os princípios setoriais, que

garantem as características do novo ramo.16

Embora o Direito Registral Imobiliário não seja concebido como disciplina

jurídica independente, senão como parte integrante do Direito Civil, dentro deste, em

razão de suas características especiais, de seus princípios substantivos próprios e dos

técnica de integração de lacunas; uma posição jusnaturalista leva às concepções dos princípios

como valores transcendentes ao direito positivo, acima deste e com funções retificadoras de suas

injustiças. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. São

Paulo: Saraiva, 1998. p. 96. Carnelutti, todavia, já salientava que “os princípios gerais do direito

não são algo que exista fora, senão dentro do próprio direito escrito, já que derivam das normas

estabelecidas. Encontram-se dentro do direito escrito como o álcool no vinho: são o espírito ou a

essência da lei”. CARNELLUTTI, Francesco. I sistema di Diritto Processuale Civile; I.

Funzione e Composizione Del Processo. Pádua, 1936. p. 120. 15 Essa é a classificação oferecida por José Cretella Júnior, ao aludir sobre a principiologia

administrativa, ou canônica, como o conjunto de postulados básicos que garantem a autonomia

de um sistema dentro do universo jurídico, mantendo-se firme e sólida, a despeito da variação

de normas (CRETELLA JR., José. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense,

1995. p. 6) e por Amauri Mascaro Nascimento (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de

Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 96). 16 CRETELLA JR., op. cit., p. 6.

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fins peculiares que busca, tem sido configurado como um setor jurídico com relativa

autonomia.17

Angel Cristóbal Montes refere-se a autores que já vêem o Direito Registral

Imobiliário como um ramo independente do Direito, dotado de genuína e própria

substantividade, os quais consideram que sua autonomia constitui simplesmente uma

nova manifestação do processo de desintegração que o Direito civil acusa há tempo e

preconiza que:

“Não se deve esquecer que o vigoroso impulso que se está dando para a

sistematização e tratamento unitário do fenômeno publicitário (fazendo-se rebaixar à

esfera estritamente patrimonial a que por tradição vem sendo reduzido) permite prever

que em um futuro, talvez não muito longínquo, haja necessidade de formar um novo

ramo jurídico, de aspecto marcadamente público e dotado de independência, que se

ocupe do agrupamento e regulamentação unitária do fenômeno publicitário em suas

diversas manifestações e campos de atuação, parte da qual deveria ser, necessariamente,

o Direito imobiliário registral”.18

3. Princípios registrais

Entende-se por princípios registrais regras, critérios e idéias fundamentais que

servem de base ao Sistema de Registro Imobiliário de um país, tecnicamente

desenvolvidos a partir de seu arcabouço jurídico, para consecução das finalidades da

instituição registral, qual seja, a segurança máxima do tráfego imobiliário, que traz em

seu bojo o desenvolvimento e a segurança econômica.19

17 MONTES, Angel Cristóbal. Direito imobiliário registral. Trad. Francisco Tost. Porto Alegre:

IRIB/Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 147. 18 Idem. 19 O XIII Congresso Internacional de Direito Registral – patrocinado pelo Cinder (Centro

Internacional de Direito Registral), celebrado em 2001 em Punta del Este, República do Uruguai

– aprovou a seguinte conclusão: “A segurança jurídica incorpora sempre segurança econômica,

mas a inversa não é verdadeira, visto que é impossível, por definição, a segurança econômica

incorporar a jurídica, pois o adquirente desapossado recebe uma compensação mas perde o bem.

Isto confirma-se empiricamente por duas vias: por um lado, ao observar que os seguros de

títulos não cobrem o valor do bem, mas, sim, e tão só, uma parte ou todo o preço da compra.

Assim, o seguro do proprietário não costuma cobrir as mais-valias, o seguro do credor só cobre

a importância do crédito hipotecário, tanto que as apólices costumam incluir exceções tão

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Pela ótica do Direito Comparado, pode-se afirmar que os princípios registrais,

na qualidade de diretrizes gerais, não são um produto lidimamente nacional. São, ao

contrário, resultado de técnica que transcende as fronteiras de cada país, válidos para

todas as nações que perseguem um bom sistema de tráfico imobiliário. Tendo como

suporte o registro de segurança jurídica, cujos princípios emigram para o universo

jurídico de cada nação mediante o fenômeno da recepção, de conformidade com o seu

ordenamento positivo, ainda que por indução, porque não explicitamente enunciados em

preceitos legais.20

Sobre essa característica dos princípios ensina Norberto Bobbio que:

“Ao lado dos princípios gerais há os não expressos, ou seja, aqueles que se

podem tirar por abstração de normas específicas ou pelo menos não muito gerais: são

princípios, ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérprete, que busca colher,

comparando normas aparentemente diversas entre si, aquilo a que comumente se chama

o espírito do sistema”.21

A Carta de Buenos Aires, produzida no I Congresso Internacional de Direito

Registral, patrocinado pelo Cinder (Centro Internacional de Direito Registral),

celebrado naquela cidade em 1972, proclamou que “los princípios del Derecho Registral

son las orientaciones fundamentales, que informan esta disciplina y dan la pauta em la

solución de los problemas jurídicos planteados em el Derecho positivo”.

Com efeito, embora não se possa afirmar peremptoriamente que os princípios

registrais sempre precedem as normas positivas, pois, salvo exceções, são essas que os

consagram, sua fluência orienta a atividade legiferante como explicação doutrinária ou

jurisprudencial e, em um segundo momento, após a edição da norma positiva, os

princípios explicarão a verdadeira dimensão da publicidade legalmente acolhida pela via

legislativa.

complexas, chegando a dizer que estas asseguram apenas que foi feito pela companhia

seguradora um exame cuidadoso do título e elencados todos seus defeitos. Por outro lado, os

mecanismos de segurança econômica desenvolvem-se numa relação inversa aos da segurança

jurídica proporcionados pelos diversos sistemas”. Disponível em:

<http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel312a.asp> Acesso em: 12 maio 2006. 20 PÉREZ LASALA, José Luís. Derecho Inmobiliario Registral: su desarrollo en los países

latinoamericanos. Buenos Aires: Depalma, 1965. p. 103. 21 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. 10

ed. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1999. p. 159.

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Como indica José Luis Pérez Lasala, face ao domínio do império da lei sobre

os princípios registrais, não se pode falar em princípios em geral aplicáveis a todas as

legislações, senão que cada princípio deve ser cientificamente aferido dentro das

particularidades do sistema jurídico do país.22

Antonio R. Coghlan adverte que “la diversidad de regímenes registrales

existente es elocuentemente indicativa de la diferencia en cuanto a los principios que los

informan. Es más, ni siquiera los sistemas que recogen los mismos principios

necesariamente les otorgan el mismo vuelo, isto es, igual tratamiento por la ley”.23

Deve ser considerado que o valor teórico e a eficácia prática dos princípios

registrais ultrapassam um simples exercício acadêmico, pois orientam tanto o intérprete

– como, por exemplo, no exame de caso concreto para decretação de nulidade

independentemente de ação direta na forma do art. 214 da Lei de Registros Públicos –,

quanto o legislador em sua atividade típica.24

Aliás, quanto ao valor teórico e à utilidade prática dos princípios registrários,

indica Roca Sastre, baseado em Jerónimo González, que eles “orientan al juzgador,

economizan preceptos, facilitan el estudio de la materia y elevan las investigaciones a la

categoria de científicas”, ou servem, pelo menos, “para facilitar la investigación de las

radicales orientaciones del sistema”.25

Ainda que todos os estudiosos do Direito Registral Imobiliário brasileiro sejam

unânimes em ordinariamente pontuar princípios registrais e classificá-los como vigas

mestras do edifício registral, a determinação do número desses princípios, embora se

mantenha nos limites de nosso ordenamento jurídico, não se apresenta sistematizada e

metodicamente catalogada, até porque envolve vasta e diversificada gama acerca da

importância, extensão e alcance do tema.

22 PÉREZ LASALA, op. cit., p. 104. 23 COGHLAN, Antonio R. Teoria General de Derecho Inmobiliario Registral. Buenos Aires

(Argentina): Abeledo-Perrot, 1995. p. 13. 24

Maria Helena Leonel Gandolfo, ao aludir sobre a importância prática dos princípios gerais no

Direito Registral Imobiliário brasileiro – em palestra proferida no curso realizado durante o

XXVII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, em Vitória, ES (07.08.2000) –,

asseverou que “é a falta de observância dos princípios gerais que muitas vezes impossibilita o

registro dos títulos, ocasionando devoluções inevitáveis, quase sempre recebidas com desagrado

e inconformidade pelos interessados”. 25 ROCA SASTRE, Ramón Maria. Derecho Hipotecário. tomo I. 7 ed. Barcelona (Espanha):

Bosch, 1979. p. 184.

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Dessa forma, a enumeração dos princípios registrais apresenta variações

relativas à determinação, ou à denominação; algumas delas resultam da agregação de

princípios, outras, verdadeiros subprincípios.

Acertadamente, reconheceu Álvaro Melo Filho que “a diversidade de

princípios não advém do fato de que uns sejam mais científicos do que outros, mas das

circunstâncias de que seus arautos conduzem o raciocínio por vias diferentes, e não

consideram as mesmas questões da mesma forma”.26

Desprendido de ânimo sistematizante27

, apresento três listas de princípios que

informam o sistema de registro de imóveis, elaboradas de acordo com uma classificação

que leva em conta a interconectividade de atributos encontrados em um ato de registro,

os quais, embora se apresentem distintos, são pragmaticamente relacionados. Dizem

respeito aos princípios que informam os requisitos do registro, aos princípios que

informam os efeitos do registro e aos princípios administrativos do registro.

A) Princípios que informam os requisitos do registro

a) Princípio da rogação ou instância

b) Princípio da disponibilidade

c) Princípio da continuidade

d) Princípio da legalidade

e) Princípio da especialidade

f) Princípio da unitariedade

B) Princípios que informam os efeitos do registro

a) Princípio da publicidade

b) Princípio da prioridade

c) Princípio da inscrição

d) Princípio da presunção

e) Princípio de usucapião secundum tabulas

26 MELO FILHO, Álvaro. Princípios do direito registral imobiliário. Revista de Direito

Imobiliário, São Paulo:RT/IRIB, n. 17/18, jan-dez. 1986. p. 28. 27 Por favor, não vejam nessa confissão nem pseudo-humildade, nem tampouco desapreço aos

méritos da sistematização dos princípios registrários, já empreendido por alguns estudiosos do

tema, mas uma tentativa de contribuição e disposição para suportar opiniões contrárias. Como

autocrítica.

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C) Princípios administrativos do registro

a) Princípio de autotutela

b) Princípio da moralidade

c) Princípio da igualdade

d) Princípio da eficiência

e) Princípio da motivação

f) Princípio da razoabilidade

4. Princípio da legalidade

A noção do princípio da legalidade, no Registro de Imóveis, diz respeito ao

comportamento do Registrador, ao permitir o acesso ao álbum registral apenas para os

títulos juridicamente válidos para esse fim e que reúnam os requisitos legais para sua

registrabilidade e a conseqüente interdição provisória daqueles que carecem de

aditamentos ou retificações e definitiva, daqueles que possuem defeitos insanáveis.28

Essa subordinação a pautas legais previamente fixadas para manifestação de

condutas que criem, modifiquem ou extingam situações juridicamente postas não é

exclusiva da temática registral, mas resulta da própria aspiração humana por

estabilidade, confiança, paz e certeza de que todo o comportamento para obtenção de

um resultado regulamentado para a hipótese terá a legalidade como filtro, vetor e limite.

Em matéria registral, na medida em que essa confrontação é praticada pelo

Registrador, exsurge daí um juízo de aprovação ou de desqualificação do negócio

28 A distinção se faz importante para o efeito de se conceder ou não a prorrogação dos efeitos da

prenotação. Como afirmei em Algumas linhas sobre a prenotação, “prorrogar a vigência dos

efeitos da prenotação, vencido o trintídio, é a parte nevrálgica da questão. De pronto atente-se

que a prorrogação do prazo dos efeitos da prenotação deverá ser por mais trinta dias ou pelo

prazo que for fixado. Uma prorrogação indefinida sine die, ou muito prolongada, pode se

constituir em burla aos princípios registrais. A prorrogação do prazo dos efeitos da prenotação

ou a repristinação desses efeitos, sob a alegação da ocorrência de força maior ou de fato

inevitável, imprevisível ou estranho à vontade do interessado, que o impossibilitou de cumprir

as exigências legais dentro do prazo do artigo 205 da LRP, deverá ser apurada em procedimento

próprio, visto que pelas repercussões jurídicas que produz não permite que venha basear-se em

vagas lembranças pessoais do oficial e em outros elementos desse tipo. Mas é de rigor a devida

formalização, legitimando assim seus resultados, e ainda porque serão analisados aspectos

intrínsecos que determinarão se houve omissão ou negligência por parte do interessado”.

Revista de Direito Imobiliário n. 43, São Paulo: RT/IRIB, jan/abr. 1988.

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jurídico que trafega com destino ao álbum registral em perseguição da publicidade erga

omnes, decorrente de sua inscrição.

Esse controle de legalidade exercido pelo Registrador é realizado pelo

procedimento da qualificação registral e implica na efetiva constatação se determinada

situação jurígena reúne ou não as qualidades necessárias para gerar o direito que

pretende, pronunciando sua legalidade mediante a admissibilidade do título ou, se for o

caso, a ausência circunstancial ou definitiva desse atributo, por meio da respectiva Nota

de Exigência ou de Devolução.

Sobre a qualificação registral imobiliária, diz Ricardo Dip que ela é o juízo

prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem à sua inscrição

predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração.29

José Luis Pérez Lasala pondera que, segundo Jerónimo González, se não

existisse a função qualificadora, os assentos do registro somente serviriam para enganar

o público, favorecendo o tráfico ilícito e provocando novos litígios.30

Por sua posição na estrutura jurídica nacional como fiador da autenticidade,

segurança e eficácia dos atos jurídicos que lhe são acometidos pela legislação (cf. art. 1º

da Lei 6.015/73), em sede registral, a qualificação empreendida pelo Registrador se

constitui, concretamente, em uma apreciação técnica imparcial, que transcende aos

interesses privados ocasionalmente em jogo, visto que da publicidade registral emerge,

claramente, o interesse público de obter a satisfação de certos fins comunitários com a

máxima dose de credibilidade, além do que, se lançar um ato indevido, fica sujeito à

responsabilização civil, penal e administrativa.

Reafirmo que é aptidão do Registro Imobiliário ser um instrumento de

segurança e não deve macular o seu prestígio tornando-se um outdoor de fantasias e

fraudes, mediante o abrigo em seus livros ou arquivos de títulos ou documentos que

instrumentem ilegalidades ou arbitrariedades; assim como não deve permitir que se

defraude a confiança haurida, metas que são atingidas através da depuração jurídica dos

29 DIP, op. cit., p. 186. 30 PÉREZ LASALA, op. cit., p. 167.

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atos com vocação registral via minuciosa qualificação, a fim de que somente acessem o

sistema aqueles que se mostrarem idôneos.31

Roca Sastre comenta que:

“si en un buen sistema de Registro la nulidad de un título inscrito es inoperante

en cuanto pueda perjudicar a un tercero adquirente de buena fe, es evidente la necesidad

de evitar, en cuanto sea posible, que los títulos nulos puedan llegar a ser inscritos, No

ocurre así en los sistemas de transcripción, en los cuales en ningún caso la registración

de un título nulo puede impedir que su nulidad afecte a tercero, pues el Registro se

desentiende de los vicios Del documento registrado, y éste vale por lo que valiere. Por

tal motivo en estos sistemas el Registrador está reducido al papel de un simple autómata

o mero archivero”.32

Afrânio Carvalho, ao aludir sobre a presunção registral33

, lembra que o registro

“não tem a virtude de limpar o título que lhe dá origem, sanando os vícios jurídico-

materiais que o inquinam, nem a de suprir faculdade de disposição. A inscrição não

passa uma esponja no passado, não torna líquido o domínio ou qualquer outro direito

real”.

Ao afirmar que o exame prévio da legalidade faz com que o público confie

plenamente no registro, diz o autor:

“diante dessa contingência, cumpre interpor entre o título e a inscrição um

mecanismo que assegure, tanto quanto possível, a correspondência entre a titularidade

presuntiva e a titularidade verdadeira, entre a situação registral e a situação jurídica, a

bem da estabilidade dos negócios imobiliários. Esse mecanismo há de funcionar como

um filtro que, à entrada do registro, impeça a passagem de títulos que rompam a malha

31 SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Os problemas mais comuns encontrados nos contratos-

padrão dos loteamentos urbanos. Disponível em: <www.primeirosp.com.br> Acesso em:

18.10.2006 e na Revista de Direito Imobiliário n. 47: São Paulo, RT/IRIB, julho/dez 1999. 32 ROCA SASTRE, op. cit., p. 255. 33

O princípio da presunção que tem como efeito inversão do ônus da prova, desde o art. 859 do

Código Civil de 1916, o qual dispunha, in verbis, “presume-se pertencer o direito real à pessoa,

em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”, é mantido com maior ênfase no atual Código Civil

ante o enunciado do § 2º do art. 1.245, segundo o qual “enquanto não se promover, por meio de

ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente

continua a ser havido como dono do imóvel”, podendo evoluir para a usucapião “secundun

tabulas”, desde que presentes o lapso temporal e a boa-fé, nos termos do § 5º do art. 214 da Lei

6.015/73, introduzido pela Lei n. 10.931 de 02.08.2004.

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da lei, quer porque o disponente careça da faculdade de dispor, quer porque a disposição

esteja carregada de vícios ostensivos”.34

Essa inescusável obrigação, no entanto, não decorre somente da função

registrária de oferecer segurança jurídica à sociedade, o que seria suficiente por si só,

mas também de expressas disposições legais às quais o Registrador encontra-se

vinculado preceptivamente, cujo vetor é o princípio constitucional de segurança

jurídica. A regra vem implícita no art. 1.496 do CC e no art. 198 da Lei 6.015/73,

subentendendo-se o exame da legalidade como dever do Registrador efetuar o estudo

prévio dos documentos que pretendam acessar o registro.35

O Regulamento de 1939 (Decreto 4.857), que precedeu a atual Lei de Registros

Públicos, foi mais claro quando normatizou o assunto, dispondo no art. 215 que

“tomada a nota de apresentação e conferido o número de ordem, em conformidade com

o art. 200, o oficial verificará a legalidade e a validade do título, procedendo ao seu

registro, se o mesmo estiver em conformidade com a lei”, tendo naquela época fixado

no § 1º o prazo improrrogável de cinco dias para efetivação dessa verificação.

5. Natureza da função registral de qualificação

A determinação da natureza jurídica da função qualificadora do Registrador

tem sido objeto de teses díspares. Ricardo Dip, que melhor se ocupou do tema, aponta

quatro correntes que, de um modo geral, disputam o acerto, filiando-se à última: a)

jurisdicional; b) administrativo; c) de jurisdição voluntária; d) singular ou especial.36

Com efeito, quando o Registrador examina um título e o declara conforme a lei

e lhe dá abrigo no arquivo registral imobiliário ou o desqualifica, a exemplo da

34 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 226. 35 MONTES, op. cit., p. 281. O autor reproduz a expressão de Gómez Pavón, para quem “a

qualificação não é um privilégio nem um direito do Oficial de Registro. É um dever que a Lei

lhe confiou: a alma de seus deveres e a razão mesma de sua existência”. 36 DIP, op. cit., p. 179-188. O autor conclui: “Desse modo, não se estorva a pluralidade de

noções construtivas em torno da instituição social do registro: de um lado, preserva-se a aferição

correcional por meio de coordenação, com a fiscalização judiciário-administrativa da prestação

contínua e regular dos serviços; de outro, fomentando-se um reto conceito corporativo, de sorte

que colégios profissionais possam dar contributo ao desenvolvimento ético, técnico e científico

das funções e atividades registrais; mais além, a primazia jurisdicional, garantia maior dos

direitos”.

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atividade judicial saneadora do processo, pratica ato típico de jurisdição voluntária,

imparcial, com independência e soberania.

Por outro ângulo, ao considerar-se que o Registrador está adstrito ao

ordenamento jurídico positivo e aos princípios por ele adotados, mesmo que por

indução, não lhe sendo facultado, em razão do estreito limite da qualificação, valer-se

de elementos subsidiários para construção de seu juízo fora do direito normativo (como

por exemplo, do direito costumeiro, do direito comparado, da determinação eqüitativa

do direito etc.), tem comportamento típico da prática de ato administrativo, sujeitando-

se, inclusive, aos princípios informativos do Direito Administrativo. O que muito bem

salienta Adriano Damásio, “o administrador público somente poderá fazer o que estiver

expressamente autorizado em lei e nas demais espécies normativas, inexistindo, pois,

incidência de sua vontade subjetiva”.37

A tendência da moderna doutrina registral é configurar a função qualificadora

como um tertius genus, uma função híbrida, com características próprias, as quais,

somadas a outras assemelhadas de institutos típicos, conferem à qualificação uma

natureza jurídica sui generis, singular ou especial.38

Pelo caráter que representa, a atividade qualificadora do Oficial de Registro

expressa o princípio da legalidade em sua plenitude, inclusive no que tange a sua

influência na atividade legiferante, como explicação doutrinária ou jurisprudencial para

edição de normas que disciplinarão a atividade registral futura. Então, podem ser

afirmados os seguintes aspectos:

a) A qualificação registral tem uma função criativa. A qualificação

efetivada pelo Registrador dá azo à função criativa do Registro Imobiliário, voltada para

o desenvolvimento da ciência jurídica no campo dos negócios imobiliários, onde atua de

forma específica ao apontar, de modo concreto, atos da vida real que ainda não contam

com o expresso respaldo do direito positivo. Nesse mister detecta, com precisão, as

carências do sistema jurídico de instrumentos legais necessários para o fomento das

atividades econômicas imobiliárias. Assim, orienta, com apuro técnico e fundamento

37 DAMÁSIO, Adriano. Limite das medidas provisórias. In: MOTA DE SOUZA, Carlos

Aurélio (coord.). Medidas Provisórias e segurança jurídica. São Paulo: Editora Juarez de

Oliveira, 2003. p. 68. 38 CHICO Y ORTIZ, José María. Estudios sobre derecho hipotecario. 4 ed. tomo I. Madrid:

Marcial Pons, p. 536-537.

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nas práticas de mercado, a necessária regulamentação legal das atividades que têm

imóveis por objeto, via processo legislativo, a fim de possibilitar o acesso de novos

negócios imobiliários ao Registro de Imóveis, dotando-os de segurança. Com efeito, os

Serviços de Registros de Imóveis funcionam como um laboratório de experimentos

jurídicos. Na medida em que seus operadores manuseiam o direito vivo, e novos

negócios e requerimentos sociais que aportam em busca da proteção registral, são

capazes de detectar situações ligadas ao tráfego imobiliário que reclamam suporte legal

compatível com a estrutura econômica e jurídica do país e até com o Direito

Comparado. Os encarregados dos Registros de Imóveis são juristas especializados na

matéria e, por se concentrarem em oferecer as garantias e a segurança do Registro, de

acordo com o princípio da legalidade, gozam naturalmente de capacidade construtiva de

orientação para a edição de novos procedimentos, tipos e figuras jurídicas e o

aperfeiçoamento dos existentes.

b) É uma função unipessoal. Mesmo que o título tenha sido qualificado por

outro Registrador, ao proceder o ato registral, toda responsabilidade vai se concentrar na

pessoa do Registrador autor ou que autorizou a confecção do ato. Releva-se ser de

fundamental importância, no caso de assunção de uma nova serventia registral, com

relação aos títulos que foram qualificados pelo Registrador antecessor, mas que ainda

estão em fase de processamento, que o novel Registrador proceda a nova qualificação

desses títulos.

c) É uma atuação com responsabilidade pessoal. Mesmo havendo

autorização qualificadora do título para substitutos ou escreventes na forma do art. 20 da

Lei n. 8.935/94, a responsabilidade civil, penal e administrativa permanece concentrada

na pessoa do Registrador (art. 22), o qual não pode invocar como excludente, eventual

possibilidade dos atos registrais terem sido praticados em discrepância com sua

opinião.39

Deve, outrossim, abster-se de qualificar qualquer documento em que haja

interesse pessoal, interesse de seu cônjuge ou de parentes, na linha reta, ou na colateral,

consangüíneos ou afins, até o terceiro grau (Lei 8.935/94, art. 27). Nessa hipótese, a

39 De conformidade com o art. 24 da Lei n. 8.935/94, a responsabilidade criminal será

individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a

administração pública.

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qualificação deverá ser feita pelo substituto designado para responder pelo respectivo

serviço nas ausências e impedimentos do Registrador (art. 20, § 5º) ou, na falta ou

impedimento deste, por Oficial ad hoc.

d) É uma função inescusável. Sendo a qualificação um ato necessário, o

Registrador não pode alegar dificuldades em razão da profundidade ou novidade da

matéria, obscuridade legislativa, existência de lacunas na lei, dificuldades de pesquisas,

divergência doutrinária ou jurisprudencial, da consulta a órgãos de assessoria, entidades

de classe ou ao Poder Fiscalizador. Parece-nos que não há como o Registrador se

recusar a proclamar sua decisão, motivado por eventual estado de perplexidade, por

semelhante problema não ter ainda aportado em sua serventia ou não constar na

literatura jurídica ou não ter sido enfrentado pelos tribunais. Ao caracterizar o

comportamento do Registrador ante a qualificação registral, José María Chico y Ortiz

diz que “Álvaro D‟Ors habla de „imperplejidad‟ o postura que sabe resolver las

cuestiones, llegar al fondo del problema y darle solución através de una deción „reglada‟

que se ajusta a la norma”.40

e) É uma função independente.41

Embora o Registrador esteja sujeito à

fiscalização permanente do Poder Judiciário e mantenha vínculos com entidades de

classe (Anoreg, Arisp, IRIB etc.) e relacionamento profissional com outros registradores

e operadores do direito, ao exercer a qualificação, converte-se em autoridade única que

decide por si mesma se o ato pode ou não ser registrado ou averbado. Essa

independência se manifesta no conteúdo de sua decisão, já que não está vinculado nem

mesmo ao que decidiu em caso anterior e semelhante, até porque deve ter em mente que

“erros pretéritos, não justificam erros futuros”. O Registrador também não pode ficar

impressionado com qualificação diversa de outro Registrador (como, por exemplo, no

caso de um título que envolva imóveis de circunscrições diversas e já tenha sido julgado

apto por outro Registrador), com orientação de instituições de classe ou com decisões

administrativas ou jurisdicionais para casos análogos, salvante quando há caráter

40 CHICO Y ORTIZ, op. cit., p. 539. 41 Ricardo Dip baseia-se em Hernández Gil, para quem “a sentença prudencial de qualificação,

emitida em ordem ao atendimento da segurança jurídica, reclama a independência decisória de

seu agente, a mesma independência que tem o Juiz para proferir suas decisões”. DIP, op. cit., p.

178.

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normativo decretado pelo Juízo competente. Em caso de coação para que o Registrador

pratique qualquer assento em agressão a sua convicção jurídica, sem instauração do

devido processo legal de dúvida, o Oficial poderá se socorrer de mandado de segurança

para ver cessado o constrangimento. Quando o Registrador, interpretando

razoavelmente a lei, toma determinada decisão, fundamentando-a, seguramente, está no

exercício de sua independência jurídica como profissional do direito que é. Qualquer

aluno de primeiro ano do curso de Direito, já nas aulas iniciais de Teoria Geral do

Direito, aprende que “o contraste de opiniões no direito é fundamental para o próprio

crescimento do direito”. Podemos, nessa hipótese, falar em reparação de eventuais

danos causados por sua decisão, jamais em falta administrativa a ser punida pelo órgão

censor. Por óbvio, salvo se agiu dolosamente (ou com imprudência ou negligência,

quem sabe até em certas hipóteses caracterizadas por imperícia).

f) É função indelegável. Somente pode ser exercida pelo Registrador

encarregado da serventia como titular ou designado. Não há como o Oficial de Registro

se elidir da qualificação, transladando a competência e a responsabilidade para o Juiz

Corregedor à guisa de “consulta”. Essa é uma prática juridicamente reprovável e

representa uma demonstração de pouca capacidade do Registrador, além de violação

dos deveres de Registrador.42

Conforme a Lei de Registros Públicos, o Juiz somente tem

poder de qualificação registral mediante a instauração do competente Procedimento

Administrativo da Dúvida. Não há como o Registrador se exonerar concretamente da

responsabilidade de qualificação que lhe é atribuída, nem mesmo pela via transversa da

“consulta” a órgãos superiores.

g) A qualificação registral deve ostentar o signo de integralidade. É dever

do Registrador de Imóveis proceder ao exame exaustivo do título exibido, quer seja uma

escritura notarial, um título judicial, um contrato particular com ou sem força de

escritura pública, um requerimento etc., sob pena de incorrer em responsabilidade. A

qualificação deve abranger completamente a situação examinada, em todos os seus

aspectos relevantes para a registração ou seu indeferimento, permitindo quer a certeza

42 Destaca-se no rol de deveres do Registrador, proceder de forma a dignificar a função

exercida, previsto no inciso V do art. 5º da Lei 8.935/94. Aqui, sim, pelo descumprimento desse

dever, temos uma infração disciplinar caracterizada (Art. 31, V).

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correspondente à aptidão registrária, quer a indicação integral das deficiências para a

inscrição perseguida.43

É certo que nem sempre a qualificação registral empreendida pelo Oficial é

compreendida em seu verdadeiro sentido e alcance, tal como prevista no ordenamento

legal vigente, principalmente por notários e por magistrados. Tanto que não poucos

registradores colecionam histórias de insatisfações manifestas por colegas notários ou já

passaram pelo constrangimento de serem intimados de decisões judiciais por despachos

como “cumpra-se imediatamente sob pena de desobediência (ou de pena de prisão)”.

Simplesmente porque, ao examinarem um determinado título judicial, o consideraram

inapto para a prática do ato de registro ou de averbação determinado pelo Juiz ou

mesmo emitiram uma nota com exigência de retificação ou aditamento do título para o

efeito de afastar óbice que impedia a prática do ato determinado.44

Parece-nos que vários fatores, embora distintos, se completam e corroboram

essa situação, para que se instale e leve certos grupos a pugnarem pela limitação do

controle de legalidade exercido pelo Oficial via qualificação, notadamente em relação

aos títulos judiciais e as escrituras públicas. Citarei apenas dois deles.

a) Qualificações homeopáticas (em pequenas doses, a conta gotas): Quando

for o caso de formulação de exigências, essas devem ser formuladas de uma única vez,

articuladamente, de forma clara e objetiva, com indicação dos suportes normativos em

que se apoiou o Oficial no momento da qualificação do título, visto que o Registrador

está adstrito aos limites fixados pela legislação – princípio da legalidade –, sob pena de

incorrer em responsabilidade. São reprovadas as exigências em doses homeopáticas sem

fundamentação legal ou baseadas em hipóteses. Além de causar insegurança, levam ao

descrédito a atividade registrária e maculam a qualidade do serviço público prestado em

delegação. A ressalva que se faz é apenas na especialíssima hipótese de, cumpridas as

43

DIP, op. cit., p. 178. 44 A desqualificação de título judicial, que viole os princípios registrários básicos e torne

insegura e descontrolada a escrituração do fólio real, não caracteriza a figura do crime de

desobediência previsto no art. 330 do Código Penal, porquanto, esse tipo pressupõe a oposição

dolosa e injustificada a uma ordem legal e tal conjunto de elementos não restará integrado

quando rejeitado o título, em decorrência de óbice registrário. (cf. parecer do Juiz Marcelo

Fortes Barbosa Filho no Processo n. 9002/2000 da Comarca de Americana, publicado no DOJ

de 11.4.2000, p. 3).

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exigências, surgirem novos elementos, obrigando o Registrador a formular outras

exigências.

b) Notas de exigências inexpressivas: Existe uma infeliz prática registral de

devolução do título ou emissão da Nota de Exigência de forma resumida (p.e.,

apresentar certidão de casamento dos executados), por vezes até em papeletas

grampeadas no título, sem a imprescindível exposição das razões e dos fundamentos

que justificam a tomada de decisão do Oficial Registrador na edição do ato de negação

de acesso do título judicial ao caderno registral.

O Oficial deve considerar que, em virtude de sua condição de delegado do

serviço público, operando em nome do poder que o credenciou para o exercício de uma

atividade essencial, os atos que pratica em razão de seu ofício são atos administrativos.

Esses atos, para regular ingresso no mundo jurídico, devem ser estruturados nos

princípios que norteiam, informam e fundamentam o Direito Administrativo, impondo-

se, portanto, que no seu pronunciamento, consubstanciado em eventual Nota de

Devolução do Título Judicial, fiquem estampadas de maneira precisa e clara as razões

de fato e de direito que o levaram a proceder daquele modo.

Faz-se oportuno lembrar que o uso na justificativa da devolução do título de

expressões genéricas como “para os devidos fins”, “para fins de direito”, e outras

assemelhadas, não servem para motivar o ato de interdição do título pelo oficial

registrador, configurando mera logomaquia.45

A Constituição Federal, no seu art. 37, preceitua que a Administração Pública

obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

eficiência. Na mesma direção, a Constituição Paulista, em seu art. 111, amplia esse rol

acrescentando, de forma explícita, os princípios da razoabilidade, finalidade, motivação

e interesse público, como de observância obrigatória pela Administração Pública direta,

indireta e fundacional, incluídos nessa categoria de entes públicos, por conseqüente

lógico, os serviços delegados de notas e de registro.

Ensina Celso Antônio que:

45 CRETELLA JÚNIOR, José. Dos atos administrativos. n. 140. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

p. 270.

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“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.

A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento

obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou

inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa

insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia

irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão a sua estrutura mestra”.46

Urge, então, que o Registrador de Imóveis estruture a Nota de Exigência nos

termos estabelecidos pela Lei de Registros Públicos, por outras normas jurídicas

pertinentes e pelos princípios de direito registral e de direito administrativo, sob pena de

ficar o ato inquinado de vício de legalidade e adentrar de forma precária no mundo

jurídico, com sua validade comprometida, podendo até ser por esse abortado, já que não

se tolera a inércia ou o relaxo administrativo.

6. Os limites da qualificação registral

A extensão e determinação dos limites da qualificação registral estabelece certa

polêmica entre os operadores e constitui-se tema agitado perante as Corregedorias em

casos concretos, por meio de representações e suscitações de dúvidas.

Esse rigoroso controle de legalidade preconizado deve ser levado a efeito em

condições psicologicamente favoráveis ao acesso do título ao registro, obviamente sem

menosprezo às condições normativas aplicáveis, todavia, com o máximo de boa

vontade, como instrui Serpa Lopes.

“Um princípio devem todos ter em vista, quer Oficial de Registro, quer o

próprio Juiz: em matéria de Registro de Imóveis toda a interpretação deve tender para

facilitar e não para dificultar o acesso dos títulos ao Registro, de modo que toda

propriedade imobiliária, e todos os direitos sobre ela recaídos fiquem sob o amparo do

regime do Registro Imobiliário e participem dos seus benefícios”.47

46 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:

Malheiros, 2000, p. 748.

47 SERPA LOPES, Miguel Maria. Tratado dos registros públicos. vol. II. 3 ed. Rio de Janeiro:

Freitas Bastos, 1955. p. 346.

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Por ser a tarefa qualificadora eminentemente profissional, por conseqüência,

seu conteúdo e alcance deve ser essencialmente jurídico. Não há espaço para

improvisações, conjecturas e suposições, inclusive pseudos pruridos de consciência que

possam levar o Oficial de Registro a formalizar exigências que nem a lei, nem as

normas técnicas prevêem. Muito pelo contrário, ao Registrador deve interessar que as

partes, dentro do que o Ordenamento prevê, consigam inscrever todos os fatos e

publicar todos os direitos que quiseram constituir.

Como delegado do serviço público, e pela natureza jurídica do ato qualificador,

emergem conceitos de Direito Administrativo que devem ser venerados pelo Oficial de

Registro, entre os quais é relevante mencionar os princípios da impessoalidade, da

moralidade, da finalidade, eficiência, motivação e da razoabilidade. Importa afirmar que

a inobservância de quaisquer dessas condutas se caracteriza como um comportamento

ilegal, que deve ser corrigido pelo Poder Fiscalizador ou na via jurisdicional.

Existem correntes doutrinárias que defendem menor rigidez funcional na

qualificação, restringindo-a ao controle das formas extrínsecas do título. Parece-nos,

todavia, que a perspectiva jurídica de nosso Ordenamento é marcadamente mais ampla,

abarcando na apreciação da viabilidade de um registro, além da legitimidade dos

interessados e da regularidade formal dos títulos, também e especialmente a validade

dos atos neles contidos, mediante subordinação a preceitos de ordem pública, como, por

exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e a outras leis federais, estaduais e

municipais que disciplinam matérias periféricas.48

a) Legitimidade dos interessados

Sem solicitação da parte ou autoridade, o Oficial não pratica atos registrais,

salvante, os de ofício. Em conformidade com o art. 13 da Lei 6.015/73, os atos de

registro serão praticados por requerimento verbal ou escrito dos interessados, ou por

ordem judicial, ou a requerimento do Ministério Público.

48 Embora seja de competência privativa da União legislar sobre registros públicos, é certo que

os estados, os municípios e o Distrito Federal também legislam, dentro da competência

constitucional, sobre temas que devem ser observados na qualificação registral. A propósito,

não cabe ao Registrador apreciar inconstitucionalidade de norma legal, campo reservado ao

Poder Judiciário.

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Interessado, na dicção da Lei de Registros Públicos, não se confunde com

apresentante ou portador. Estes podem ser quaisquer pessoas que estejam de posse do

título, enquanto interessado é aquele que, direta ou indiretamente, tenha legítimo

interesse no movimento ou mutação do registro, que deverá ser cabalmente

demonstrado.

Walter Ceneviva explica que diretamente interessado é aquele em cujo nome

será feito o registro; indiretamente interessado é quem seja atingível em seu direito se

ocorrer o registro.49

Em linhas gerais, além da legitimidade da ordem judicial e do requerimento do

Ministério Público, estão aptos para formular requerimentos registrais na condição de

interessado:

a) o titular ou o transmitente do direito inscrito;

b) o que o adquire;

c) o que tenha representação legal de qualquer deles50

;

d) o que tenha interesse jurídico no direito objeto do requerimento.

A importância prática dessa distinção pode ser verificada no caso de

impugnação de dúvida suscitada, reservada ao interessado, não podendo ser oposta pelo

mero apresentante, nos termos do art. 199 da Lei 6.015/73, embora possa este requerê-

la perante o Oficial.

b) Controle da forma extrínseca dos títulos

O primeiro ponto a ser considerado na qualificação do título é quanto a sua

origem. De forma geral, os títulos que são admitidos a Registro podem ser (A) público

ou (B) particular.

A planilha que segue apresenta alguns itens gerais que podem auxiliar o

trabalho do Registrador ou se preposto no desenvolvimento da qualificação registral,

todavia, não o fazemos de maneira exaustiva, visto que cada caso deve ser

concretamente analisado.

49 CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. n. 508. 6 ed. São Paulo: Saraiva,

1988. p. 435. 50 Por representação legal, considero os casos de representação por procuração, representação

legal (pais, tutores e curadores), representação por contrato social e os agentes políticos.

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A. Público

A.1 Escrituras notariais

- O título foi apresentado no original?

- Há higidez no texto? Emendas, rasuras e entrelinhas? Foram ressalvadas?

- Consta a data, livro e folhas da escritura?

- O título está devidamente assinado, com suas folhas numeradas e rubricadas

pelo notário?

- A assinatura do tabelião confere com a do cartão de autógrafos depositado no

cartório? (Em caso negativo, solicitar reconhecimento de firma em tabelião local).

Sendo o tabelião desconhecido, consultar a regularidade da delegação notarial no

Cadastro Nacional de Serventias Públicas e Privadas do Brasil do Ministério da Justiça

pela Internet, no endereço http://www.mj.gov.br.

- No caso de retificação, ratificação ou aditamento, está acompanhado do título

retificado, ratificado ou aditado?

- É o caso de verificação de papel de segurança ou de selo notarial?

- Está entre títulos admissíveis no registro (LRP, arts. 221 e 291, § 1º)?

A.2 Títulos Judiciais

- O título foi apresentado no original?

- A autoridade Judiciária era competente?

- Em Formais de Partilha e Cartas de Sentença, verificar se constam termos de

abertura e encerramento e se estão assinados pelo Juiz de Direito e pelo funcionário

judicial encarregado; verificar as folhas, se seguem numeração seqüencial ordinária até

a folha de encerramento e se estão devidamente numeradas e rubricadas pelo escrevente

judicial. No Estado de São Paulo, face preceito expresso nas Normas de Serviços,

verificar se a assinatura do Juiz foi devidamente reconhecida pelo Escrivão Diretor do

feito. De qualquer forma, caso entenda, exigir o reconhecimento de firma da assinatura

do Juiz de Direito. Igual atenção deverá ser dispensada para o Mandado Judicial.

- Está entre títulos admissíveis no registro (LRP, arts. 221 e 291, § 1º)?

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A.3 Títulos Administrativos

- Foi apresentado no original ou por certidão?

- Há higidez no texto? Emendas, rasuras e entrelinhas? Foram ressalvadas?

- Era a hipótese de expedição de título administrativo?

- Está devidamente assinado pelo funcionário competente ou autoridade?

- Há comprovante da nomeação?

- Está devidamente legalizado?

B. Instrumentos Particulares

- Foi apresentado no original?

- Há higidez no texto? Emendas, rasuras e entrelinhas? Foram ressalvadas?

- No caso de negócios que versem sobre direito real, o instrumento foi lavrado

dentro dos limites legais? Visto que, para os negócios imobiliários com valores

superiores a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no país, é essencial para o ato

escritura pública (CC, art. 108).

- Consta do título local e data?

- Todas as pessoas que figuram no preâmbulo do título constam do rol de

assinaturas?

- Constam testemunhas instrumentárias (se for o caso)?

- Todas as assinaturas (signatários e testemunhas) estão devidamente

reconhecidas por tabelião que tenha cartão de autógrafos na serventia (Lei 6.015/73, art.

221, II e art. 246, parágrafo único)?

- Eventuais documentos estrangeiros anexados estão devidamente traduzidos

para o português e registrados com seu original na forma do art. 148 da LRP?

- Quantas vias foram apresentadas (Lei 6.015/73, art. 194)?

- Há regularidade nas representações por procurações, alvarás, contratos ou

estatutos etc.?

- O título está elencado entre instrumentos admissíveis no Registro de Imóveis

(LRP, arts. 221 e 291, § 1º)?

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B.1. Instrumentos particulares com força de escritura pública

- Além das indagações do item anterior, o negócio enquadra-se nas hipóteses

legais em que o instrumento particular tem força de escritura pública ou é caso de

dispensa da escritura pública em razão do valor do contrato?

c) Verificação das condições intrínsecas do título

A. Públicos

A.1 Escrituras Notariais

- As partes contratantes e os intervenientes estão perfeitamente qualificados (art.

176, LRP)?

- Se o outorgante é casado sob regime de bens que o exija, há outorga uxória ou

anuência marital?

- Todas as pessoas que figuram no preâmbulo do título constam do rol de

assinaturas?

- Se menor ou interdito, há regular representação? É caso de exigir Alvará

Judicial?

- Se espólio, houve autorização por Alvará Judicial (CPC, art. 992, I)? A

certidão do óbito foi anexada? Consta o estado civil do de cujus por ocasião do

falecimento?

- Em caso de mandato, a certidão da procuração foi expedida a menos de 90

dias? A procuração é pública?

- O transmitente ou devedor é o adquirente da transcrição ou registro anterior?

- Os dados qualificativos dos alienantes ou devedores e outros elementos de

identificação afirmados pelo notário sob a fé pública permitem segura identificação e

conseqüente afastamento de homonímia?

- O estado e a capacidade civil do transmitente ou devedor estão atualizados?

- O transmitente está com seus bens disponíveis?

- O transmitente é condômino? Transmite apenas parte ideal ou porção certa?

- Há coincidência na descrição do imóvel?51

51 O § 13, acrescentado ao art. 213 da Lei 6.015/73 pela Lei 10.931, de 02.08.2004, permite que,

“não havendo dúvida quanto à identificação do imóvel, o título anterior à retificação poderá ser

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- Em caso de registro de loteamento, o loteador é proprietário singular? Se não,

o loteamento é promovido pelo conjunto de co-proprietários?

- Em caso de registro de incorporação, o incorporador do edifício tem qualidade

para legitimar-se como tal (Lei 4.591/64, art. 31)?

- O memorial de loteamento está instruído com a documentação legalmente

exigida (Lei 6.766/79, art. 18)? O contrato-padrão cumpre as regras protetivas do

consumidor?52

- O memorial de incorporação está instruído com a documentação legalmente

exigida (Lei 4.591/64, art. 32)? O incorporador optou por depositar contrato-padrão?

Cumpre as regras protetivas do consumidor?

- Consta o valor atribuído pelas partes ao negócio jurídico? O valor venal é

maior que o valor do negócio (para efeito de cobrança dos emolumentos e menção no

texto do registro)?

- Foram pagos os impostos?

- Apresentou as certidões negativas fiscais ou declaração que permita a

dispensa?

- Consta do título apresentação ou dispensa das certidões elencadas na Lei

7.433/85, regulamentada pelo Decreto 93.240/86?

- Foi emitida a DOI para a Secretaria da Receita Federal?

- Existe algum pacto adjeto de hipoteca ou contrato de alienação fiduciária?

- Em caso de doação é feito para o donatário e seu cônjuge ou de forma

individual? Houve imposição de cláusulas restritivas? Em caso positivo há menção que

o imóvel sai da parte disponível do doador ou justa causa para imposição das cláusulas?

São elas vitalícias ou temporárias? Há reserva de usufruto ou o doador possui outros

bens que garantem sua subsistência? Se a doação foi feita a mais de uma pessoa existe

cláusula de acréscimo?

levado a registro desde que requerido pelo adquirente, promovendo-se o registro em

conformidade com a nova descrição”. 52 Sugiro como leitura complementar o trabalho de minha autoria denominado Os problemas

mais comuns encontrados nos contratos-padrão de parcelamentos urbanos, publicado na

Revista de Direito Imobiliário n. 47. São Paulo: RT/IRIB, julho/dez 1999 e disponível em

http://www.primeirosp.com.br. Acesso em 12 maio 2006.

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A.2 Títulos Judiciais

- Trata-se de Título Judicial ou de Ordem Judicial?53

- O procedimento permitia a expedição da Ordem Judicial? Não seria lógico que

em ação diversa fosse expedido Mandado relativo à situação registral que não foi objeto

de apreciação.

- Existe congruência da ordem constante do Mandado Judicial com os autos e a

sentença?

- Há informação quanto ao trânsito em julgado da decisão judicial?

- Foram recolhidos os impostos?

- O estado civil do proprietário é o mesmo constante do título?

- A descrição do imóvel coincide com a constante da matrícula?

- O bem se encontrava disponível ou houve a expressa apreciação judicial da

hipótese?

- Em caso de penhora/arresto/seqüestro de bem de sócio ou de pessoa estranha à

execução houve a expressa decisão judicial de desconsideração da personalidade

jurídica da empresa, fraude à execução ou responsabilização patrimonial na ação em

relação ao titular de domínio?

- Todos os titulares de direitos reais foram regularmente intimados/notificados

da existência ação?

- Era caso de intimação do cônjuge

- Era caso de intimação de credor hipotecário?

Por ser sucessão testamentária a partilha obedeceu às cláusulas testamentárias ou

houve a expressa e inequívoca apreciação judicial para o efeito de modificação das

disposições de última vontade?

B. Instrumentos particulares com ou sem força de escritura pública

- Além das indagações do item anterior, o negócio enquadra-se nas hipóteses

legais em que o instrumento particular tem força de escritura pública ou é caso de

dispensa da escritura pública em razão do valor do contrato?

53 Sugiro como leitura complementar o trabalho de minha autoria denominado Sobre a

qualificação de títulos judiciais no Brasil, publicado na Revista de Direito Imobiliário n. 56.

São Paulo: RT/IRIB, jan/jun. 2004.

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- Em caso de mandato, a certidão da procuração foi expedida a menos de 90

dias? - A procuração é pública? - Os poderes são expressos e o ato está dentro dos

limites dos poderes concedidos? - A assinatura do tabelião foi conferida? - É o caso de

verificação da autenticidade do papel do traslado e de selos? - Foram verificados os

comunicados da Corregedoria Geral da Justiça sobre procurações falsificadas?

Sendo o tabelião desconhecido, consultar a regularidade da delegação notarial

no Cadastro Nacional de Serventias Públicas e Privadas do Brasil do Ministério da

Justiça pela Internet no endereço http://www.mj.gov.br. Conforme a hipótese, é

aconselhável verificação diretamente junto ao cartório onde constar ter sido lavrado o

instrumento da autenticidade da procuração, por via telefônica (o número deve ser

colhido em pesquisa telefônica efetivada em repositório oficial, desprezado o número

constante do instrumento, já que registra-se casos de falsidade) e conferir, com

acuidade, a absoluta coincidência dos dados de identificação dos outorgantes em relação

aos da transcrição, ou registro anterior.

7. Conclusão

Este trabalho é apenas um ligeiro ensaio sobre o tema, visto do ângulo prático

de um Oficial Registrador de Imóveis, que acredita que as “crises” da instituição

registral com a opinião pública são induzidas por razões subjacentes e podem ser

debeladas por meio da democratização do conhecimento da atividade e da boa prestação

de serviços aos utentes dos Registros Imobiliários.

Na verdade, o tema – princípio da legalidade - abre intermináveis perspectivas

de abordagens, todavia, limitações pessoais e circunstanciais recomendam um ponto

final, que deve ser tido apenas como uma vírgula, porque outros estudiosos poderão

melhorar este trabalho mediante indicações críticas das devidas correções, as quais

serão bem recebidas pelo autor, bem como ampliá-lo mediante aprofundamento do

estudo do conteúdo do princípio da legalidade no Direito Registral imobiliário.

Se estas linhas motivarem mais alguém neste País a refletir sobre o futuro da

atividade delegada do serviço público, exemplarmente exercida pelos Registradores

Imobiliários brasileiros, sem as amarras da burocratização operacional própria da

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máquina estatal, os quais, com seu labor, cercam a sociedade civil de segurança jurídica

em suas relações pessoais e patrimoniais, o objetivo deste estudo já terá sido alcançado.

Muito obrigado a todos!

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7.

TÍTULOS JUDICIAIS E O REGISTRO IMOBILIÁRIO*

MARCELO MARTINS BERTHE

Juiz Titular da 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo.

1. Conceito de qualificação registral

A qualificação registral, atividade que consiste no exame da registrabilidade

dos títulos apresentados perante o serviço de registros públicos, está incluída entre as

atribuições confiadas aos delegados desses serviços.

Cuida-se de atividade intelectual por excelência. Embora a análise do título

deva obedecer regras técnicas objetivas, o desempenho dessa função típica e

indelegável, atribuída ao registrador, deve ser exercida com independência, exigindo do

qualificador largo conhecimento jurídico, sobretudo diante da diversidade de aspectos

que devem ser considerados quando se cogitar da pretensão de registrar, como a

juridicidade, a adequação e, ainda, a apreciação da registrabilidade em face do

preenchimento de requisitos extra-registrários, ou não registrários propriamente ditos.

Isso se tornará mais evidente na medida em que se tiver em conta que não

bastará, para que o título tenha acesso ao registro predial, que esteja revestido da forma

jurídica própria, ou mesmo que seja adequado ao fim a que se destina.

A questão da qualificação, que envolve a registrabilidade, extrapola o simples

exame formal do título, e desborda, na maior parte das vezes, para o exame do

preenchimento de outros requisitos de caráter extraordinário, que não estão

* I Encontro de Direito Registral de Franca.

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propriamente ligados ao instrumento que consubstancia a vontade das partes figurantes

no título, mas têm fundamento e motivação de caráter não registral.

É que cada vez mais se transfere para o registrador a responsabilidade de

controlar, por ocasião da qualificação registral, a verificação de outras ocorrências que

visam ao atendimento de interesses que têm as mais diversas origens.

Neste panorama, não raro avulta o interesse público. Este ora estará voltado à

preservação do meio ambiente, incluindo a proteção dos bens de valor estético, artístico,

paisagístico e histórico, ou ainda relacionado com o controle de impactos ambientais,

decorrentes da degradação da flora e da fauna, ou mesmo do tema, da água e do ar.1

Afigura-se comum, portanto, cometer ao registrador esse mister, consistente no

controle preventivo sobre os atos que ponham em risco a preservação de áreas verdes,

ou de mananciais, por exemplo, entre outros bens.

De outro lado, porém, o reconhecimento de que havia matérias do peculiar

interesse municipal, o que no Brasil ocorreu com ênfase a partir da Constituição Federal

de 1946, como resultado dos significativos esforços nascidos da interpretação

jurisprudencial encampada na década de trinta, iniciou-se segura caminhada rumo à

institucionalização da autonomia municipal e, com ela, tem-se que progressivamente

sobreveio a preocupação com o urbanismo, matéria reconhecidamente do peculiar

interesse dos Municípios.2

Assim, em outras oportunidades, o interesse público cuja salvaguarda passou a

ser confiada ao registrador, que dele deve conhecer por ocasião da qualificação, estará

voltado para a questão urbana e visa, precipuamente, a ordenação das cidades, para o

estabelecimento de regras que permitam um crescimento direcionado e planejado, não

sobrecarregando nem deixando ociosos os equipamentos públicos disponíveis, ou a

infra-estrutura em geral, como, por exemplo, o sistema viário ou de transportes

coletivos já implantados, entre outros tantos que, todos os dias, com o constante

desenvolvimento tecnológico, ganham relevância e interesse.

1 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 13. ed., p. 122.

2 BASTOS, Celso. Estudos e pareceres de direito público. São Paulo : Ed. RT, 1993,

p.180-181.

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Também neste campo, portanto, a qualificação registral tem merecido a

incumbência de exercer esse importante controle coadjuvante, que tem em mira alcançar

um parcelamento regrado do solo urbano.3

Com o objetivo apenas de ilustrar, ainda é possível lembrar outros controles

que têm sido exercidos por meio da qualificação registrária, como, v.g., aqueles

relacionados com os imóveis rurais adquiridos por estrangeiros; ou relativamente às

propriedades de pessoas ligadas às instituições financeiras.

No primeiro caso há legislação própria que incumbe o registrador de controlar

a aquisição de terras rurais por estrangeiros, com a nítida intenção de limitar o acesso à

propriedade rural somente aos estrangeiros residentes no país e, mesmo assim, em

quantidade de área previamente estabelecida. O espírito dessa legislação é de caráter

claramente político, e envolve, especialmente, a questão agrária.4

Quanto à segunda hipótese acima formulada, relacionada com os bens de

propriedade de pessoas ligadas às instituições financeiras, tem-se que foi a preocupação

em resguardar a economia popular o móvel que levou o legislador a prever a

indisponibilidade desses bens imóveis, nos casos de liquidação extrajudicial de

instituição financeira.5

Mas atualmente há ainda outras hipóteses de indisponibilidade de bens, como

aquela prevista na Constituição Federal de 1988 para os bens de propriedade de

servidores públicos, nos casos de improbidade administrativa.6

Na própria Lei de Registros Públicos também há dispositivo que induz o

registrador à fiscalização do efetivo recolhimento dos impostos devidos em razão dos

atos que tome conhecimento por motivo de seu ofício.7

Relativamente à matéria, cumpre ressaltar apenas que, recentemente,

interpretando essa referida norma, o Colendo Conselho Superior da Magistratura

3 ) MEIRELLES, Hely Lopes. Estudos e pareceres de direito público. São Paulo : Ed.

RT, 1981. v. V, p. 11-25.

4 Arts. 10 e 11 da Lei Federal 5.709 de 7.10.1971 e arts. 15 e 16 do Dec. Federal 74.965

de 26.11.1974.

5 Lei Federal 6.024/74.

6 Art. 37, § 4.°, da Constituição Federal de 1988.

7 Art. 289 da Lei de Registros Públicos.

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decidiu que não cabe ao registrador questionar, o quantum debeatur, cumprindo que

neste ponto sua atividade fique cingida à verificação do recolhimento do imposto. Ficou

entendido que o procedimento de dúvida não é o meio hábil para que essa matéria,

relativa ao valor do tributo, seja discutida.8

Nessa ordem de idéias constata-se que, indiretamente, a qualificação registral

está cada vez mais envolvida com o controle preventivo de variados interesses públicos,

de índoles diversas, como o são aqueles de caráter ambiental, urbanístico, econômico,

fiscal e até mesmo político. Resulta que a atividade do registrador, especialmente no

que diz com a qualificação registraria, torna-se cada vez mais complexa. E a tarefa fica

ainda mais árdua, ganha contornos mais sensíveis, quando o objeto da qualificação for

um título judicial, máxime quando ele se relacione com aqueles altos interesses

mencionados.

2. Títulos judiciais e requisitos formais - Princípios registrários

A Lei de Registros Públicos vigente trata dos títulos registráveis, em geral, nos

arts. 167 e 221. Estes preceitos legais, como é sabido, fundam-se no princípio da

legalidade.

Assim a subsunção dos títulos à legalidade estrita é de rigor.

Nesse sentido, os títulos em geral podem ser considerados sob dois diferentes

aspectos, isto é: no sentido próprio e no impróprio.9

O art. 167 da Lei de Registros Públicos versa acerca dos títulos propriamente

considerados, porque o dispositivo cuida das causas ou fundamentos de um direito ou

obrigação.

De outro lado, a idoneidade registral dos títulos considerados em sentido

impróprio está regulada no art. 221 da Lei de Registros Públicos. Esse dispositivo de

Lei trata do instrumento que exterioriza aquela referida causa ou fundamento do direito

8 ApCiv. 22.679-0/9, da Capital.

9 Parecer 136/85 da E. Corregedoria Geral da Justiça, in Decisões Administrativas,

1986, verbete 65.

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registrável, ou, melhor dizendo, esse preceito cuida de regrar os instrumentos que

traduzem os títulos em sentido próprio (elencados no art.167 da Lei de Registros

Públicos).

Embora o art. 221 afirme que somente são admitidos a registro aqueles títulos

(instrumentos ou títulos em sentido impróprio) que estiverem alinhados nos incisos

daquele mencionado dispositivo de Lei, o que se verifica é que também outros têm sido

admitidos a registro, como, por exemplo, as Cartas de Arrematação ou de Adjudicação,

ou ainda as Cédulas de Crédito Rural e Industrial.

Afigura-se importante fazer esta distinção, para que seja possível atingir uma

melhor compreensão do que sejam os chamados títulos judiciais, que são o objeto de

interesse neste momento.

Passando agora à especial consideração desses denominados títulos judiciais,

desde logo se verifica que a referência relaciona-se com os chamados títulos em sentido

impróprio, regulados no art. 221 da Lei de Registros Públicos.

Isso porque sé é possível diferenciá-los dos demais se considerado o

instrumento e não a sua causa. O fundamento, ou o título em sentido próprio, quer se

trate de título judicial, ou não, sempre haverá de existir. Do contrário, de título não se

cuidará.

Em relação aos títulos judiciais, portanto, é ainda possível traçar um

importante divisor, para classificá-los em dois grupos: a) de um lado estão as

denominadas Cartas de Sentença (aí incluídas aquelas de Arrematação e de

Adjudicação referidas), os Formais de Partilha e as Certidões extraídos de autos de

processo; b) de outro lado ficam os mandados.

Nessa ordem de idéias, enquanto os incluídos na alínea a acima, além de títulos

judiciais em sentido impróprio, sempre terão uma causa que pode ser reconhecida como

sendo também um título judicial em sentido próprio, porque voltados à transmissão ou

à constituição de direitos reais, o mesmo não ocorrerá com os mandados.

Quanto a estes nem sempre será assim.

Em razão de sua origem, evidentemente, os mandados são instrumentos

judiciais e, como tais, poderão ser também considerados, em alguns casos, títulos

judiciais em sentido impróprio (instrumento voltado à transmissão ou à constituição de

direitos mais) tal como previsto no art. 221, IV da Lei de Registros Públicos.

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Mas isso só ocorrerá quando seu objeto, ou sua causa, ou seu fundamento,

configurar também aquele chamado título em sentido próprio, como regulado nos

incisos do art. 167 do mesmo diploma legal citado.

Do contrario, o mandado não traduzirá um título judicial como aqui tratado,

mas será mero instrumento judicial que veicula uma ordem de caráter jurisdicional.

Eventualmente poderá ser expedido para que seja cumprido no registro predial, mas

nem por isso será destinado à constituição ou à transmissão de direitos reais.

Nesta distinção, nem sempre fácil, residem as questões que, não raro, causam

grande perplexidade por ocasião da qualificação registral.

É que suscita matéria do maior interesse, relacionada com os limites do

registrador frente à qualificação de um título judicial, especialmente de um mandado.

Eis o ponto que adiante será retomado.

De qualquer sorte - é bom deixar assentado desde logo - tem-se entendido que

os títulos judiciais em geral, sem qualquer distinção, não escapam ao rigor da

qualificação registral.

Nesse sentido é pacífica a orientação que emana do Colendo Conselho

Superior da Magistratura, estabelecendo que títulos judiciais devem ser qualificados

como os demais, ficando submetidos aos princípios gerais que inspiram e orientam o

direito registrário como um todo.10

Segue que uma Carta de Sentença ou um Formal de Partilha, que pretendam

dar causa à transmissão da propriedade imóvel, deverão respeito, v.g., dos princípios da

legalidade, especialidade, continuidade, ou disponibilidade, entre outros, como todos os

demais títulos, ou seja, os títulos não judiciais, se é que assim podem ser chamados.

É de ser lembrado que uma Carta de Sentença, expedida de um processo que

teve por objeto uma ação de Adjudicação Compulsória, não será registrada se o réu não

for o proprietário tabular do bem imóvel, porque haveria ofensa ao principio da

continuidade.

No mesmo caso, ela não seria igualmente registrada se o imóvel descrito

violasse a especialidade registrária, ou mesmo, ainda, se implicasse no parcelamento do

10 Entre muitas outras, ApCiv 15.029-0/7, da Praia Grande, julgada pelo Colendo

Conselho Superior da Magistratura. RDI 31/112.

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solo urbano sem a prévia aprovação da Municipalidade para o desmembramento.

Cumpriria também ao apresentante da Carta de Sentença comprovar o pagamento do

imposto devido em razão da transmissão do bem imóvel.

Matérias como essas foram debatidas em dúvida julgada na Primeira Vara de

Registros Públicos, ora em grau de apelação.11

É pacífico, portanto, que o título judicial, no caso consubstanciado na Carta de

Sentença, se sujeita às mesmas regras a que estaria submetido outro instrumento, como,

por exemplo, a escritura notarial.

De outro lado, também o Formal de Partilha ou a Carta de Adjudicação não

escapariam ao rigor dos princípios que regem o direito registral.

Se por exemplo o imóvel inventariado não pudesse ser situado no interior de

uma área maior registrada, da qual ele seria originário, porque em razão de desfalque

anterior se apresentasse indispensável a prévia apuração da área remanescente, para

ensejar o controle da disponibilidade geodésica e assim o conhecimento seguro da base

imobiliária do imóvel partilhado, imperativo que o registro do título judicial, no caso,

ficasse subordinado à prévia retificação do registro-suporte indicado no título.

A propósito do tema manifestou-se recentemente o Colendo Conselho Superior

da Magistratura, quando julgou recurso da Comarca de Mogi das Cruzes, reiterando o

firme entendimento que tem prevalecido até aqui.12

Possível ainda formular hipótese em que teria cabimento recusar mandado de

usucapião.

Isso ocorreria, e seria perfeitamente possível, se a descrição perimetral do

imóvel usucapido, que constasse do mandado, fosse deficiente e, bem por isso, não

encerrasse o perímetro do imóvel possuído, impedindo o descerramento da matrícula.

Em tese, também admissível a recusa de um mandado que determinasse o

registro de citação, em ação real ou reipersecutória, se o imóvel disputado na ação, e

descrito no mandado, não estivesse suficientemente especializado.

Recentemente o Colendo Conselho Superior da Magistratura deu provimento

a um recurso de São José dos Campos, apenas porque considerou que o imóvel descrito

11 ApCiv 27.848-0/7, da Capital. RDI 38/198.

12 ApCiv 25.333-0/1, de Mogi das Cruzes.

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no mandado estava suficientemente especializado, já que havia sido indicado o número

de sua matrícula, e se tratava de imóvel urbano, o que foi tido como bastante para

permitir sua individuação e afastar incertezas acerca de seu corpo.13

Recusável, de outro lado, mandado que determinasse o registro de penhora,

quando esta fosse recair sobre o imóvel remanescente, não passível de especialização

secundum tabulas, exigindo-se a prévia retificação do registro para ficar atendido o

princípio da especialidade.

Nesse sentido o julgado do Colendo Conselho Superior da Magistratura da

Comarca de Atibaia.14

Por tudo isso é preciso ficar claro que os títulos judiciais em geral, aí incluídos

os mandados, não estão a salvo, nem refogem ao rigor de sua subsunção aos princípios

registrários que regem todo o sistema, que não admite exceção, pena de ficar subvertido.

Estes últimos, os mandados, apenas farão surgir na qualificação registral um

dado novo, na verdade um complicador, consistente em saber quais serão os limites

dessa atividade, se tomados em consideração alguns casos especiais, como adiante se

verá.

3. Exame formal do título judicial-Limites à atuação do registrador

Passa-se agora ao exame da matéria que concerne ao exame formal dos títulos

judiciais.

Ao registrador encarregado da qualificação registral, depois de assegurar-se

sobre sua competência territorial para recepcionar o título judicial, incumbirá, em

primeiro lugar, atentar para seus aspectos formais, perquirindo acerca da legalidade.

Trata-se, na verdade, de um exame do instrumento em si mesmo considerado

(título em sentido impróprio).

Nesta oportunidade deverá o registrador verificar se o número de pegas

indicado no título está correto, se atendem aos requisitos da espécie, ou ainda se o título

13 ApCiv 25.543-0/0, de São José dos Campos.

14 ApCiv 23.532-0/6, de Atibaia.

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(instrumento) está entre aqueles que merecem acesso ao registro predial, conforme a

previsão legal.

Ultrapassado esse exame preliminar, e verificado o preenchimento dos

requisitos de ordem formal, num segundo passo deverá o registrador tomar em

consideração a adequação do título judicial, tendo em conta o seu conteúdo, isto é,

cumprirá cogitar de sua causa ou fundamento jurídico, questionando a registrabilidade

do direito retratado no instrumento, ou, melhor dizendo, caberá avaliar o título em

sentido próprio, para constatar se ele se incluí no rol do art. 167 da Lei de Registros

Públicos.

Finalmente, o título ainda deverá submeter-se aos demais aspectos de

legalidade extrínsecos, como antes já enfocados, os quais são resultantes daqueles

outros vários interesses, que, embora não essencialmente registrários, também são

preventivamente protegidos e controlados no registro predial e, portanto, devem ser

objeto da qualificação registral.

Neste momento deverá ser considerada toda a legislação extravagante, que

impõe ao registrador a responsabilidade pelo exame do preenchimento desses outros

requisitos legais, relacionados com aqueles vários interesses a que já se fez alusão, de

índole fiscal, tributária, urbanística, ambiental, econômica ou política, todos

relacionados com o pretendido registro.

E, mesmo em se tratando de um título judicial, não haverá como mitigar o rigor

de sua sujeição às mesmas regras que a todos dizem respeito, como antes já visto.

O registrador, entretanto, no exercício da função de qualificar os títulos

judiciais, terá sua atuação limitada pelo respeito que será devido à coisa julgada; ou

mesmo à matéria preclusa, já decidida no curso do processo do qual o título judicial foi

extraído.

Estes limites, que decorrem do dever de respeito às decisões judiciais, ou à

coisa julgada, estão balizados na Constituição Federal e visam a garantir estabilidade

jurídica e eficácia às decisões judiciais.

Mas os limites não param por aí.

Há casos em que um mandado poderá ter por objeto uma ordem judicial e não

traduzir, como seria de se esperar, a transmissão ou a constituição de direitos reais,

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como previsto no art. 167 da Lei de Registros Públicos, o que causará dificuldade para o

qualificador.

Na verdade, embora mandado, e, portanto, em princípio título judicial em

sentido impróprio, este não refletirá um título em sentido próprio, porque não tem por

causa ou fundamento, quaisquer daquelas que constam do elenco legal (art. 167 da Lei

de Registros Públicos).

Os mandados que servem de instrumento para ordens judiciais endereçadas ao

registro predial são extraídos, via de regra, de processos que têm por objeto ações

cautelares.

Nos casos mais comuns, ao ser deferida uma medida liminar em processo

cautelar, especialmente as chamadas cautelares inominadas, muitas vezes se determina a

indisponibilidade, ou o “bloqueio” de bens imóveis, expedindo-se mandado para que a

medida se efetive no registro predial.

Ao receber e qualificar esses mandados, recepcionando-os como um título

judicial, o registrador depara-se com o fato de que aquela indisponibilidade determinada

não encontra amparo legal e, assim, entende de recusar o título.

O Colendo Conselho Superior da Magistratura e a E. Corregedoria Geral da

Justiça, frente a essa questão, mostram-se firmes no sentido de que esses mandados não

podem ter acesso à tábua registral, quer porque tornariam o bem indisponível sem

amparo legal, quer porque poderiam, potencialmente, atingir direitos de terceiros

estranhos ao feito de onde partiu a ordem.

Este entendimento administrativo, no entanto, tem sido objeto de

questionamento no âmbito dos Tribunais.

Na verdade a questão não é tão simples.

O Superior Tribunal de Justiça, ao conhecer de recurso ordinário interposto

contra o venerando Acórdão proferido em mandado de segurança, pela 7.a Câm. Civ. do

E. TJSP, cuja ordem fora impetrada contra a respeitável decisão administrativa

proferida pelo Juízo da 1.a Vara de Registros Públicos, na esteira da pacífica

jurisprudência do Colendo Conselho Superior da Magistratura, cuja decisão, por sua

vez, cancelara averbação de indisponibilidade feita em obediência a mandado judicial

expedido em ação cautelar inominada, deu provimento ao recurso para determinar o

cumprimento do mandado judicial e a conseqüente averbação da indisponibilidade do

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bem imóvel de que tratava, ainda que tenha reconhecido que “à primeira vista tudo está

a indicar que a decisão do MM. Juiz de Direito da 3. a Vara Cível não se afeiçoou ao

bom direito, haja vista que não deveria aquele r. Juízo, através de cautelar inominada,

ter determinado a indisponibilidade dos bens, com a respectiva averbação no álbum

imobiliário”.15

Nessa mesma oportunidade prevaleceu o entendimento de que a “autoridade

judicial em função administrativa não pode modificar decisão jurisdicional, que

somente pode ser desconstituída pelas vias adequadas”.

Na verdade, é no voto do eminente Min. Athos Carneiro que se encontra o

argumento mais contundente, quando S. Exa. aduz que “não cabe aqui perquirir se a

decisão tomada em sede jurisdicional contenciosa tem, ou não, amparo em Lei”.

Com esse julgado rejeitou-se o entendimento que predominava até então no

Estado de São Paulo, especialmente ante o que resultava dos julgados administrativos,

estabelecendo-se novo limite à função exercida pelo registrador por ocasião da

qualificação registral, ou mesmo para a função judicial-administrativa, à qual incumbe,

como decorre da atividade correcional, a requalificação integral do título, quando a sua

registrabilidade for discutida em Juízo (registrabilidade aqui quer dizer registro ou de

averbação ).

Mas este é um tema que ainda deverá ser objeto de muita atenção e estudo, até

que se possa delimitar com segurança a função do registrador frente a um mandado

judicial, quando este trouxer ordem de caráter jurisdicional e não, ao contrário, se

prestar como instrumento para refletir um título em sentido próprio, daqueles que

constam do rol do art. 167 da Lei de Registros Públicos.

Cumpre anotar, para finalizar, que entre os mandados expedidos em ações

cautelares, os que mais polêmica têm suscitado, e também maior preocupação, são

aqueles que determinam a averbação, para fim de publicidade, da existência de protesto

contra alienação de bem requerido contra o titular do domínio.

Essa medida traz maior preocupação porque, em sendo averbada, tenderá à

perpetuação.

15 RMS 193-0 de São Paulo, 4.a T. do STJ.

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Cumprida a medida, como é sabido, os autos do processo da ação cautelar de

protesto contra alienação de bens devem ser entregues ao requerente,

independentemente de traslado, o que dificultará providências do titular do domínio

visando a remoção do obstáculo que, na prática, se colocou para a disponibilidade do

bem imóvel envolvido na medida.

A propósito, é de ser salientado que a publicidade buscada com a averbação

dessa espécie de medida cautelar não se afina com aquela prevista no Código de

Processo Civil, para feitos dessa natureza.

Com a averbação dá-se publicidade registral ao protesto contra a alienação de

bens, que é de caráter diverso da que decorre da publicação dos editais previstos em Lei,

porque aquela envolve a chamada fé pública registral, bem como a segurança dos

registros; enquanto esta é mera publicidade processual.

O Colendo Conselho Superior da Magistratura tem firme orientação no

sentido de tornar defesa a averbação do protesto contra alienação de bens, conforme

inúmeros julgados.16

4. Devolução de títulos judiciais com exigências

A devolução dos títulos judiciais com exigências, depois do que já foi dito, não

está a reclamar ainda muitos comentários.

É certo que, na maioria das vezes, os títulos são apresentados pelas partes

interessadas nos respectivos registros e, como já ressaltado, em não se atendendo aos

requisitos legais, ou em se ofendendo quaisquer dos princípios registrários, como já

referido e exemplificado, cumprirá que o título seja devolvido normalmente.

A dificuldade estará sempre na devolução de mandado que não reflita

propriamente um título judicial, mas uma ordem de caráter jurisdicional.

Entretanto, como já foi mencionado, esta é matéria aberta, porque ainda muito

deve ser aprofundada.

16 Apelações Cíveis 2.361-0 e 1.828-0, ambas de São Vicente; ApCiv 13.455-0/6, da

Comarca de Nuporanga, entre muitas outras.

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5. Suscitação de dúvida em títulos judiciais

Por derradeiro, relativamente à suscitação de dúvida, quando a recusa voltar-se

contra um anulo judicial, também pouco há para falar, além do que já foi dito.

Como já demonstrado, é pacífico o entendimento do Colendo Conselho

Superior da Magistratura no sentido de que ela pode e deve ser suscitada.

Não se conformando o apresentante do título com a recusa, poderá requerer a

suscitação de dúvida regularmente.

Apenas anota-se, para encerrar, e a título de curiosidade, que houve caso em

que o título, consistente de mandado de penhora, expedido pela Justiça do Trabalho, foi

apresentado pelo próprio Juízo que expediu o mandado, e, em face da recusa oposta

pelo registrador, que denegou o acesso do mandado no registro predial, a suscitação de

dúvida foi requerida pelo próprio Juízo que emitiu a ordem, ficando admitido pelo

Colendo Conselho Superior da Magistratura o interesse do Juízo, prolator da decisão

que deu origem à expedição do mandado recusado.17

17 ApCiv 16.923-0/4, de Cubatão.

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8.

SOBRE A QUALIFICAÇÃO DE TÍTULOS JUDICIAIS NO BRASIL*

FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS

1.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo-SP

SUMÁRIO: 1. Antecedentes registrais e o direito brasileiro – 2. Os títulos judiciais – 3.

Títulos judiciais e ordens judiciais – 4. A qualificação registral de títulos e ordens judiciais – 5.

A função qualificadora do registrador – 6. A suscitação de dúvida como reexame da

qualificação feita pelo registrador – 7. Considerações finais.

1. Antecedentes registrais e o direito brasileiro

Quando o Brasil foi descoberto, em 1500, o Rei de Portugal, na qualidade de

descobridor, adquiriu sobre o território o título originário da posse. Investido desse

senhorio, a Coroa de Portugal, por meio de doações, feitas em cartas de sesmaria,

começou a destacar do domínio público as parcelas de terras que viriam a constituir o

domínio privado. Esse regime prevaleceu até a Independência do Brasil, em 1822. Com

o advento da Independência, o nascente Império do Brasil arrecadou da Coroa

Portuguesa o domínio das terras e de todos os bens do acervo lusitano situados no

Brasil. Porém, daquela data até 1850, desenvolveu-se progressiva ocupação do solo,

sem qualquer título, mediante a simples tomada de posse.

Ainda ao tempo do Império, pela Lei 601, de 18.09.1850, regulamentada pelo

Dec. 1.318, de 30.01.1854, foi instituído o registro paroquial, também conhecido como

* Contribuição ao II Encuentro Iberoamericano sobre Registro de la Propiedad y

Tribunales de Justicia em Cartagena de Indias, Colombia, de 1.º a 03.03.2004.

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“registro do vigário”, separando assim do domínio público todas as posses que fossem

levadas ao livro da Paróquia Católica Romana.

A titulação de terras consistia então em documentos expedidos pelo governo,

dos registros das posses manifestadas perante o vigário e dos contratos de transmissão

com apoio em uns e outros documentos originais, bem como nos que se lhes seguiram

por atos inter vivos e causa mortis.

A situação imobiliária se apresentava, então, extremamente insegura,

mormente por ficar dispersa por meio de títulos em mãos de titulares, já que a tradição,

que era o meio de transmissão da propriedade imóvel, foi sendo reduzida à cláusula

constituti em virtude da qual o comprador adquire a posse sem qualquer reflexo externo,

o que dava origem a sucessivas alienações e onerações clandestinas.

Era essa a situação imobiliária, quando pela Lei Orçamentária 317, de

21.10.1843, regulamentada pelo Dec. 482, de 1846, foi criado o Registro de Hipotecas,

voltado para proteção do crédito, posteriormente transformado pela Lei 1.237, de

24.09.1864, em registro geral, substituindo a tradição pela transcrição como meio de

transferência. Seguem-se os Decretos 169-A, de 19.01.1890, e 370, de 02.05.1890,

baixados pelo governo republicano provisório e que tornaram obrigatória a inscrição e

especialização de todo direito real de garantia incidente sobre bem imóvel, inclusive

quando se tratasse de hipoteca judiciária.

O sistema era voltado para os direitos reais de garantia, especialmente para a

hipoteca. A transcrição não ostentava sequer valor juris tantum de prova de domínio,

produzindo apenas uma publicidade formal, da qual, inclusive, expressamente eram

deixados de lado as transmissões causa mortis e os atos judiciais, pois, com respeito aos

últimos, tal como o previsto pelo art. 237 do referido Dec. 370, bastava a publicidade

oriunda do processo, preceito que perdurou até o advento do Código Civil de 1916.

O Código Civil, que entrou em vigor em 1917, aperfeiçoou a Lei Registral,

adotando os princípios básicos inerentes ao sistema e determinou que todas as

transmissões fossem transcritas no registro de imóveis e que todas as hipotecas fossem

especializadas. Todavia, deixou espaço para divergências que foram posteriormente

superadas pelas edições dos Decretos 4.827, de 07.02.1924, 4.857, de 09.11.1939, e da

vigente Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015, de 31.12.1973.

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No sistema jurídico brasileiro é pacífica a necessidade de um ato inscritivo

(registro ou averbação) na constituição, transmissão, modificação e extinção de direitos

reais imobiliários e nos fatos modificativos das situações a eles correspondentes, que

tenham como pressuposto título ou documento extrajudicial ou judicial, cumprindo,

assim, os objetivos da publicidade registral.

Dito isto, é estreme de dúvida que determinados atos ou títulos judiciais devem

acessar o caderno registral, quer seja no interesse direto das partes interessadas, quer

seja para o efeito de publicidade registral que vise, principalmente, direitos e eventuais

interesses de terceiros, e, em globo, interesses de ordem pública, visto que o registro

imobiliário se constitui em uma âncora da estabilidade econômica e jurídica do País, à

medida que oferece um conjunto de ferramentas eficazes que garantem o funcionamento

e a credibilidade da economia de mercado no âmbito interno e externo.

2. Os títulos judiciais

A Lei dos Registros Públicos estabelece no art. 221 que serão admitidos a

registro entre outros títulos, os títulos judiciais formalizados por cartas de sentença,

formais de partilha, certidões e mandados extraídos de processo.

Os títulos judiciais são expedidos por organismos jurisdicionais, no

desempenho de suas funções decorrentes de processos de jurisdição voluntária e

contenciosa. O Código de Processo Civil brasileiro relaciona e conceitua, em seu art.

162, três categorias de pronunciamentos do juiz no processo, quais sejam: sentenças,

decisões interlocutórias e despachos.

Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o

mérito da causa (§ 1.º).

Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve

questão incidente (§ 2.º).

São despachos, todos, os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício

ou a requerimento das partes, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma (§ 3.º).

A decisão final em processo proferida pelos tribunais recebe o nome de

acórdão (CPC, art. 163).

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Em princípio, não cabe ao registrador perquirir de que pronunciamento do juiz

decorreu a formalização do título judicial, uma vez que, embora a maioria dos títulos

derive de sentenças, que podem ser declaratórias, constitutivas, condenatórias e

homologatórias, podem originar-se, também, de decisões interlocutórias (por exemplo,

decretação de ineficácia de alienação em caso de fraude à execução) e de simples

despachos (por exemplo deferimentos de petições em procedimentos cautelares

específicos).

Por óbvio que qualquer título judicial deve conter os requisitos exigidos para

sua formalização. Assim, a carta de sentença deve conter os requisitos do art. 590; o

formal de partilha, os do art. 1.027; a certidão de ato processual, o do art. 36 etc.

A Lei de Registros Públicos inclui entre os títulos judiciais que acessam o

registro imobiliário as sentenças proferidas por juízes estrangeiros, quando tenham por

objeto imóveis situados no Brasil, após regular homologação pelo STF (art. 221, III).1

Por oportuno salientar que em se tratando, porém, de sucessão causa mortis

envolvendo imóveis situados no território nacional, ainda que o autor da herança seja

estrangeiro e tenha residido fora do País, a competência para proceder ao inventário e

partilhar os bens é da autoridade judiciária brasileira (CPC, art. 89).

3. Títulos judiciais e ordens judiciais

O veículo por meio do qual as decisões judiciais emigram dos autos para o

álbum registral constitui o que de forma genérica se convencionou, impropriamente,

denominar de título judicial, que pode ser formalizado pela forma tradicional, que é o

papel, ou por meio de documento eletrônico.2

1 “Note-se que para efeitos de registro o título hábil não é a sentença estrangeira, mas,

sim, a carta de sentença expedida pelo E. STF”, conforme registrou Ademar Fioranelli no

excelente Direito Registral Imobiliário, Porto Alegre: Safe/Irib, 2001, p. 127.

2 O emprego de documento eletrônico no País é largamente utilizado pela

Administração Pública federal, além de bancos e empresas e está disciplinado na MedProv

2.200-2, de 24.08.2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-

Brasil e em resoluções de seu Comitê Gestor, vinculado à Casa Civil da Presidência da

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Distinção importante tem sido construída pela doutrina a partir da análise do

conteúdo desses documentos judiciais em relação ao seu objeto, ou sua causa, ou seu

fundamento, para o efeito de segregar títulos judiciais de ordens judiciais e fixar a

conduta qualificadora do registrador em função do que a natureza desses títulos exige.3

Neste prisma, impende, em primeiro, observar que o art. 167 da Lei dos

Registros Públicos versa quer sobre títulos em sentido próprio (rectius: causa ou

fundamento de um direito ou de uma obrigação), quer em acepção imprópria, figurada

(ou seja: instrumento documental que exterioriza a causa, ou título em sentido próprio).

O preceito que, especificamente, se vincula à idoneidade registrária dos títulos

em sentido impróprio é o art. 221 da Lei Registrária, e, não obstante seu caráter

indicativo de interpretação restritiva (ver advérbio “somente” com que se inaugura o

caput), cumpre observar que, por interpretação sistemática, viabiliza-se o ingresso de

cartas de arrematação e adjudicação em hasta pública (art. 167, I, n. 26, da Lei dos

Registros Públicos, arts. 703 e 715 do CPC), de cédulas de crédito industrial e rural (art.

167, I, 13 e 14, da Lei dos Registros Públicos), de memoriais e outros documentos

relativos à incorporação imobiliária (Lei 4.591/1964, art. 32) e o loteamento de imóveis

rurais e urbanos (Dec.-lei 58/1937, arts. 1.º e 4.º; Lei 6.766/1979, art. 18).

Como assinala Marcelo Martins Berthe, “afigura-se importante fazer esta

distinção para que seja possível atingir uma melhor compreensão do que sejam os

República (Disponível em: <http://www.icpbrasil.gov.br>, acesso em: 26 fev. 2004). Desde

27.12.2002 a Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg-BR encontra-se,

oficialmente, credenciada pela ICP-Brasil para atuar como Autoridade de Registro (AR)

vinculada à Autoridade Certificadora (AC), o Serviço Federal de Processamento de Dados –

Serpro (Disponível em: <http://www.anoregbr.org.br/? action=certificadora#>, acesso em: 26

fev. 2004).

3 Parecer 138/85 do Juiz Ricardo Henry Marques Dip p/ Equipe de Correições da E.

Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, “Decisões administrativas”, RT 65/130, 1986;

Marcelo Martins Berthe. “Títulos judiciais e o registro imobiliário”, Revista de Direito

Imobiliário 41/56, São Paulo: RT, 1997; Marcelo Fortes Barbosa Filho, “O registro de imóveis,

os títulos judiciais e as ordens judiciais”, in: Sérgio Jacomino (Org.), Thesaurus registral,

notarial e imobiliário, São Paulo: Irib/Anoreg-SP, 2003, vol. 2, versão 2.0.

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chamados títulos judiciais, que são o objeto de interesse neste momento”.4 De fato, o

veículo para materialização da causa ou fundamento registrável, advinda de um

pronunciamento do Estado-juiz relativa a uma situação de direito material, será sempre

um título judicial em sentido impróprio.

“Tais títulos, à semelhança do que ocorre com os chamados títulos não-

judiciais ou extrajudiciais, hão de ser levados ao conhecimento do registrador, pois só a

consecução do ato de registro poderá, entre particulares, dotar de plena eficácia a

decisão judicial antecedente, derivada da declaração da presença de um título

legitimário posicionando um dado sujeito de direito diante de um bem imóvel”.5

Por seu turno, as ordens judiciais, embora tenham como instrumental o título

judicial denominado “mandado”, raramente trazem em seu conteúdo como lastro de

origem a própria causa do ato registrário, senão que resulta de garantia da tutela

jurisdicional que o Estado realiza em processo de conhecimento, executivo ou cautelar,

na forma e extensão que a jurisdição pode oferecer, “como resposta, especialmente, a

situações de urgência e que, dotadas de provisoriedade, demandam certa elasticidade na

conformação da decisão judicial”.6

No direito brasileiro, a regulamentação contida sobre o assunto é extensa,

contínua e genérica, uma vez que admitidas estão providências cautelares específicas e

inominadas, outorgáveis sempre que condições específicas assim o exigirem. Todavia,

por preceito constitucional, o poder geral de cautela do juiz não é ilimitado a ponto de

impedir o exercício de um direito previsto no ordenamento jurídico.

Como o juiz não intervém, de regra, na formação de um negócio jurídico, para

criar direitos, extingui-los ou modificá-los, a não ser em caráter excepcional,7 por essa

razão, normalmente, “os atos praticados com suporte em ordens judiciais não são aptos

a criar novas situações jurídicas, isto é, a estabelecer novas posições para novos sujeitos

4 BERTHE, Marcelo Martins. Op. cit., p. 58.

5 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Op. et loc. cits.

6 Idem, ibidem.

7 Cf.: FREDERICO MARQUES, José. Manual de direito processual civil. São Paulo:

Saraiva, 1981. vol. I, p. 159, “A formação, mudança ou desfazimento de uma relação jurídica

pelas vias jurisdicionais é excepcional. Com a jurisdição, o Estado compõe a lide para restaurar

o direito violado, ou para declarar existente, ou não, uma relação de direito”.

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de direito. Diante das ordens, isso sim, ocorrem alterações, em geral limitadoras, de

situações jurídicas já existentes”.8

Em face da diversidade de pressupostos na origem, a distinção entre títulos

judiciais e ordens judiciais é de conseqüência prática e deve plasmar o comportamento

do registrador na formação de seu juízo lógico e crítico de admissibilidade, ou não, da

respectiva inscrição registral.

4. A qualificação registral de títulos e ordens judiciais

A gênese da publicidade registral se dá por ato de registro ou averbação

mediante a indispensável apresentação de um título hábil que, ademais, cumpre o

princípio da instância.

Embora toda a organização registral esteja assentada no princípio da

legalidade, razão de ser do álbum imobiliário, entre as formalidades desenvolvidas pelo

registrador, distingue-se a função qualificadora dos títulos e documentos apresentados

para registro, como o ponto culminante da dinâmica da publicidade registral.

É por isso que não obstante a origem jurisdicional do título, é de rigor sua

qualificação registral, uma vez que se o ato judicial se mostra apto para inscrição no

fólio real, vai desencadear, por força de sua admissibilidade e conseqüente inscrição, o

fenômeno registral erga omnes, retro operante à data da apresentação do título no

registro de imóveis.

De forma geral, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo tem

reiteradamente decidido que o fato de ser apresentado título de origem judicial para

registro não isenta exame qualificativo dos requisitos registrários, cabendo ao

registrador apontar e analisar a existência de eventuais obstáculos registrários.

“A circunstância de exibir-se a inscrição título de origem judicial não implica

isenção dos requisitos registrários, incumbindo ao registrador: a) verificar a

competência (absoluta) da autoridade judiciária; b) aferir a congruência do que se

ordena ao registro com o processo respectivo; c) apurar a presença das formalidades

8 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Op. et loc. cits.

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documentais; d) examinar se o título esbarra em obstáculos propriamente registrários

(por exemplo: legalidade, prioridade, especialidade, consecutividade). Não se torna

ineficaz ou inválida uma sentença judicial pelo fato de lhe ser vedado o registro, porque

essa vedação não interfere com a validade e com a eficácia próprias da decisão

judiciária, senão apenas verifica se o título quadra com as exigências do registro

imobiliário” (a jurisprudência do E. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo é

firme no sentido de que a adjudicação não pode ser inscrita se o demandado, na via

judicial, não é proprietário secundum tabulas, v.g. Apelações 279635, 1371, 2156,

2196, 3030, 4686 e 5741-0, DOJ 30.07.1992)”.9

Por seu turno, em face dos pressupostos de fato e de direito evidentemente

encontrados pelo juiz para concessão da tutela, a ordem judicial, normalmente

instrumentalizada por meio de “mandado”, restringe a qualificação desenvolvida pelo

registrador, que deverá concentrar-se em aspectos meramente formais, salvo simples

indagação quanto às circunstâncias inerentes, tais como a competência e o poder da

autoridade judiciária, já que as regras são fixadas por lei, sendo despiciendo perquirir se

a decisão tomada sob o império de sede jurisdicional tem ou não amparo em lei.

Parece-nos iniludível que emitida a ordem judicial, bem ou mal, o foi sob o

império de decisão proferida em feito jurisdicionalizado, o que privilegia sua

juridicidade e encarna as garantias que a ordem jurídica confere ao Poder Judiciário

para o expedito e resguardado desempenho de sua missão. Tanto é assim que o STJ tem

reiteradamente decidido não ser lícito à Administração proceder qualquer atividade que

afronte o comando judicial, sob pena de cometimento do delito de desobediência,

hodiernamente consagrado e explicitado no art. 14, VI, e par. ún., do CPC, mesmo

quando concedida antecipação de tutela.

É o que se lê na ementa do Ac do REsp 45362-RS do seguinte teor: “É vedado

à Administração agir com desconsideração ao provimento liminar e com desprezo pelo

Poder Judiciário sob o argumento de que a decisão liminar não corresponde ao trânsito

em julgado da decisão final, porquanto esse argumento sofismático implica negar

eficácia à antecipação da tutela que é auto-executável e mandamental”.

9 ApCív 92.906-0/3 da Comarca de Barretos, rel. Des. Luís Tâmbara, DOJ 20.08.2002,

p. 8.

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No julgamento do RMS 193-0-SP, em que se discutia a legalidade de

cancelamento de averbação de indisponibilidade de imóvel, por falta de previsão legal,

determinada por juiz correcional, no exercício de sua função administrativa, a 4.ª T. do

E. STJ deu provimento ao recurso para fins de cancelamento do cancelamento, com

ênfase que “decisão jurisdicional somente pode ser desconstituída pelas vias próprias,

sob pena de vulnerar-se o devido processo legal”.10

Com relação ao comportamento do registrador no exame de legalidade para o

cumprimento de ordens judiciais, Afrânio de Carvalho já advertia que, “quando tiver

por objeto atos judiciais, será muito mais limitado, cingindo-se à conexão dos

respectivos dados com o registro e à formalização instrumental. Não compete ao

registrador averiguar senão esses aspectos externos dos atos judiciais, nem entrar no

mérito do assunto neles envolvido, pois, do contrário, sobreporia a sua autoridade à do

juiz”.11

Segundo Marcelo Fortes Barbosa Filho, diante de uma ordem judicial, “só

poderá o registrador se recusar a dar cumprimento ao comando recepcionado, quando

restar caracterizada hipótese de absoluta impossibilidade, como quando determinada a

indisponibilidade de bens daquele que não é titular, de acordo com a tábua, de direito

real algum, ou antinomia interna, quando, por exemplo, há contradição intrínseca e o

documento instrumentalizador da ordem não corresponda ao seu teor”.12

Em vez de resistir ao cumprimento da ordem emanada do Estado-juiz à guisa

da estabilidade de situações patrimoniais inscritas e de seu dever com a segurança

jurídica, o registrador deve ter presente, salvante a hipótese de flagrante ilegalidade da

ordem, em primeiro lugar, que a prestação jurisdicional é desenvolvida nos termos

constitucionais com possibilidade de revisão por instância superior a fim de modificar

ou corrigir a sentença ou decisão erroneamente proferida ou, mesmo, sua imediata

suspensão quando presentes os requisitos do fummus boni iuris e do periculum in mora.

10 (Disponível em: <http://www.stj.gov.br/webstj/>, acesso em: 26 fev. 2004).

Colecionam-se vários precedentes dessa C. Corte como CC 21413-SP e CC 32641-PR, entre

outros.

11 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977.

p. 281.

12 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Op. et loc. cits.

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É uma questão inteligente de definição institucional de papéis e responsabilidades com a

qual será afastado o fenômeno de dessincronia na atividade estatal prestada pelo Estado-

juiz e pelo registro imobiliário.

Em segundo lugar, o registrador deve ponderar que a responsabilização civil

relativa ao ato registral conseqüente, para o efeito de eventual ressarcimento de

prejuízos indevidos, aponta para o próprio Estado, sem direito de regresso contra o

registrador, quando esse cumpre mandado judicial regularmente emitido, à exceção de

dolo ou culpa, como já sustentamos em outra oportunidade.13

Parece oportuno referir-se à manifestação do STF que colocou fim na

discussão sobre a responsabilidade civil pelos atos praticados pelo notário e o

registrador, ao adotar a teoria objetiva em virtude da natureza estatal das atividades

exercidas em caráter privado por delegação do Estado, o qual detém o monopólio dos

serviços registrais e responde diretamente pelos danos que seus delegados venham a

causar a terceiros, permanecendo os últimos na esfera da responsabilidade subjetiva.14

Ademais, aquele que sofrer um dano injusto em virtude de um erro judiciário,

de sorte a provocar a denegação da Justiça, pode promover ação em face do Estado com

vistas ao ressarcimento do prejuízo patrimonial e não patrimonial experimentado, como

de resto se pratica em todo Estado Democrático de Direito, que não mais tem a

preocupação em saber se o ato provém do ius imperii ou do ius gestionis.

Ao aludir sobre a responsabilidade estatal relativamente à prestação

jurisdicional eivada de imperfeição, Vera Lúcia R. S. Jukovsky afirma que

“doutrinariamente, tem sido interpretado como existente tal quadro quando o

magistrado atua com dolo, recusa ou omite soluções a dano das partes; quando o juiz

13 Em “Sobre a responsabilidade civil dos notários e registradores”. Revista de Direito

Imobiliário 49/11, jul.-dez. 2000, afirmamos que o registrador não responde pelos prejuízos

causados a terceiros, nem mesmo via regresso, ao cumprir ordem judicial emanada da

autoridade competente, cuja responsabilidade é do Estado-juiz e deve ser resolvida dentro da

doutrina constitucional contemporânea baseada na teoria do risco social absoluto.

14 RE 209354 AgR-PR, rel. Min. Carlos Velloso (Disponível em: http://www.stf.gov.br,

acesso em: 26 fev. 2004).

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desconhece ou conhece mal o direito incidente na demanda, de modo a recusar ou

omitir o que deve ser dado de direito (...)”.15

De tudo que foi dito, porém, deve ser ressaltado que por submissão ao direito,

entre um mandado legal e um mandado judicial, deve-se privilegiar o mandado legal,

visto que é fundamental a licitude da ordem. Afinal, tem ou não o cidadão a garantia

constitucional de que o Estado não interferirá em seus direitos patrimoniais, salvante as

exceções contidas na própria lei?

5. A função qualificadora do registrador

A observância dos aspectos relativos ao fundo e a forma do título judicial é

necessária e indispensável para compor a massa de segurança das relações jurídicas

gerada pela qualificação, razão de ser do próprio serviço registral, consoante sonoras

palavras do art. 1.º da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973):

“Art. 1.º Os serviços concernentes aos registros públicos, estabelecidos pela

legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam

sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei”.

É sutil a diferença entre forma e fundo, embora se oponham por ser aquela

extrínseca, uma vez que simplesmente afeta a exteriorização do ato, enquanto o fundo é

intrínseco, porque toca de perto a essência ou o conteúdo do ato como condição de sua

própria existência ou valia. O fundo é requisito essencial porque o que não satisfaz as

exigências ou condições de fundo não possui vida nem conduz valimento legal para

produzir a eficácia que o Direito assinala. Por exemplo: embora seja questão de fundo, o

registrador avaliará se o procedimento permitia a expedição da ordem judicial. Não

seria lógico que em ação diversa fosse expedido mandado relativo à situação registral

que não foi objeto de apreciação.

Esta inescusável obrigação, no entanto, não decorre somente da função

registrária de oferecer segurança jurídica à sociedade, o que seria suficiente por si só,

15 JUCOVSKY, Vera Lúcia Rocha Soares. Responsabilidade civil do Estado pela

demora na prestação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 69.

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mas também de expressas disposições legais às quais o registrador encontra-se

vinculado preceptivamente, cujo vetor é o princípio constitucional de segurança

jurídica. A Lei dos Registros Públicos (6.015/1973), em seu art. 239, traz requisitos a

serem observados nos títulos judiciais que pretendem ingresso no registro de imóveis

para fins de registro de constrições judiciais, determinando in verbis:

“Art. 239. As penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis serão registrados

depois de pagas as custas do registro pela parte interessada, em cumprimento de

mandado ou à vista de certidão do escrivão, de que constem, além dos requisitos

exigidos para o registro, os nomes do juiz, do depositário, das partes e a natureza do

processo.

Parágrafo único. A certidão será lavrada pelo escrivão do feito, com a

declaração do fim especial a que se destina, após a entrega, em cartório, do mandado

devidamente cumprido”.

Também o art. 198 da mesma lei sanciona a função qualificadora do

registrador ao dizer que “havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por

escrito”.

Significa o preceito que o registrador, depois de prenotar o título, deverá, antes

de proceder aos atos inscritivos, examiná-lo à luz das exigências legais a ele pertinentes,

contidas na própria Lei dos Registros Públicos, na legislação tributária, na legislação

civil, comercial ou de outra natureza, que lhe sejam aplicáveis, inclusive, das esferas

estadual e municipal, além de estrita observância às normas técnicas e decisões

normativas editadas pelo Poder Judiciário, que por disposição constitucional é o órgão

fiscalizador dos registradores de imóveis.

É, pois, dever do registrador proceder ao exame exaustivo do título exibido,

mesmo quando de origem judicial, sob pena de incorrer em responsabilidade, todavia

nem sempre a qualificação registral empreendida pelo oficial é compreendida em seu

verdadeiro sentido e alcance, tal como prevista no ordenamento legal vigente, tanto que

não poucos registradores já passaram pelo constrangimento de serem intimados de

decisões judiciais por despachos do seguinte jaez: “Cumpra-se imediatamente sob pena

de desobediência (ou de pena de prisão)”. Isso simplesmente porque, ao examinar um

determinado título judicial, considerou-o inapto para a prática do ato de registro ou de

averbação determinado pelo juiz ou mesmo emitiu uma nota com exigência de

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retificação ou aditamento do título para o efeito de afastar óbice que impedia a prática

do ato determinado.16

Parece que vários fatores, embora distintos, completam-se e corroboram para

que essa situação se instale e leve certos grupos a pugnarem pela limitação do controle

de legalidade exercido pelo oficial registrador via qualificação.

Primeiro, porque existe uma infeliz prática registral de devolução do título ou

emissão da nota de exigência de forma resumida (por exemplo, apresentar certidão de

casamento dos executados), por vezes até em papeletas grampeadas no título, sem a

imprescindível exposição das razões e dos fundamentos que justificam a tomada de

decisão do oficial registrador na edição do ato de negação de acesso do título judicial ao

caderno registral.

O oficial deve considerar que, em virtude de sua condição de delegado do

serviço público, operando em nome do Poder que o credenciou para o exercício de uma

atividade essencial, os atos que pratica em razão de seu ofício são atos administrativos.

Esses atos, para regular ingresso no mundo jurídico devem ser estruturados nos

princípios que norteiam, informam e fundamentam o direito administrativo, impondo-

se, portanto, que no seu pronunciamento consubstanciado em eventual nota de

devolução do título judicial, fiquem estampadas de maneira precisa e clara as razões de

fato e de direito que o levaram a proceder daquele modo.

Quando o registrador examina um título e o declara conforme a lei e lhe dá

abrigo no arquivo registral imobiliário ou o desqualifica, a exemplo da atividade judicial

saneadora do processo, pratica ato típico de jurisdição voluntária, imparcial, com

independência e soberania; todavia, a nosso aviso e com o máximo respeito por fortes

opiniões em contrário, a natureza jurídica qualificadora do registrador consiste em

autêntica função administrativa, visto que está adstrito ao ordenamento jurídico

16 A desqualificação de título judicial que viole os princípios registrários básicos e torne

insegura e descontrolada a escrituração do fólio real não caracteriza a figura do crime de

desobediência previsto no art. 330 do CP, porquanto esse tipo pressupõe a oposição dolosa e

injustificada a uma ordem legal e tal conjunto de elementos não restará integrado quando

rejeitado o título, em decorrência de óbice registrário (cf. parecer do Juiz Marcelo Fortes

Barbosa Filho no Processo 9002/2000 da Comarca de Americana, publicado no DOJ

11.04.2000, p. 3).

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positivo, não lhe sendo facultado, em razão do estreito limite da qualificação, valer-se

de elementos subsidiários para construção de seu juízo fora do direito normativo, como,

por exemplo, do direito costumeiro, do direito comparado, da determinação eqüitativa

do direito etc. Como muito bem salienta Adriano Damásio, “o administrador público

somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado em lei e nas demais

espécies normativas, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva”.17

Tratando da legalidade para o administrador público, Elcio Trujillo aponta que

“a legalidade na Administração não se resume à ausência de oposição à lei, mas

pressupõe autorização dela, como condição de sua ação”.18

Por oportuno lembrar que o uso na justificativa da devolução do título de

expressões genéricas como “para os devidos fins”, “para fins de direito”, e outras

assemelhadas, não servem para motivar o ato de interdição do título pelo oficial

registrador, configurando mera logomaquia.19

A Constituição Federal, no seu art. 37, preceitua que a Administração Pública

obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

eficiência. Na mesma direção a Constituição Paulista em seu art. 111 amplia esse rol,

acrescentando, de forma explícita, os princípios da razoabilidade, finalidade, motivação

e interesse público, como de observância obrigatória pela Administração Pública direta,

indireta e fundacional, incluídos nessa categoria de entes públicos, por conseqüente

lógico, os serviços delegados de notas e de registro.

Ensina Celso Antônio que “violar um princípio é muito mais grave que

transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não a um específico

mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de

ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque

17 DAMÁSIO, Adriano. Limite das medidas provisórias. In: MOTA DE SOUZA,

Carlos Aurélio (Coord.). São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 68.

18 TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: LED, 1996.

p. 90.

19 CRETELLA JÚNIOR, José. Dos atos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

p. 270, n. 140.

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representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais,

contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.20

Urge, então, que o registrador de imóveis estruture a nota de exigência nos

termos estabelecidos pela Lei de Registros Públicos, por outras normas jurídicas

pertinentes e pelos princípios de direito registral e de direito administrativo, sob pena de

ficar o ato inquinado de vício de legalidade e adentrar de forma precária ao mundo

jurídico, com sua validade comprometida, podendo, até, ser por este abortado, já que

não se tolera a inércia ou o relaxo administrativo.

Em segundo, poder-se-á apontar a especialização excessiva em determinados

ramos do direito, com desconhecimento da matéria registral. Isso ocorre a partir dos

bancos acadêmicos, uma vez que pouquíssimas faculdades de direito no País oferecem a

seus alunos cadeiras de direito notarial e registral. Será essa a causa por que mentes

privilegiadas, com relativa freqüência, movem-se no âmbito do direito registral

imobiliário até mesmo contra legis?

Parece que esse débito pode ainda ser contabilizado à conta de corporativismo

mal entendido e outras causas subjacentes que levam certos grupos a pugnar pelo limite

do controle registral da legalidade.

Enfim, por que não dizer mais que a função de qualificação registral não é

suficientemente explicitada em nossos livros de direito, até mesmo na literatura jurídica

especializada?

Mesmo tratadistas de escol não têm enfrentado os temas nevrálgicos do sistema

registral imobiliário com a energia e o esgotamento que a matéria exige.

É nesse ritmo que surge uma coleção de proposições composta de frases mais

ou menos assim:

– a função de qualificação registral é restrita ou limitada;

– o registrador imobiliário não pode desobedecer ou desvirtuar uma decisão

judicial, devendo limitar-se a cumprir a ordem. Os terceiros interessados ou aqueles

atingidos pelo ato praticado podem impugná-lo perante os tribunais competentes;

– a função jurisdicional deve ser respeitada;

– os documentos judiciais gozam de presunção de legalidade.

20 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Revista de Direito Público 15/284.

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Obviamente essas frases não são frívolas nem inconseqüentes; pelo contrário,

são absolutamente verdadeiras. Não podem, todavia, ser isoladamente consideradas,

senão devem ser entendidas na unidade do sistema jurídico vigente, pena de tornar letra

morta toda a legislação paulatinamente desenvolvida e retornar aos albores da legislação

criadora do Registro Geral de Imóveis, com anterioridade a 1863, numa evidente falta

de “memória histórica” e de conhecimentos suficientes das razões por que se implantou

em nosso País a publicidade registral e as normas de segurança do tráfico imobiliário,

seguindo, fundamentalmente, o modelo germânico, que tem como pressuposto a

legalidade dos atos e negócios e a presunção de exatidão dos assentos registrais, e, por

isso, exige, dados os fortíssimos efeitos que se atribui àqueles, por razões de segurança

jurídica imobiliária, um amplo controle de legalidade por parte do registrador e dos

órgãos de reexame em graus administrativos superiores.

A propósito, é de ser consignado desde logo que a qualificação registral não é

só do registrador de imóveis, senão que a qualificação registral se integra por um

conjunto de órgãos imparciais e especialistas em matéria de direito imobiliário registral,

que são: o registrador de imóveis, o Juiz dos Registros Públicos e o Conselho Superior

da Magistratura do Estado.21

Embora o procedimento de dúvida esteja enquadrado na

modalidade da jurisdição voluntária, pode ensejar recurso especial dirigido ao STJ ou

recurso extraordinário encaminhado ao STF, desde que presentes os requisitos

constitucionais para admissibilidade desses recursos.

Como já assinalado, o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São

Paulo por inúmeras vezes já decidiu que o fato de se tratar de título judicial não o torna

imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal e que todos

os títulos, judiciais e extrajudiciais, são submetidos à qualificação registrária, com

fulcro na aplicação dos princípios e normas formais da legislação específica, vigentes à

época do respectivo ingresso (cf. ApCív 027353-0/8-SP, 26.01.1996, rel. Des. Alves

Braga; ApCív 66.564-0/6-SP, 16.03.2000, rel. Des. Luís de Macedo; ApCív 63.096-0/8-

SP, 10.09.1999, rel. Des. Nigro Conceição).

21 O Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo é composto pelo

presidente do Tribunal de Justiça, pelo Corregedor-Geral da Justiça e pelo 1.º vice-presidente do

Tribunal de Justiça (RITJSP, art. 22).

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Este entendimento da alta cúpula do Poder Judiciário do Estado de São Paulo,

devidamente desenvolvido de forma clara e coerente com o sistema vigente, evidencia o

verdadeiro sentido da limitação da função qualificadora do registrador, que não significa

limitação do alcance da qualificação, devendo o registrador, perfeitamente, desqualificar

título judicial para ingresso no registro imobiliário sempre que este apresente

irregularidade ou omissão ou não preencha as exigências legais.

Por certo deverá o registrador ater-se às exigências legais (Lei dos Registros

Públicos, art. 205, in fine), sendo esse (ater-se às exigências legais) o limite e o alcance

da função qualificadora; não mais, nem menos, porém, com força suficiente para

conduzir a reflexão empreendida na relação entre as autoridades judiciais que decidem

contraditoriamente inter partes e os registradores cujos atos registrais produzem efeitos

erga omnes, o que chama a atenção para a distinção entre partes e terceiros.

A jurisdição do juiz no processo se refere exclusivamente às partes litigantes de

sorte que a sentença e as decisões nos autos somente afetam as partes integrantes. O

princípio da coisa julgada e a relatividade de efeitos das sentenças judiciais constituem

o fundamento desta limitação.

Por seu turno, com respeito aos terceiros que não tenham participado ou sido

notificados do pleito, a decisão judicial é res inter alios, e é precisamente nesse

momento que exsurge a atividade do registrador ao desqualificar o título judicial que

venha a afetar titulares registrais que não figuraram no pólo passivo do pleito ou não

foram convocados pelo juízo onde tramita o processo, oferecendo-lhes o registrador a

proteção registral fundada nos princípios da presunção, da fé pública e do trato

sucessivo, sob pena de flagrante maltrato ao princípio constitucional do direito à tutela

jurisdicional dos próprios direitos e interesses legítimos, sem prejuízo de que, desde

logo, no âmbito contencioso entre as partes determinadas, impere, definitivamente, a

decisão judicial.

Os princípios do direito registral brasileiro são princípios de ordem pública e

cabe ao registrador aplicá-los cogentemente a todos os casos concretos. “O registrador,

pois, não pode abdicar de seus direitos de pessoalidade e independência na qualificação,

porque, secundum quid, são também deveres a observar. A delegação do juízo

qualificador ou seu submetimento a ordens superiores concretas (note-se bem!),

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configuram, assim, violações éticas e contribuem, para a desonra profissional dos

registradores.”22

Que sentido teria o princípio da presunção registral23

se não houvesse um

controle de legalidade por parte de órgãos imparciais e especializados em matéria

registral?

Pelos efeitos que emergem do registro24

o filtro de legalidade ativado pelo

oficial por força da função preventiva do registro imobiliário deve, na medida do

possível, ser suficientemente denso para impedir a prática de um ato registral que possa

ser facilmente impugnado na via judicial por terceiros. A razão é que a força decorrente

do ato registral em sistema procedente do germânico, como o nosso, é muito forte, e

embora não seja abstrata, como o tedesco, que não permite impugnações fora dos

consentimentos formais, já que nosso sistema é causal, exigindo título pré-constituído,

deve a qualificação registral considerar todos os supostos de nulidade ou anulação,

sempre em homenagem à segurança jurídica e ao tráfico imobiliário, todavia livre de

temores nascidos de meras suposições.

Walter Ceneviva orienta que o registrador deverá sempre observar a

razoabilidade das exigências, buscando soluções “que tendam a viabilizar – e não a

impedir – o registro. As garantias inerentes ao registro imobiliário devem estar abertas a

todos”.25

22 DIP, Ricardo Henry Marques. Revista de Direito Imobiliário, 30/85.

23 O princípio da presunção, que tem como efeito a inversão do ônus da prova, desde o

art. 859 do revogado CC/1916, o qual dispunha, in verbis “presume-se pertencer o direito real à

pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”, é mantido com maior ênfase no atual

Código Civil ante o enunciado do par. ún. do art. 1.245, segundo o qual o direito do verdadeiro

proprietário prevalece sempre, mesmo que o adquirente inscrito esteja de boa-fé e tenha justo

título.

24 Dispõe o art. 252 da Lei de Registros Públicos que “o registro, enquanto não

cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra maneira, prove que o título

está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.

25 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 7. ed. São Paulo:

Saraiva, 1991. p. 348.

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Sempre que o título judicial apresentar irregularidade ou omissão, é

aconselhável que o registrador, sem prejuízo da entrega do título ao portador,

comunique, por ofício, à autoridade judiciária que o expediu para que essa determine o

atendimento da exigência formulada ou se proceda à suscitação da dúvida na forma do

art. 198 da Lei de Registros Públicos.

6. A suscitação de dúvida como reexame da qualificação feita pelo

registrador

Feita a qualificação do título pelo registrador, esse indicará por escrito as

exigências a serem cumpridas, quando houver. O apresentante, de acordo com o art. 198

da Lei dos Registros Públicos, não se conformando com os requisitos formulados ou

não os podendo satisfazer, poderá requerer seja o título remetido ao juízo competente,

com a declaração de dúvida, para que seja ela dirimida.

A dúvida é formulada pelo registrador, mediante o requerimento do

apresentante. Trata-se de procedimento administrativo, no qual o juiz competente

decidirá sobre a legitimidade ou não da exigência feita.26

É preciso frisar que a suscitação de dúvida é mais uma garantia de legalidade

do ato; uma confirmação da segurança e confiabilidade que o registro transmite para a

sociedade. Decorre, como já afirmamos, da observância estritamente legal dos

requisitos imprescindíveis para o regular registro.

Além desse limite para suscitação de dúvida, há um outro, que vigora em todo

o Estado de São Paulo, por força do Comunicado 535/95 da Corregedoria-Geral de

Justiça do Estado, publicado no DOJ, segundo o qual, quando for suscitada dúvida

relativa a questões primárias ou de matéria já cristalizada em reiteradas decisões

anteriores e, portanto, desnecessária, a sentença que julgar a dúvida improcedente

reconhecerá, em cada caso, o direito ao reembolso das despesas com o processamento

do recurso e honorários de advogado, se demonstrado o pagamento.

26 Idem, ibidem, p. 346.

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Portanto, o registrador deve agir estritamente em conformidade com a lei,

lembrando-se que, na verdade, quem primeiro deve observar os requisitos na expedição

do título judicial é o órgão emissor. Por serem preceitos estabelecidos em lei, devem ser

conhecidos por todos e seguidos corretamente pelo Judiciário no momento da expedição

do título ou ordem. Com razão, Nicolau Balbino Filho argumenta que “por conseguinte,

os senhores oficiais de Justiça, ao lavrarem o auto de penhora, e os senhores escrivães,

ao expedirem o mandado judicial que determina o registro ou a inscrição da penhora,

deverão atender às exigências legais acima transcritas”.27

Se observarmos atentamente a intenção da lei, o registrador nada mais faz

senão conferir os requisitos formais que por disposição legal já deveriam ter sido

seguidos pelo próprio órgão emissor do título ou ordem e num segundo momento

conferir se os dados ali constantes se coadunam com os que constam no registro, o que

também deveria ter sido feito de antemão pelas partes (CPC, art. 158), pelo juiz e pelos

serventuários do foro judicial.

Num primeiro momento, tanto a qualificação registrária com a nota de

exigência de aditamentos ou retificações bem como a suscitação de dúvida parecem

transtornos para o processo judicial e para o advogado “que padeceria nos balcões dos

cartórios”, segundo alguns. No entanto, o que se vislumbra é, ao contrário, celeridade

processual, efetividade e certeza nas relações jurídicas.

A avaliação deve ser feita não apenas no estrito âmbito do processo judicial,

mas, principalmente, fora dele, já que os efeitos de um ato inscritivo registral atingem

toda a sociedade, haja vista a natureza jurídica do ato registral, que passa a ter caráter

público.

Mesmo no âmbito do processo executivo a eficácia da qualificação e da

suscitação de dúvida se evidencia na medida em que pode evitar “transtornos” ainda

mais protelatórios, como ocorre com os embargos de terceiro, cuja demora nem se

compara com uma solução administrativa. Não é difícil compreender tal idéia, voltada

para a paz social advinda, que para todos os efeitos deve nortear o tratamento da

matéria.

27 BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de imóveis. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1996. p.

157.

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7. Considerações finais

O acesso ao álbum registral de títulos e ordens judiciais é o objetivo e o anseio

dos registradores brasileiros que pugnam por oferecer as garantias e o amparo do

sistema registral, evidenciados por meio da publicidade e seus efeitos, para situações

concretizadas no âmbito processual pelo Estado-juiz, ao tempo em que reverenciam os

direitos reais inscritos e mais os interesses comunitários em potencial.

Em face da modernidade das instituições jurídicas, na esteira de conquistas

democráticas que lavraram um caminho seguro para o exercício dos direitos coletivos e

individuais via legalidade e igualdade, parece-nos que não encontra mais razão de ser

qualquer tipo de antinomia entre registradores e órgãos judiciários no que tange ao

acesso dos pronunciamentos judiciais consubstanciados em documentos judiciais,

típicos ou extraordinários.

Pese, por sua importância estratégica nacional, como instrumento de

desenvolvimento econômico, ser o Registro de Imóveis na atualidade mais um tema de

economia do que um tema de Justiça, visto ser vital para a estabilidade da cadeia

produtiva interna e de mercado, bem como para diminuir a desconfiança internacional,

resultando em maiores investimentos em nosso País, o sistema, por vocação, sempre

esteve a serviço da própria administração da Justiça, à medida que, pelo ato inscritivo,

complementa a efetividade da resolução judicial e a projeta erga omnes.

O tema exige uma monografia, porém, como contribuição, apresentamos esses

breves apontamentos à elevada apreciação dos ilustres registradores de imóveis e das

dignas Autoridades Judiciais presentes ao II Encuentro Iberoamericano sobre Registro

de la Propiedad y Tribunales de Justicia.

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9.

QUALIFICAÇÃO REGISTRAL DE TÍTULOS JUDICIAIS

E CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

SÍLVIA DIP

Advogada em São Paulo

Propósito deste pequeno texto é o de incursionar em sucinta análise da

autonomia do registrador contrastada por ordens judiciais que, recusando-lhes, ainda

que de modo implícito, o exercício da qualificação registral, indicam a vizinhança de

crime de desobediência.

Tem sido comum recebam os registradores ofícios e mandados judiciais, com

exigência da prática inquestionada de registros e averbações sob pena de crime de

desobediência e ameaça de medida de prisão.

A autonomia registral, atributo legal de todo registrador, está posta em xeque.

Ao registrador de imóveis, delegatário de serviço público (art. 236, da CF) e

profissional de direito (art. 3.º, da Lei 8.935/94), a lei conferiu independência no

exercício de suas atribuições (art. 28, da Lei 8.935), a ele incumbindo o direito e dever

de qualificação dos títulos apresentados para fins de registro, incluídos os títulos

judiciais, submetidos a possível revisão administrativa (art. 198, da Lei 6.015/73, e art.

30, XIII, Lei 8.935).

Ao impor-se o cumprimento da ordem de registro sob pena de desobediência,

impede-se ao Oficial de Registro o exame das formalidades registrais, de que é ele

guardião, guardião que atua até mesmo sob o peso de tríplice responsabilidade: civil,

penal e administrativa (arts. 22 a 24 e 31 a 36, da Lei 8.935) e que, em última análise, é

instrumento de garantia de um direito fundamental de primeira geração, o direito de

propriedade (art. 5.º, caput, da CF).

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Já isso seria bastante para, em observância do devido processo legal para o

registro de um título, preservar-se a faculdade de o registrador qualificar negativamente

esse título, sem a ameaça de incriminar-se pelo só cumprimento de uma de suas legais

funções jurídicas.

Nessa linha, num julgado recente do Egrégio Supremo Tribunal Federal, de

que foi relator o Min. Marco Aurélio, está assim ementado:

“O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-

se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de

direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no

art. 330 do CP - crime de desobediência -, pouco importando o acolhimento, sob o

ângulo judicial, do que suscitado” (HC 85.911/9-MG).

Vai-se além, entretanto, porque esses títulos judiciais ferem também a lei penal

material.

O tipo objetivo do crime de desobediência inscrito no artigo 330, do CP

estampa: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, e está inserido no

Capítulo II do Título XI da Parte Especial desse Código, capítulo que se denomina “Dos

crimes praticados por particular contra a Administração em geral”.

Trata-se de crime em que o sujeito ativo é o extraneus, a que se só pode

concorrer como co-autor ou partícipe o funcionário público na definição do Código

Penal (art. 327, caput), conceito que abrange o registrador de imóveis.

No direito penal, o princípio da reserva legal exige que os textos normativos

sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogia, salvo, talvez, quando

in bonam partem.

O registrador público e o tabelião são agentes públicos (art. 236, da CF), e,

para os efeitos penais, funcionários públicos (art. 327, caput, do CP). Disso deriva a

admissibilidade de serem eles sujeitos ativos dos crimes funcionais (art. 312 a 326, do

CP).

No entanto, o delito de desobediência, previsto no art. 330 do CP, é crime

contra a administração pública que só pode ser praticado por particular. Assim,

enquanto o Capítulo I do Título XI dessa Parte Especial cuida dos crimes praticados por

funcionário público contra a administração em geral, o Capítulo II trata dos crimes

praticados por particular contra essa mesma administração em geral. Como é nesse

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Capítulo II que se encontra a previsão normativa do delito de desobediência, assim o

sujeito ativo desse crime só pode ser o particular ou o funcionário público atuando fora

de sua função.

Esse entendimento é comum na doutrina e na jurisprudência brasileiras (assim

sustentam Nélson Hungria, Magalhães Noronha, Fabrinni Mirabete, Damásio de Jesus;

nesse mesmo sentido, mais recentemente, a Revista de Direito Imobiliário publicou

artigo de Ricardo Dip, então Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).

Nesse diapasão, recolhe-se da jurisprudência:

“O crime de desobediência somente é praticado por agente público quando este

está agindo como particular. CP, art. 330, II - O prefeito municipal que, quando no

exercício de suas funções, deixa de cumprir ordem judicial, não comete crime de

desobediência e, sim, o denominado crime de responsabilidade, tipificado no art. 1º,

XIV, do Dec-lei 201/67, que é, na verdade, crime comum (Habeas Corpus 69.428,

70.252 e 69.850)” (HC 76.888, relatado pelo Min. Carlos Velloso, na 2.ª T. do Egrégio

STF).

“O paciente –prefeito municipal, agindo em tal condição- não cometeu o delito

capitulado no art. 330 do CP, ilícito previsto no Título XI, no Capítulo II, que cuida dos

crimes praticados por particular contra a administração” (HC 71.875-2, relatado pelo

Min. Francisco Resek, na 2.ª T. do Egrégio STF).

“Crime de desobediência: só excepcionalmente tem por sujeito ativo

funcionário público (...). Acresce a circunstância de filiar o Código Penal, a espécie

delitiva em causa, ao gênero de condutas cujo sujeito ativo é um particular” (HC

64.142-3, relatado pelo Min. Célio Borja, na 2.ª T. do Egrégio STF).

“(...) atipicidade do delito de desobediência, quando em caso omissão de ato

funcional de servidor público” (HC 5043, relatado pelo Min. José Dantas, na 5.ª T. do

Egrégio STJ).

“(...) o crime de desobediência definido no art. 330 do CP só ocorre quando

praticado por particular contra a Administração Pública, nele não incidindo a conduta

do Prefeito Municipal, no exercício de suas funções. É que o Prefeito Municipal, nestas

circunstâncias, está revestido da condição de funcionário público” (RO em HC 7990,

relatado pelo Min. Fernando Gonçalves, na 6.ª T. do Egrégio STJ).

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“Os dirigentes de entidade integrante da Administração Pública Indireta, no

exercício de suas funções, não cometem o crime de desobediência, pois tal delito

pressupõe a atuação criminosa do particular contra a Administração” (RO em HC 9.066,

relatado pelo Min. Vicente Leal, na 6.ª T. do Egrégio STJ).

“O funcionário público, atuando nessa condição, não pratica crime próprio de

particular contra a Administração Pública” (RO em HC 5.327, relatado pelo Min. Luiz

Vicente Cernicchiaro, na 6.ª T. do Egrégio STJ).

No mesmo sentido: Inquéritos 1.757-4 e 1.931-3, decididos pelo Min. Nelson

Jobim, do Egrégio STF; Petição 1.999, decidida pelo Min. Néri da Silveira; Petição

3.081-8, decidida pelo Min. Carlos Velloso; RHC 9.189, relatado pelo Min. Vicente

Leal, na 6.ª T. do Egrégio STJ; HC 1.294, relatado pelo Min. Luiz Vicente

Cernicchiaro, na 6.ª T. do Egrégio STJ.

Outra questão que se põe, e que também será brevemente analisada, é a da

adequação típico-objetiva do crime de prevaricação em caso de cumprimento de ordem

judicial que se saiba ilícita.

Prevaricar é retardar ou deixar de praticar, o funcionário público,

indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para

satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319, do CP).

Ato de ofício é o que se “compreende nas atribuições do funcionário, ou em

sua competência, ou seja, ato administrativo ou judicial” (Magalhães Noronha, Direito

Penal, 1995, v. IV, p. 258). O dolo específico desse delito é a satisfação de interesse ou

sentimento pessoal: “Não haverá este crime se o agente retarda ou omite ato de ofício

que, se praticado, poderia acarretar a responsabilidade penal ou administrativa dele

próprio” (Delmanto, Código Penal Comentado, 2002, p. 637).

Desse modo, negar o registro porque o título aflige a legalidade, crime não é,

embora possa sê-lo praticar um registro, com ilegalidade admitida, para satisfazer

interesse pessoal.

A propósito, já se decidiu que os mandados judiciais devem respeitar a

autonomia registral:

“Oficial de Cartório de Registro de Imóveis – Crime de prevaricação –

Impossibilidade de atendimento de ordem judicial – Determinação para substituir

matrícula em área apurada em memorial – Cumprimento de dever de ofício – Dúvida

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levantada – Habeas corpus concedido para trancar inquérito policial” (RT 719/426,

Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).

De qualquer forma, ainda que fundada fosse alguma tipificação penal para o

ato do registrador, em nenhuma o descumprimento da ordem judicial poderia levar à

prisão em flagrante do registrador. É que o crime de desobediência, regido pela Lei

9.099/95, proíbe a prisão em flagrante no caso de promessa de comparecimento do

suposto infrator ao Juizado (art. 69, par. único). Por outro lado, o crime de prevaricação

tem o procedimento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (art. 513

e seguintes, do CPP) que exige a notificação prévia do acusado para apresentar resposta,

a fim de evitar queixas infundadas contra os servidores públicos, e, por analogia in

bonam partem, são-lhes aplicados os benefícios previstos na Lei 10.259/01 (analogia

essa defendida por, entre muitos outros, José Renato Nalini, Alberto Silva Franco,

Damásio de Jesus, na linha de firme jurisprudência, de que discrepam Volney Corrêa de

Moraes e Ricardo Dip).

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10.

SÃO TAXATIVOS OS ATOS REGISTRÁVEIS?

RICARDO HENRY MARQUES DIP

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.

1. A adoção de um aforismo, em que pese às suas vantagens gráficas e

expressivas, traz consigo, freqüentemente, riscos de simplificação. E, o que é mais

temível, de implicitação de juízos a que não se dirigia a referência tópica.

Não se trata só de aludir a conhecidas equivocações históricas. Por exemplo,

como a que se acha na divertida suspeita de que o princípio da legalidade penal vem do

direito romano. Ou melhor: teria forçosamente de vir dali, porque em Roma se falava o

latim e em latim se diz até hoje nullum crimen, nulla poena sine lege. E, no entanto,

esse travestimento latino do princípio da legalidade não vem dos tempos antigos. Não se

deve a Paulo ou a Modestino, nem ao jus honorarium romano, senão que a Feuerbach, o

penalista.

Ainda caberia lembrar a persistente boutade que se encontra em supor que as

constituições – ao menos as que, por uns tantos critérios, se dizem democráticas (com

perdão) - são tributárias, na realidade histórica, da Magna Charta com que, em 1215, se

tentou pôr freios à jurisdição de João Sem Terra sobre os nobres e os vassalos maiores.

Tanto é assim, dizem uns – e apontam a prova -, que as constituições atuais são

comumente designadas pela expressão Magna Carta. Tudo o que basta, enfim, e com

um sólido critério ao que se vê, para fazer prova de uma realidade histórica. E, sem

embargo, foi em 1188, em terras da Hispânia, que Dom Alfonso IX – dominus

Aldefonsus Rex Legionis et Galletie – jurou a primeira constituição dessas que, por

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agora, se nomeiam democráticas. Com ela jurou junto o princípio da legalidade penal. É

o que se lê no item XV de seu juramento às Cortes de León e Galícia.

O que mais desconforta os aforismos - cujo uso, em todo caso, não se deve

descartar simpliciter, até porque um aforismo vem pronto em socorro dizer que abusus

non tollit usum – não é, pois, como ficou dito, o risco de uma precipitação referencial-

histórica. Mas o da simplificação do objeto de seu conceito e o muita vez implícito

desbordamento de sua extensão, com indissociável reflexo, portanto, em sua

compreensão. Não há forma de evitar, já se fez ver desde Aristóteles, o relacionamento

inverso entre essas propriedades lógicas, extensão e compreensão.

2. Faz alguns anos, no ambiente do direito registral brasileiro, difundiu-se,

calcado patentemente numa conhecida formulação processual, o aforismo quod non est

in tabula, non est in mundo. Sua função originária – a exemplo da matriz de que

copiado: quod non est in acta, non est in mundo – era de caráter procedimental, voltado

à operatividade da qualificação registrária.

Não era assim por acaso. Quando se afirma a inclusão do registro público no

plano principaliter de um direito formal, põe-se prontamente sua familiaridade no

campo do processo. Não falta, é certo, que se divida cada espécie do direito registral em

substantivo e adjetivo, ou, noutros termos, em material e formal. Mas, para essa

classificação, no plano material – primeiro, aqui, considere-se o direito do registro

imobiliário, registro público de que se disse o ser por antonomásia -, tem-se de importar

realidades e noções versadas principalmente em outros segmentos jurídicos. Imóvel,

fatos jurídicos – e toda sua panóplia: obrigações, negócios, contratos, vícios, nulidades

etc. -, relações jurídicas, pessoa. O mesmo se passa, noutro exemplo, com o direito do

registro civil das pessoas naturais. Nascimento, morte, emancipação, casamento,

adoção, tudo isso é matéria primeira de outros ramos do direito, que somente num

aspecto se põem à frente para o procedimento registral e nessa perspectiva passam a

interessar-lhe. Fazem-se seu objeto, mas eram realidades que, primeiro e diretamente,

eram e seguem sendo objeto próprio de um direito material logicamente anterior. O

registro é essencialmente um processo, em sentido lato. Da mesma sorte que a ninguém

ocorrerá que, versando a ação de despejo, o processo civil seja o segmento científico

mais apropriado para tratar do instituto da locação. Da mesma forma como não se dirá

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que, cuidando de desconstituir, numa revisão criminal, a condenação de um

questionável homicídio à pena privativa de liberdade, o processo penal seja o campo do

saber jurídico mais azado para estudar o crime de homicídio. Assim também, o fato de

registrar-se uma venda e compra ou um nascimento, não faz do direito registral a esfera

propícia para estudar contratos e bens da personalidade.

Quando se disse, originariamente, quod non est in tabula, non est in mundo,

queria dizer-se que o registrador na sua função primordial de decidir sobre a inscrição

concreta de um título, está limitado ao que se acha no registro. O registro é seu mundo

oficial. Foi logo depois necessário esclarecer que o próprio título em via de registração

se engastava, enquanto tal, no aforismo. Daí a versão explicitada quod non est in tabula

et in instrumentum, non est in mundo. Não bastou essa explicitação de sentido, porque

pronto se fez interpelante a possibilidade de que conflitasse o conteúdo de títulos

(assim, no plural). É bem verdade que, num e noutro caso, já se achavam as idéias

ajustadas à expressão tabula, mas a resistência da práxis – melhor: a obstinação da

práxis – induzia à explicitação de sentido. Em vez de instrumentum, instrumenta. Ficou

assim: quod non est in tabula et in instrumenta, non est in mundo.

Fez-se largo período de tréguas, ao cabo do qual parece se ter dado uma

implícita e variada substantivização do conceito exprimido no aforismo. A tópica

originária resumia-se ao plano procedimental, não se dirigindo mais que a sintetizar um

estatuto epistêmico para o registrador. Passou agora a perspectivar-se uma referência

mais amplificada e própria do direito material. Em rigor, se se considera ainda o

aforismo, já não se pensa em quod non est in tabula, non est in mundo, mas

variadamente numa espécie de outros juízos inteiramente estranhos à estimação

originária. Do tipo quod non est in mundo, non est in tabula, talvez non est in tabula,

quia non est in mundo, ou mais longe: non est in mundo, quia non est in tabula.

Algumas dessas variantes tópicas substantivizadas - ditas em vernáculo,

porque, no fim de contas, causa (non) locuta, Roma finita – suportaria a seguinte

esquematização argumentativa:

- não há direitos reais relativos a imóveis, num sistema constitutivo, qual o

brasileiro, que os objetos de registro;

- de onde segue que o registro imobiliário está dirigido à inscrição de direitos

reais;

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- e porque os mesmos direitos reais, sabidamente, são elencados no direito

brasileiro em numerus clausus (um pequeno latim);

- ergo, os fatos suscetíveis de registro estão igualmente previstos de modo

taxativo na Lei de Registros Públicos.

3. Quanto à primeira proposição – não há direitos reais relativos a imóveis,

num sistema constitutivo, qual o brasileiro, que os objetos de registro -, distingue-se. Se

se está a referir a direitos reais imobiliários constituídos por negócios inter vivos,

concede-se. Em âmbito mais geral, exclusor da sucessão hereditária, das divisões, da

usucapião e das acessões, nega-se. E prova-se, brevitatis causa, a distinção: basta ler o

que dispõem os arts. 1.572, 631 e 530, incs. II, III e IV, todos do Código Civil

brasileiro.

Quanto à segunda proposição, à margem de não ser conseqüente do aparente

entimema – o registro imobiliário está dirigido à inscrição de direitos reais -, também se

distingue. Que assim o seja ut in pluribus, concede-se. Que o seja sempre, nega-se.

Prova-se a distinção: basta cogitar do fato de que são registráveis, no direito brasileiro

posto, as locações de prédios, as penhoras, os arrestos e os seqüestros de imóveis, as

convenções antenupciais, as citações – maxime as relativas a ações pessoais

reipersecutórias relativas a imóveis, os dotes (art. 167, inc. I, n. 3, 5, 12, 21 27, da Lei

6.015, de 31.12.1973). Mas a locação, a penhora, o arresto, o seqüestro, o pacto

antenupcial, a citação e o dote, nunca se pensou que, no direito nacional, fossem direitos

reais. Uma coisa, por certo, é admitir que o registro imobiliário está voltado

tendencialmente a albergar direitos reais – seja para constituí-los ou não; coisa diversa é

dizer que o registro predial somente se dirija a publicar direitos reais.

No que concerne à terceira proposição – os mesmos direitos reais,

sabidamente, são elencados no direito brasileiro em numerus clausus -, concede-se juxta

modum. É certo que se adotou no direito pátrio o critério da taxatividade dos direitos

reais, mas cabe ao intérprete dizer quais dos direitos alinhados são reais e quais não o

são, o que, de conseguinte, afasta um critério de oficialidade literal (a direta doutrina do

sens clair normative).

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A proposta de conclusão sub examine – os fatos suscetíveis de registro estão

igualmente previstos de modo taxativo na Lei de Registros Públicos – não se infere das

premissas. Desde o plano estritamente lógico-formal não se pode extrair da taxatividade

dos direitos reais uma correlata enumeração exaustiva dos atos suscetíveis de

registração predial. Apropositam-se a isso alguns tantos fundamentos. Primeiro, o de

que o registro imobiliário, como visto, destina-se a acolher títulos não-referentes a

direitos reais. Segundo, o de que a taxatividade dos direitos reais não implica restrição

conseqüente dos títulos relativos a esses direitos: ter-se-á notado acaso que, na mescla

de uma terminologia criticável, o art. 167 da vigente Lei de Registros Públicos, tratando

do registro em sentido estrito, não se refere expressamente à propriedade? Mais além:

não se diz que espécie de título permitiria o registro – por sinal, declarativo – de

aquisição imobiliária por aluvião (arts. 530, II, 536, III, e 538, CC).

Isso não é nenhuma defectividade da normativa registral, mas próprio de um

sistema processual lato sensu, que, por seu caráter fundamentalmente instrumentário, se

proporciona mediante uma formulação de subsídio à realização do direito material.

Negar que se possa registrar um título no ofício imobiliário porque não no prevê

expressamente inscritível a regulativa específica ou lei extravagante é, em síntese,

desprezar o caráter instrumental do registro e, no fim e ao cabo, denegar a realização de

um direito que, recognoscível na ordem substantiva, não poderia já efetuar-se. Seria,

guardadas as distinções, o mesmo que dizer que o locador tem direito a reaver o imóvel

de um locatário inadimplente, e negar-lhe toda possibilidade de manejar uma ação de

despejo.

Nem sempre se adverte com clareza que o direito real é uma atualização que

depende de uma potência, scl., de um título, e que esse título é de direito obrigacional.

Ora,

- se o registro imobiliário atualiza o título para freqüentemente, constituir um

direito real;

- se esse título, no sistema obrigacional vigente, é resultado possível de uma

autonomia de vontades contratantes;

- esse título, não menos, é alheio de exigências tipológicas e restritivas;

tem-se de admitir que, longe de afirma-se a taxatividade dos atos suscetíveis de

registro imobiliário, deve antes e ao revés dizer-se que todos os atos aos quais, sem

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vícios, se possa atribuir potencialidade para constituir (ou modificar) direitos reais

imobiliários são suscetíveis de registração predial.

Há possíveis explicações para o equívoco de que se está a tratar. Primeira, a de

que a idéia de um sistema formal de garantias – assim, o registro público – induz um

critério formal de compreensão e de interpretação. O engano está em pensar que esse

critério opera na seleção dos atos registráveis, quando o campo de sua atuação está antes

internalizado no procedimento registral. De toda sorte, que haja mais ou menos atos

suscetíveis de registração, não é isso que torna mais ou menos rígido um sistema de

segurança jurídica. Segunda, a de que, pensam alguns, se registram direitos, e ainda por

cima direitos reais. Mas a verdade é que não se registram direitos, e sim fatos jurídicos

para publicar uma situação jurídica. Terceira, a de que alguns fatos, se inscritos,

implicariam um entrave persistente ao tráfico jurídico (por exemplo, o protesto contra a

alienação de bens). Mas aqui é preciso distinguir o que é um impedimento pontual e,

para mais, transitório, do que configura um obstáculo essencial: o protesto contra

alienação de bens só não pode ser registrado porque falta ao sistema brasileiro a

metódica da inscrição provisória; contasse o direito nacional com essa técnica, a medida

de protesto não só poderia, mas, como é patente, deveria ser registrável. Por agora, o

julgamento das hipóteses de inscrição, inclusa a do protesto, deve ser tomado à luz do

princípio mais principal do registro: a segurança jurídica.

Não se trata, é bem verdade, de afirmar quod tabellio vel judex placuit, tabula

habet vigorem, mas tampouco se pode chegar a dizer quod judex vel tabellio non

placuit, non est in tabula et non est in mundo.

4. Como se não fora pouca essa extensão da tópica inicial, agora tem-se outra

nascente: uma espécie de propter est in tabula, ergo est in mundo.

Não se trata – o que não estaria mal – de vincular essa derivação do aforismo

fundamental à hipótese prevista no art. 252 da Lei 6.015, de 1973 (“O registro,

enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra

maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”). É

intrigante essa fórmula redacional e surpreende que um ato se desvincule tão aberta,

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mas tão sabiamente de sua potência. Nesse caso sim: porque está no registro, está no

mundo (est in mundo, quia est in tabula).

Coisa muito diversa é que se pretenda que estando algo registrado se torne

direito real. Ou o que se dá na mesma: o que é suscetível de registro, direito real deve

ser. Com símile argumentação e inteira justificativa interna, converteremos o dote, a

locação, as citações, as penhoras, seqüestros e arrestos em direito real.

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11.

PROCESSO ADMINISTRATIVO ORDINÁRIO NO JUÍZO CORREGEDOR

VICENTE DE ABREU AMADEI

Juiz auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Do processo (gênero) ao processo administrativo

(espécie) – 3. Da síntese elementar do processo administrativo: 3.1 O extrato do direito positivo;

3.2 O extrato da doutrina e da jurisprudência; 3.3 A suma prática do processo administrativo:

3.3.1 Oficialidade; 3.3.2 Flexibilidade formal; 3.3.3 Controle administrativo e autotutela; 3.4 A

chave hermenêutica e o primado do direito – 4. Do processo administrativo no Poder Judiciário

– 5. Do processo administrativo no âmbito do Juízo Corregedor – 6. Do processo administrativo

especial referente ao registro de imóveis – 7. Do processo administrativo ordinário de registro

predial quanto ao objeto: 7.1 Processo de requalificação por dissenso sobre ato de averbação;

7.2 Processo de reexame de requerimento indeferido pelo registrador: abertura de matrícula,

certidão, informação etc.; 7.3 Processos de cancelamento, restauração, bloqueio e levantamento

de bloqueio; 7.4 Processo de dispensa de registro especial de parcelamento do solo; 7.5

Processo de consulta em geral e feitos diversos de caráter normativo – 8. Peculiaridades do

processo administrativo ordinário de registro predial quanto à forma – 9. Conclusão.

1. Introdução

É preciso compreender que este estudo encontra-se no foco do espírito

eminentemente prático que norteia o Projeto Educartório,1 existente no Estado de São

Paulo desde 2006, a partir de esforços conjugados de magistrados, registradores e

notários, por via da Corregedoria Geral da Justiça e de entidades representativas dos

delegatários, com escopo de agregar capacitação pessoal, fomentar eficiência e

1 Cf. <www.educartorio.com.br>.

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aperfeiçoamento na prática notarial e de registro, mediante encontros, palestras,

seminários, mesas-redondas... Tudo, ressalte-se, com feição pedagógica direcionada,

sobretudo, à práxis, ao saber técnico, sem grandes incursões na esfera especulativa e

prudencial dos saberes. Daí, por exemplo, a prevalência temática em matéria de

organização dos serviços extrajudiciais, administração de cartórios, atendimento ao

público, técnicas de registros e notas, especialmente perante os atuais desafios e a

realidade concreta do cotidiano cartorário.

Agora, o XIII Educartório, em sua edição especial, sem perder o seu norte

elementar, abre o leque para o trato da matéria concernente à segurança jurídica formal

não só na esfera dos serviços delegados, mas também no âmbito do Poder Judiciário,

com atenção especial ao caráter procedimental de alguns temas de registro predial.

Assim, este texto, que busca refletir e desenvolver aula ministrada naquela

edição especial do Educartório, está centrado na dimensão prática dos processos

administrativos que são do trato de juízes corregedores e da Corregedoria Geral da

Justiça. Cuidamos, pois, (a) do processo como instrumento para efetivar direitos; (b) dos

processos administrativos como ferramentas no universo da Administração Pública; e

(c) dos processos administrativo-judiciais, enfim, sob a perspectiva de sua compreensão

elementar e de suas peculiaridades, no único esforço de tentar contribuir àqueles que

operam direta ou indiretamente nesta órbita instrumental.

2. Do processo (gênero) ao processo administrativo (espécie)

De vários ângulos é possível visualizar o tema do processo e, daí, o do

processo administrativo: como relação jurídica dinâmica,2 como encadeamento

congruente de atos preparatórios de uma decisão final,3 como instrumento de garantias

2 “Assim, o processo administrativo é relação jurídica dinâmica, coordenada por normas

que estabelecem vínculo de segundo grau entre os sujeitos que dela participam” (Moreira,

Egon Bockmann. Processo administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 60). 3 É a ótica do processo enquanto iter preparatório de decisões, “atos coordenados para obtenção de

decisão” (Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p.

559), ou ainda, no âmbito administrativo, como “sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos

tendendo todos a um resultado final e conclusivo” (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de direito

administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 446), comumente invocada para expressar a

acepção ampla de processo e de processo administrativo (cf. José Cretella Jr. Prática do processo

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de direitos individuais, de tutela dos administrados entre si e diante da Administração4

etc.

Diante do fim eminente prático deste estudo, prefiro, nesta primeira

abordagem, enfatizar apenas dois ângulos de visão:

a) primeiro, a utilidade de compreender o processo a partir de sua raiz

etimológica – de “processu(m), cognata do verbo procedere”, que “significa ir para

diante, marchar para frente, avançar, progredir”5 –, pois ela conduz a idéia de processo

como meio ou caminho dinâmico a determinado fim ou meta (método), como “forma,

instrumento, modo de proceder”6 na mira de determinado alvo, ao qual se projeta para

atingir;

b) segundo, a relação entre gênero e espécie que há entre processo (e direito

processual) e processo administrativo (e direito processual administrativo).

Francesco Carnelutti, compreendendo o processo não apenas como “mutação

da realidade que se concretiza por uma sucessão de fatos causalmente vinculados”, mas,

sobretudo como “um método para a formação ou para a aplicação do direito”, não deixa

de indicar o fim, a meta ou o alvo a que está direcionado, pois aí reside seu sentido, sua

razão de ser: a coisa justa e certa, promotora da paz; entenda-se: não se almeja qualquer

resultado, mas o “bom resultado”, ou seja, aquele em que “a justiça deve ser sua

qualidade superior ou substancial” e “a certeza, sua qualidade exterior ou formal”..7

Assim, também o processo administrativo não pode ser compreendido fora da meta da

res justa e certa, observadas, obviamente, as peculiaridades próprias do direito

administrativo em que se encontra inserido (agente público competente, finalidade no

interesse público fixado em lei etc.).

administrativo. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 45; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito administrativo.

20. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 576 e 578).

4 “Hoje, muito mais que um iter para a produção dos atos administrativos, o processo administrativo é um

instrumento de garantia dos administrados em face de outros administrados e, sobretudo, da própria

Administração” (Adilson de Abreu Dallari; Sérgio Ferraz. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo:

Malheiros, 2007. p. 25). 5 José Cretella Jr. Op. cit., p. 28. 6 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 576. 7 Instituições do processo civil. Trad. Adrián Sotero De Witt Batista. São Paulo: Classic Book, 2000. p.

72.

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Por outro lado, Nelson de Souza Sampaio, com didática, destaca que no

“gênero amplo do direito processual”, que “revela o caráter dinâmico do ordenamento

jurídico”, podemos identificar três ramos: o do processo legislativo, que “diz quem

participa e como deve participar na formação dos atos legislativos”; o do processo

judiciário, subdividido em diferentes sub-ramos (v.g., processo eleitoral, processo civil,

processo penal, processo trabalhista), que “indica quais os órgãos que atuam e como

devem atuar na edição de atos jurisdicionais”; o do processo administrativo, “que define

os órgãos competentes para emitir os atos administrativos e a forma de sua emissão”..8

Este modo simples de compreender o fenômeno amplo do processo estatal9 no

direito, atrelando seus maiores ramos a cada um dos poderes da República (Legislativo,

Judiciário e Executivo), para, então (e só então), chegar a cada um de seus sub-ramos, é,

em rigor, não só de bom proveito didático, mas também encerra importante

compreensão do sistema jurídico formal, descortinando significativas e elementares

conseqüências, que o exame da prática dos processos administrativo-judiciais revela ser

de grande utilidade.

Processo, pois, neste enfoque, é instrumento ou meio para se chegar a

determinado fim: na órbita legislativa, meio à formação dos atos legislativos, pelo

exercício da função legiferante; no âmbito jurisdicional, instrumento à realização da

coisa justa e certa, que se deve expressar em provimentos jurisdicionais, pela função

jurisdicional; na esfera administrativa, iter à promoção da coisa justa e certa, que se

deve expressar em decisões e atos administrativos, pela função administrativa. Tudo,

necessariamente, no quadro finalístico maior de direcionamento ao bem comum, que

deve orientar todo movimento estatal.

É realmente importante a identificação desses três ramos do direito processual

estatal, uma vez que cada um deles tem “vida normativa própria e independente, bem

como finalidades distintas, que justificam a impossibilidade de aplicação de uma norma

processual destinada a um ramo do direito processual a outro ramo do direito

8 O processo legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 2. Maria Sylvia Zanella Di Pietro também destaca

essa “primeira classificação, separando, de um lado, o processo legislativo, pelo qual o Estado elabora a

lei, e, de outro, os processos judicial e administrativo, pelos quais o Estado aplica a lei” (op. cit., p. 576). 9 Não se ignora que, além dos processos “estatais”, há os “não-estatais”, “conforme sirvam ao exercício

do poder pelo Estado ou por outra entidade” (Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do

processo, 2. ed., São Paulo: RT, 1990, p. 83-84, com referência à doutrina de Fazzalari). Todavia, para o

fim a que se destina este trabalho, não há razão para ir além dos processos estatais.

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processual”, ou, ao menos, sem o necessário “temperamento”..10

Assim, diante da

disciplina jurídica específica de cada ramo e dos fins diversos, seus princípios e

comandos não se encontram em vasos comunicantes: não autorizam, em regra,

interpretação extensiva e integração por aplicação analógica de instituto e de norma

jurídica de um ramo ao outro, salvo situações excepcionais, como a de lacuna “que

possa culminar com a privação dos direitos protegidos pelo due process”..11

Quem pensa aplicar norma de processo civil para o processo legislativo?

Alguém já viu agravo de instrumento no trâmite de um projeto de lei? Recurso especial

ou extraordinário contra decisão do Tribunal de Impostos e Taxas? Portaria de juiz para

dar início ao processo penal?

É, pois, óbvio e da lógica jurídica que não há como unificar o processo estatal,

desconsiderando cada um de seus ramos. No entanto, se assim é, por que, então, busca-

se, com tanta freqüência, aplicar institutos, recursos e regras próprias do processo civil,

em processo administrativo do Juízo Corregedor, Permanente e Geral, e até em

processos administrativos de tramitação perante os registradores imobiliários?

É preciso, pois, logo na saída deste estudo, separar essas esferas, porque suas

bases e fins são completamente distintos, consignando-se que, quando não se tem

claramente formada aquela lição elementar – de que os três ramos do direito processual

estatal, em regra, não se comunicam -, desajustes, na prática, ocorrerão. E, então, os

erros serão freqüentes, sobretudo, quando se está no âmbito do Poder Judiciário, sem a

adequada compreensão de que lhe cabe exercer não apenas sua atividade típica

(jurisdicional), mas também atividades atípicas (como a de fiscalização das serventias

extrajudiciais, de caráter administrativo).

10 Decisões administrativas da Corregedoria Geral. São Paulo: RT, 1992. n. 94, p. 226: caso de

inaplicabilidade, em processo administrativo, das normas insertas nos arts. 84 e 246 do CPC, ou, ao

menos, “com o mesmo rigor de aplicabilidade que elas têm no processo civil, sem o temperamento que se

exige em processo administrativo”. 11 Egon Bockmann Moreira, após lembrar que o art. 2.º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/99, vincula a

atividade processual administrativa à “atuação conforme à lei e o direito”, o que “dá conteúdo específico

ao princípio do devido processo legal”, destaca, para a “hipótese de não existir norma legal expressa e a

Administração tomar iniciativa que possa culminar com a privação dos direitos protegidos pelo due

process”, o dever de aplicar “extensiva ou analogicamente, as leis processuais em vigor”, tal como as

regra de processo civil em “casos de discussão a respeito de direitos disponíveis do particular –

propriedade, contratos etc.” e as de processo penal “quando o processo envolver a aplicação de

penalidades contratuais ou funcionais” (op. cit., p. 284-285 e nota 237). José Cretella Júnior alude à

analogia no direito administrativo disciplinar (op. cit., p. 96 e ss.).

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É certo que há um núcleo comum principiológico elementar de direito

processual, e, por isso, não se pode deixar de reconhecer um “sistema de conceitos e

princípios elevados ao grau máximo de generalização útil e condensados indutivamente

a partir do confronto dos diversos ramos do direito processual”, que permite configurar

a “teoria geral do processo”;12

todavia, isso não autoriza, por si, unificação dos distintos

ramos nem a quebra sistemática dos parâmetros normativos deles. É verdade, ainda,

que, também em sede do Juízo Corregedor, há alguma aplicação analógica, como ocorre

com a reabilitação da pena administrativa;13

todavia, isso não afasta seu caráter

excepcional.

Vale a pena, então, sublinhar, com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que “cada

um dos processos estatais está sujeito a determinados princípios próprios, específicos,

adequados para a função que lhes incumbe. Não podem ser iguais o processo legislativo

e o processo judicial, e um e outro não podem ser iguais ao processo administrativo”

(op. cit., p. 576).

3. Da síntese elementar do processo administrativo

Fixada a primeira lição prática de que processo administrativo é caminho, iter

dinâmico, direcionado a fim ou meta própria, com incidência de princípios e normas

jurídicas específicas, no quadro da função pública – sem confusão, pois, com disciplina

de outros ramos do processo estatal, incluso o do processo judiciário (civil, penal,

trabalhista etc) –, importa destacar, em breve síntese, os seus traços essenciais, antes de

mergulhar em seu trato no âmbito do Poder Judiciário.

12 Cândido Rangel Dinamarco. Op. cit., p. 76. 13 “Nada obstante a ausência de previsão legal, a tradição desta Egrégia Corregedoria Geral da Justiça

consolidou entendimento de que, por aplicação analógica, o instituto de direito penal da reabilitação (arts.

93 a 95 do CP) comporta transposição ao direito administrativo-disciplinar dos notários e registradores,

“diante da semelhança (não identidade) que há entre a punição penal e a punição administrativa,

especialmente no que tange à sua finalidade corretiva do comportamento agente punido” (v.g., Decisões

administrativas da Corregedoria Geral, São Paulo: RT, 1992, n. 162, em que consta a referência histórica

aos precedentes). Após a edição da Lei 8.935/94, perdurou o mesmo entendimento, que consta com

previsão nas Normas do Pessoal das Serventias Extrajudiciais, para reabilitação de penas disciplinares de

repreensão, multa e suspensão (Provimento CG 5/96, Capítulo V, itens 11 e seguintes) e não faltaram

deferimentos de reabilitações de reprimendas aplicadas a Delegados (Protocolados CG 31.436/95,

10.667/99 e 29.033/2003)” (Prot. CG 47.512/2005, parecer de 12.01.2006).

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Ênfase, pois, não se pode deixar de dar ao núcleo comum principiológico de

processo estatal, bem como às normas constitucionais e às leis gerais de processo

administrativo, quer a federal (Lei federal 9.784/99), quer a paulista (Lei estadual

10.177/98); este, todavia, não é o momento para o discurso teórico e exaustivo da

matéria, razão pela qual bastam, aqui, poucas considerações qualificadas como úteis ao

trato cotidiano do processo administrativo.

3.1 O extrato do direito positivo

Assim como não se trata de Administração Pública sem referência aos

princípios de “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (art. 37

da Constituição da República) nem de direito processual sem foco nos princípios de

“devido processo legal, contraditório e ampla defesa” (art. 5.º, LV e LV), não se pensa o

instituto híbrido do processo administrativo, sem igual menção àqueles cânones

maiores, acentuando-se, ademais, que sua lei geral federal ainda lhe agrega outros seis

princípios – os de “finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, segurança

jurídica e interesse público” (art. 2.º da Lei 9.748/99) – e indica (parágrafo único do art.

2.º da Lei 9.748/99) a necessidade de observâncias aos critérios de: “I – atuação

conforme a lei e o direito; II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia

total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III – objetividade

no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou

autoridades; IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; V –

divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas

na Constituição; VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações,

restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao

atendimento do interesse público; VII – indicação dos pressupostos de fato e de direito

que determinarem a decisão; VIII – observância das formalidades essenciais à garantia

dos direitos dos administrados; IX – adoção de formas simples, suficientes para

propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção

de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e

nas situações de litígio; XI – proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas

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as previstas em lei; XII – impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo

da atuação dos interessados; XIII – interpretação da norma administrativa da forma que

melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação

retroativa de nova interpretação”.

A lei bandeirante de processo administrativo (Lei estadual 10.177/98), de modo

mais concentrado, enuncia os princípios de “legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos

administrativos” (art. 4.º), indica um norte principiológico interpretativo – “norma

administrativa deve ser interpretada e aplicada da forma que melhor garanta a realização

do fim público a que se dirige” (art. 5.º) –, e enfatiza a necessidade de observância ao

princípio da reserva legal na criação de “condicionamentos aos direitos dos

particulares”, na imposição de “deveres de qualquer espécie” aos administrados, na

previsão de “infrações” e prescrição de “sanções” (art. 6.º).

3.2 O extrato da doutrina e da jurisprudência

Em doutrina, além dessas diretrizes expressas em nosso direito positivo, ainda

se colhe atenção e destaque aos princípios de “oficialidade”, “informalismo”, “verdade

material”, “atipicidade”, “pluralidade de instâncias” (ou “duplo grau de jurisdição

administrativa”), “economia processual”, “participação popular”, “isonomia” (ou

“igualdade”) e “boa-fé”.14

Na jurisprudência, então, o leque principiológico ainda pode ser ampliado.

Confira, exemplificativamente:

a) “O princípio da instrumentalidade das formas, no âmbito administrativo,

veda o raciocínio simplista e exageradamente positivista. A solução está no formalismo

moderado (...)” (STJ, ROMS 8.005/SC, DJU 2.5.2000, p. 150, JSTJ 17/353, RSTJ

136/458);

b) caso de ofensa ao “princípio do juiz natural”, por vício de instauração em

processo administrativo disciplinar (STJ, EDcl no MS 63.648-8/2005, DJU 27.08.2007,

p. 187);

14 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 560-563; Diógenes Gasparini. Direito administrativo. 12 ed. São

Paulo: Saraiva, 2007. p. 936-938; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p.582-590; Egon Bockmann

Moreira. Op. cit., p. 69-356. Adilson de Abreu Dallari; Sérgio Ferraz. Op. cit., p. 63-110.

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c) “O princípio da autotutela administrativa aplica-se à Administração Pública,

por isso que a possibilidade de revisão de seus atos, seja por vícios de ilegalidade, seja

por motivos de conveniência e oportunidade, na forma da Súmula 473, do E. STF”

(STJ, REsp 658.130/SP, DJU 28.09.2006, p. 195);

d) necessidade de respeito ao “princípio da inadmissibilidade da prova ilícita”

em processo administrativo disciplinar, considerando-se ilícita prova apoiada na quebra

de sigilo funcional, sem previa autorização judicial (STJ, RMS 8.327/MG, DJU

23.08.1999, p. 148, JSTJ 10/407, LEXSTJ 125/93);

e) garantia ao “princípio formal da vinculação ao processo”, em processo

administrativo licitatório (STJ, MS 5.601/DF, DJU 14.12.1998, p. 81, JSTJ 2/92, RSTJ

119/57);

f) “Ignorar, no âmbito do processo administrativo, a força normativa do

princípio da razoabilidade, enquanto mecanismo viabilizador do controle dos atos

administrativos, significa incorrer, a rigor, em afronta ao próprio princípio da

legalidade” (STJ, RMS 12.105/PR, DJU 20.06.2005, p. 174, RNDJ 69/108).

3.3 A suma prática do processo administrativo

Foge ao objetivo prático, que reclama concentração, discorrer sobre cada um

desses vários e importantes princípios e critérios normativos; por isso, deste universo,

destaco apenas três cânones maiores que se apresentam de aguda utilidade no contexto

dos processos administrativos em geral: oficialidade, flexibilidade formal e controle

administrativo de legalidade.

3.3.1 Oficialidade

A boa e clássica síntese de Miguel Seabra Fagundes – administrar é “aplicar a

lei de ofício”15

–, por si, indica que inércia não combina com processo administrativo,

quer em seu surgir (iniciativa), quer em seu devir (movimento), quer em seu revir

(revisão).

15 O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 3.

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Isso, obviamente, não exclui a instauração de processos administrativos por

provocação de particulares nem o arquivamento de alguns por desinteresse dos

interessados que não atendem às determinações da Administração. Aliás, alguns

processos administrativos especiais sequer excluem a necessidade de rogação do

interessado para a prática de determinados atos administrativos (v.g., processos

destinados aos registros públicos ou ao protesto de títulos e documentos de dívidas).

A lição prática que convém sublinhar, por extração do princípio de

oficialidade, é o fato de que, em processo administrativo, a Administração “não age

como terceiro (...), mas como parte que atua no interesse e nos limites que lhe são

imposto por lei”. Destaquem-se desse ensino, então, como conseqüências igualmente

práticas, para os processos administrativos em geral:

a) referência aos integrantes da relação processual administrativa como

“interessados”, não como “partes”;16

b) “gratuidade”, exceto previsão legal, e inaplicabilidade do “princípio da

sucumbência”;17

c) ausência de “caducidade de instância” e de “extinção por decurso do

tempo”, salvo previsão legal expressa;18

d) não extinção automática ou necessária do processo por desistência ou

renúncia do interessado;19

e) desnecessidade de representação por advogado,20

observada a

facultatividade da defesa técnica, salvo exceções legais, como o processo administrativo

16 Até em sede de dúvida registrária, como se colhe, por exemplo, nas palavras do Ministro Thompson

Flores: “A dúvida constitui processo de natureza administrativa, e a decisão nela proferida reveste-se, por

igual, de conteúdo materialmente administrativo (Lei 6.015/73, art. 204). Esse processo – no qual inexiste

ação, mas simples pedido, onde figuram interessados, e não partes, e em que não há lide, mas mera

divergência entre o apresentante do título, que pretende o seu registro, e o Oficial registrador, que se

recusa a efetuá-lo – apresenta-se destituído de caráter jurisdicional, não se ajustando, por isso mesmo, ao

conceito constitucional de causa” (RTJ 50/196 – o realce não é do texto original). 17 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 577 e 585. Confira, no âmbito da Corregedoria Geral da

Justiça de São Paulo: Processos CG 745/2005 e 614/2006 (não incidência de custas processuais ou da

taxa judiciária) e Processo CG 139/2007 (inadmissibilidade de condenação em verbas de sucumbência:

custas e verba honorária). 18 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 561. 19 Art. 51, § 2.º, da Lei 9.784/99, que, nas palavras de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, é a “maior

evidência do principio da oficialidade” (op. cit., p. 108). 20 Protocolado CG 52.000/2005.

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disciplinar (Súmula 343 do STJ) e processo de dúvida registrária a partir da sentença de

primeiro grau, ou seja, para apelar.21

3.3.2 Flexibilidade formal

Embora a doutrina clássica o denomine como principio do informalismo22

procedimental, parece mais adequada sua compreensão como flexibilidade formal,

lembrando, com o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, que o “formalismo, ainda que

moderado, não se há de desprezar, mesmo que a pretexto de homenagear o princípio da

eficiência, na atividade administrativa”; afinal, não pode ser olvidada a advertência de

Agustín Gordillo, dando conta de que, via de regra, “o informalismo é a porta de entrada

para a arbitrariedade” (Tratado de derecho administrativo, 2. ed., Buenos Aires:

Macchi, t. 2, p. 2230 e ss.).23

Assim, flexibilidade formal ou formalidade temperada norteia o processo

administrativo, especialmente aquele classificado como comum ou ordinário, sem

previsão normativa especial.

O reflexo prático desse princípio cristaliza não só maior simplificação e

agilidade ao processo administrativo, mas também alerta o zelo que se deve ter para não

se incidir no grave erro de transpor ao processo administrativo os rigores formais do

processo judiciário, e, ainda, na máxima pas de nullité sans griefe, evitando-se nulidade

por razão formal da qual não decorra real prejuízo aquele que a invoca. Ademais, sua

leitura amarrada ao “espírito de benignidade” (em “benefício do administrado”),

sinaliza que “por defeito de forma” não se deve rejeitar “atos de defesa e recursos mal-

qualificados",24

observando-se que, na esfera da Corregedoria Geral da Justiça, são

inúmeros os exemplos de aplicação dessa diretriz, tal como o conhecimento de

21 Egon Bockmann Moreira. Op. cit., p. 351-353. CSM-SP: Apelações Cíveis 035160-0/0-Santos,

018207-0/1-General Salgado e 125-6/2-Catanduva. 22 Confira, a título exemplificativo, a lição de Hely Lopes Meirelles: “O princípio do informalismo

dispensa ritos sacramentais e formas rígidas para o processo administrativo, principalmente para os atos a

cargo do particular. Bastam as formalidades estritamente necessárias à obtenção da certeza jurídica e à

segurança procedimental” (op. cit., p. 561). 23 STJ, REsp 446.020, DJU 08.11.2005. 24 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 561.

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“apelação” (incabível em sede administrativa) como “recurso administrativo” (cabível,

nos termos do art. 246 do Código Judiciário).25

3.3.3 Controle administrativo e autotutela

Por fim, convém menção ao controle administrativo de “legalidade objetiva”26

e ao princípio da autotutela,27

que expressam o rigor de vinculação à lei que envolve

toda Administração Pública, justificando a revisão do ato pela própria autoridade que o

emitiu ou por seu superior – autotutela ou controle hierárquico –, ou, ainda que

hierarquia propriamente dita não haja, pelo exercício de função administrativa de

fiscalização, como ocorre em relação aos serviços públicos delegados (v.g., o caso dos

serviços notariais e de registro, fiscalizados pelo Poder Judiciário), em controle

administrativo fiscalizatório; tudo, para que o império da lei prevaleça.

Esse controle administrativo de legalidade não é alheio ao âmbito processual

administrativo, entenda-se, também incide sobre os atos processuais (de instauração, de

movimentação e de decisão) e, daí, ao ato administrativo conseqüente, a que se reporta

o processo administrativo. Logo, especialmente para o controle do devido processo

legal, contraditório e ampla defesa, não raramente observam-se julgados administrativos

com aplicação desse controle, como, a título ilustrativo, pode-se colher na ApCív 667-

6/5-Ribeirão Pires, j. 19.04.2007, rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, DOE de

29.06.2007: “inobservado o procedimento legal, com afronta ao princípio do

contraditório, deve-se reconhecer a nulidade do processo, a partir do momento em que

deveria ter sido juntada a impugnação do Recorrente, e da sentença prolatada na

seqüência. Como já decidido por este Colendo Conselho Superior da Magistratura, em

acórdão da lavra do eminente Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição, então Corregedor

Geral da Justiça: „Registro de Imóveis – Dúvida – Inobservância do procedimento legal

– Impugnação que somente foi juntada aos autos depois do julgamento, embora

tempestivamente apresentada – Nulidade da decisão – Recurso provido. (...) Suscitada a

dúvida, é imperativa a ciência ao interessado e a oportunidade para que apresente

25 Confira, a título exemplificativo: Processos CG 494/2006, 849/2006, 1.067/2006, 1.040/2006, 25/2007,

117/2007, 276/2007, 278/2007. 26 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 560. 27 Lembre-se que “controle administrativo” é gênero do qual são espécies “a tutela, o controle hierárquico

e a autotutela” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 452).

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eventual impugnação. Silente o interessado a dúvida será prontamente julgada,

independentemente de outras providências. Impugnada a dúvida, no entanto, será

ouvido o Ministério Público, seguindo-se o julgamento. Referido procedimento não foi

obedecido no caso destes autos, pois não obstante tenha a interessada no registro

impugnado a dúvida no prazo legal, sua impugnação não foi prontamente juntada aos

autos, o que somente se deu após a decisão da MM. Juíza Corregedora Permanente. Não

foram apreciados pela r. decisão recorrida, por tais razões, os argumentos constantes da

impugnação, o que impõe o reconhecimento da nulidade da decisão, e o retorno dos

autos para novo julgamento pelo Juiz Corregedor Permanente‟ (ApCív 54.642-0/0 – j.

28.10.1999)”.

Outrossim, o controle administrativo de legalidade e o princípio da autotutela

são consagrados na jurisprudência e cristalizados nas Súmulas 34628

e 47329

do STF,

observando-se, no entanto, que isso não justifica prática abusiva desse poder-dever da

Administração, especialmente quando consolidadas situações jurídicas em favor de

administrados, conforme atestam a doutrina e a jurisprudência:

a) “não cabe à Administração Pública invalidar ato administrativo que tenha

servido para a prática de outro, como é o caso do ato de aprovação de loteamento que

atende, juntamente com os demais documentos, às exigências para o registro”: “uma vez

registrado o loteamento, não é dado à Administração Pública promover sua extinção

mediante anulação ou revogação do ato de aprovação, salvo judicialmente”;30

b) “a Administração tem, em regra, o dever de anular os atos ilegais”, mas

“poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante

da anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal”;31

c) inadmissível o cancelamento administrativo de registro de loteamento

regularizado, diante de situação de fato consolidada e do interesse coletivo de proteção

28 “A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos”. 29 “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais,

porque deles não se originam direitos, (...)”. 30 Diógenes Gasparini. Op. cit., p. 19. Situação diversa, aliás, ocorre quando a aprovação do loteamento é

anulada antes do registro (ainda que após a prenotação), que, por conseqüência, o inibi (Processo CGJ

451/2006). 31 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 219, com referência (p. 220) à doutrina de Seabra Fagundes,

Miguel Reale e Regis Fernandes de Oliveira, destacando exemplo deste último de aprovação ilegal de

loteamento em terras municipais urbanizado e consolidado há longo tempo.

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dos adquirentes,32

ou em atenção à “necessidade de proteção à segurança jurídica e ao

terceiro de boa fé”, ainda que casada a licença que já havia gerado “efeitos concretos e

consolidado situações”;33

d) “não é absoluto o poder do administrador, conforme insinua a Súmula 473”,

pois “deve-se preservar a estabilidade das relações jurídicas firmadas, respeitando-se o

direito adquirido e incorporado ao patrimônio material e moral do particular” (STJ,

EDcl no REsp 658130/SP, rel. Min. Luiz Fux, DJU 09.08.2007, p. 311);

e) “a invalidação, pela Administração Pública, de ato administrativo que tenha

repercussão no âmbito dos interesses individuais, deve ser precedida pelo devido

processo legal, assegurando-se a ampla defesa e o contraditório” (STJ, REsp 446020,

decisão monocrática do Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJU 08.11.2005).

Respeitados, então, esses postulados básicos que norteiam o controle

administrativo de legalidade, cumpre apontar o seu reflexo prático no âmbito do

processo administrativo, que se expressa, de um lado, como regra, na irrecorribilidade

das “decisões administrativas interlocutórias” (incabível recurso de “agravo”), e, de

outro, na possibilidade de “revisão de ofício dos atos ilegais” que compõe o processo

administrativo; tudo, num quadro maior em que, por princípio, não há “preclusão” nem

“coisa julgada” na esfera processual administrativa, ou, ao menos, com a mesma feição

do processo judiciário.

Sem caráter jurisdicional, decisão proferida em processo administrativo “não

adquire qualidade de coisa julgada”34

e, por isso, ainda quando não se conheça de

recurso administrativo interposto por intempestividade, por exemplo, “não se pode

descuidar do poder-dever de revisão ex officio”.35

Pela mesma razão, nada obsta renovar

pedido administrativo anteriormente indeferido para reapreciação.36

Todavia, cumpre destacar que, embora “coisa julgada administrativa” seja

“conceito usualmente refutado, devido à possibilidade de revogação e anulação dos atos

32 Processos CGJ-SP 13/88 e 41/88 (casos em que não foi colhida a anuência da antiga Secretaria dos

Negócios Metropolitanos, em regularização de loteamentos). 33 CSM, ApCív 26.842-0/2 (caso em que a Secretaria do Meio Ambiente “cassou” a licença de sua

antecessora [SNM]). 34 RTJ 50/196, rel. Min. Thompson Flores (caso referente à dúvida registrária). 35 Processo CG 756/2006, com referência a outros feitos (Processos CG 106/92, 03/94), destacando-se

que as “decisões proferidas pelos Juízes Corregedores Permanentes, que, aliás, por serem administrativas,

não estão cobertas pela coisa julgada (v.g,. Processos CG 794/05, 215/06, 600/06 e 804/06)”. 36

Processos CG 794/2005, 600/2006, 898/2006 e 917/2006.

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administrativos (...), não podem ser desprezados os efeitos preclusivos das decisões

administrativas – no sentido de vincular a Administração e conferir segurança e

estabilidade ao processo administrativo”37

–, não faltando atualmente sequer menção à

“coisa julgada administrativa” para situações em que “é defeso à Administração alterar

seu posicionamento”.38

Ademais, agora, diante do art. 54, § 1.º, da Lei 9.784/99, que

prescreve o prazo decadencial de cinco anos para anulação dos atos administrativos,

esse entendimento é reforçado (cf. STJ, EDcl no REsp 658.130/SP, rel. Min. Luiz Fux,

DJU 09.08.2007 p. 311), embora sem atribuição de efeito retroativo: “(...) a Lei

9.784/99, ponderando os princípios da legalidade e da segurança jurídica, submeteu a

prazo decadencial qüinqüenal o exercício da autotutela, no âmbito do Poder Público”,

mas “não há como atribuir-lhe incidência retroativa” (STJ, REsp 793.781, decisão

monocrática do Min. Hamilton Carvalhido, DJU 30.08.2007).

3.4 A chave hermenêutica e o primado do direito

Parece oportuno, por fim, não finalizar este capítulo sem destaque ao primado

do direito, como regra de ouro ou interpretação-chave, que tem colorido normativo

especial em matéria processual administrativa.

O primado do direito é a submissão não só à lei, mas à coisa justa, que se

impõe na singularidade do caso.

A Constituição alemã (art. 20.3)39

expressa a submissão do poder legislativo à

constituição e dos poderes executivo e judicial à lei e ao direito; a Constituição

espanhola de 1978 (art. 103.1)40

prescreve que a Administração deve atuar com plena

sujeição à lei e ao direito. Agora, no Brasil, a Lei 9.784/99 prevê aos processos

administrativos, como primeiro critério de observância necessária, a “atuação conforme

a lei e o direito” (art. 2.º, parágrafo único, I).

37 Egon Bockmann Moreira. Op. cit., p. 338. 38 TRF 4ª Reg., R.REO 16.456-PR, DJ 07.02.2001, p. 108, referido por Egon Bockmann Moreira (op. cit.,

p. 339), entre outros julgados destacados na nota 333 de seu livro. 39 “Die Gesetzgebung ist na die verfassungsmässige Ordnung, die vollziehende Gewalt und die

Rechtsprechung sind an Gesetz und Recht gebunden” (“O Poder Legislativo está submetido à ordem

constitucional; os Poderes Executivo e Judicial, à lei e ao direito”). 40 “La Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los

princípios de eficacia, jeharquía, descentralización y coordinación, con sometimiento pleno a la ley e al

Derecho” (“A Administração Pública serve com objetividade aos interesses gerais e atua de acordo com

os princípios de eficácia, hierarquia, descentralização e coordenação, com submissão plena à lei e ao

direito”).

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Por que não basta atuação conforme a lei? O que se deve entender por

“direito”?

É certo que o Estado de Direito do século XIX não é o mesmo dos séculos XX

e XXI, na medida em que a fisionomia de “estado de Lei” cede a de “estado de

Constituição”, bem como que isso resulta não só em “mudança da supremacia legal pela

constitucional”, mas também na “atitude dos juízes”41

e, porque não dizer, também da

Administração, enquanto conduz e decide o processo administrativo em conformidade

não só com a lei, mas também com o “direito”. É certo, ainda, que essa mudança não

rompe a bitola do formalismo jurídico nem supera o positivismo que corre nas veias do

Estado Moderno e do Estado Pós-moderno, alterando apenas seu aspecto.42

No entanto, não se pode deixar de reconhecer que essa referência à atuação

conforme o “direito”, como algo diverso da “lei”, importa “introdução de elementos

jusnaturalisticos ou, ao menos, suprapositivos”,43

que provoca o interprete a não se

desviar do fim maior do Estado (e, por isso, da Administração e do processo

administrativo), que é o “bem comum que a lei, em sua literalidade, muitas vezes não

atinge, sendo imprescindível que não se olvide do direito”.44

Atenção, pois, ao primado do direito, como chave hermenêutica, que reclama,

também em processo administrativo, consideração àquilo que é devido ao outro por

justiça, no foco maior do bem comum; porém, cuidado, pois justiça e bem comum não

decorrem do arbítrio subjetivo nem de elementos racionais e abstratos, mas sim da

leitura racional da natureza das coisas em sua realidade (concreta, singular e histórica).

E, por isso mesmo, reclama a revitalização do direito natural clássico (da tradição

greco-romano-cristã), para não se perder em emaranhado de conceitos e princípios ocos,

e, assim, compreender que “sem direito natural não há verdadeiro Estado de Direito”,

41 Antonio-Carlos Pereira Menaut. Rule of law o Estado de Derecho. Madri: Marcial Pons, 2003. p. 61-

95. 42 Trocar a lei pela Constituição, pelas Declarações de Direitos Humanos, pela decisão judicial, em rigor,

não supera o positivismo jurídico reinante; apenas desloca seu ponto de atenção. Mas, na essência, a visão

positivista de que o Estado, com a Lei (ou, com a Constituição, com este ou aquele Tratado Internacional,

ou, ainda, com a decisão judicial), tudo pode, perdura. Confira, para maior desenvolvimento da matéria, o

que já escrevi em Urbanismo realista, Campinas: Millenium, 2006, p. 7-16. 43 Antonio-Carlos Pereira Menaut. Op. cit., p. 73. 44 Arnaldo Esteves Lima. O processo administrativo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 10.

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mas apenas “positivismo jurídico”, em que “o Estado de direito perde toda a riqueza do

seu conteúdo”.45

Eis aí a interpretação teleológica maior de todo processo administrativo, sua

primeira chave hermenêutica, sua fundamental orientação teórica, prática e, hoje, legal

(art. 2.º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/99): apreço ao primado do direito, à atuação

não só em conformidade com a lei, mas, sobretudo, com a coisa justa, que se impõe

observar na direção do bem comum e no respeito à realidade de cada caso, nos limites,

obviamente, da função administrativa.46

4. Do processo administrativo no Poder Judiciário

Embora se possa dizer que tenha sido “Aristóteles quem, antes de qualquer

outro, fez a distinção dos vários poderes do Estado – o Legislativo, o Executivo e o

Judiciário”,47

não foi dele, mas de Montesquieu, o erro de separá-los sob a vã esperança

de limitação do poder do Estado pelos poderes do próprio Estado, em fisiologia política

abstrata, individualista e antinatural, por desprezo dos poderes sociais, desconsiderando

que “só pelo revigoramento dos grupos sociais e das autoridades que os representam

será possível limitar efetivamente o poder do Estado, mantendo-o na órbita do bem

comum que o legitima. A questão não está em „separar‟ ou „dividir‟ o poder político –

todo poder precisa de unidade! – mas em reconhecer os poderes sociais, capazes de

tutelar os interesses dos grupos autônomos em face do Estado”.48

O que importa, todavia, destacar é que os poderes da República – Legislativo,

Executivo e Judiciário –, quanto às funções que exercem, não são puros, mas apenas

preponderantes: “a cada um deles correspondendo uma função que lhe é atribuída com

45 José Pedro Galvão de Sousa. Direito natural, direito positivo e Estado de direito. São Paulo: RT, 1977.

p. 125 e ss. 46 E de modo especial em sede notarial e de registros (e respectivas decisões de controle de legalidade do

Juízo Corregedor), quando os limites da função administrativos são ainda mais estreitos, pois

circunscritos a segurança jurídica formal, vale dizer, quando se tem em mira que a sua res justa é a

própria res certa, como enfatiza Ricardo Dip: “(...) o certo e reto do registro se obtêm exclusivamente

com metódica formal. Não é que o registro não tenha por escopo a realização do que é justo, mas é que o

seu justo está conformado pela certeza ou, mais bem dito, pela segurança jurídica (uma objetivação) (...)”

(Inexatidão retificações e cancelamento de registro, RDI 48/61). 47 Giordio Del Vecchio. Lições de filosofia do direito. Trad. Antonio José Brandão. 5. ed. Coimbra:

Armênio Amado, 1979. p. 50. 48 José Pedro Galvão de Sousa. Política e teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1957. p. 115.

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precipuidade”, não com “privacidade”, “uma vez que todos os Poderes têm necessidade

de praticar atos administrativos, ainda que restritos à sua organização e ao seu

funcionamento, e, em caráter excepcional admitido pela Constituição, desempenham

funções e praticam atos que, a rigor, seriam de outro Poder”.49

Em outras palavras, na

lição de Seabra Fagundes, “assim como há atos legislativos, por natureza, que emanam

dos Poderes Executivo e Judiciário, também existem atos materialmente

administrativos, que não são praticados pela Administração Pública e sim pelos órgãos

legislativo e judicante”.50

Daí, então, costuma-se dizer que cada um dos poderes tem sua função típica

(preponderante ou precípua), mas também exercem funções atípicas. Assim é no Poder

Judiciário: embora sua atividade típica seja a prestação jurisdicional, também exerce

funções atípicas legiferantes e administrativas.

Logo, no Poder Judiciário também existem processos administrativos, alheios à

função jurisdicional, e, por conseqüência, ao processo judiciário.

Isso é de fácil constatação quando se está diante de expediente interno de

controle de funcionários (freqüências, faltas, férias, licença-prêmio etc.), de processo

administrativo disciplinar, de licitação ou de concurso público, por exemplo; todavia há

processos administrativos em que a fronteira que o aparta dos feitos jurisdicionais não é

tão perceptível, o que ocorre, não raramente, em relação àqueles da esfera correcional

dos serviços notariais e de registros públicos, como são alguns destinados à retificação,

cancelamento ou bloqueio de registro, à revisão de atos praticados por notários e

registradores em controle de legalidade, por exemplo.

O que parece oportuno enfatizar é que, em relação aos mencionados serviços

públicos extrajudiciais delegados, o Poder Judiciário exercer função de fiscalização (art.

236, § 1.º, da CR), que é de natureza administrativa, pois atividade de fiscalização é

atípica do Poder Judiciário, e não típica, como é a prestação jurisdicional, por meio de

processo judiciário.

A confusão das esferas (jurisdicional e administrativa), em matéria notarial e

de registro, diante de feitos em trâmite no Poder Judiciário, em que os operadores de

direito incidem com freqüência, ademais, é compreensível, pelo menos por três fatores:

49 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 61. 50 Op. cit., p. 29.

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a) primeiro, a especificidade da matéria, praticamente desconhecida, cuja raiz

da ignorância remonta a grade curricular universitária, que prioriza o estudo jurídico na

perspectiva das patologias sociais (lide, ação, processo; crime, ilícito civil, ato

infracional; dano, responsabilidade, indenização, pena...), sem adequada atenção ao

direito preventivo (especialmente ao direito preventivo formal);

b) segundo, ao fato que de há feitos de similares objetos nas duas esferas, como

são, por exemplo, os de retificações e cancelamentos de registros, ora no âmbito

administrativo (v.g., arts. 110, 213 e 214 da Lei de Registros Públicos), ora no âmbito

jurisdicional (v.g., arts. 109, 212, parágrafo único, e 216 da Lei de Registros Públicos);

c) terceiro, pela indevida imprecisão de conceitos, normas legais e orientações,

que não marcam as fronteiras daquelas esferas, ou, ao menos, não as delimitam com

clareza, o que exige, por vezes, aguda interpretação para se atingir a correta solução, tal

como se pode observar na confusão entre processos administrativos (sentido próprio,

pois no âmbito da Administração) e processos de jurisdição voluntária (também

designados “administrativos”, embora no âmbito do Juízo Comum),51

na dificuldade em

saber a que juiz (ou juízo) – o corregedor, na função administrativa, ou o juiz de direito,

na função jurisdicional – o legislador se reporta como competente (v.g., arts. 19, § 1.º,

38, §§ 1.º, 3.º e 4.º, 40, § 1.º, todos da Lei 6.766/79;52

arts. 18 e 26, § 3.º, da Lei

9.492/9753

), ou até na mudança de orientação, como se operou em sede de impugnação

ao registro de loteamento (antes no âmbito jurisdicional; hoje, administrativo).54

51 Digno de destaque é o parecer de lavra do então Juiz Auxiliar da Corregedoria, hoje Desembargador,

Dr. José Roberto Bedran, com excelentes referências as doutrinas de Frederico Marques, Messina,

Cristofolini, Pavanini, para conclusão de que os feitos de jurisdição voluntária, “embora não sejam

materialmente jurisdicionais”, são inconfundíveis com aqueles decorrentes da “função puramente

administrativa”, não havendo, pois, entre eles equiparação de modus faciendi nem de atos decisórios

(Decisões administrativas da CGJ-SP, 1983-1984. São Paulo: RT, n. 68, Processo 131/83, p. 170-178). 52 Em sede de definição do juiz competente e até de rito, para o feito de levantamento dos depósitos em

regularização de parcelamento do solo, confira a divergência de entendimento entre Theotônio Negrão,

Toshio Mukai, Sérgio A. F. Couto e a orientação da Corregedoria Geral da Justiça, em parecer de lavra de

Hélio Lobo Júnior (pela natureza administrativa do processo), que destaquei no artigo O registro

imobiliário e a regularização de parcelamento do solo urbano, RDI 41/70. 53 Embora o legislador não tenha sido explicito, nestas hipóteses da Lei de Protesto, o entendimento atual

tem sido no sentido de que as referências legais são ao Juízo Corregedor, que tem atribuição para rever as

desqualificações do tabelião (art. 18) e os atos ilegais que praticar (o que, então, pode justificar o

cancelamento administrativo), desde que a ilegalidade seja por vício procedimental ou formal, sem

prejuízo da esfera jurisdicional, que é de ampla cognição (para vícios formais e materiais, inclusa a

possibilidade de investigação da relação jurídica subjacente, conforme o caso). 54 Durante longo tempo, a tradição do Tribunal de Justiça foi no sentido de que a impugnação ao registro

de loteamento deveria ser resolvida na esfera jurisdicional, pelo Juízo Comum (1.º grau) e Câmaras

Cíveis do Tribunal de Justiça (2.º grau): RT 600/104, 650/96-97; JTJ 160/151-154; CSM, ApCív 36.490-

0/3; Processo CG 146/83, em Decisões administrativas da CGJ-SP, São Paulo: RT, 1983-1984, p. 135;

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Atenção, pois, a segregação das esferas (jurisdicional e administrativa), que há

dentro do Poder Judiciário, é imperativo prático elementar para boa compreensão dos

processos administrativos, identificando não só o órgão competente (v.g., o juiz

corregedor permanente, não o juiz de direito de determinada Vara, embora, fisicamente

podem ser a mesma pessoa, especialmente nas Comarcas de Vara Única), mas também

suas peculiaridades procedimentais distintas.

Mas, além deste zelo elementar, convêm também examinar neste tópico, ainda

que tangencialmente, a questão da incidência e da aplicação, ou não, das leis gerais de

processo administrativo na seara do Poder Judiciário.

No plano federal, dúvida não há, pois a Lei 9.748/99 expressamente resolveu o

problema, ampliando seu campo de incidência para além dos processos administrativos

da Administração Federal direta e indireta, ao prescrever no § 1.º de seu art. 1.º: “Os

preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário

da União, quando no desempenho de função administrativa”.

Fora, no entanto, do campo de incidência dessa lei federal, os processos

administrativos dos Poderes Judiciários dos Estados.

A lei estadual paulista do processo legislativo, Lei 10.177/98, por sua vez,

limitou seu destino de regramento aos “atos e procedimentos administrativos da

Administração Pública centralizada e descentralizada do Estado de São Paulo, que não

tenham disciplina legal específica” (art. 1.º), considerando “integrante da Administração

descentralizada estadual toda pessoa jurídica controlada ou mantida, direta ou

indiretamente, pelo Poder Público estadual, seja qual for seu regime jurídico” (parágrafo

único do art. 1.º) e, ainda determinando sua aplicação subsidiária “aos atos e

procedimentos administrativos com disciplina legal específica” (art. 2.º).

Parece, pois, evidente que os processos administrativos do Tribunal de Justiça

do Estado de São Paulo também estão fora do campo de incidência dessa lei estadual

bandeirante.

Sem incidência direta das normas insertas nas Leis 9.748/99 e 10.177/98 aos

processos administrativos do TJSP, fica a pergunta: poderá haver, nesse âmbito, sua

Processo CG 175/92, em Decisões administrativas da CGJ-SP, São Paulo: RT, 1992, p. 291-295.

Todavia, alterada a orientação, desde o ano 2000, que prevalece atualmente, qualificando-se o processo

como administrativo e, assim, de competência do Juízo Corregedor, Permanente (1.º grau) e Geral (2.º

grau): CSM, Apelações Cíveis 36.490-0/3-Presidente Epitácio, 46.513-0/8-Jundiaí; CGJ, Processos

1.258/2000, 451/2006, 517/2006, 590/2006, 933/2006 e 139/2007.

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interpretação extensiva ou aplicação analógica? Pela doutrina de Sérgio Ferraz e

Adilson de Abreu Dallari,55

apoiada em alguns julgados que enfrentaram a mesma

questão em relação aos processos administrativos do Tribunal de Contas (TJSP, Órgão

Especial, MS 094.552-0/1-00; STF, MS 23.550-1-DF), a tendência da resposta é

positiva, na medida em que “as leis gerais de processo administrativo, ainda quando não

diretamente aplicáveis, fornecem substanciosos parâmetros para decisão de casos

análogos”.56

Assim, embora a questão ainda esteja aberta e carente de estudo de maior

profundidade para a especificidade dos processos administrativos da Justiça Comum

Estadual, não se pode ignorar que a luz principiológica do processo administrativo, em

boa parte expressa naquelas leis gerais (federal e estadual paulista), não deixa de

iluminar os processos administrativos em geral, inclusos os do Poder Judiciário

estadual, especialmente naquilo em que não houver disciplina normativa específica.

5. Do processo administrativo no âmbito do Juízo Corregedor

Antonio Manuel Hespanha informa que foi com Dom Afonso III (1254 ou

1261) que surgiram os “meirinhos” com funções de inspeção administrativa e de

“correição”; e, então, no Reinado seguinte (D. Afonso IV), em substituição aos

“meirinhos”, surgem os “corregedores”, com vasta competência, “pois abrangia, quer

„feitos de justiça‟, quer o „vereamento da terra‟: inquirir da actividade dos juízes

ordinários (e também dos juízes de fora), dos tabeliães e de outros funcionários locais

(...), receber queixas contra os poderosos, reprimir os “bandos” locais (...), encarregar-se

da colheita de dados estatísticos sobre a região (...)”.57

Comparando essas antigas funções dos corregedores lusitanos, com as atuais

atribuições dos corregedores brasileiros,58

parece que, na essência, não houve muita

alteração: fiscalização dos serviços judiciais e extrajudiciais (notariais e de registro),

55 Op. cit., p.29-35. 56 Sérgio Ferraz; Adilson Abreu Dallari. Op. cit., p. 32. 57 História das instituições. Coimbra: Almedina, 1982. p. 252. 58 Quanto às atribuições do Corregedor Geral da Justiça, no Estado de São Paulo, confira: art. 68 do Dec.-

lei Complementar 3, de 27.08.1969, que institui o Código Judiciário do Estado de São Paulo; art. 29 da

Lei estadual 3.396/82; art. 78 da Resolução 2/76; arts. 199 e 221 a 223 do Regimento Interno, todos do

TJSP. Quanto às atribuições correcionais de fiscalização dos serviços notariais e de registro, confira,

também, os arts. 37 e 38 da Lei 8.935/94.

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que se expressa no âmbito administrativo e, portanto, por meio de processos igualmente

administrativos. Assim, sempre que se estiver diante de um Juízo Corregedor,

Permanente ou Geral, saiba-se que se está em exercício de função atípica do Poder

Judiciário, e, por conseqüência, a disciplina normativa e os princípios específicos de

processo são distintos daqueles que norteiam a função jurisdicional e o processo civil.

Essa, aliás, a razão pela qual juiz corregedor permanente é especificadamente designado

(não investido em jurisdição, como é o juiz de direito), com atribuição de parcela do

poder administrativo correcional; daí, juiz substituto (e juiz auxiliar, também), embora

investido em jurisdição, não pode exercer função correcional (inclusive aplicar pena em

processo administrativo disciplinar), salvo quando estiver assumindo a Vara.59

Aliás, alguns sinais elementares dos feitos, de saída, já revelam essa distinção

de esferas: em processo judiciário, sempre há distribuição (“Distribuidor” e

“distribuição” são próprios dos feitos jurisdicionais) ao juiz de direito (e, assim, a

autoridade costuma se auto-intitular em suas decisões) competente; em processo

administrativo de juiz corregedor (e, deste modo, a autoridade, em regra, se auto-intitula

em suas decisões), não há distribuição alguma, pois a atribuição administrativa é previa

e singularmente fixada mediante designação de órgão, igualmente administrativo.60

Por outro lado, a função correcional demanda serviços, processos e atos

administrativos correcionais, conforme a especificidade de cada uma de suas

atribuições.

Assim, os processos administrativos no âmbito do Juízo Corregedor são

inúmeros e, embora não seja possível aqui esgotar todo esse universo, oportuno, em

perspectiva prática, a apresentação de alguns, sob a classificação tripartida dos atributos

da função correcional (direção, superintendência e disciplina), que é de bom proveito

para a compreensão do quadro geral.

Embora aquela classificação tricotômica dos atributos da função correcional

deite raiz na estruturação hierárquica da Administração, especialmente nas doutrinas de

Diogo Freitas do Amaral e Ruy Cirne Lime, bem sintetizadas por Ricardo Dip,61

e,

59 Processo CG 238/89. 60 Daí, por exemplo, a razão pela qual Juiz Substituto não pode exercer função correcional, tal como

aplicar pena em processo administrativo disciplinar, salvo quando estiver assumindo a Vara (Processo CG

238/89). Idem, para o Juiz Auxiliar. 61 Acompanhe-se, com apoio na doutrina de Diogo Freitas do Amaral (Conceito e natureza do recurso

hierárquico, ed. 1981, v. 1) e de Ruy Cirne Lima (Princípios de direito administrativo, ed. 1987) a síntese

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ainda que hoje não mais se compreenda a fiscalização dos serviços notariais e de

registros delegados no contexto hierárquico (em sentido próprio), parece-nos, com

respeito ao entendimento diverso, de boa utilidade aquela categorização e ainda atual a

lição pretérita: “que fiscalização constitucional, em suma, poderia efetivar o Poder

Judiciário, se não lhe fora possível – nos limites da lei – por primeiro regulamentar,

instruir, ordenar o serviço registrário; depois, modificar ou revogar os atos contrapostos

da lei ou dos regulamentos; por fim, punir os subalternos?”62

Limite-se, então, a análise desses atributos no âmbito da fiscalização dos

serviços delegados notariais e de registro, destacando-se, em cada um, alguns processos

administrativos.

Diante da função correcional em seu atributo de (a) direção, com feição de

orientação-normativa de caráter preventivo, destacam-se provimentos, decisões de

caráter normativo em consultas (processos administrativos especiais, de rito previsto no

art. 29 da Lei estadual 11.331/2002) e, ainda, em processos administrativos comuns63

(consultas, em geral, comumente não conhecidas, podem, por exceção, em vista de sua

relevância ao interesse público e, conforme juízo de conveniência e oportunidade, ser

conhecidas), recomendações em atas de correição, entre outros meios.

Na categoria correspondente à função correcional de (b) superintendência, cujo

fim é zelar pelo binômio continuidade-regularidade do serviço delegado, destacam-se os

serviços de correições e visitas às unidades de serviço, os processos administrativos de

saneamento de irregularidades constatadas e os de verificação de irregularidades

alegadas, os serviços de gestão institucional (que abrange desde a designação de

responsáveis para unidades vaga até a organização, impulso e apoio aos concursos

públicos de provas e títulos destinados às outorgas das delegações, que se desdobram

que Ricardo Dip fez ao indicar os atributos do dever de fiscalização dos serviços: “de direção („faculdade

de dar ordens e instruções ao subalterno‟ – Diogo Freitas do Amaral, op. cit., p. 50; competência de

„orientar e dirigir a atividade de seus subalternos, por intermédio de atos regulamentários‟ – RUY CIRNE

LIMA, op. cit., p. 157); de superintendência („faculdade de revogar e, eventualmente, modificar os actos

do subalterno‟ – Freitas do Amaral, idem; incumbência de „suspender ou revogar os atos administrativos,

praticados pelo subalterno, quando contrários ao direito, inconvenientes ou inoportunos‟ – Cirne Lima,

idem); e de disciplina („faculdade de punir e, eventualmente, expulsar o subalterno‟ – Freitas do Amaral,

idem; „O superior hierárquico exercita, sobre os funcionários subalternos, ação disciplinar‟ – Cirne Lima,

op. cit., p. 158)” – (sentença proferida em 24.04.1989, nos autos do Processo CP 233/89 – 1ª Vara de

Registros Públicos da Capital). 62 Ricardo Dip, sentença proferida em 24.04.1989, nos autos do Processo CP 233/89 (1ª Vara de Registros

Públicos da Capital). 63 CSM, Apelações Cíveis 35.926-0/7 e 50.203-0/8.

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em vários processos e atos administrativos específicos), e, ainda, o controle de

legalidade por via de processos administrativos diversos.

Por fim, quanto ao caráter (c) disciplinar, de escopo censório, há processos

administrativos qualificados como reclamações (art. 30 da Lei estadual 11.331/2002),

representações (art. 37 da Lei 8.935/94), averiguações de ofício, sindicâncias e

processos administrativos disciplinares, por exemplo.

6. Do processo administrativo especial referente ao registro de imóveis

Inúmeras são as classificações de processo administrativo,64

mas no ângulo da

praticidade, a razão é de Sergio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari, ao sublinhar que “a

única linha classificatória que nos parece relevante e rentável é a que rotula os processos

administrativos em „gerais‟ e „especiais‟”, pois essa distinção reflete a “diferença da

dinâmica de cada um dos concretos processos administrativos”, configurando estes ou

aqueles, conforme haja, ou não, “dicção legal” particular.65

É, pois, de utilidade prática distinguir os processos administrativos em

especiais e ordinários (ou comuns ou gerais), conforme haja, ou não, ao seu

procedimento, disciplina normativa própria. Há, pois, no Poder Judiciário, e também no

Juízo Corregedor (Permanente e Geral), processos administrativos especiais, com rito

normativo definido; outros, porém, sem definição formal de sua dinâmica, são

ordinários ou comuns, seguindo apenas as diretrizes gerais de processo administrativo.

São especiais os processos administrativos que tramitam no Poder Judiciário

sob disciplina jurídica própria, tal como a licitação para aquisição de bens ou serviços,

64 “A angústia classificatória – terrível doença muito própria dos juristas – impôs, então, uma variada

gama de critérios tipológicos, quase todos centrados no elemento diacrítico do conteúdo e do objeto.

Falava-se, assim – por exemplo, Nelson Nery Costa –, em „processo de expediente‟, „de outorga‟, „de

restrições‟, „de controle‟, „de gestão‟, „de punição‟ etc. Ou em „processos ampliativos‟ (com inúmeras

subdivisões) e „restritivos‟ (também comportando subtipos), na dicção de Celso Antonio Bandeira de

Mello” (Sérgio Ferraz; Adilson Abreu Dallari. Op. cit., p. 42). Distinguem-se, ainda, outras modalidades

de processo administrativo: o técnico e o jurídico (Guimarães Menegale, RDA 2, fasc. 2:473 – cf. Maria

Sylvia Zanella Di Pietro, op. cit., p. 580); o de conflito de interesses (ou em que há controvérsias, como

os de gestão, de outorga, de verificação ou determinação, e de revisão) e o punitivo (ou sancionadores,

alguns internos, outros externos) – (Odete Medauar. A processualidade no direito administrativo. São

Paulo: RT, 1993. p. 132). 65 Op. cit., p. 43.

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nas várias modalidades licitatórias previstas em lei (Lei 8.666/93 e, sobre a modalidade

do pregão, a Lei 10.520/2002), cercadas em regras procedimentais próprias.

São ordinários ou comuns os processos administrativos sem disciplina jurídica

particular. Alguns deles são até chamados de meros expedientes, que bem indica a

ausência de forma legal prefixada. Assim, por exemplo, para a contagem de tempo de

servidor público, de notário, registrador e seus prepostos não optantes pelo regime

celetista e, portanto, ainda sob o regime híbrido (“estatutário”, embora remunerado pelo

particular delegatário), há processos administrativos no Tribunal de Justiça, para os

quais não incide regra legal específica alguma, que prescreva como devem tramitar.

Em sede de registros prediais, o mesmo ocorre. Assim, por exemplo, o

processo de dúvida registrária tem peculiaridades que o distingue de outros processos,

em vista de sua disciplina especial, até especialíssima. Isso porque, até determinado

ponto, vai tramitando com as regras da Lei de Registros Públicos, art. 198, e depois, na

fase de recurso, se apropria de uma forma de ser do Código de Processo Civil. Esse

processo é administrativo por sua natureza, mas tem regras próprias na disciplina de

seus passos, no trâmite do processo, ou nas fases que devem acompanhá-lo. Logo, é

especial. No entanto, também na seara registral imobiliária, existem processos que não

têm disciplina normativa específica e, por isso, são ordinários, comuns ou gerais.

Alguns processos administrativos especiais têm uma disciplina jurídica própria

somente na esfera do registro de imóveis; outros também apresentam regramento

específico no âmbito do Juízo Corregedor.

Destacam-se, pois, no universo dos serviços correcionais de registro de imóveis

(ou, de algum modo, vinculado às atribuições do Juízo Corregedor), os seguintes

exemplos de processos administrativos especiais:

a) dúvida registrária (art. 198 da Lei de Registros Públicos);

b) retificações de registro (art. 213 da Lei de Registros Públicos);66

c) dúvida (“imprópria”67

) de emolumentos (art. 29 da Lei estadual

11.331/2002);

66 Consigne-se, quanto à retificação de registro, que, quando, provenientes do serviço de registro,

eventualmente atingem a esfera judicial, em razão de impugnação (§ 6.º do art. 213 da LRP), também

terão trato administrativo (não jurisdicional). 67

Além da “dúvida” sobre a interpretação da lei e da tabela de emolumentos, julgado pelo Juiz

Corregedor Permanente, com possibilidade de recurso ao Corregedor Geral da Justiça (art. 29 da Lei

11.331/2002), também é denominada “duvida imprópria” aquela da Lei de Protesto (art. 18 da Lei

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d) reclamação sobre a cobrança de emolumentos (art. 30 da Lei Estadual

11.331/2002);68

e) sindicância e processo administrativo disciplinar (arts. 268/307 do Estatuto

dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo: Lei estadual 10.261/68 c.c. a LC

estadual 942/03);

f) impugnação de registro de loteamento (art. 19 da Lei 6.766/79);69

g) regularização de parcelamento do solo (arts. 38 e 40 da Lei 6.766/79 e itens

193/198 e 152/155 do Capítulo XX do Prov CG 58/89) e de condomínio (item 216/217

do Capítulo XX do Prov CG 58/89).

Consigne-se, por oportuno, que não há fungibilidade de ritos em processos

administrativos e, assim, não se conhece, em dúvida registrária, de questão referente à

cobrança de emolumentos,70

à impugnação de registro de loteamento71

e à regularização

de parcelamento do solo,72

por exemplo.

Importante ressaltar, por fim, em orientação prática, que é a especificidade de

alguns desses processos administrativos que define a atribuição recursal, ora da

Corregedoria Geral da Justiça, ora do Conselho Superior da Magistratura, ora até da

Câmara Especial do Tribunal de Justiça. Assim, por exemplo, a apelação na dúvida

registrária deve ser julgada por órgão colegiado do Tribunal de Justiça (afinal, nada

obstante a natureza administrativa do processo, o recurso é de apelação, no rito do

CPC), e, daí, a competência recursal é do Conselho Superior da Magistratura; outros

processos, ainda que especiais, cujas decisões dos juízes corregedores permanentes são

suscetíveis apenas de recurso administrativo (não de apelação) são de competência

recursal da Corregedoria Geral da Justiça; outros, ainda, como são os processos

administrativos disciplinares de decisão originária do Corregedor Geral da Justiça,

apontam a competência recursal para a Câmara Especial do Tribunal de Justiça. A dica

9.492/97 – v. nota 53, retro), mas esta é de processo comum, ao passo que aquela (a de emolumentos) é

especial em virtude da existência de regras legais procedimentais, com definição de seu sumário rito,

recurso específico e prazos próprios. 68 A reclamação quanto à cobrança a maior, ao Juiz Corregedor Permanente, com possibilidade de recurso

ao Corregedor Geral da Justiça, tem disciplina especifica na lei estadual de emolumentos (art. 30), bem

como previsão de restituição no décuplo da quantia irregularmente cobrada, em até cinco dias úteis da

data da decisão (art. 32, §§ 3.º e 4.º). 69 V. nota 54, retro. 70 CSM, ApCív 98.928-0/7. 71 CSM, ApCív 46.513-0/8. 72 CSM, ApCív 48.788-0/6.

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para saber de quem é a competência recursal dos diversos processos administrativos é o

exame do Regimento Interno do Tribunal de Justiça.

7. Do processo administrativo ordinário de registro predial quanto ao

objeto

Talvez seja o caráter residual de seu objeto um dos principais traços do

processo administrativo ordinário. O processo administrativo especial tem sua dinâmica

formalizada em lei, justamente em razão de seu objeto específico; o ordinário ou

comum, todavia, caracteriza-se não só por sua maior fluidez formal – carente de

condução normativa particular e, por isso, pautado apenas nas diretrizes gerais do

processo administrativo –, mas também por sua abertura de objeto, na medida em que –

respeitados os limites de atribuição e de finalidade do órgão administrativo ou ente

delegado –, tem fins variados, não pré-fixados e indefinidos, desde que no contexto

maior do interesse público que a função administrativa tem o poder-dever de realizar.

Em outras palavras, todo objeto que não for próprio de processo administrativo especial

pode, residualmente, ser objeto de processo administrativo ordinário, que é aberto a

qualquer fim necessário à função administrativa, no quadro demarcado de atribuições,

finalidade administrativa e interesse público de determinado órgão administrativo ou

ente delegado.

Essa pluralidade torna a apresentação dos processos administrativos ordinários,

pelo objeto, senão vã, ao menos muito difícil. Assim, seguindo tão-somente o critério de

ocorrência com maior freqüência no cotidiano dos Juízos Corregedores, Permanentes e

Geral, sem pretensão alguma de esgotar o rol atípico desses feitos comuns (referentes ao

registro predial), destacam-se os seguintes procedimentos administrativos ordinários:

a) de requalificação de título desqualificado pelo registrador, alheio ao

universo da dúvida de registro, referente, pois, a dissenso sobre a prática de ato de

averbação;

b) de reexame de requerimentos diversos indeferidos pelo registrador, por

provocação de interessados, tal como para abertura de matrículas, expedição de

certidões, informações etc.;

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c) de cancelamentos administrativos de registro e de restauração de registros

cancelados;

d) de bloqueio de matrículas e de levantamento de bloqueios;

e) de dispensa de registro especial de parcelamento do solo urbano;

f) de consulta geral – conhecível por conveniência e oportunidade, conforme o

interesse público –, ou de instauração de ofício, geralmente tendentes a alterações,

reformas e inovações de normas de serviço ou decisões normativas.

7.1 Processo de requalificação por dissenso sobre ato de averbação

Dissenso entre o registrador e o interessado sobre a prática de ato averbatório

(arts. 167, II, e 246, ambos da Lei de Registros Públicos) tramita em processo

administrativo comum, não em processo administrativo especial de dúvida registrária

(próprio, no Estado de São Paulo, apenas para situação de registro em sentido estrito:

art. 167, I, da Lei de Registros Públicos).

São, pois, entre outros de fim averbatório, alguns exemplos desses processos

administrativos ordinários freqüentes no Juízo Corregedor, os de averbação de:

a) construção;73

b) desdobro,74

ainda que as novas unidades imobiliárias tenham áreas inferiores

a 125 m²;75

c) desmembramento de pequeno porte de imóvel urbano;76

d) desmembramento de imóvel rural;77

e) fusão e encerramento de matrículas;78

f) abertura de rua;79

g) alteração de convenção condominial;80

h) óbito de cônjuge;81

73 CSM, Apelações Cíveis 30.656-0/8 e 72.130-0/5; Processo CG 620/2006. 74 CSM, ApCív 72.357-0/0; Processos CG 29/2006, 453/2006. 75 Processos CG 276/2007, 599/2006, 39.612/81, 1.528/97 e 1595/01; CSM, Apelações Cíveis 2.199-0 e

3.607-0. 76 CSM, Apelações Cíveis 44.645-0/5, 50.233-0/4 e 65.036-0/0. Cf., ainda, adiante, as notas de

referências aos Processos da CGJ, no item 7.4. 77 Processo CG 884/2005 e 259/2006. 78 CSM, Apelações Cíveis 33.807-0/0 e 42.930-0/1. 79 CSM, ApCív 36.260-0/4; Processo CG 171/92, 177/96,1.539/96 e 1.716/96. 80 Processo CG 56/95.

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i) incorporação da sociedade que figura como titular do domínio tabular;82

j) protesto contra alienação de bens,83

antes inadmissíveis, hoje, admissíveis no

Estado de São Paulo;84

k) localização do imóvel em território de dois Municípios;85

l) caução,86

especialmente a caução atípica no âmbito de locação predial urbana

(Lei 8.245/91, art. 38, § 1.º),87

que são mais comuns, sem esquecer, todavia, da caução

dos direitos de crédito decorrentes da alienação fiduciária dada pelo credor fiduciário;88

m) cisão de sociedade anônima89

e de sociedade por cotas;90

n) mera notícia de titularidade exclusiva de domínio (próprio de um dos

cônjuges) por incomunicabilidade de bens,91

inclusive diante da possível dúvida

decorrente de aplicação de lei estrangeira;92

o) casamento e respectivo regime de bens93

e de separação do casal;94

p) desafetação de logradouros classificados como bens de uso comum do povo

para a classe de bens dominiais;95

q) indivisibilidade de imóvel decorrente de TAC (Termo de Ajustamento de

Conduta);96

r) ineficácia por fraude à execução, para inscrição de penhora;97

s) cessões de crédito com garantia hipotecária;98

t) renúncia em geral, tal como de usufruto;99

81 CSM, ApCív 36.146-0/4. 82 CSM, ApCív 28.418-0/2; Processo CG 3.436/95. 83 CSM, ApCív 25.277-0/6; Processos CG 850/2006 e 846/2006. 84 Processo CG 485/2007. 85 CSM, ApCív 67.554-0/8. 86 CSM, ApCív 66.561-0/2. 87 Processo CG 1.065/2005, 960/2006 e 129/2007, Protoc CG 34.906/2005. 88 Processo CG 1.035/2006. 89 CSM, Apelações Cíveis 65.666-0/4 e 65.893-0/0. 90 Processo CG 1.779/95. 91 Processo CG 1.640/96. 92 Processo CG 755/2005. 93 Processo CG 933/2005. 94 Processo CG 431/96. 95 Processos CG 1.066/2005, 274/93. 96 Processo CG 215/2006. 97 Processo CG 40.690/2006. 98 Processo CG 390/2004. 99 Processo CG 156/92.

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u) cancelamento em geral, tal como de pacto comissório,100

de hipoteca,101

de

usufruto,102

de cláusula fideicomissária,103

de medida cautelar de arrolamento de

bens;104

v) retificações em geral, tal como as decorrentes de mandado judicial,105

aquelas para correção de averbação errônea de restrição convencional.106

7.2 Processo de reexame de requerimento indeferido pelo registrador:

abertura de matrícula, certidão, informação etc.

Quanto à abertura de matrícula, embora seja ato de inscrição (ou de registro em

sentido amplo), não é ato de registro em sentido estrito (art. 167, I, da Lei de Registros

Públicos) e, assim, também está fora do processo especial de dúvida, classificando-se na

seara do processo administrativo ordinário.107

Certidões e informações estão no contexto maior da publicidade registrária e,

não raramente, a matéria também é objeto de apreciação em procedimentos

administrativos ordinários,

a) enfatizando a distinção entre publicidade direta e indireta – e assentando que

aquela, antes prevista no Dec. 4.857/39 (art. 19), não é acolhida pela Lei 6.015/73 (art.

16), que, em regra, segue o sistema da publicidade indireta (via certidões e informações)

–, para explicitar que não se deve exibir aos particulares os próprios livros, fichas ou

documentos arquivados,108

ressalvada a exceção do processo de registro de loteamento,

desmembramento e incorporação imobiliária;

b) ressaltado que os interessados têm direito à certidão, não à sua forma, que

deve resguardar os pressupostos de clareza da redação escrita e da segurança jurídica, o

que afasta a possibilidade de expedição de certidão de transcrição em forma

reprográfica do respectivo livro;109

100 Processo CG 30/2006. 101 Processo CG 193/2006, 15/2007 e 94/2007. 102 Processo CG 3.512/95. 103 Processo CG 1.505/94. 104 Processo CG 1920/95. 105 Processo CG 1.108/2005. 106 Processo CG 189/2006. 107 CSM, ApCív 72.618-0/2; Processo CG 1.044/2006. 108 Protoc CG 42.249/2005. 109 Processo CG 23/92.

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c) confirmando a lição tradicional que a certidão deve espelhar a realidade do

registro imobiliário, para afastar pretensões testificatórias que buscam distorcer a

verdade tabular;110

d) observando que não se pode impor ao registrado o dever de comunicar ao

proprietário quando do eventual ingresso de título tendente à alienação de seu imóvel,

por receio de eventual e futura falsificação, facultando-se, todavia, ao interessado

solicitar esporadicamente informações ou certidões, com o escopo de monitorar a

situação registral dos seus imóveis.111

7.3 Processos de cancelamento, restauração, bloqueio e levantamento de

bloqueio

Embora haja, em lei, a previsão para o cancelamento administrativo de registro

e norma indicativa da necessidade de respeito ao contraditório (art. 214, § 1.º, da LRP),

não há previsão normativa especial do procedimento,112

o que justifica sua classificação

no rol dos processos ordinários, observando-se que o Conselho Superior da Magistratura

não conhece da matéria, quer de cancelamento,113

quer de restauração de registro

cancelado.114

Idem, quanto ao bloqueio de matrículas e ao levantamento de bloqueios.115

Vale a pena sublinhar nestas questões que há três lições maiores – de primeira

magnitude – que não podem passar despercebidas dos operadores do direito:116

a) primeira: apenas vício extrínseco (formal ou do próprio registro),

identificável na face das tábuas registrais, pode justificar cancelamento pela via

administrativa (art. 214 da LRP), e, consequentemente, se não houver esse tipo de vício,

não se dispensa a via jurisdicional mediante ação adequada (art. 216 da LRP), ainda que

haja relevantes razões para supor a deficiência do título causal;

110 Processos CG 263/93, 1.339/94 e 36/2006. 111

Processo CG 191/2006. 112 É verdade que a Lei 10.931, de 2004, incluiu o § 2.º no art. 214 da LRP, indicando, para decisão que

decretar a nulidade, os recursos de apelação ou agravo conforme o caso; todavia, no Estado de São Paulo,

o entendimento que ainda perdura é no sentido de que se está na esfera do processo administrativo

comum, com atribuição recursal de 2.º grau ao Corregedor Geral da Justiça. 113 V.g., Apelações Cíveis 33.365-0/1 e 34.785-0/5. 114 V.g., ApCív 68.438-0/6. 115 CSM, ApCív 32.851-0/2. 116 Processo CG 582/2006.

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b) segunda: sem esse vício de registro (extrínseco), bloqueio de matrículas (§§

3.º e 4.º do art. 214 da LRP), pela via administrativa, também não pode haver, ainda que

haja relevantes razões para supor a deficiência do título causal;

c) terceiro: cancelamento e bloqueio de transcrição/matrícula são inadmissíveis

em prejuízo de terceiro de boa-fé, acobertado pelo lapso temporal da prescrição

aquisitiva (art. 214, § 5.º, da LRP).

É, pois, em razão daquela primeira lição (a), que se afirma, reiteradamente, que

vício intrínseco, referente ao título que deu causa ao registro, não pode ser reconhecido

na via administrativa, pois não prescinde do ajuizamento de ação própria,117

tal como

em hipótese que demanda a análise da alegada falsificação da procuração na via

jurisdicional,118

ou em notícia de partícipe de escrituras de venda e compra, falecido

antes dos atos notariais,119

ou de alegação de morte de adjudicatário ao tempo da

adjudicação e do registro da carta,120

ou em razão de duplicidade de venda do mesmo

imóvel,121

ou por suposta alienação em fraude à execução,122

entre outras situações.

A mencionada segunda lição (b) também pode ser expressa de outro modo: se

não há motivo para cancelar administrativamente, também não pode haver bloqueio

administrativo. Ela resulta não só da localização topográfica da norma que prevê o

bloqueio (§§ 3.º e 4.º) em relação àquela que prevê o cancelamento (caput), no mesmo

artigo de lei (art. 214 da LRP), e da máxima – “quem pode o mais, pode o menos” –,

mas também da compreensão histórica e finalística do bloqueio, que recomenda a

solução menos drástica a mais drástica, para remediar ou prevenir o mal ocorrido ou em

potencial, em situação que se deva aguardar o remédio adequado que sane o vício.123

117 Processos CG 292/91, 270/92, 38/92, 185/93, 519/94, 10.819/96, 455/2006. 118 Processo CG 767/2006. 119 Processo CG 1.032/2006. 120 Processo CG 689/2006. 121 Processo CG 86/92. 122 Processo CG 516/2006. 123

“De fato, basta verificar a circunstância de que a inovação legal do bloqueio (Lei 10.931, de

02.08.2004) consta em parágrafo (§ 3.º) do mencionado art. 214 da Lei de Registros Públicos, para

concluir que só é possível o bloqueio administrativo em igual situação de vício registrário extrínseco:

afinal é principio elementar de hermenêutica a necessidade de extrair a inteligência de norma inserta em

parágrafo em função daquela constante no caput respectivo. Mas não é só. Inteligência histórica do

bloqueio, decorrente do estudo dos precedentes administrativos que o admitiam mesmo antes daquela

previsão legal, não conduzem a conclusão diversa, bastando verificar as hipóteses que os justificavam, ou

seja, situações de vícios formais, do próprio registro, que, por prudência, indicavam a medida menos

drástica (bloqueio) à mais drástica (cancelamento), desde que necessária e suficiente para remediar ou

prevenir o mal ocorrido ou em potencial (cf. Protocolado CG 7.400/92, Processos CG 54/92, 1.319/96,

entre outros). Sólidos, pois, os precedentes da Corregedoria Geral da Justiça, no sentido de que o bloqueio

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A terceira lição (c), que tem em mira preservar situações jurídicas consolidadas

pelo tempo, em favor de adquirente de boa fé, embora expressa em lei apenas a partir de

02.08.2004 (Lei 10.931/2004), não era novidade no âmbito da Corregedoria Geral da

Justiça bandeirante,124

destacando-se hoje vários outros julgados, agora com suporte

legal (art. 214, § 5.º, da Lei de Registros Públicos), no mesmo sentido.125

Além dessas três lições de primeira grandeza, outras, menores, mas não

desprezíveis para boa orientação prática, convém ter em conta:

a) ordem judicial inclusa no fólio real (ou no sistema registral) não se cancela

senão por novo comando judicial mandamental;126

b) cancelamento na via administrativa é limitada à cognição restrita (formal), e,

assim, é imprescindível a via jurisdicional para ampla cognição (formal e material),

inclusa a de interpretação de vontade negocial;127

c) admissível o cancelamento administrativo em situações de registros com

violação às normas e aos princípios registrários, como ao de continuidade,128

ao de

especialidade objetiva,129

ou à fusão de matrículas viciada por ausência de contigüidade

tabular;130

d) bloqueio de matrícula é medida excepcional, e, assim, inviável sua

permanência, após cessada a causa que lhe originou,131

lembrando-se ser medida de boa

utilidade para casos de duplicidade, total ou parcial, de matrículas em correntes

administrativo de atos de registro e averbação não se pode impor quando não houver vício de natureza

registrária, ou seja, quando a situação estiver fora do amparo no art. 214 da Lei 6.015/73 (Processo CG

1.319/96, Decisões Administrativas da Corregedoria Geral da Justiça -1996, ementa 63). Entenda-se: “nos

termos do disposto nos §§ 3.º e 4.º do referido art. 214 da Lei 6.015/73, a providência do bloqueio

destina-se, a rigor, a impedir danos de difícil reparação, na hipótese de nulidade de pleno direito do

registro, danos esses que poderiam ser causados na superveniência de novos registros”, e, daí é inviável o

bloqueio administrativo, se “inexiste vício registral passível de ser reconhecido nesta esfera

administrativa” (Processo CG 825/05). Essa, por fim, a orientação de Vossa Excelência, como ficou

expresso em vossa decisão de 09.01.2006, no Processo CG 829/2005: “(...) sem vício de registro,

bloqueio de matrículas (§§ 3.º e 4.º do art. 214 da LRP), pela via administrativa, não pode haver”

(Processo CG 249/2006). 124 Processos CG 32.391/2000, 1.268/2002 e 812/2003. 125 Processos CG 885/2005, 1.144/2005, 1.150/2005, 577/2006, 582/2006, 1.040/2006 e 1.636/2006. 126 Processo CG 810/2005 (caso de averbação de arrecadação). 127 Processos CG 851/2006, 1.109/2005, 1.583/95, 605/94 e 120/84 (casos de cláusulas restritivas –

impenhorabilidade e inalienabilidade – instituídas em testamento, que exigem interpretação da vontade do

testador). 128 Processo CG 898/2005. 129 Processo CG 812/2005. 130 Protoc. CG 726/2005. 131 Processo CG 29.831/1999.

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filiatórias distintas, até solução jurisdicional,132

bem como para se evitar que erros

registrários continuem ocorrendo, até que o vício de raiz seja sanado.133

7.4 Processo de dispensa de registro especial de parcelamento do solo

Dispensa de registro especial de parcelamento do solo urbano (art. 18 da Lei

6.766/79), que também é de procedimento administrativo comum,134

resulta de

inúmeras decisões da Corregedoria Geral da Justiça, por interpretação teleológica da Lei

6.766/79 (especialmente da finalidade do registro especial de loteamentos e

desmembramentos), que até justificaram previsão nas normas de serviço (item 150.4 do

Capítulo XX do Prov. CG 58/89).135

Esses feitos são, até hoje, freqüentes no cotidiano do Juízo Corregedor, como é

possível conferir em recentes julgados, que enfatizam, para dispensar o registro

especial, a necessidade de verificação de duas situações negativas e uma positiva:

a) ausência de razão urbanística (inovação viária inexistente);

b) ausência de razão protetivo-social (massa de adquirentes potencialmente

descoberta de tutela jurídica inexistente);

c) presença de elementos objetivos circunstanciais, de análise conjuntural, que

caracterizem o parcelamento fora da feição de empreendimento imobiliário e de

configuração de fraude à lei (v.g., parcelamento sucessivo).

Conseqüência do primeiro pressuposto (a) é a assertiva de que apenas

desmembramentos, não loteamentos, podem ser dispensados do registro especial; do

segundo (b), que o número não elevado de lotes resultante do parcelamento (v.g., dez136

)

é critério bom (não único) para extrair alguma conclusão favorável à dispensa; do

terceiro (c), enfim, diversas afirmações em que se observa a importância de análise

conjunta de diversos fatores circunstâncias para se atingir a justa solução, tal como

132 Processo CG 890/2006. 133 Processos CG 600/2006 e 245/2006. 134 CSM, ApCív 28.945-0/7. 135 Previsão de cabimento, que não equivale à previsão de procedimento, não retira o caráter ordinário do

processo. Confira a norma de serviço: “Nos desmembramentos, o oficial, sempre com o propósito de

obstar expedientes ou artifícios que visem a afastar a aplicação da Lei 6.766, de 19.12.1979, cuidará de

examinar, com seu prudente critério e baseado em elementos de ordem objetiva, especialmente na

quantidade de lotes parcelados, se se trata ou não de hipótese de incidência do registro especial. Na

dúvida, submeterá o caso à apreciação do Juiz Corregedor Permanente”. 136 Provimento 3/88 da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo.

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aquela (c.1) que pela sucessão de desmembramentos constante nas tábuas de registro,

extrai situação de empreendimento em fraude à lei;137

(c.2) que associa a realidade do

parcelamento à de construções de casas para alienação via SFH, minimizando os riscos

aos adquirentes (situações que justificam dispensa para maior número de unidades

resultantes de desmembramento138

); (c.3) que reclama, para sustentar, ou não, fraude à

lei por parcelamento sucessivo, atenção não só à cadeia de assentos, mas também à

cadeia de domínio e ao lapso temporal entre as inscrições prediais, afastando a

qualificação de fraude quando o conjunto de informações tabulares não revelar situação

de empreendimento imobiliário (v.g., falta de elo entre o atual proprietário que pretende

o desmembramento, em relação àquele que, há longo tempo, promoveu

desmembramento anterior).139

7.5 Processo de consulta em geral e feitos diversos de caráter normativo

Por fim, na esfera das consultas em geral e de feitos relacionados a alterações,

reformas e inovações de normas de serviço ou decisões normativas, também não faltam

exemplos, bastando ressaltar, a título ilustrativo, processos administrativos que

examinaram a admissibilidade de averbação de áreas contaminadas140

e de temas a ela

correlatos,141

a inadmissibilidade de cancelamento de ofício de constrições judiciais

averbadas sem determinação do juiz do processo,142

a admissibilidade de averbação de

137 Processos CG 1.074/2005, 243/2006, 564/2006 e 917/2006. 138 Processos CG 182/85, 141/85, 267/85, 25/90 e 195/88. 139 Processos CG 65/2006, 68/2006, 229/2006, 394/2006, 496/2006 e 588/2006. 140 Admissível a publicidade registral de áreas contaminadas por substâncias tóxicas e perigosas, por

averbação enunciativa de “declaração” ou “termo” emitido pela Cetesb, conforme consulta conhecida,

com resposta positiva (Processo CG 167/2005). 141

Consulta complementar a mesma matéria, também conhecida, para “determinação aos oficiais de

registro de imóveis para que acessem o site do órgão ambiental, localizem os endereços das áreas

contaminadas e providenciem o encaminhamento de certidões das matrículas dos imóveis

correspondentes”, e esclarecer que as averbação de áreas contaminadas pela Cetesb são isentas, diante da

incidência da norma do art. 8.º, parágrafo único, da Lei 11.331/2002 (Protoc CG 167/2005). 142

Consulta conhecida, no sentido de definir que o cancelamento automático ou por decisão

administrativa da Corregedoria Permanente ou da Corregedoria Geral da Justiça de penhoras, arrestos e

seqüestros anteriores, a partir do registro da arrematação ou adjudicação do bem constrito realizada em

ação de execução, não é admissível, necessitando de ordem judicial expressa oriunda do juízo que

determinou a constrição (Protoc. CG 11.394/2006).

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protesto contra alienação de bens,143

de averbação de tombamento provisório144

e de

penhora on line,145

entre outros feitos.

8. Peculiaridades de processo administrativo ordinário de registro predial

quanto à forma

Não há dúvida, como já exposto, de que as principais informações, para

compreensão dos feitos comuns do Juízo Corregedor (Permanente e Geral), em sua

forma, decorrem, de um lado, das conseqüências de sua natureza administrativa e, de

outro, da fluidez formal do processo administrativo ordinário, que impõe sua baliza

pelas diretrizes gerais de processo administrativo.

Cumpre, todavia, para fechar o quadro de orientação prática deste trabalho,

apenas indicar, em síntese, conforme se pode colher em vários julgados da Corregedoria

Geral da Justiça, alguns traços formais marcantes do processo administrativo ordinário

de registro predial no âmbito correcional e algumas de suas peculiaridades, no escopo

de orientar seu bom trâmite, evitando confusões que comumente ocorrem com outros

tipos de processos.

Destaquem-se, então, em resumo, que os processos administrativos ordinários:

a) não são regulados em lei específica, embora tenham base legal expressa ou

implícita;

b) em regra, têm por fim a legalidade do serviço delegado e dos respectivos

atos praticados;

143 Consulta conhecida para admitir a averbação de protesto contra alienação de bens imóveis, diante do

entendimento fixado pela Corte Especial do E. STJ (EREsp 440.837-RS, DJ 28.05.2007) – (Processo CG

485/2007). 144 Consulta conhecida no sentido de admitir a averbação de mera notícia do tombamento provisório, de

restrições próprias de bens imóveis integrantes do patrimônio cultural, decorrentes de outras formas de

preservação e acautelamento, expressas em ato administrativo ou legislativo ou em decisão judicial, bem

como de restrições próprias de imóveis situados no entorno dos bens tombados ou reconhecidos como

integrantes do patrimônio cultural (Processo CG 1.029/2006). 145 Consulta conhecida no sentido de admitir o sistema eletrônico de averbação e cancelamento de

penhora de bens imóveis nas serventias prediais, denominado “penhora on line”, diante do prescrito no

art. 659, § 6.º, do CPC, com a redação dada pela Lei 11.382/2006, obedecidos os requisitos da

autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infra-Estrutura de Chaves Públicas

Brasileira – ICP-Brasil (art. 154 do CPC) – (Processo CG 888/2006).

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c) sua iniciativa é aberta a qualquer interessado (particular, registrador,

Ministério Publico, poder ou órgão público, entidade de classe etc.), sem esquecer que,

em determinadas circunstâncias, até de ofício podem ser instaurados;146

d) seu movimento é por impulso oficial, sem formas rígidas;

e) há intervenção do Ministério Público, como curador de registros públicos;147

f) a decisão de primeiro grau é do juiz corregedor permanente, sem reexame

necessário (ou recurso de ofício), mas com possibilidade de recurso administrativo (art.

246 do Código Judiciário), não apelação, no prazo de 15 dias, ao Corregedor Geral da

Justiça;

g) não têm função sensório-disciplinar, observando-se que, se alguém quiser

fazer reclamação ou representação contra a prática de ato do registrador, ou se o juiz for

promover alguma medida dessa ordem, terá que agir mediante processo administrativo

específico.

Por fim, atenção as seguintes peculiaridades destinadas a evitar confusões, que

partem do cuidado elementar para não transpor ao processo administrativo as regras e os

institutos próprios do Código de Processo Civil. Assim, nos processos administrativos

ordinários do Juízo Corregedor (Permanente e Geral):

a) não cabe agravo (salvo para recurso não recebido);148

b) não cabe intervenção de terceiros;149

146 E não importa em ofensa ao princípio constitucional de ampla defesa “o julgamento do processo

administrativo pelo mesmo Juiz que instaurou o procedimento e instruiu o feito” (Processo CG 1.700/94).

Confira, ainda, Processo CG 2.400/96. 147 Processos CG 1.149/2003, 608/2004, 1.037/2005, 1.150/2005. Todavia, sem o mesmo rigor do

processo civil: Processo CG 28/92 (caso em que não se anulou o processo, por falta de manifestação do

Ministério Público em primeiro grau). 148

V.g., Processo CG 900/2006 e Protocolo CG 29.463/2006. Ver, ainda, Processos CG 293/92

(Decisões administrativas da CGJ, cit., 1992, verbete 61), com menção a vários precedentes (Decisões

administrativas da CGJ, 1983/1984, cit., verbetes 44 e 92; Processos CG 161/89, 222/89 e 86/91) e

Processo CG99/92 (Decisões administrativas da CGJ, 1992, verbete 112), com referência a vários outros

precedentes (Processos CG 91/92, 296/91, 169/85 e 220/83). Do CSM, confira, ainda, ApCív 096905-0/8

(rel. Des. Luiz Tâmbara). 149 Embora em sede de dúvida, valem também para os processos administrativos em geral, as lições

constantes na declaração de voto do Des. Young Da Costa Manso, Presidente e Revisor, na ApCiv 408-0,

da Comarca de Americana (CSM), j. 06.10.1981, DOE. de 13.11.1981: “Trata-se, porém, de simples

procedimento administrativo de dúvida, em que “não se vêm partes, não se convocam, nem se ouvem

terceiros, não se discutem obrigações, não se interpretam vontades, não se analisam comportamentos.

Examina-se objetivamente o título, verificando-se a sua idoneidade para o pretendido acesso ao registro”

(RT, 494/84). Não se aplicam a esse tipo de procedimento as regras de litisconsórcio que vigoram no

processo judicial, de finalidade e alcance diversos”.

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c) não incidem custas (taxa judiciária) nem há condenação em verbas de

sucumbência;150

d) não há necessidade de advogado;151

e) não há prazo em dobro para recorrer;152

f) não há coisa julgada com feição igual à da sentença judicial;153

g) não há, em regra, espaço para perícia154

nem para prova oral;

h) não há citação, revelia nem nomeação de curador especial.155

Fica, deste modo, para quem opera ou vai operar com tais processos

correcionais ordinários a dica para se desvestir da roupagem do Código de Processo

Civil e da mentalidade própria do processo civil, apropriando-se, isso sim, da

mentalidade do direito administrativo e das frouxas vestes do processo administrativo.

8. Conclusão

150 Processos CG 745/2005 e 614/2006 (não incidência de custas processuais ou da taxa judiciária),

Processo CG 139/2007 (inadmissibilidade de condenação em verbas de sucumbência: custas e verba

honorária), Processos CG 05/93 e 856/94 (não cabimento de honorários de advogado). 151 Processos CG 85/92, 52.000/2005. 152

Diversamente da dúvida registrária, em que há prazo em dobro para recorrer, por aplicação subsidiária

(não análoga) do CPC (CSM, Apelações Cíveis 12.315-0/0 (rel. Onei Raphael) e 6072-0 (rel. Des. Sylvio

do Amaral), não há situação equivalente em processo administrativo ordinário do Juízo Corregedor:

Processos CG 756/2006, 03/94, 106/92, 91/92, 53/86 e 220/83. 153 Processos CG 756/2006, 794/2005 e 215/2006, entre outros. V. ainda, item 3.3.3 supra, deste estudo. 154 CSM, ApCív 1.214-0, da Comarca de Santos, j. 18.04.1983, rel. Bruno Affonso de André

(inadmissibilidade de perícia grafotécnica). Consigne-se, enfim, a boa síntese do Des. Marcos Nogueira

Garcez, na ApCív 3.598-0 (CSM), j. 02.05.1985, DOE de 08.01.1985: “Frise-se que o juízo

administrativo dos registros públicos “é mero instrumento de controle de publicidade e da regularidade

extrínseca dos direitos reais imobiliários, não comportando ele competência para examinar o suporte

fático subjacente, com pretende obter o apelante” (ApCív 2.194-0, São Paulo, 17.05.1983, rel. Des.

Affonso de André)”. Observe-se, no entanto, que, por exceção, admite-se perícia em processo

administrativo-judicial de retificação de área (Processo CG 441/2006) e de regularização de parcelamento

do solo (item 154.1 do Cap. XX das NSCGJ-SP, Prov. CG 58/89). Para avaliação de acervo público da

unidade de serviço, há também previsão de perícia na Lei estadual 12.227/2006 (cf. Protoc. CG

41.868/2005), mas essa lei está com sua vigência e eficácia suspensa (TJSP, ADin 134.113.0/9-00). 155

Processo CG 1.398/94.

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Hans Baldung, artífice do Renascimento

conhecido por Grien, em 1510, pintou o quadro

intitulado Alegoria do efêmero ou As três idades

da vida e da morte. Alegoria da vaidade das

coisas terrenas (que se encontra no

Kunsthistorisches Museum de Viena).

A tela, dividida em duas partes, tem na

metade direita, a figura humana da morte, e, na

metade esquerda, três figuras de mulher, cada

uma em uma das três idades da vida (criança,

jovem e velha). Todas, no entanto, em dinâmico

elo: o cadáver eleva, sobre as fases da vida, uma

ampulheta, que a velha, com uma das mãos, busca afastar, embora a jovem a ignore, por

estar atenta apenas a sua imagem no espelho convexo, que a idosa lhe apóia, e a criança

tem olhar voltado apenas à moça; um véu, por outro lado, parte da infante, envolve o

braço da jovem e, passando pelas mãos da morte, é agarrado, antes de seguir caminho

para fora do quadro.

Todas as figuras, pois, da criança até a morte estão unidas, em fases, sob a

perspectiva dinâmica e o rigor do tempo, em eloqüente expressão de sua efemeridade.

Eis aí, a imagem da vida terrena e, por que não dizer, do processo... O processo

é como essa vida: tem fases (infância, juventude e velhice) em elo dinâmico marcado

pelo tempo. E, ainda mais, também como a vida humana, nasce para morrer: é efêmero.

Por isso, processos têm prazos e estão sob a ampulheta, para que sejam concluídos.

Ao falar em registros públicos, logo percebemos que neles, ou em torno deles,

existem vários processos (processo de registro de um título, processo de retificação

administrativa, processo de retificação judicial, processo de dúvida, processos

administrativos do Juízo Corregedor, processos jurisdicionais etc.): alguns

extrajudiciais, outros judiciais; alguns administrativos, outros jurisdicionais; alguns

administrativos de rito especial, outros administrativos de rito comum ou ordinário etc.

Mas, o que realmente importa é que os processos são para a vida, porque no

verso de cada um existem pessoas que aguardam decisões e soluções, quer de

registradores, quer de juízes, na esperança de paz, pela segurança jurídica e justiça, que

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devem propiciar. Processos administrativos de registro, pois, também nascem para

morrer, mas nascem, sobretudo, para facilitar a igualmente efêmera vida terrena das

pessoas: nascem para atender às concretas necessidades humanas.

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12.

A PENHORA E O PROCEDIMENTO DE DÚVIDA*

SÉRGIO JACOMINO

Mestre e Doutor em Direito pela Unesp.

Coordenador Editorial do Irib.

5.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo-SP.

SUMÁRIO: Dúvida – O nome e a coisa - Dublês de notários, registradores e escrivães

judiciais - Dúvida – Averbação e registro - Política judiciária - O Código Judiciário de São

Paulo - Penhora – Registro ou averbação?

Coube-me enfrentar o problema da penhora e o procedimento de dúvida. Essa

tarefa se torna ainda mais árdua e desafiante em razão de suceder ao desembargador

Ricardo Dip, organizador e nossa maior inspiração na concretização desses diálogos no

Café com Jurisprudência, hoje se realizando em Alphaville.

Os tópicos que vou procurar abordar são: dúvida – o nome e a coisa; cabimento

da dúvida somente para os casos de registro stricto sensu; penhora, objeto de registro ou

averbação?

Dúvida – O nome e a coisa

A utilização da palavra dúvida, para qualificar o procedimento decorrente de

denegação resistida à pretensão de registro, sempre me causou certa perplexidade.

* Seguindo a orientação do Organizador do Café com Jurisprudêndia, Des. Ricardo Dip, o texto

ora apresentado conserva o tom coloquial da apresentação feita no dia 2 de junho de 2007, na

manhã chuvosa de Alphaville.

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Dúvida é desconfiança, hesitação, incerteza. O campo semântico da expressão abarcaria,

no limite, a idéia de perplexidade e detimento diante do fato do registro rogado. Pode

significar um estado de irresolução, indecisão, que poderia acarretar a paralisação do

procedimento registral. E, no entanto, todos nós sabemos que o Registrador não tem

dúvida; não pode hesitar diante da necessidade de decidir acerca da registrabilidade de

um título. Não se detém em razão do dever legal de admitir ou denegar a inscrição.

O Regulamento de 1846 (arts. 30 e 31 do Dec. 482, de 1846) previa a

denegação do registro quando a recusa ou postergação da inscrição fosse fundada em

direito. Não se conformando com a demora, ou com a recusa, o interessado poderia

socorrer-se de autoridade judiciária competente para dirimir a controvérsia.

Vê-se, já nos primórdios de nossa legislação hipotecária, que o registrador se

obrigava a imperar a registração. Mas não a negativa. No dito Regulamento já se antevê

o espartilho procedimental que se desenvolverá com maior nitidez nos regulamentos

hipotecários que lhe sucederam. Nesse sentido, o aspecto que gostaria de reter para

nossa consideração é: no caso de ocorrer a qualificação positiva, o registro se faria (art.

30). Já a negativa seria decidida pelo juízo competente (art. 31).

A insinuação da expressão da qual hoje nos ocupamos – dúvida – se dará no

Regulamento de 1865 (Dec. 3.453, de 26 de abril), obra meritória do grande

jurisconsulto do Império, José Thomaz Nabuco de Araújo. A palavra calha nos arts. 69

e 328 do dito regulamento.

Duvidando da legalidade... será a expressão que fará fortuna.1 Essas

expressões serão recorrentes nos regulamentos sucessivos – levantar dúvida, duvidar da

legalidade, dúvida do oficial etc.

A expressão dúvida é, portanto, tradicional em nosso direito.

Todavia, como a ela chegamos? A doutrina de Serpa Lopes nos dará algumas

pistas.

Dublês de notários, registradores e escrivães judiciais

1 Cf. Dec. 370, de 02.05.1890, arts. 66 e ss.; Dec. 18.542, de 24.12.1928, art. 207; Dec. 4.857,

de 09.11.1939, art. 215, § 1.º, até a vigente Lei de Registros Públicos (art. 198 e ss.).

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Como já lhes disse, todos nós sabemos que o registrador jamais se deterá por

hesitações ou dúvidas acerca do pedido que lhe seja endereçado. Esse profissional deve

imperar o registro ou a sua recusa. Do ato caberá recurso administrativo à instância

superior. Essa a tipologia clássica do procedimento registral.

Serpa Lopes, quando escreveu sobre o Registro de Imóveis, apanhou e

sintetizou o espírito de época que animava o relacionamento entre registradores,

notários e juízes. Dizia o tratadista que o dever do oficial é suscitar dúvida em relação

aos atos apresentados à inscrição que, por fundada razão, não fossem admitidos a

registro. Tal encargo representa uma ação vinculada. Diz o jurista:

“O nosso sistema é diferente da legislação portuguesa e de outros onde o

oficial pode suspender a inscrição até que sejam preenchidas determinadas

formalidades, ou recusá-la formalmente quando haja nulidade substancial cabendo,

neste último caso, recurso para o juiz”.

“No nosso sistema, em princípio, o oficial não tem o direito propriamente dito

de recusar a inscrição no sentido de decidir que ela não é possível de se tornar efetiva,

mas apenas suscita dúvida. É ao juiz que compete decidir da sua procedência, ou não,

ordenando ou recusando a inscrição.”2

Vejam que curioso: é como se houvesse a suspensão do juízo de denegação

quando o registro, por infringência à legalidade, não se perfizesse. O registrador, nesses

casos, não poderia imperar a negativa. Não tem “o direito” de recusar a inscrição. A ele

caberá unicamente devolver ao juízo competente a pretensão perante ele, registrador,

deduzida. Nesses casos, deveria, simplesmente, suscitar dúvida!

No começo do século XX, o juiz era naturalmente considerado o presidente do

registro. Tanto o registrador quanto o notário – bem assim escrivães do feito judicial, e

outros tantos profissionais que atuavam no processo –, todos orbitavam a Galáxia

Judiciária; eram órgãos auxiliares da Justiça, astros que refletiam a poderosa luz própria

do Poder.

Nos primórdios, o registrador e o notário funcionavam integrados na máquina

judiciária: aquele era escrivão do feito cível ou criminal, este o escrivão do Cartório do

Júri, Cartório da Corregedoria Permanente etc. Na origem, esses profissionais eram

2 As referências podem ser encontradas em: SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de

registos públicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. v. 2, p. 345 e ss., n. 339.

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dublês de escrivães e notários ou registradores; atuavam concomitantemente no foro

judicial e extrajudicial.3

Muitos dos procedimentos no âmbito da escrivania judicial, que se aplicavam

ao processo e se desenvolviam sob a estrita direção do juiz, aplicavam-se analogamente

às Notas e ao Registro. Assim, quando o escrivão, no curso do processo, tinha uma

dúvida, isto é, deparava-se com um fato imprevisto, um acidente no regular andamento

do feito, então ele se detinha e formulava uma consulta, antecedida de uma informação,

ambas endereçadas afinal ao Presidente do processo. Em última instância, seria o juiz

quem decidiria o acidente processual intercorrente, não o escrivão.

Nesse sentido, se compreende perfeitamente como Serpa Lopes enxergava o

registrador na sua peculiar interação com juiz. A apreciação judicial, a direção dos

serviços auxiliares da Justiça, a dirimição de dúvidas de serventuários, escrivães,

oficiais de justiça, tudo isso estava sob a estrita orientação e direção do juiz.

Este era o ambiente em que vivíamos. Havia uma estrita vinculação hierárquica

que se estendia e atingia, inclusive, a medula da atividade própria do registrador. Assim,

quando o registrador se deparasse com uma situação que fugia das regras

preestabelecidas – quer fossem previstas em decisões normativas, quer se fundassem na

praxe cartorária –, então ele se detinha. Suspendia o juízo de qualificação. Devolvia a

matéria ao juiz, a requerimento, municiando-o com prévia informação e suscitação da

dúvida. Mesmo quando duvidasse da legalidade, ele não proferia a decisão denegatória,

porque isso implicaria declarar in concreto a infringência à ordem legal, o que sempre

esteve reservado ao juiz. Essa circunstância era suficiente para paralisar o procedimento

registral e submeter ao magistrado, a quem se reservava, então, a palavra final.

Havia claramente uma sujeição hierárquica. Éramos, como já disse, dublês de

escrivães do judicial e do extrajudicial, integrávamos a galáxia judiciária, como ainda

integramos, mas de maneira diversa, com outro estatuto profissional e institucional que

a legislação superveniente acabou conformando.

Deixem-me concluir. A nota mais importante a se destacar, na perspectiva

histórica, é que essa limitação na atuação do registrador somente seria ultrapassada com

3 Vale consultar o Dec. 9.420, de 28.04.1885, que consolidou a legislação relativa aos empregos

e ofícios de justiça para que se possa constatar que esses profissionais integravam a família

forense.

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a consagração e o reconhecimento da independência jurídica do registrador, que tem o

poder-dever de imperar não só a registrabilidade do título, mas igualmente a sua recusa.

Contudo, isso tardaria alguns anos ainda, e o marco definidor desse paradigma

se construiria a partir da doutrina do Des. Ricardo Dip, que percorrendo um largo

caminho, seria consagrada na Lei 8.935, de 1994 (art. 3.º c.c. art. 28).4

Dúvida – Averbação e registro

Hoje, no Estado de São Paulo, a dúvida é cabível apenas nos casos de recusa de

prática de ato de registro em sentido estrito. A dúvida só se instaura se presente o

dissenso entre a parte e o Oficial do Registro a propósito de ato de registro. Ou seja, se

o ato a ser praticado no cartório de Registro de Imóveis não for de registro, não caberá a

dúvida, ainda que o interessado, no ato de averbação, venha a requerer expressamente a

suscitação de dúvida. O processamento natural desses pedidos de revisão é a via de

procedimento administrativo comum, que corre no âmbito da administração judiciária

do Estado.

Vamos ver como isso traz algumas conseqüências práticas.

Em primeiro lugar, vamos nos deter na redação da Lei de Registros Públicos.

Nos arts. 198 a 207 encontramos a regulação do procedimento de dúvida.

Destaquemos o art. 203, II, da Lei de Registros Públicos. Diz esse inciso que, se for

julgada improcedente a dúvida, o interessado apresentará, de novo, os seus documentos,

com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que,

desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações

do Protocolo.

Ou seja, se a dúvida for julgada improcedente, desde logo se procederá ao

registro. Não diz o artigo que se procederá ao registro ou à averbação.

O art. 205 da Lei 6.015 também fala da cessação automática dos efeitos da

prenotação: “Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 30

4 O autor se refere ao trabalho apresentado no XVIII Encontro dos Oficiais de Registro de

Imóveis do Brasil (Encontro Elvino Silva Filho), realizado em Maceió, no período de 21 a 25 de

outubro de 1991.

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(trinta) dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por

omissão do interessado em atender às exigências legais”.

Novamente a referência a registro – e não a averbação.

Finalmente, o art. 206 diz que “se o documento, uma vez prenotado, não puder

ser registrado, ou o apresentante desistir do seu registro, a importância relativa às

despesas previstas no art. 14 será restituída, deduzida a quantia correspondente às

buscas e a prenotação”.

Notem bem, a lei não fala em nenhum momento em averbação.

Esse tem sido considerado o elemento fundamental para alicerçar a construção

de admissibilidade de suscitação de dúvida tão-somente nos casos de registro.

Política judiciária

Além desse argumento, qual outro é apresentado para justificar a opção

regulatória? Uma vez mais será o Des. Ricardo Dip que nos dará elementos de

compreensão.

Segundo ele, existe um aspecto político relacionado com a consideração de que

a dúvida só tem cabimento nos casos de registro stricto sensu. No Estado de São Paulo,

diz ele, a partir de meados da década de 80, tomou-se uma decisão que se afirmou,

desde o início, como uma decisão de caráter político. Distinguiu-se registro stricto

sensu de averbação para os fins de designar competências ou atribuições entre o

Conselho Superior da Magistratura e a Corregedoria-Geral da Justiça. Continua o

mestre:

“Estou em situação bastante suspeita para explicar esse episódio. A decisão foi

política, à vista de dificuldades de convivência entre o Corregedor-Geral da Justiça que

integrava, e ainda integra, enquanto cargo e função do Tribunal de Justiça, o Conselho

Superior da Magistratura como relator nato das dúvidas em segunda instância, e ele

corregedor no exercício das funções soberanas em sua ordem da Corregedoria-Geral da

Justiça de São Paulo. Em resumo, era freqüente que o Corregedor-Geral da Justiça,

quando decidia na Corregedoria, o fizesse de uma maneira e votasse vencido no

Conselho, criando, portanto, uma aparente dúplice soberania administrativa. Na

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verdade, era uma só, a do corregedor. Mas não era possível, como não o é até hoje,

contornar as circunstâncias por que as decisões do Conselho Superior da Magistratura

são muito autorizadas”.5

Era preciso encontrar suporte na lei para justificar a opção regulatória.

O Código Judiciário de São Paulo

Além da Lei 6.015, de 1973, outro eixo fundamental para justificar a não-

admissibilidade da dúvida nos casos de averbação, é o art. 246 do Código Judiciário do

Estado de São Paulo (Dec.-lei Complementar 3, de 27.08.1969).

Uma vez mais o paradigma construído sob a inspiração da estrita vinculação

hierárquica do registrador ao juiz-corregedor iluminará a interpretação hoje assente

sobre o tema. O referido art. 246 se acha aninhado no título dos Ofícios de Justiça Não-

Oficializados (Título III), em cujos capítulos são tratados o provimento, a remoção, a

promoção e o regime disciplinar dos “serventuários dos ofícios e cartórios não

oficializados”.

O art. 246 trata das decisões de juízes corregedores-permanentes; diz a norma:

“Art. 246. De todos os atos e decisões dos juízes corregedores permanentes,

sobre matéria administrativa ou disciplinar, caberá recurso voluntário para o Corregedor

Geral da Justiça, interposto no prazo de 15 (quinze) dias, por petição fundamentada,

contendo as razões do pedido de reforma da decisão”.

A inadequação do suporte legal é evidente. O exame de legalidade de um título

que ingressa no Registro por meio de averbação não representa matéria disciplinar

sujeita à corregedoria-permanente e, em grau de recurso, à Corregedoria-Geral da

Justiça. Essa interpretação rende homenagens a um sistema de relacionamento

hierárquico entre órgãos judiciários e órgãos da fé pública que foi ultrapassado pela

legislação superveniente. Trata-se de um anacronismo.

Mais importante, todavia, é o risco que representa, já que muitos títulos

ingressam no Registro Predial pela porta da averbação.

5 Boletim Eletrônico do Irib, n. 2.960, 23 maio 2007.

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É necessário e urgente superar esse paradigma. A ocorrência de novos fatos

típicos de averbação acarretará, cedo ou tarde, uma revisão dessa interpretação.

Estamos experimentando certa instabilidade nesse sistema de admissibilidade

de dúvida somente nos casos de registro – e isso devido, basicamente, à casuística

legislativa. Uma pequena amostra poderá nos dar uma idéia. Perfazem-se por averbação

os seguintes atos:

a) Contratos de promessa de compra e venda, cessões e promessas de cessão a que

alude o Dec.-lei 58, de 1937, quando o loteamento se tiver formalizado anteriormente à vigência

da Lei 6.015, de 1973 (art. 4.º, b, c/c o art. 5.º do Dec.-lei 58, de 1937).6

b) Fusão, cisão, incorporação de sociedades (art. 234 da Lei 6.404, de 1976).

c) Direito de preferência no caso de alienação de bem imóvel locado (art. 33,

parágrafo único, da Lei 8.245, de 1991).

d) Caução de imóvel em garantia locatícia. (art. 167, II, 16, da Lei 6.015, de 1973).

e) Penhora, no atual Código de Processo Civil (art. 659, § 4.º).

f) Usufruto de direito processual (art. 722, § 1.º, do CPC).

A circunstância de que esses títulos ingressem no Registro por meio de

averbação, acarreta a instabilidade do sistema. Não podemos desprezar a garantia que o

registro oferece na intercorrência de títulos contraditórios, que podem representar

interesses e direitos conflitantes.

Não é necessário descer a minúcias explicativas para verificar que, embora se

concretizando por ato de averbação no Ofício Registral, tais títulos podem acarretar

conflitos de direitos pela inobservância do procedimento de dúvida. Como se sabe, a

dúvida pressupõe a prenotação do título, suspensão do prazo decadencial da inscrição

no Protocolo e o rito de suscitação de dúvida com as garantias que a Lei consagra no art.

198 e seguintes.

Penhora – Registro ou averbação?

6 Embora as Normas de Serviço da CGJSP prevejam que os contratos de promessa de venda,

cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas condominiais (Lei 4.591, de 1964)

ingressam por ato de registro – “quando a incorporação ou a instituição de condomínio se

formalizar na vigência da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973” (item 1, n. 18, Cap. XX) –,

permitindo-se concluir, a contrario, que nos demais casos se perfaria por ato de averbação, não

se pode olvidar, contudo, que o § 2.º, art. 32 da Lei 4.591, de 1974, foi alterado pela Lei 10.931,

de 2004. O ato se perfaz por registro.

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O advento da Lei 11.382, de 2006, que radicalizou as reformas do CPC, levou

os especialistas a um debate muito interessante. O experiente registrador paulistano

Ulysses da Silva, em seus comentários sobre a reforma do Código de Processo Civil,

feriu um tema caro aos registradores: a penhora se perfaz mediante ato de registro ou de

averbação? Poder-se-ia jungir: a inscrição da carta de usufruto (art. 722, § 1.º, do CPC)

se perfaz por ato de averbação ou de registro?

Diz Ulysses da Silva:

“Ensejada a oportunidade, e afastada a intenção proposital do legislador, nota-

se, mais uma vez, que ele demonstra falta de conhecimento da técnica registral ao falar

em averbação para a penhora, quando a Lei 6.015, de 1973, determina,

apropriadamente, o seu registro, no inciso I, item 5, do art. 167, considerando tratar-se

de ato de apreensão do imóvel matriculado e que pode levar à expropriação do direito

de propriedade. Há quem entenda, como eu, que a lei agora editada não tem força para

modificar a de n. 6.015, de 1973, com fundamento no princípio consagrado no

parágrafo primeiro do art. segundo da Lei de Introdução ao Código Civil”.

Logo em seguida acresce:

“O direito do legislador, no caso, vai até a determinação de ingresso da

penhora no registro imobiliário, para os fins de direito, mas, a especificação da forma ou

natureza do ato a praticar pelo registrador invade a área de competência do legislador da

Lei de Registros Públicos”.7

Em primeiro lugar, aqui talvez não se dê o caso de falta de conhecimento de

técnica registral do legislador, nem tampouco teria ocorrido a falta de intenção

identificada pelo comentador.

Vamos por partes.

A Lei 11.382, de 05.12.2006, como se sabe alterou o Código de Processo Civil

que, em seu art. 659, § 4.º, dispondo sobre a inscrição da penhora, assim consagrou o

ato de registro:

“§ 4.º A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de

penhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata intimação do executado (art.

7 SILVA, Ulysses da. O registrador imobiliário em face da Lei 11.382, de 2006. Boletim do Irib

em Revista, n. 331, p. 5, abr.-mai.-jun. 2007.

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652, § 4.º) providenciar, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, a

respectiva averbação no ofício imobiliário, mediante a apresentação de certidão de

inteiro teor do ato, independentemente de mandado judicial”.

O decaimento do ato registral da inscrição da penhora e do usufruto – de

registro para averbação – apresenta alguns problemas que devem ser ponderados para

aplicação harmônica e homogênea das regras e procedimentos registrais.

A mudança do status da inscrição foi deliberadamente objetivada pelos autores

do anteprojeto de Lei. Depois de encaminhado o Projeto de Lei 4.497, de 2004, ao

Congresso Nacional, na complementação de voto do relator, o Dep. Luiz Couto nos dá

algumas pistas para compreender o sentido da mudança. Diz ele:

“Adapta-se o dispositivo às demais alterações feitas pelo projeto e substitui-se

o registro da penhora pela sua averbação, o que atende ao objetivo de publicidade e

possui, s.m.j., custo inferior ao registro”.8

A doutrina igualmente denuncia o movimento. Assim, Humberto Theodoro Jr.:

“Embora a Lei dos Registros Públicos preveja o registro da penhora de imóveis

(Lei 6.015/73, art. 167, I, 5), a opção da reforma pela averbação certamente se deveu à

maior singeleza do último ato registral. O registro é sempre cercado de exigências

formais e substanciais que, no caso da penhora, retardam a publicidade do ato judicial,

que a lei empenha seja pronto. De mais a mais, não se trata de ato constitutivo do direito

real, e nem mesmo constitutivo do gravame judicial. Sua função é puramente de

publicidade perante terceiros. Para tal objetivo, é evidente que a averbação se mostra

suficiente e adequada, além de ser mais prontamente factível”.9

O tema é: mitigação do rigorismo formal do mecanismo registral e “custo

inferior ao registro”.

Aqui estou com o registrador paulistano Ulysses da Silva, com as reservas

críticas já anunciadas acima.

8 Complementação de voto do Dep. Luiz Couto na Comissão de Constituição e Justiça e de

Cidadania sobre o Projeto de Lei 4.497, de 2004, datado de 4 de abril de 2005, disponível no

site da Câmara em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/292377.pdf>. 9 THEODORO JR., Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial. Rio de Janeiro:

Forense, 2007. p. 91-92.

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Em primeiro lugar, considero que, apesar da cizânia instaurada na definição

conceitual e terminológica dos atos de registro, tanto o registro quanto a averbação

merecem do registrador o mesmo rigor na qualificação registral.

Não se inaugura entre nós a qualificação light.

O fato de não se tratar de um ato constitutivo do direito, e nem, por óbvio,

conformativo do gravame judicial, a inscrição gera, contudo, importantes efeitos ao

tornar oponíveis a todos terceiros os direitos do exeqüente decorrentes do processo de

execução.

Como se verá, a inscrição da penhora ostenta um caráter declarativo. Mas isso

não responde plenamente à questão, pois há inúmeras hipóteses de atos que se

aperfeiçoam no registro por meio de averbação – fusão, cisão, incorporação de

sociedades (art. 234 da Lei 6.404, de 1976), cessões e promessas de cessões de imóveis

de loteamentos inscritos sob o regime do Dec.-lei 58, de 1937, caução de imóveis (art.

38, § 1.º, da Lei 8.245, de 1991) entre inúmeros outros exemplos –, e nem por essa

razão o rigor no exame dos títulos que lhes servem de base é flexibilizado. Por fim, há

ainda exemplos de registros com efeitos meramente declarativos – partilhas, usucapião,

desapropriação etc. – sem que o mesmo rigor deixe de ser observado.

É da tradição do direito brasileiro a relevação da penhora como ato que se

perfaz como registro (inscrição): desde o Dec. 4.827, de 1924 (art. 5.º, a, VII), passando

pelo Dec. 18.542, de 24.12.1928 (arts. 173, a, VI, e 265 e 266), Dec. 4.857, de

09.11.1939 (arts. 178, a, VI, 279 e 280) até a vigente Lei de Registros Públicos – Lei

6.015/73 (art. 167, I, 5, c/c os arts. 239 e 240).

Não se pode dizer que a penhora seja um direito real, nem tampouco um ônus

real em sentido próprio. O registro da penhora não cria nem constitui um direito

subjetivo de caráter real. A constrição judicial representa uma afetação do bem ao

processo executivo e esse estigma, por adjunção transitória que se faz à situação

inscrita, irradiado por efeito da publicidade registral, tem a função relevante de tornar

cognoscível a situação jurídica do bem. Isso no evidente interesse de terceiros.

Com as reformas do Código de Processo Civil a inscrição da penhora acarreta a

inversão do ônus probatório. Com o registro, gera-se, portanto, relevantes efeitos.

As vicissitudes jurídicas que gravam o imóvel – sejam elas decorrentes de

direitos reais limitados ou de situações jurídicas com transcendência real – pela ordem

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de relevância que apresentam, sempre se consagraram no Registro Predial como

inscrições, i.e., como registros stricto sensu.

Valestan Milhomem da Costa, em recente artigo publicado, assim se

manifestou:

“Ademais, malgradas as referências incidentais à averbação da penhora de bens

imóveis, pela nova redação dos §§ 4.º e 6.º do art. 659, e do art. 698, CPC, não parece

que tais referências tenham modificado a natureza do ato registrário a ser praticado para

a publicidade da penhora, conforme estabelecido na lei especial, sendo tais referências

consideradas „disposições gerais a par das já existentes‟, que „não revoga nem modifica

a lei anterior‟, conforme dispõe o § 2.º, art. 2.º, da LICC”.

“Nota-se, ainda, que o art. 7.º da Lei 11.382/2006 revogou expressamente

apenas artigos da Lei 5.869/73, mas não fez referência ao inciso que trata do registro da

penhora, nem o podia fazer, posto que não seria possível revogar o inciso apenas quanto

à penhora”.

“De sorte que, não havendo declaração expressa de revogação de artigos da Lei

6.015/73, nem incompatibilidade entre os fins pretendidos na Lei 11.382/2006 e o ato

de registro indicado nos arts. 167, I, 5, e 240 da Lei 6.015/73, nem tampouco havendo a

Lei 11.382/2006 regulado inteiramente a matéria, há que se entender que a publicidade

do ônus da penhora no Registro de Imóveis ocorre por ato de registro”.

“O mesmo se pode dizer em relação ao usufruto, o qual, não obstante a nova

redação do § 1.º do art. 722, do CPC, requer ato de registro, tanto pelos fundamentos

acima, como em razão da regra do art. 1.227 do CC”.10

João Pedro Lamana Paiva, por outro lado, no mesmo Boletim Eletrônico (n.

2.788, de 11.01.2007 – A penhora no Registro de Imóveis) asseverou:

“Outra inovação estabelecida pela nova Lei Processual é a modificação no

procedimento registral da penhora – que anteriormente era efetivada no álbum

imobiliário por ato de registro – o que ocasionava dificuldade em proceder ao ato, em

virtude do princípio da qualificação documental. Pois, é sabido que o ato de registro

requer um fenômeno registral complexo e, não raramente, os títulos judiciais são

devolvidos em virtude de não preencherem alguns requisitos indispensáveis,

10 COSTA. Valestan Milhomem da. A Lei 11.382/2006 e o Registro de Imóveis. Boletim

Eletrônico do Irib, n. 2.800, 16 jan. 2007.

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provocando desgastes entre o oficial, as partes, os advogados e o próprio Poder

Judiciário”.

“A opção do legislador em determinar, agora, que a penhora deva ser procedida

através de averbação, em virtude da apresentação de inteiro teor do ato,

independentemente do mandado judicial, ao meu juízo foi acertada. A modificação de

ato de registro para averbação viabilizará maior acesso dessas medidas acautelatórias

(penhora, arresto, seqüestro etc.) no registro imobiliário, uma vez que torna mais efetiva

e célere o ingresso dos mandados judiciais no fólio real. Nesse sentido, a nova lei

reforçou e valorizou um princípio muito comentado na Doutrina de Direito Registral

Imobiliário: o princípio da publicidade registral, tendo em vista que a averbação tem a

presunção absoluta de conhecimento de terceiros”.

“Ressalva-se, contudo, que não estou afirmando que haverá o princípio da

facilitação, porque a substituição do ato de registro pelo de averbação não autoriza que

os preceitos registrais restem esquecidos. O ingresso desse título judicial no álbum

imobiliário, através do ato de averbação, estará sujeito, como qualquer outro, a

qualificação registral, bem como a obediência aos princípios da especialização subjetiva

e objetiva, da continuidade, da disponibilidade, entre outros, devendo conter: a) dados

do imóvel; b) número da matrícula ou transcrição; c) credor/devedor; d) valor da dívida;

e) depositário etc.”.

A natureza jurídica da penhora é matéria complexa. Na síntese de José Alberto

dos Reis “a penhora é uma providência de afetação, a venda uma providência de

expropriação, o pagamento uma providência de satisfação”.11

A penhora é um ato de afetação no processo executivo. E a publicidade

registral da penhora, qual seria a sua natureza jurídica? Quais os efeitos de sua

publicidade pelo registro?

A resposta a essa pergunta poderá nos proporcionar elementos para justificar a

acessoriedade do ato (averbação) ou sua consideração e valoração pelo aspecto da sua

principalidade (registro).

Serpa Lopes procurou distinguir os aspectos relacionados com a inscrição pelos

seus efeitos. Depois de asseverar que de um ponto de vista geral a averbação é um ato

acessório, quanto à substância,

11 REIS, José Alberto dos. Processo de execução. Coimbra: Coimbra Editora, 1982. v. 2, p. 91.

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“esse caráter apresenta-se nitidamente como um dos pontos diferenciais da

transcrição e da inscrição, porque, enquanto estas constituem condição de eficácia do

ato, de modo que a sua omissão prejudica o título que lhe serve de causa, averbação, se

omitida, não atenta contra o ato principal, que subsiste, mas apenas pode paralisar

qualquer procedimento no registro, enquanto não for feita, não importando nulidade a

sua omissão, mas apenas uma irregularidade embora devendo ser sanada”.12

E segue o festejado tratadista analisando os efeitos da publicidade:

“Deduz-se daí que, em relação ao fim da publicidade, a averbação e a inscrição

são idênticas; diferem apenas quanto aos efeitos decorrentes da omissão de qualquer

delas, quando obrigatórias. Ambas atuam como um espelho fiel da situação da

propriedade imobiliária, mas a repercussão da falta da primeira afeta ou à própria

existência do direito ou à sua disponibilidade, enquanto a segunda exige apenas que se

sane a irregularidade.13

O jurista português Carlos Ferreira de Almeida deteve-se na meditação acerca

da publicidade nos registros públicos. Apresentou uma classificação levando em

consideração os efeitos decorrentes da publicidade registral.

Talvez devêssemos recuperar as discussões que, no início do século passado,

empolgaram a doutrina – especialmente a italiana – acerca do fenômeno da publicidade

registral. Retomando a categorização que se supõe ainda hígida, aproveitando a

tipologia oferecida por Carlos Ferreira de Almeida, temos:

a) publicidade-notícia (sem particulares efeitos no ato publicado);

b) publicidade declarativa (necessária para que os fatos sejam eficazes em relação

a terceiros); e

c) publicidade constitutiva (indispensável para que os fatos produzam quaisquer

efeitos).

O mesmo jurista português veiculará a observação de que a tendência que se

verifica modernamente é considerar-se que “toda a publicidade que atua sobre a

extensão da eficácia do fato é constitutiva (de efeitos); e que a chamada até então

publicidade constitutiva é antes forma essencial do fato”.14

12

SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos registros públicos. 3. ed. Rio de Janeiro:

Freitas Bastos, 1957. v. 4, p. 196, n. 653. 13 Idem, ibidem, p. 198. 14 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Publicidade e teoria dos registos. Coimbra: Almedina, 1966.

p. 117.

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Carlos Ferreira de Almeida ainda notará que a publicidade-notícia apresenta

pouca relevância.15

Analisando os efeitos especiais da publicidade registral, referirá o

caso da publicidade-notícia, “em que se não verifica um dos efeitos considerados como

mínimos para a publicidade: a eficácia em relação a terceiros”. E segue o autor

português:

“A publicidade-notícia, ou seja, aquela que não exerce qualquer efeito sobre a

eficácia do fato registrado, tem-se vindo a tornar excepcional. A publicidade tende a

possuir como efeito mínimo a oponibilidade em relação a terceiros, e é essa a regra

quase geral no nosso direito”. E remata: “A publicidade-notícia está hoje em franca

decadência, inclusive no país que, durantes longos anos, dela fez tipo fundamental da

publicidade: a França”.16

Até o advento da Lei 8.935, de 1994, que alterou o art. 659, § 4.º, do CPC, as

constrições judiciais ingressavam no registro tão-somente com escopo de advertimento

e cautela de terceiros. Considerava-se que os efeitos da publicidade se limitavam

justamente à propagação dos atos processuais e se radicavam no registro para mera

cognoscibilidade de terceiros. Era o típico exemplo de publicidade-notícia.

Ora, o registro da penhora ganha relevância a partir das reformas no direito

processual pátrio, com maior desenvolvimento a partir de 1994. Confirma-se o papel

relevante da inscrição premonitória e se torna nítido que o seu efeito é constituir em

estado de má-fé o terceiro adquirente que inscreveu o seu direito após a inscrição.17

No mesmo sentido Afrânio de Carvalho:

“A premonição de riscos à propriedade completa a defesa desta, implícita na

instituição do registro, trazendo ao âmbito deste a ameaça sobrevinda em razão de

pretensões, quer de tomada do imóvel para satisfação de dívida, quer de negação do seu

título de senhorio. A inscrição dos títulos correspondentes a esses atos judiciais

(penhoras, arrestos, seqüestros; citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias)

informa do estado litigioso do bem a eventuais adquirentes, a fim de caracterizar-lhes a

má-fé da aquisição, cumprindo notar, quanto à da penhora, que faz prova da fraude de

qualquer negócio – transação, diz a lei – posterior (Lei 6.015, de 1973, art. 240)”.18

15 Idem, ibidem, p. 116. 16 Idem, ibidem, p. 333. 17 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado... cit., v. 2, p. 417, n. 401. 18 CARVALHO, Afrânio. Registro de imóveis. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 101.

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O mesmo Afrânio de Carvalho indicará, de passagem, que os atos constritivos

judiciais se aperfeiçoam no ofício imobiliário por meio de registro.19

Mas outros argumentos poderiam ser aduzidos. Por exemplo, na penhora

decorrente de execução fiscal, prevista no art. 7.º, IV, c/c o art. 14 da Lei 6.830, de

1980, persiste a exigência de registro stricto sensu, consentâneo com a natureza do ato a

ser inscrito e com os arts. 167, I, 5, e 240 da Lei 6.015/73. A regra, aplicável à penhora

trabalhista, por analogado do art. 186 do CTN, também reclama o ato de registro.

Portanto, salvo melhor juízo, o acesso da penhora ao Registro, gerando efeitos

de oponibilidade do ato judicial a terceiros, mormente após a reforma do Código de

Processo Civil, tal ato, coerentemente com a tradição do direito registral pátrio e em

atenção aos aspectos que o afastam da singela posição de acessoriedade (ou das

hipóteses de publicidade-notícia), tal ato, como dizia, se aperfeiçoa no álbum

imobiliário por meio de registro.

Encerro esta pequena exposição rendendo minhas homenagens ao Organizador,

Des. Ricardo Dip, que nos tem orientado, em firme e boa doutrina, na longa trajetória de

estudos sistemáticos do Direito Registral Imobiliário.

19 Idem, ibidem, p. 83, especialmente p. 150, na qual se destaca que “a inscrição preventiva

possui eficácia declarativa”.

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13.

AVERBAÇÃO PREMONITÓRIA, PUBLICIDADE REGISTRAL

E DISTRIBUIDORES: A PROBATIO DIABOLICA E O SANTO REMÉDIO

SÉRGIO JACOMINO

Registrador Imobiliário em São Paulo, Capital.

Doutor em Direito Civil. Membro do Conselho Deliberativo do Irib.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A probatio diabolica e o remédio santo – 3. A história do

registro nos absolve – 4. A inteligência não é um atributo da contemporaneidade – 5. Segurança

jurídica e direito à privacidade – 6. Samba, carnaval e fraude à execução – O que têm em

comum? – 7. Defraudando a fraude – 8. Não há espaço para a relatividade do tempo – 9.

Diligência pessoal e extrajurídica – 10. Certidões de ações judiciais expedidas... pelo registro de

imóveis.

1. Introdução

No Boletim Eletrônico IRIB, BE 2.791, de 11 de janeiro, reproduziu-se uma

entrevista por mim concedida ao jornal paulista Agora São Paulo intitulada Averbação

premonitória – segurança do tráfego jurídico-imobiliário – efetividade do processo.

Ali acabei expressando algumas idéias que se relacionam diretamente com os

fundamentos que vêm inspirando as sucessivas reformas no CPC cuja culminância é a

Lei 11.382, de 2006.

O texto suscitou ácido debate interno e rendeu uma furiosa troca de e-mails

entre vários registradores e distribuidores. O tema central do debate relaciona-se com a

necessidade (ou não) de fazer depender a eficácia da publicidade registral da atuação de

outras instâncias não-registrais. Trocando em miúdos, o registro é auto-suficiente para

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prover as informações essenciais ao mercado, blindando o tráfico jurídico imobiliário

com a necessária e bastante segurança jurídica? Ou as transações imobiliárias são ainda

dependentes da informação extra-registral, como a proporcionada pelos distribuidores?

Acerca da correta ou incorreta interpretação da lei, o leitor avaliará. Era

realmente necessário trazer ao debate os argumentos que se digladiam tendo por fundo a

publicidade e a eficácia do sistema registral brasileiro.

Há muito o tema vem sendo agitado. Historicamente, nem mesmo entre os

oficiais registradores houve unanimidade – vejam-se, por exemplo, as opiniões de

Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (Boletim do Irib em Revista 302, de julho de 2002,

p. 46) inclinando-se pela necessidade de consulta aos distribuidores e a firme refutação

feita por João Pedro Lamana Paiva (Boletim do Irib em Revista 302, de julho de 2002,

p. 46).

Entretanto, é bom que se esclareça. No âmbito do Irib essa questão está

superada e a convicção da necessidade do robustecimento da publicidade registral

parece já fora de cogitação. Mormente agora, com o advento das reformas no estatuto

processual.

Já preparava a publicação do artigo de Gilson Carlos Sant´Anna, (A correta

interpretação da Lei 11382/2006, divulgado no BE 2815, de 25.01.2007) com o

objetivo de ampliar o debate e expressar lealmente visões diferenciadas, quando veio a

lume, ainda na edição de 21 de janeiro do tradicional Boletim Eletrônico do Irib, artigo

do registrador aposentado Ulysses da Silva reafirmando a necessidade das diligências

investigatórias nos distribuidores (O registrador imobiliário em face da Lei 11.382, de

2006, BE 2810, 21.01.2007).

Estamos, pois, devendo um debate aprofundado sobre a correta interpretação e

alcance da Lei 11.382, de 2006.

O tema é polêmico. Hic sunt leones.

2. A probatio diabolica e o remédio santo

Para o conselheiro do Irib, a averbação premonitória “não dispensa a

apresentação das certidões dos distribuidores civis as quais continuarão a ser exigidas

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nos casos previstos em lei, por dois motivos: primeiro, porque podem existir ações de

outra natureza; segundo, porque a averbação em apreço dependerá da iniciativa do

exeqüente, não havendo garantia de que será efetuada em todas as situações criadas”. E

conclui. “Analisados os dispositivos legais mencionados até este ponto, cumpre

lembrar, inicialmente, ao registrador, que não é o ajuizamento de qualquer ação que

poderá ser averbado. O artigo criado (615-A) refere-se apenas à notícia da execução de

dívida oriunda de títulos executivos judiciais e extrajudiciais, enumerados nos arts. 584

e 585”.

Do mesmo sentir Gilson Carlos Sant´Anna no artigo citado.

Contudo, as conclusões comportam um enfoque divergente.

O ilogismo que se aninha na antevisão da pouca importância da averbação

premonitória é manifesto. Sobre esse tema gostaria de dedicar alguns poucos

comentários, divergindo com o devido respeito de meu querido colega, mestre de todos

nós na difícil arte do registro, Ulysses da Silva.

Quando se diz que a averbação premonitória cinge-se unicamente às

execuções, deve-se ter em mente que as demais hipóteses de publicidade registral já

estão previstas expressamente em lei. Tratou-se, na última reforma do CPC, de fechar

todas as brechas pelas quais ainda era possível transitar as conhecidas exceções. E a

mais expressiva delas, sem dúvida nenhuma, era a hipótese de fraude à execução que se

presumia e aperfeiçoava extra-tabula.

Nunca é demais lembrar que o art. 615-A aponta direta e expressamente ao art.

593 do estatuto processual civil, dispositivo que, em seus incisos, trata das fraudes à

execução. Entre as hipóteses listadas, acha-se a alienação ou oneração de bens “quando

sobre eles pender ação fundada em direito real” (inciso I).

Sobre o tema, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery registram.

“O nome do instituto – fraude de execução – pode levar o intérprete a

confusões. Não é apenas no processo de execução que pode haver fraude de execução.

Como o ato fraudulento é atentatório à dignidade da justiça, é suficiente que haja

litispendência em ação judicial, qualquer que seja ela (de conhecimento – declaratória,

constitutiva ou condenatória –, cautelar ou de execução), em qualquer juízo (comum –

federal ou estadual –, trabalhista, eleitoral ou militar), desde que tenha aptidão para

levar o devedor à insolvência” (CPC comentado. 9.ed. São Paulo: RT, 2006, p. 850).

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Uma vez mais, não nos esqueçamos de que a hipótese de fraude à execução

decorrente de alienação ou oneração de bens, se pendente ação fundada em direito real

ou pessoal reipersecutória, é objeto de registro obrigatório, ex vi do art. 167, I, 21

combinado com o art. 169 da Lei de Registros Públicos.

E a doutrina sempre esteve atenta ao fato. Por todos, Liebman, para quem a

alienação de bens feita quando pendente ação real ou pessoal reipersecutória leva à

fraude à execução. Porém, “para ciência de terceiros, as citações relativas a estas ações,

em se tratando de imóveis, devem ser inscritas no registro imobiliário, e a falta desta

inscrição obrigará o credor a provar o conhecimento por parte do terceiro da existência

do processo pendente” (Liebman. Enrico Tullio. Processo de execução. 2.ed. São Paulo:

Saraiva, 1963, p.78, n.45).

De outra banda, afastemos, liminarmente, a interpretação que se faz de que o

art. 615-A do CPC representaria uma nova hipótese de fraude à execução – ladeada

àquelas já previstas nos incisos do art. 593 (em doutrina, v.g., Palharini Jr. Sidney et al.

Nova execução de título extrajudicial. São Paulo: Método, 2007, p. 55). Ora, fosse

assim, o parágrafo terceiro do art. 615-A estaria aninhado entre as hipóteses

subordinadas ao caput do referido art. 593.

Quer nos parecer que a melhor interpretação aponta na direção de que as

hipóteses de fraude à execução, já previstas nos três incisos do art. 593, são agora

qualificadas pela nova sistemática do Código pelo concurso da publicidade registral,

com o anexo efeito da presunção de conhecimento (e oponibilidade) dos atos judiciais.

Tanto as averbações previstas no art. 615-A do CPC quanto as hipóteses

arroladas na Lei 6.015/73 são espécies de uma mesma categoria cujo escopo – além de

advertir, prevenir, acautelar terceiros – é desencadear importantes efeitos de

oponibilidade/inoponibilidade. São, pois, inscrições premonitórias e delas decorrem

importantes efeitos presuntivos dos quais mais adiante se falará.

Não procede, pois, o argumento de que a averbação premonitória cingir-se-ia

exclusivamente às hipóteses executivas – de molde a sugerir que as demais seriam

apuradas pela informação dos distribuidores.

Já a eventual inação do exeqüente, longe de frustrar o desencadeamento dos

efeitos presuntivos – que vão acarretar a inversão do ônus da prova e a qualificação da

fraude à execução – tal inércia simplesmente concretizará o que a lei prevê e sanciona

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com o mecanismo da inoponibilidade. Parece demasiado, portanto, sustentar que a

eficácia da lei esteja na dependência da vontade do exeqüente.

Tampouco parece lógico que se exijam certidões unicamente dos distribuidores

cíveis estaduais. Se exigíveis, as certidões abrangerão, necessariamente, todos os

distribuidores, em qualquer juízo, federal ou estadual (comum, trabalhista, eleitoral ou

militar). E não só. Por uma questão de lógica e coerência, o raciocínio deve ser levado

ao seu limite: seriam necessárias certidões negativas da Fazenda Pública, pois o advento

da Lei Complementar 118, de 2005, alterou a redação do art. 185 do Código Tributário

Nacional, CTN, de modo que se presumirá fraudulenta a alienação ou oneração de bens

e rendas “por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”.

Ora, se a “a simples existência da ação” já caracterizaria a fraude à execução,

segundo Ulysses da Silva – e por tal razão se exigiriam as certidões dos distribuidores –,

com igual razão deveriam ser exigidas as certidões das fazendas públicas.

É preciso compreender que, com as certidões investigatórias dos distribuidores,

estamos diante de uma verdadeira probatio diabolica. Para casos que-tais, os sistemas

jurídicos criaram presunções legais, inversão do ônus da prova e... sistemas registrais!

Percebe-se que a qualidade da diligência vestibular propugnada pelos

defensores das certidões dos distribuidores está na exata proporção dos custos inerentes

à investigação. Ou seja, será tanto mais custosa a investigação quanto mais acurada e

precisa for a pesquisa. Em outras palavras, a via eleita é claramente irracional por

antieconômica.

Por outro lado, se nos contentamos com uma diligência mediana para livrar o

adquirente de eventuais aborrecimentos futuros, haveremos de convir, então, que essa

providência não é a mais adequada, por só relativamente segura. Explica-se. Essa

providência poderá de fato livrar os bens do adquirente diligente caso ocorra uma

ameaça que provenha de fatos posteriores ou ocorridos fora do alcance da pesquisa.

Porém, nesses casos, o adquirente somente livrará o bem constrito após ilidir em juízo

uma presunção que a peregrinação aos distribuidores parece sempre sugerir. Esse o

ponto: só tem sentido uma investigação vestibular nos distribuidores se admitirmos que

sempre haverá uma presunção de má-fé na aquisição de bens por parte de terceiros.

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Haveríamos de pensar em outros mecanismos que pudessem garantir o

mercado imobiliário, blindar as transações jurídico-imobiliárias, sem onerar

demasiadamente os atores, nem colocá-los em risco.

Para poder superar essa deficiência essencial – consistente na necessidade de

peregrinação aos distribuidores e outras instâncias administrativas para realizar o tráfico

jurídico-imobiliário –, por incrível que possa parecer, talvez fosse necessário criar um

bom... sistema de registro de imóveis! Sim, justamente é isso mesmo que fizeram

nossos legisladores no século XIX, quando, para pôr cobro ao “clandestinismo jurídico”

– com suas hipotecas, constrições judiciais e onerações ocultas – fruto de uma

extraordinária engenharia econômico-jurídica, criou-se então o sistema registral pátrio.

Há outros aspectos na avaliação feita pelo conselheiro do Irib a respeito dos

quais gostaria de poder objetar. Deixemo-los para outra oportunidade. Fiquemos por ora

com os aspectos da publicidade registral em contraste com a dos distribuidores.

3. A história do registro nos absolve

O aspecto medular ferido na matéria – e nos artigos aqui comentados – refere-

se à eficácia do registro imobiliário brasileiro e a resposta que a instituição pode (e

deve) dar aos desafios da sociedade em superar as inúmeras dificuldades para se realizar

com segurança um negócio imobiliário.

Desde logo, convenhamos: não parece lógico fazer depender a inteira eficácia

da publicidade registral imobiliária da manifestação de outros órgãos alheios ao registro

de imóveis.

Não custa lembrar que há muito tempo a doutrina brasileira especializada vem

sustentando a imperiosa necessidade do acesso dos títulos judiciais ao registro. Desde

Clóvis, passando por Lysippo Garcia, Dídimo da Veiga, Philadelpho Azevedo, Serpa

Lopes e uma plêiade de grandes juristas pátrios, todos vêm procurando obviar o que

sempre se reconheceu como a nódoa essencial do sistema: o “clandestinismo jurídico”.

É preciso combater os ônus ocultos, atacar os gravames opacos, guerrear as constrições

que insistem em transcender os limites subjetivos da lide alcançando terceiros e

tomando de assalto o adquirente de boa-fé. Tudo isso ocorre simplesmente por não se

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cumprir o que desde muito cedo figura em nossa legislação como requisito obrigatório

para eficácia dos atos ou fatos jurídicos em relação a terceiros: o registro de todas as

vicissitudes judiciais que os possam afetar.

4. A inteligência não é um atributo da contemporaneidade

Já nos alvores do século XX, uma das primeiras medidas legais que o novo

Código Civil reclamava era a votação de um regulamento que versasse sobre os

registros públicos. Depois de uma longa jornada na Câmara – que teve início com o

Projeto de Lei 441, de 1917, até o de n. 533, de 1920 – chegava enfim ao Senado

federal, no ano de 1921, o projeto sobre o regulamento dos registros públicos, o

primeiro a ser editado após a vigência do Código de 1916.

Nessa altura, o grande jurista brasileiro Philadelpho Azevedo, em sessão

realizada a 08.06.1921 no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, indicava a

necessidade de colaborar na feitura dessa importante lei, sugerindo um parecer da

Ordem. Foi nomeada uma comissão, composta por Eduardo Duvivier, o próprio

Philadelpho Azevedo, que foi o relator, sob a direção do Prof. Alfredo Bernardes. O

parecer foi apresentado na sessão de 29.06.1921, aprovado pelo Instituto a 7 de julho do

mesmo ano e logo encaminhado ao Senado.

Assim, atendendo à sugestão da douta comissão, figurou no Regulamento de

1924 (art. 5º, a, VII e VIII) a inscrição das penhoras, arrestos, seqüestros e das citações

de ações reais ou pessoais reipersecutórias.

Mas o que pensavam os mais ilustres juristas da época acerca dessa medida

premonitória? Vale a pena rememorar as palavras de Philadelpho Azevedo, escritas em

1924, registradas no livro que temos o enorme gosto de reeditar e que em breve virá a

lume (Registros públicos. Lei 4.827, de 07.02.1924. Comentário e desenvolvimento. Rio

de Janeiro: Litho-Typo Fluminense, 1924).

“Nos mesmos termos da alínea anterior [VII, que trata da penhora, arresto

seqüestro], o Congresso aceitou a sugestão do Instituto, que veio a concorrer para a

perfeição do nosso registro de imóveis, ainda que indiretamente, como vimos, por esse

conjunto de medidas que vêm facilitar o conhecimento de terceiros sobre circunstâncias

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úteis; independentemente de cadastro, aproximar-nos-emos do sistema germânico, sem

desvantagem”. [omissis]

“Assim, [omissis] ficarão constando dos registros de imóveis não só os

arrestos, seqüestros e penhoras, como as ações reais e pessoais reipersecutórias:

alcançado estará o duplo escopo, dificilmente colimado em leis diversas – a boa fé de

terceiros e a não fraudação dos credores, perfeitamente conciliáveis por essas

providências.”

“O próprio registro hipotecário suprirá o subsídio, em grande parte imperfeita,

das certidões dos distribuidores, que muitas vezes não podem fornecer informações

precisas, v.g. nos embargos de terceiros, e, o que é mais, não obedecem ao estrito

critério real, demandando uma busca rigorosa em todos os cartórios espalhados pelo

país.”

“É um regime análogo ao das prenotações usado na Alemanha (CC, arts. 883,

892 e 899), na Itália (CC, arts. 1.933, 1.080, 1.088, 1.325, 1.308, 1.511, 1.553 e 1.787),

na Argentina (Código de Processo - Buenos Aires, art. 482 e federal 247), em Portugal

(CC, arts. 949 e 966), na França (aliás, com preferência para as hipotecas judiciais, o

que a maioria dos autores condena) e na Espanha sob o título de anotaciones

preventivas (leis sucessivas a partir de 1861, sendo o atual de 16.12.1909).”

“Entre nós, o projeto de Código Processual, organizado sob os auspícios do

Ministro Esmeraldino Bandeira (Decreto 8.332, de 03.11.1910), já consagrava com

felicidade essas medidas, que, aliás, deviam constar de lei federal, como a presente,

sobre registros públicos”. (Op. cit., p. 88).

Segue o festejado autor comentando o acesso e a publicidade registral de atos

judiciais, fazendo referência ao Decreto 737, de 25.11.1850 (que determina a ordem do

juízo no processo comercial), diploma legal de capital importância para se

compreenderem as origens imediatas do instituto da fraude de execução entre nós.

“O Regulamento n. 737 referia-se no art. 494, n. 1, a bens litigiosos ou sobre os

quais pende demanda, sendo a sua origem a Ord. l. 4, tit. 10, a execução era sempre

possível sobre os bens litigiosos, em ação real ou pessoal in rem scriptae, quer tivesse

sido o adquirente particeps fraudis, quer não, com a única diferença de ser ouvido

sumariamente no segundo caso (Teixeira de Freitas. Consol., arts. 348, 349, 925 e

976).”

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“A lei estabeleceu o mesmo princípio, condicionado à inscrição prévia no

registro predial; do contrário, será necessária a prova de fraude do adquirente” (Op. cit.,

p. 88).

Mais adiante, esclarecerá o que sejam propriamente ações pessoais

reipersecutórias e, com rara percepção, justificará a fórmula adotada pela lei (mantida

até hoje) para enfeixar os atos jurídicos passíveis de produzir uma grave repercussão no

tráfico jurídico-imobiliário. É uma bela e justa síntese. Ao mesmo tempo que dirá que

ao profissional do direito caberá avaliar cada caso concreto para promover a inscrição,

faz antever que o registrador não estará adstrito a um elenco taxativo para atuar no

exercício de sua peculiar atividade de qualificação registral. Para ambos – requerente e

registrador – valerá o interesse legitimado daquele que rogará a inscrição; e o critério

norteador, nesses casos, demandará uma interpretação extensiva. Vamos lhe dar voz

uma vez mais.

“Reinando certa controvérsia sobre a classificação das ações, andou bem o

legislador consagrando uma fórmula genérica, ao invés da enumeração taxativa,

seguida, por exemplo, no código italiano.”

“Ao profissional caberá verificar em cada caso o caráter da ação para promover

a cautela da inscrição (Chironi, loc. cit.), devendo a interpretação ser extensiva; assim,

tudo aconselhará a inscrição das ações possessórias (Câmara Leal – Teoria e prática das

ações, 1923, n. 30. Sá Pereira, in Gazeta Jurídica de 18.01.1924; Azevedo Marques, Da

ação possessória, § 51), das ações divisórias cuja classificação definitiva é uma vexata

quaestio, etc.”

“O Prof. Aureliano de Gusmão considera ações pessoais reipersecutórias as

que, derivando de uma obrigação, têm uma direção real, recaindo sobre uma cousa certa

(rem sequuntur) e podendo ser propostas ou contra a pessoa obrigada ou contra o

possuidor da cousa” (Op cit., p. 89).

A doutrina acolheu as teses apresentadas pelos advogados por meio de sua

importante corporação. Capitaneada por Philadelpho Azevedo, as propostas lograram

acomodar-se no Regulamento de Registros de Imóveis e assim se mantêm até hoje,

ignoradas olimpicamente, contudo, por parte da doutrina – processualista notadamente.

Serpa Lopes, o tratadista de registros públicos, toma de empréstimo as

contribuições lúcidas e generosas e avança na confirmação e acerto da solução legal.

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Dirá, como agora o diz a doutrina processualista, que o efeito essencial do registro das

constrições judiciais é constituir o estado de má-fé do terceiro adquirente que registrou

o seu direito após a inscrição. Reitera a idéia da obrigatoriedade desses registros e,

citando Amílcar de Castro (nos seus comentários ao Código de 1939) dirá que o fato de

não ter sido inscrita a constrição judicial não impedirá a alegação da fraude à execução;

unicamente que ficará o exeqüente com o ônus de provar que o adquirente tinha

conhecimento da existência de ação real ou pessoal reipersecutória ou de demanda que

poderia reduzir o devedor à insolvência. Conclui que, feita a inscrição, as alienações

posteriores se presumirão absolutamente em fraude à execução (iuris et de iure),

independentemente de qualquer outra prova (Tratado de Registos Públicos. 4. ed. Rio

de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, v.II, p.419, n.400).

Amílcar de Castro tiraria importantes conclusões dos efeitos decorrentes da

não-inscrição. Para ele, não tendo sido feita a inscrição premonitória, o exeqüente

deveria provar as condições legais da existência de fraude à execução, acenando com o

efeito meramente publicitário da inscrição registral. Vale a pena citá-lo na passagem em

que comenta o procedimento de execução.

“O fato, porém, de não ter sido registrada, ou inscrita, a penhora, ou o arresto,

o seqüestro, ou a citação, não impede a alegação de fraude contra a execução, e, sim,

somente, tem a significação de ficar o exeqüente no ônus de provar que o adquirente

tinha conhecimento, ou de que sobre os bens estava sendo movido litígio fundado em

direito real, ou de que pendia contra o alienante demanda capaz de lhe alterar o

patrimônio, de tal sorte que ficaria reduzido à insolvência. Feita a inscrição, as

alienações posteriores peremptoriamente se presumem feitas em fraude de execução,

independentemente de qualquer outra prova. Não sendo feita a inscrição, o exeqüente

deve provar as condições legais da existência de fraude à execução. Vale dizer, a

inscrição só tem efeito de publicidade, e, vale como prova presumida, irrefragável, de

conhecimento das condições legais de fraude por parte de terceiros” (Amílcar de Castro.

Do procedimento de execução. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.66-7).

Não está dito, mas presumido, que a não-inscrição das constrições igualmente

gera importantes efeitos – nomeadamente a inoponibilidade das pretensões do credor-

exeqüente de exercitar, para além dos limites estreitos do processo, seus direitos. Se o

quiser, haverá de provar a fraude.

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Embora a fraude à execução se insira entre os fatos considerados atentatórios à

dignidade da Justiça (art. 600, do CPC) – o que relevaria o aspecto público do

microssistema – não se pode esquecer, todavia, que, tanto o art. 615-A, quanto o 659,

parágrafo quarto do estatuto processual, cometem ao exeqüente a tarefa de providenciar,

para presunção de conhecimento de terceiros, as inscrições premonitórias. Trata-se de

um fenômeno bastante relevado de colaboração com o poder público para a

movimentação e realização da jurisdição, não mais atuando as partes como meros

espectadores do desenvolvimento do processo.

Os efeitos desses registros, fixados na própria lei, parecem ultrapassar a

tipologia clássica da publicidade-notícia, acenada por Amílcar de Castro, jungindo

efeitos jurídicos relevantes ao ato judicial, como em outra oportunidade se procurará

demonstrar.

A doutrina especializada não discrepa. Assim, além dos citados, Waldemar

Loureiro (Registro da propriedade imóvel. 6. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 350-

2); Nicolau Balbino Filho (Registro de imóveis. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.160-

1); Walter Ceneviva (LRP comentada. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.389, n.477);

Wilson de Souza Campos Batalha (Comentários à Lei de Registros Públicos. 4. ed. Rio

de Janeiro: Forense, 1997, v.II, p.747); e Maria Helena Diniz (Sistemas de registro de

imóveis. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 213-16).

Enfim, execuções, cautelares, reivindicatórias, ações reais, pessoais ou

reipersecutórias, todo um elenco de ações judiciais que possam comprometer o tráfico

jurídico-imobiliário – inclusive as indicadas por Gilson Carlos Sant´Anna no artigo

citado e pelo Conselheiro do Irib – sempre tiveram acolhimento no registro. Ou

deveriam ter. Vejamos em concreto a larga trajetória da inscrição das constrições

judiciais ao longo do último século.

Como sugerido por Philadelpho Azevedo, ainda hoje se registram penhoras,

arrestos e seqüestros (art. 167, I, 5 c/c. os arts. 239 e 240, da LRP); registram-se as

citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis (art. 167, I, 21,

LRP); averbam-se as decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou

títulos registrados ou averbados (art. 167, II, 12, LRP). Averbam-se as

indisponibilidades (art. 247 c/c. o art. 185-A, CTN, por exemplo, dentre inúmeras outras

hipóteses de averbação de indisponibilidades). Averbam-se as circunstâncias que por

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qualquer modo alterem o registro – por exemplo, a limitação da disponibilidade e a

ineficácia de atos dispositivos (art. 246, LRP).

Como se vê, não é novidade alguma o acolhimento desses fatos no Registro

Imobiliário. Pelo contrário. É da tradição do direito brasileiro a relevação da inscrição

no registro de imóveis de fatos como penhoras, arrestos, seqüestros, ações reais,

pessoais reipersecutórias – desde o advento do Decreto 4.827, de 1924 (art. 5º, a, VII e

VIII), passando pelo Decreto 18.542, de 24.12.1928 (art. 173, a, VI e VII, e art. 265 e

266); Decreto 4.857, de 09.11.1939 (art. 178, a, VI, e arts. 279 e 280) até alcançar a

vigente Lei de Registros Públicos – Lei 6.015/73.

Todos esses registros e averbações são obrigatórios, nos expressos termos do

art. 169 da Lei 6.015/73.

“Art. 169. Todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios e efetuar-se-

ão no Cartório da situação do imóvel.”

Já o eram na vigência do Decreto 4.857, de 1939 (art. 179). Até mesmo o

elenco de certidões solicitado por ocasião do registro de parcelamento do solo urbano e

incorporação imobiliária (Lei 6.766, de 1979, art. 18, e Lei 4.591, de 1964, art. 32,

respectivamente) pode ser considerado uma exigência expressa da lei, que leva em

muita consideração, desde as origens da legislação protetiva-social dos parcelamentos

do solo urbano, o caráter social, de evidente interesse público (direitos do consumidor,

ambiental, urbanístico, etc.) o que torna, em tese, indiscutível a aquisição desses bens,

numa ambiência de fé pública registral avant la lettre.

Aliás, registre-se de passagem que o Decreto-lei 58, de 1937, já previa que as

“penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis, para os efeitos da apreciação da fraude de

alienações posteriores, serão inscritos obrigatoriamente, dependendo da prova desse

procedimento o curso da ação” (art. 2º das Disposições Transitórias). E o Código de

Processo de 1939 igualmente previu, no art. 348, que, “no mesmo despacho em que

conceder penhora, arresto ou seqüestro de imóvel loteado, o juiz, ex-officio, mandará

fazer, no registo, as devidas anotações”.

Restaria investigar se a regra do art. 348 se encontraria ainda vigorante, uma

vez que, nos termos do art. 1.218 do atual Código de Processo Civil (Lei 5.869, de

1973), continuariam em vigor “até serem incorporados nas leis especiais os

procedimentos regulados pelo Decreto-lei 1.608, de 18.09.1939”. Entre os quais

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figuram as regras concernentes ao loteamento e venda de imóveis a prestações (arts. 34-

39).

Como se vê, sempre houve uma grave preocupação do legislador com a

publicidade dos atos judiciais pela via do registro. A exigência legal – de se atrair para

os livros fundiários todas as circunstâncias extra-tabulares que possam afetar a

aquisição desses bens – visa a tutelar a boa-fé, dar impulso ao comércio jurídico,

diminuir custos transacionais e blindar o credor nas execuções contra a dissipação

patrimonial que pode calhar no encaminhamento das demandas.

A segura e determinada inflexão que o processo civil experimenta desde o

advento da Lei 8.953, de 1994, passando pela reforma da reforma (Lei 10.144, de 2002)

até o advento da Lei 11.382, de 2006, teve em mira justamente a tutela do terceiro

adquirente de boa-fé. Numa palavra, valorizou-se a segurança jurídica preventiva, com

apoio declarado e manifesto no registro imobiliário.

Portanto, não parece lógico que insistamos na senda de se exigir, para a

realização dos negócios jurídicos imobiliários, um elenco de certidões negativas que só

potencializa os custos e inocula o germe da insegurança jurídica. Sim, pois que, para se

obter certidões negativas de todos os distribuidores cíveis, criminais, trabalhistas,

federais, do domicílio do alienante e da situação do imóvel – considerando-se a regra do

domicílio no novo Código Civil (art. 71), a possível despersonalização da pessoa

jurídica, relevando-se a inversão de eleição do foro em virtude da situação privilegiada

do contratante, a inexistência de indicadores “reais” nos distribuidores, etc. –, o

conjunto de todas essas circunstâncias torna a investigação da situação patrimonial do

alienante simplesmente uma aventura. E cara. Os custos transacionais são uma variável

importante a ser considerada aqui.

5. Segurança jurídica e direito à privacidade

Estamos falando de segurança jurídica plena e tutela do direito à privacidade.

Ou o distribuidor provê a segurança com um grau de certeza e segurança equiparável à

que se espera do registro, ou a via eleita é inadequada. Ad argumentandum, talvez se

pudesse cogitar da coadjuvação dos distribuidores, se entre nós existisse uma central

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que congregasse, na sua base de dados, logicamente informatizada, dados abrangendo a

justiça comum e especializada de todo o país. Mas aí teríamos um megacadastro

redundante, inespecífico e invasivo. Nesse caso, ou a publicidade do registro imobiliário

seria simplesmente despicienda, redundante e antieconômica, ou a centralização dos

distribuidores, para esse fim específico, seria um investimento irracional, além de

atentatório ao direito individual de proteção de dados de caráter pessoal. Fácil perceber

que estamos diante de instituições com finalidades diversas e a solução salomônica,

alvitrada pelos críticos, não é nada razoável.

Fiquemos, pois com o que nos parece mais lógico, econômico e consentâneo

com o modelo de registros de segurança jurídica que existe praticamente no mundo todo

desde o século XIX (mesmo no Brasil): que se concentrem no registro imobiliário todas

as circunstâncias, fatos e atos jurídicos que, relacionados com o bem, possam afetar

terceiros.

6. Samba, carnaval e fraude à execução – O que têm em comum?

O Brasil tem características muito particulares, também nesse campo. O grande

processualista Enrico Tullio Liebman já manifestava sua perplexidade diante da figura

que, em sua opinião, é uma genuína criação nacional: a fraude à execução (Processo de

execução. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 91). Para ele, na legislação de outros

países, a figura da fraude à execução é simplesmente desconhecida, o que levaria

Everaldo Cambler a destacar que essa ausência se deveria pela força do sistema

registral imobiliário, notadamente em países como Portugal, Itália, Alemanha e

Espanha (Fraude de execução. Revista de Processo v.58/157). Isto é, onde os registros

de imóveis funcionam, não são necessários mecanismos burocráticos, inseguros e

custosos para investigar a situação jurídica da propriedade e do alienante nem para se

garantirem os direitos agitados em juízo, em execuções, ações ordinárias, cautelares etc.

Deprimam-se os efeitos da publicidade registral e eis que surgem, vicejando à

sombra do ocaso dos sistemas registrais, simulacros de publicidade registral.

Ulysses da Silva, no artigo referido, liquida a inovação alvissareira contida na

verba legislativa, decretando que, quanto à fraude à execução, “a simples existência da

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ação já a caracteriza, nos termos do art. 593, com os agravantes previstos no art. 600,

servindo a averbação em apreço apenas como veículo de publicidade da execução.”

Ora, se a averbação servirá apenas como “veículo de publicidade da execução”

sem interferir, como se espera, que possa interferir na modulação da fraude à execução,

então, de fato, a reforma terá sido inócua.

Depois, a simples existência da ação executiva já não é suficiente para

caracterizar a fraude à execução. Para caracterizar a fraude à execução concorreriam os

seguintes fatores:

a) litispendência;

b) presunção de conhecimento pelo adquirente da existência e extensão da ação

pelo registro (ou prova desse conhecimento proporcionada pelo credor);

c) alienação ou oneração capaz de reduzir o devedor à insolvência. Não seria,

portanto, suficiente a “simples existência da ação”; além disso, se entendia necessária a

ocorrência da penhora. Do contrário, ainda que citado o executado regularmente, seria

imprescindível a prova da insolvência. (REsp 4.132-RS, 2/10/1990, relator Min. Sálvio

de Figueiredo).

Desde a modificação original do parágrafo quarto do art. 659 do CPC, feita

pela Lei 8.953, de 1994, essa tendência era percebida claramente pela doutrina. Por

todos, Cândido Rangel Dinamarco:

“Aí está a grande importância da inovação trazida nesse novo parágrafo: sem

ter sido feito o registro, aquele que adquirir o bem presume-se não ter conhecimento da

pendência do processo capaz de conduzir o devedor à insolvência. A publicidade dos

atos processuais passa a ser insuficiente como regra presuntiva de conhecimento. A

conseqüência prática dessa nova disposição será a inexistência de fraude de execução

capaz de permitir a responsabilidade patrimonial do bem alienado, sempre que a

penhora não esteja registrada no cartório imobiliário (CPC, art. 593, esp. Inc. II).”

Esse era o estado das discussões. Mas, como já se teve ocasião de referir,

estamos vivendo uma lenta e inexorável transformação. Prestigia o nosso Direito o

princípio da boa-fé, de modo que se vem robustecendo a tutela da posição do terceiro

adquirente que de boa-fé e confiado no que o registro publica adquire bens imóveis.

Valoriza-se cada vez mais a segurança jurídica – tudo isso em detrimento da cômoda

posição do credor-exeqüente inerte. Essa mudança se expressa na regra das presunções

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que o CPC criou (art. 659, §4º, c/c o art. 615-A) e na revigoração das tradicionais

virtudes do registro.

7. Defraudando a fraude

Em face de uma profunda modificação que a reforma do CPC representa para o

registro imobiliário brasileiro, com explícita referência no art. 615-A ao art. 593 do

estatuto processual (que trata, especificamente, da fraude à execução), causa

perplexidade que se insista na tese que desconsidera a tutela da segurança jurídica e da

boa-fé, fazendo pender a presunção de fraude em favor do credor-exeqüente, isso tão-só

por efeito da citação válida – malgrado o fato de a lei processual lhe ter concedido

instrumentos idôneos para ilidir a boa-fé dos sub-adquirentes.

O que gostaria de ver debatido pela doutrina, especialmente a registrária, é o

seguinte: em que medida a qualificação do art. 593, pelos termos do disposto no art.

615-A, parágrafo terceiro, não redundará, simplesmente, no decaimento da automática

presunção da fraude à execução para acomodar-se o fenômeno numa nova situação de

fraude contra credores quando não consumada a averbação premonitória?

A lei é clara: a presunção de fraude ocorre com a inscrição registral (averbação

premonitória) – “presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens

efetuada após a averbação (art. 593)”. No mesmo diapasão, a regra do art. 659,

parágrafo quarto do CPC: a inscrição da penhora no ofício imobiliário competente gera

a “presunção absoluta de conhecimento por terceiros” da execução.

As presunções são ilações que a lei cria para, à luz de um fato conhecido,

firmar um outro desconhecido. Quem tem a seu favor a dita presunção, fica escusado de

provar o fato a que ela conduz. Pode-se ilidir tal presunção, quando então se dirá que é

relativa ou iuris tantum. Ora, é assim a propriedade em nosso sistema. O art. 1.245,

parágrafo primeiro do Código Civil de 2002 gera uma presunção relativa da

propriedade; já o art. 2.o sinaliza que a invalidade do registro deve ser provada em ação

própria. Até a decretação judicial dessa invalidade, o proprietário continua mantido em

sua posição jurídica. Goza de uma presunção juris tantum que apóia sua posição

jurídica.

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Falando a lei processual, portanto, em presunção (art. 615-A, § 2º, e art. 656,

§4º), tal fenômeno, não ilidido, apresenta a nota de eficácia contra terceiros. Mas é

preciso estar atento para o fato de que, não diligenciando o exeqüente a dita averbação

premonitória (e a inscrição da penhora), produz-se a inversão do ônus da prova e o

efeito inverso da oponibilidade. Ou seja, a inação cria a inoponibilidade das pretensões

do exeqüente, que gera o efeito da presunção de boa-fé na aquisição do bem por

terceiros.

Nesse caso, caberá ao credor-exeqüente alegar (e provar) a má-fé do terceiro

adquirente nas aquisições a título oneroso.

Trata-se de um fenômeno bastante conhecido dos registradores: a

inoponibilidade. Os fatos sujeitos a registro e não registrados são inoponíveis a

terceiros.

Essa tendência vem ganhando robustez nos tribunais superiores. A

jurisprudência do STJ tem afastado o reconhecimento de fraude à execução nos casos

em que a alienação do bem do executado a terceiro de boa-fé tenha se dado

anteriormente ao registro da penhora do imóvel. Precedentes: REsp 893105/AL, relator

Min. Francisco Falcão, DJ 18.12.2006; REsp 739.388/MG, relator Min. Luiz Fux, DJ

de 10.04.2006; REsp 724.687/PE, relator Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de

31.03.2006; e REsp 791.104/PR, relator Min. José Delgado, DJ de 06.02.2006, só para

ficar nas decisões mais recentes.

8. Não há espaço para a relatividade do tempo

Em outra passagem, Ulysses da Silva et al., comentando que a averbação

premonitória poderá ser feita com a certidão comprobatória do ajuizamento da

execução, pondera e recomenda que tal certidão seja fornecida pelo escrivão da vara

para a qual foi destinado o feito. E junge: “considero medida de prudência, para tal fim,

aguardar a autuação da ação e o despacho inicial do juiz, tendo em vista a possibilidade

de a execução não prosperar, em face de algum impedimento”.

Ora, mas foi justamente para dar mais velocidade, simplicidade e agilidade à

publicidade registral da pendência judicial que se deslocou do juízo para o instante

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seguinte à distribuição a providência publicitária acautelatória de terceiros – sabedores

que é crítico o período que medeia a distribuição e as providências de autuação, citação

e penhora (ou pré-penhora, nos casos cabíveis). Esse interregno pode demorar meses

nos grandes centros urbanos – o que tem dado ensanchas à dissipação patrimonial pelo

executado, colocando em risco a efetividade do processo executório, as pretensões do

exeqüente e fragilizando os direitos de terceiros.

Salvo melhor juízo, esse argumento investe contra o sentido mais essencial da

reforma neste particular aspecto.

Também é possível enfrentar a referência que se encontra no texto do

respeitado registrador que sugere que, uma vez realizada a averbação premonitória,

reduz-se a necessidade de inscrição da penhora, “a qual poderá vir a tornar-se

dispensável”.

Ora, o art. 615-A estabelece expressamente um rito próprio para a sobrevida

dessa averbação, prevendo seu cancelamento se formalizada a penhora sobre bens

suficientes para cobrir o valor da dívida (§ 2º). Assim como lhe pareceu lógico alhures

que a conversão do arresto em penhora devesse ser objeto de publicidade registral, com

a inscrição respectiva (Ulysses da Silva et al. Penhora e cautelares no registro de

imóveis. São Paulo: Irib, p. 76), também nesse caso, e pela mesma razão, far-se-á o

registro da penhora, fato mediante o qual se materializa a afetação do bem à demanda

executória.

É em razão da penhora que se dá a individualização e apreensão dos bens do

executado, afetando-os, desse modo, à execução, bem como confirmando-se que os atos

de disposição são ineficazes em face do processo executivo. Não nos esqueçamos de

que a presunção absoluta da existência da constrição judicial só ocorre com a inscrição

da penhora (ex-vi § 4º, art. 659, do CPC), o mesmo não ocorrendo com a averbação

premonitória. A nota de distinção fundamental repousa no interesse que movimenta a

rogação da averbação premonitória pelo particular – em contraste com o interesse

público que fundamenta a decretação, pelo juízo executivo, da penhora. As distinções

entre uma medida e outra podem ser medidas pelos efeitos da publicidade – presunção

relativa e absoluta que decorre da publicidade registral.

Há, ainda, um particular interesse no registro das penhoras, uma vez que,

embora a definição da preferência não tenha logrado deslocar-se para o registro (como

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parecia sugerir a Lei 8.953, de 1994), a verdade é que, em face da dispersão das ações

executivas e da inexistência de uma disciplina uniforme para a concentração e definição

da ordem de prioridade das penhoras – concretizado o princípio prior tempore, potior

iure –, também aqui o registro pode proporcionar informações seguras sobre a ordem

preferencial aos vários juízos executivos.

Por isso, o art. 698 do CPC, alterado pela lei em comento, prevê que não se

efetuará a adjudicação ou alienação de bem do executado sem que da execução seja

cientificado, por qualquer meio idôneo, “o credor com garantia real ou com penhora

anteriormente averbada, que não seja de qualquer modo parte na execução”.

Parece haver uma tendência de coordenar o controle de preferências do CPC

com as inscrições das penhoras – com vantagens para a clarificação da situação jurídica

dos bens constritos. O disposto no art. 698 faz repercutir, agora em segundo grau, a

eficácia decorrente do registro da penhora. Se não se efetuar a adjudicação ou alienação

de bem sem que da execução seja cientificado o credor com penhora anteriormente

averbada, segue-se que serão inoponíveis aos demais credores penhorantes as penhoras

não inscritas regularmente. A eficácia do registro da penhora alcança todos os terceiros

– mesmo, como não poderia deixar de ser, os demais credores-exeqüentes, como prevê

o disposto no art. 698 do CPC.

Parafraseando Lafayette, um direito de preferência que é eficaz somente entre

os concorrentes, partes na mesma execução, mas que não o é em relação a terceiros

executantes em mesma condição, “é uma monstruosidade que repugna à razão”.

De alguma forma a reforma concretiza na lei o que na capital de São Paulo, por

determinação do magistrado Venicio Antonio de Paula Salles, como juiz da Primeira

Vara de Registros Públicos de São Paulo, era praxe nos registros prediais. Vale a pena

conferir o decidido no Processo 000.03.130345-5, da Primeira Vara de Registros

Públicos da paulicéia.

Enfim, a inscrição da penhora é obrigatória (art. 169, LRP) e não pode ser

considerada dispensável no âmbito do microssistema criado pela reforma. Dispensável

será a averbação premonitória, desde que efetivada a penhora, mas não vice-versa.

9. Diligência pessoal e extrajurídica

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Enfim, não se nega a importância do distribuidor – cujo valor foi realçado pela

própria Lei 11.382, de 2006. Em São Paulo, por exemplo, a pesquisa acerca da

existência de ações contra eventual transmitente pode ser feita pela Internet. Para se

obter uma certidão negativa de débitos de tributos imobiliários municipais, o adquirente

simplesmente tem que acessar o site da prefeitura e obter a certidão negativa

gratuitamente: <http://www4.prefeitura.sp.gov.br/certidao>. O mesmo se pode dizer do

protesto: <http://dns3.protesto.com.br/protesto/ieptb/SP/pesquisa/SinProtFR.php>.

Tudo isso para não dizer que, na esmagadora maioria das transações

imobiliárias – ao menos na capital de São Paulo, cidade que representa perto de 15% do

PIB nacional (SMF/2005) – as transações se fazem com a dispensa das certidões dos

distribuidores, sob estrita responsabilidade dos contratantes.

10. Certidões de ações judiciais expedidas... pelo registro de imóveis

O art. 1.o, § 2.

o da Lei 7.433/1985 estabelece que o “tabelião consignará no ato

notarial, a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de

Transmissão inter vivos, as certidões fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando

dispensada sua transcrição”.

As certidões fiscais são tratadas à parte e podem ser dispensadas.

Mas, especificamente, quais seriam essas outras certidões?

Dir-nos-á o Decreto 93.240, de 1986, no inciso IV: “a certidão de ações reais e

pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e a de ônus reais, expedidas pelo Registro

de Imóveis competente, cujo prazo de validade, para este fim, será de 30 (trinta) dias”.

Surpreenderia se eu dissesse que essas certidões são expedidas pelo registro de

imóveis? Essas certidões – de publicidade de ações reais e pessoais reipersecutórias

relativas ao imóvel e ônus reais – serão expedidas pelo registro de imóveis, onde, por

força de lei, devem estar averbadas as circunstâncias e vicissitudes que afetem o imóvel

ou os direitos a ele relativos, sob pena de ineficácia em relação ao terceiro adquirente ou

credor (art. 169, LRP c/c. o art. 167, I, 21). Notem o tempo verbal de expedidas,

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concordando com os tipos anteriores. Essas certidões do registro têm prazo de validade

de trinta dias.

E a declaração do alienante no art. 1.o, § 3.

o do Decreto 93.240, de 1986?

Argumenta-se com a possibilidade da existência de ações distribuídas em

outros sítios, considerada a possibilidade de ocorrência de demandas propostas fora da

situação do imóvel ou do domicílio do alienante. Por essa razão, o decreto terá referido

a obrigação do outorgante de declarar na escritura pública a existência de “outras ações

reais e pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e de outros ônus reais incidentes

sobre o mesmo”.

Ora, esperar que o alienante, obrando em fraude à execução, declare no título a

existência das ações é esperar demais da natureza humana. Esse aspecto demonstra, em

definitivo, as minguadas vantagens de se investir na publicidade dos distribuidores para

realização dos negócios imobiliários.

Por fim – para não ficar sem resposta – no caso de obrigações propter rem, a

própria Lei 7.433, de 1985, e seu decreto regulamentador trataram da matéria prevendo

a dispensa com a assunção das responsabilidades pelo adquirente e com as declarações

do síndico (art. 1º, V, § 1º, Decreto 93.240, de 1986, e art. 4º, Lei 4.591, de 1964,

respectivamente).

A exegese da Lei 7.433, de 1985, não é a que se tem exercitado ao longo

desses anos todos. Talvez porque estivéssemos conformados com uma situação de

subalternação do registro e o nosso entendimento estivesse de alguma forma obliterado

por uma praxe que há de ser transformada por superiores razões econômicas e jurídicas.

Que se continuem solicitando certidões do distribuidor para mais tranqüilidade

do adquirente ou do credor não é medida destituída totalmente de alguma razão e

prudência. Contudo, coisa muito distinta é considerar que elas são essenciais por uma

razão de ordem jurídica ou econômica, transcendendo a lógica do sistema de

publicidade registral.

Por outro lado, que alguns tribunais resistam à tendência da valorização da

posição do terceiro adquirente, à tutela da segurança jurídica e à eficácia dos registros

de segurança jurídica, tal fato não invalida a argumentação até aqui desenvolvida. O

nosso sistema legal já prevê, com sólidas bases, um marco legal definidor em relação ao

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qual o mercado poderia se movimentar com muito mais segurança e previsibilidade. É

preciso superar o preconceito e a tendência inercial.

Os distribuidores são muito importantes e formam com o registro de imóveis

um complexo sistema de informações do qual depende a sociedade para os diversos fins

para os quais foi instituído. Mas cada qual deve se dedicar ao que lhe seja próprio e

específico.

Aqui propriamente se pode dizer: reddite quae sunt Caesaris Caesari!

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