Apostila de Literatura Portuguesa

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8/2/2019 Apostila de Literatura Portuguesa http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-literatura-portuguesa 1/66 1  Antologia de textos Literatura Portuguesa 1 1º semestre 2011 Prof. Gregório Dantas http://literaturaemlinguaportuguesa.wordpress.com 

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 Antologia de textos

Literatura Portuguesa 11º semestre 2011

Prof. Gregório Dantas

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 Auto da Lusitânia (fragmento)Gil Vicente

Ninguém: Que andas t u aí buscando?  Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:

delas não posso achar,

 porém ando porfiando  por quão bom é porfiar. 

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?  Todo o Mundo: E u hei nome Todo o M undo

e meu tempo todo inteirosempre é buscar dinheiroe sempre nisto me f undo.

Ninguém: E u hei nome Ninguém,e busco a consciência. 

Belzebu: Esta é boa experiência:Dinato, escreve isto bem. 

Dinato: Que escreverei, companheiro?  Belzebu: Que Ninguém busca consciência.

e Todo o M undo dinheiro. 

Ninguém: E agora que buscas lá?  Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Ninguém: E eu virt ude, que Deus mande

que tope com ela já. 

Belzebu: Outra adição nos acude:escreve logo aí, a f undo,que busca honra Todo o M undoe Ninguém busca virt ude. 

Ninguém: Buscas outro mor bem qu' esse?  Todo o Mundo: Busco mais quem melouvasse

t udo quanto eu fizesse. Ninguém: E eu quem me repreendesse

em cada cousa que errasse. 

Belzebu: Escreve mais. Dinato: Que tens sabido?  Belzebu: Que quer em extremo grado

Todo o M undo ser louvado,e Ninguém ser repreendido. 

Ninguém: Buscas mais, amigo meu?  Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê. Ninguém: A vida não sei que é,

a morte conheço eu. 

Belzebu: Escreve lá outra sorte. Dinato: Que sorte?  Belzebu: M uito garrida:

Todo o M undo busca a vidae Ninguém conhece a morte. 

Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,sem mo Ninguém estorvar. 

Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso. 

Belzebu: Escreve com muito aviso. Dinato: Que escreverei?  Belzebu: Escreve

que Todo o M undo quer paraísoe Ninguém paga o que deve. 

Todo o Mundo: Folgo muito d ' enganar,e mentir nasceu comigo. 

Ninguém: E u sempre verdade digosem nunca me desviar. 

Belzebu: Ora escreve lá, compadre,não sejas t u preguiçoso. 

Dinato: Quê?  Belzebu: Que Todo o M undo é mentiroso,

E Ninguém diz a verdade. 

Ninguém: Que mais buscas?  Todo o Mundo: Lisonjear. Ninguém: E u sou todo desengano. 

Belzebu: Escreve, ande lá, mano. 

Dinato: Que me mandas assentar?  Belzebu: Põe aí mui declarado,não te fique no tinteiro:Todo o M undo é lisonjeiro,e Ninguém desenganado 

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 Auto da sibilia Cassandra (fragmentos)1 Gil Vicente

SALOMÃO Que tens contra o casamento?É tormento

que se dá por algum furto?

CASSANDRA Inda por isso o recuso,pois é curtoseu triste contentamento.Muitos deles são notórioPurgatório,sem concerto ou temperança;e se algum bem se alcança,não é nem satisfatório.

Vejo queixar as vizinhasdas mesquinhasíndoles de seus maridos:uns, que são bem presumidose aborrecidos,covardes como galinhas,outros de ciúmes cheiose com receios,sempre afiando cutelos,suspicazes, amarelos,e malditos pelos céus.

Outros, a pavonearpelo lugar,cortejando as raparigas,sem poupar brancas ou negrasou retintas.E a mulher? A suspirardepois, em casa, implicar,e resmungar,e a triste ali, cativa.Nunca minha vida eu vivase tal coisa consentir!

E já que és cordato e sentes,pensa bem:mulher quer dizer molezae é assim como uma ovelhaem peleja:sem armas, forças ou dentes;

1VICENTE, Gil. O auto da sibila Cassandra. Organização, tradução e notas de Alexandre Soares Carneiro eOrna Messer Levin. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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e se faltar ao maridoalgum sentidoda razão ou da virtude,ai da tenra juventudeque em tais mãos terá caído.

SALOMÃO Não sou destes nem serei;por minha fé,cobrir-te-ei de margaridas.

CASSANDRA E com florinhaspensas que me iludirei?Não quero ver-me perdida,entristecidapor ciúmes ter ou causar.Deixa isso! Põe-te a andar!Antes não fosse nascida!

Ter ciúmes é o pior,que é uma dorque não se pode evitar.Transforma os ventos em mar;faz afirmarque o branco é de outra cor;das boas damas faz más,com suas falas,e dos santos faz ladrões.Não quero estar em paixõesse bem posso evitá-las.

SALOMÃO Se há bom senso, não há ciúmes,só ternuras;que o bom senso tudo dá.

CASSANDRA Bom senso é não ir lá.

SALOMÃO Cala-te já,Que receias às escuras.

CASSANDRA Além disso, os suorese as dores

de partos, chorar de filhos:não quero ver-me em litígiospor mais que tu me namores.

SALOMÃO Irei chamar lá na aldeiaErutéia,Peresica, tua tia,E Ciméria: tua porfiadiante delas se veja.

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CASSANDRA E a mim, que me importará?Quem haveráde casar-me a meu pesar?Se eu não quero me casar,quem a mim obrigará?

(...)

ABRAÃO Digo que estejais em boa hora.Como presente,toma estas duas presilhas.

MOISÉS E eu te dou estes anéisde minhas filhas.

ISAÍAS Eu te dou este colar.

SALOMÃO Dar-te-ei bem sei o quê,mas não seiquanto pode aproveitar.

ERUTÉRIA Muitas coisas faz o dar,como todo dia se vê.

CASSANDRA Tenho de me cativarpor presentes?Vós não me enganais assim!pois digo que prometidentro de mimque não tenho de casar.

MOISÉS Blasfemas, que o casamentoé sacramento,e o primeiro que existiu.Eu, Moisés, já te direie contareionde está o seu fundamento.

No princípio Deus crioue formou

o céu e a terra,com tudo que ela encerra.Mar e serrado nada os edificou:era vácua e vaziae não haviacoisa por quem fosse amado.

O espírito incriado

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sobre as águas luzia.Fiat luz! Logo foi feita,mui perfeita.Sol e lua e as estrelas,criadas claras e belas,todas elas,

por regra justa e direita.Ao sol deu-lhe companheirapor parceira,de uma luz ambos providos,dominados e medido,cada um em sua carreira.

Façamos mais! diz o SenhorCriador:Homem à nossa semelhança,angélico na esperançae na aliança,de toda terra senhor.Logo lhe deu companheiradesta maneira:por uma graça ambos ligados,dois em uma carne amadoscomo se ambos um só foram.

O mesmo Deus que os criouos casoue tratou o casamento,e por seu ordenamentoé sacramentoque ao mundo promulgou.

Foi ele assim o primeirocasamenteiro,e isto é lei determinada.como está tu embirradadizendo que é cativeiro?

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Sonetos2 Petrarca

1.

Esta alma gentil que partiu,antes do tempo, chamada à outra vida,terá no céu segura acolhidaterá do céu a mais beata parte.

Se ela ficar entre a terceira luz e Marte,será a vista do sol descoloridadepois virá, toda alma ao céu subidaem torno dela olhar sua beleza infinita

Se pousar abaixo do quarto ninho,nenhuma das três será mais bela,

que esta só, espalhada a fama e o grito;

No quinto giro não chegara ela;mas se voar mais alto, em muito confioser vencido Júpiter e cada outra estrela.

2.

Talvez suponham que em louvar aquelaque adoro, eu exagere-lhe o perfil,dizendo-a entre as demais, alta e gentil,santa, sábia, graciosa, honesta e bela.

Mas eu sinto o contrário; e temo que eladespreze o meu louvor por ser tão vil,digna de algo mais alto e mais sutil,e quem não o acredite venha vê-la.

Então dirá: Aquilo a que este aspiraé de estancar Atenas, como Arpino,Mantua e Smirna e uma e outra lira.

Língua mortal estado tão divinonão pudera cantar. Se amor me inspira

não é por eleição, mas por destino.

2 Fonte: http://www.estacio.br/rededeletras/numero8/parlaquetefabene/petrarca_sonetos.asp.Tradução de Gilda Korff Dieguez  

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3.

Fiquemos, Amor, a contemplar a nossa glória,coisas sobrenaturais, elevadas e admiráveis:olha quanta doçura sobre ela desce,olha a luz que mostra o céu na terra,

olha quanta arte orna de ouro e pérolas e ostroo nobre porte nunca visto alhuresque docemente move o passo e o olharneste umbroso recanto de belas colinas.

A erva verde e as flores de mil coresesparsas sob este roble antigo e negrorezam para que o lindo pé as pise ou toque;

e o céu de graciosas e rútilas centelhas

se acende em derredor e parece alegrar-sede ter sido serenado por tão belos olhos.

4.

Doce ira, doce desdém, doce paz,doce mal, doce afã e doce peso,doce falar, e docemente ouvidoe que é doce de luz ou de aura pura:

alma, sofre calada o que tortura,e tempera o doce amargo que te há ofendido,

com o doce honrar que de amar aquelaa quem eu disse: é minha única ventura.

Dia virá que suspirando digatingido de doce inveja: Assaz sofrerapor este belíssimo amor e seu enredo.

Outros: a fortuna dura e tão inimiga!por que não a vejo eu? por que não terá ela nascidopouco mais tarde, ou eu pouco mais cedo?

5.

Dureza doce, e plácida repulsa,plenas de casto amor e de piedadedesdém gracioso, que minha ansiedadeaplaca muito embora ardente e insulsa;

fala gentil em que luz clara pulsa,o suma cortesia e honestidade!

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flor de virtude, fonte de beldadee que o baixo pensar de mim expulsa.

E capaz de apartar a nossa mentedaquilo que se veda justamenteo seu olhar que torna o homem feliz.

Vem ora confortar a minha vida:neste belo variar está a raizde minha salvação quase perdida.

6.

Os olhos dos quais falei com tanto ardore os braços e as mãos e os pés e o rostoque tão de mim me tinham afastadoe tornado diferente dos demais;

a anelada coma de puro ouro brilhantee o rutilar do angélico sorrisoque costumavam fazer na terra um paraísosão pouco pó que nada sente.

E eu para viver, onde me aflijo e fico agastado,faço rimas sem a luz que amei tanto,em grande fortuna e desarmado lenho.

Qualquer que seja o intento de meu amoroso canto:seca está a veia do usado engenho

e a minha cítara se transforma em pranto.

7.

Quebrou-se a alta coluna, e o verde louro,que davam sombra ao meu pensar cansado:perdi o que jamais verei achadodo Austro ao Bóreas, do mar lndio ao Mouro.

Roubaste, ó Morte, o meu duplo tesouro,de que ledo eu vivia e assoberbado;que por reino ou por mando restauradonão pode ser, nem por diamante ou ouro.

Mas se o destino tem assim disposto,que posso eu mais senão ter alma opressa,olhos banhados sempre e baixo o rosto?

Ó nossa vida, que é tão bela à vista!

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Como numa manhã vai-se depressaO que em anos com pena se conquista!

8. 3 

Vós que escutais em rima esparsa o somdo gemer que a meu peito deu vigorno meu primeiro juvenil error,quando era em parte outro homem, e no tom

do vário estilo em que eu discorro comchoro, esperanças vãs e esta vã dor,onde haja quem provado tenha amor,perdão e piedade espero em dom.

Mas o falar de todo o povo escutoA que dei azo e repetidamenteDe mim mesmo comigo me envergonho;

e desse enleio vão vergonha é o fruto,e arrepender-me e ver tão claramenteque quanto agrada ao mundo é breve sonho.

RedondilhasS á de Miranda

1.

Ó meus castelos de ventoque em tal cuita me pusestes,como me vos desfizestes!

Armei castelos erguidos,esteve a fortuna queda,e disse: Gostos perdidos,como is a dar tão grã queda!Mas, oh! fraco entendimento!em que parte vos pusestesque então me não socorrestes?

Caístes-me tão asinhacaíram as esperanças;isto não foram mudanças,mas foram a morte minha.Castelos sem fundamento,quanto que me prometestes.quanto que me falecestes!

3 Trad. Vasco Graça Moura ( As rimas de Petrarca. Lisboa: Bertrand, 2003)

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2.

Comigo me desavim,sou posto em todo perigo;não posso viver comigonem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,antes que esta assi crecesse;agora já fugiriade mim, se de mim pudesse.Que meio espero ou que fimdo vão trabalho que sigo,pois que trago a mim comigo,tamanho imigo de mim?

SonetosS 

á de Miranda

1.

O sol é grande: caem coa calma as aves,Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.Esta água que de alto cai acordar-me-ia,Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,Qual é tal coração que em vós confia?

Passam os tempos, vai dia trás dia,Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira f lores,Vi tantas águas, vi tanta verdura,As aves todas cantavam de amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,Também mudando-me eu fiz doutras cores.E tudo o mais renova: isto é sem cura!

2.

Aquela fé tão clara e verdadeira,A vontade tão limpa e tão sem mágoa,Tantas vezes provada em viva fráguaDe fogo, i apurada, e sempre inteira;

Aquela confiança, de maneiraQue encheu de fogo o peito, os olhos de água,

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Por que eu ledo passei por tanta mágoa,Culpa primeira minha e derradeira,

De que me aproveitou? Não de al por certoQue dum só nome tão leve e tão vão,Custoso ao rosto, tão custoso à vida.

Dei de mim que falar ao longe e ao perto;E já assi se consola a alma perdida,Se não achar piedade, ache perdão.

SonetosLuís de Camões

1.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;Todo o mundo é composto de mudança,Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,Diferentes em tudo da esperança;Do mal ficam as mágoas na lembrança,E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,Que já foi coberto de neve fria,E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,Outra mudança faz de mor espanto:Que não se muda já como soía.

2.

Enquanto quis Fortuna que tivesseEsperança de algum contentamento,O gosto de um suave pensamentoMe fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desseMinha escritura a algum juízo isento,Escureceu-me o engenho co tormento,Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitosA diversas vontades, quando lerdesNum breve livro casos tão diversos,

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Verdades puras são, e não defeitos;E sabei que, segundo o amor tiverdes,Tereis o entendimento de meus versos.

3.

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,Sem falta lhe terá bem merecidoQue lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piedoso;Quem o contrário diz não seja crido:Seja por cego e apaixonado tido,E aos homens e inda aos deuses odioso.

Se males faz Amor, em mi se vêem;

Em mim mostrando todo o seu rigor,Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de amor;Todos estes seus males são um bem,Que eu por todo outro bem não trocaria.

4.

Alma minha gentil, que te partisteTão cedo desta vida descontente,Repousa lá no Céu eternamente,

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,Memória desta vida se consente,Não te esqueças daquele amor ardente,Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-teAlga cousa a dor que me ficouDa mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,Quão cedo de meus olhos te levou.

5.

Erros meus, má Fortuna, Amor ardenteEm minha perdição se conjuraram;Os erros e a Fortuna sobejaram,

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Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presenteA grande dor das cousas que passaram,Que já as frequências suas me ensinaramA desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;Dei causa a que a Fortuna castigasseAs minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.Oh! Quem tanto pudesse, que fartasseEste meu duro Génio de vinganças!

6.

Pede o desejo, Dama, que vos veja;Não entende o que pede; está enganado.É este amor tão fino e tão delgado,Que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,Que não queira perpétuo o seu estado;Não quer logo o desejo o desejado,Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;Que, como a grave pedra tem por arteO centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parteQue vai tomar de mim, terrestre, humana,Foi, Senhora, pedir esta baixeza.7.

Posto me tem fortuna em tal estado,E tanto a seus pés me tem rendido!Não tenho que perder já, de perdido,Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem para mim é acabado;Daqui dou o viver já por vivido;Que, aonde o mal é tão conhecido,Também o viver mais será escusado.

Se me basta querer, a morte quero,Que bem outra esperança não convém,E curarei um mal com outro mal.

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E pois do bem tão pouco bem espero,Já que o mal este só remédio tem,Não me culpem em querer remédio tal.

8.

Busque Amor novas artes, novo engenho,Para matar-me, e novas esquivanças;Que não pode tirar-me as esperanças,Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!Vede que perigosas seguranças!Que não temo contrastes nem mudanças,Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgostoOnde esperança falta, lá me escondeAmor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem postoUm não sei quê, que nasce não sei onde,Vem não sei como, e dói não sei porquê.

9.

Eu cantarei de amor tão docemente,Por uns termos em si tão concertados,Que dous mil acidentes namorados

Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que o Amor a todos avivente,Pintando mil segredos delicados,Brandas iras, suspiros magoados,Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honestoDe vossa vista branda e rigorosa,Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gestoA composição alta e milagrosa,Aqui falta saber, engenho e arte.

10.

Tanto de meu estado me acho incerto,Que em vivo ardor tremendo estou de frio;

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Sem causa, juntamente choro e rio,O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:Da alma um fogo me sai, da vista um rio;Agora espero, agora desconfio;

Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;Num'hora acho mil anos, e é de jeitoQue em mil anos não posso achar um'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,Respondo que não sei, porém suspeitoQue só porque vos vi, minha Senhora.

11.

Transforma-se o amador na cousa amada,Por virtude do muito imaginar;Não tenho, logo, mais que desejar,Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,Que mais deseja o corpo de alcançar?Em si somente pode descansar,Pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semidéia,

Que, como o acidente em seu sujeito,Assim com a alma minha se conforma,

Está no pensamento como idéia;E o vivo e puro amor de que sou feito,Como a matéria simples, busca a forma.

12.

Passo por meus trabalhos tão isentoDe sentimento, grande nem pequeno,Que, só pela vontade com que peno,Me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,Temparando a triaga co veneno,Que do penar a ordem desordeno,Porque não mo consente o sofrimento.

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Porém, se esta fineza o Amor sente,E pagar-me meu mal com mal pretende,Torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê cos males tão contente,Faz-se avaro da pena, porque entende

Que, quanto mais me paga, mais me deve.

13.

 À morte de D. Antônio de Noronha 

Em flor vos arrancou de então crescida(Ah! Senhor dom Antônio!) a dura sorte,Donde fazendo andava o braço forteA fama dos Antigos esquecida;

Uma só razão tenho conhecida,Com que tamanha mágoa se conforte:Que, pois no mundo havia honrada morte,Que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto,Que co desejo meu se iguale a arte,Especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,Se morrestes nas mãos do fero Marte,Na memória das gentes vivereis.

14.

Aquela triste e leda madrugada,Cheia toda de mágoa e de piedade,Enquanto houver no mundo saudadeQuero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetadaSaía, dando ao mundo claridade,Viu apartar-se duma outra vontadeQue nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,Que, de uns e de outros olhos derivadas,Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadasQue puderam tornar o fogo frio,E dar descanso às almas condenadas.

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15.

Sete anos de pastor Jacob serviaLabão, pai de Raquel, serrana bela;Mas não servia ao pai, servia a ela,E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só diaPassava, contentando-se com vê-la;Porém o pai, usando de cautela,Em lugar de Raquel, lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganosLhe fora assi negada a sua pastora,Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,Dizendo: -- Mais servira, se não foraPara tão longo amor tão curta a vida.

16.

Oh! quão caro me custa o entender-te,molesto Amor, que, só pera alcançar-te,de dor em dor me tens trazido a parteonde em ti ódio, e ira se converte!

Cuidei que, pera em tudo conhecer-te,me não faltava experiência e arte;

agora vejo nalma acrecentar-teaquilo que era causa de perder-te.

Estavas tão secreto no meu peito,que eu mesmo, que te tinha, não sabiaque me senhoreavas desse jeito.

Descobriste-te agora; e foi por viaque teu descobrimento, e meu defeito,um me envergonha, outro me injuria.

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Os Lusíadas (fragmentos)4 Luís de Camões

CANTO I

1As armas e os barões assinalados,Que da ocidental praia Lusitana,Por mares nunca de antes navegados,Passaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçados,Mais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram;

2E também as memórias gloriosasDaqueles Reis, que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando;E aqueles, que por obras valerosasSe vão da lei da morte libertando;Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Neptuno e Marte obedeceram:Cesse tudo o que a Musa antígua canta,Que outro valor mais alto se alevanta.

4E vós, Tágides minhas, pois criadoTendes em mim um novo engenho ardente,Se sempre em verso humilde celebradoFoi de mim vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,Um estilo grandíloquo e corrente,Porque de vossas águas, Febo ordeneQue não tenham inveja às de Hipoerene.

5 Dai-me uma fúria grande e sonorosa,

4 Fonte: http://www.oslusiadas.com/ 

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E não de agreste avena ou frauta ruda,Mas de tuba canora e belicosa,Que o peito acende e a cor ao gesto muda;Dai-me igual canto aos feitos da famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda;Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

6 E vós, ó bem nascida segurançaDa Lusitana antígua liberdade,E não menos certíssima esperançaDe aumento da pequena Cristandade;Vós, ó novo temor da Maura lança,Maravilha fatal da nossa idade,Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,Para do mundo a Deus dar parte grande;

7Vós, tenro e novo ramo florescenteDe uma árvore de Cristo mais amadaQue nenhuma nascida no Ocidente,Cesárea ou Cristianíssima chamada;(Vede-o no vosso escudo, que presenteVos amostra a vitória já passada,Na qual vos deu por armas, e deixouAs que Ele para si na Cruz tomou)

8 Vós, poderoso Rei, cujo alto ImpérioO Sol, logo em nascendo, vê primeiro;Vê-o também no meio do Hemisfério,E quando desce o deixa derradeiro;Vós, que esperamos jugo e vitupérioDo torpe Ismaelita cavaleiro,Do Turco oriental, e do Gentio,Que inda bebe o licor do santo rio;

9 Inclinai por um pouco a majestade,Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,Quando subindo ireis ao eterno templo;Os olhos da real benignidadePonde no chão: vereis um novo exemploDe amor dos pátrios feitos valerosos,Em versos divulgado numerosos.

10Vereis amor da pátria, não movido

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Literatura portuguesa I 

De prémio vil, mas alto e quase eterno:Que não é prémio vil ser conhecidoPor um pregão do ninho meu paterno.Ouvi: vereis o nome engrandecidoDaqueles de quem sois senhor superno,E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de til gente.

11Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,Fantásticas, fingidas, mentirosas,Louvar os vossos, como nas estranhasMusas, de engrandecer-se desejosas:As verdadeiras vossas são tamanhas,Que excedem as sonhadas, fabulosas;Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,E Orlando, inda que fora verdadeiro,

12Por estes vos darei um Nuno fero,Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,Um Egas, e um D. Fuas, que de HomeroA cítara para eles só cobiço.Pois pelos doze Pares dar-vos queroOs doze de Inglaterra, e o seu Magriço;Dou-vos também aquele ilustre Gama,Que para si de Eneias toma a fama.

13Pois se a troco de Carlos, Rei de França,Ou de César, quereis igual memória,Vede o primeiro Afonso, cuja lançaEscura faz qualquer estranha glória;E aquele que a seu Reino a segurançaDeixou com a grande e próspera vitória;Outro Joane, invicto cavaleiro,O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.

14Nem deixarão meus versos esquecidosAqueles que nos Reinos lá da Aurora

Fizeram, só por armas tão subidos,Vossa bandeira sempre vencedora:Um Pacheco fortíssimo, e os temidosAlmeidas, por quem sempre o Tejo chora;Albuquerque terríbil, Castro forte,E outros em quem poder não teve a morte.

15 E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,

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Literatura portuguesa I 

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,Tomai as rédeas vós do Reino vosso:Dareis matéria a nunca ouvido canto.Comecem a sentir o peso grosso(Que pelo mundo todo faça espanto)De exércitos e feitos singulares,

De África as terras, e do Oriente os marços,

16 Em vós os olhos tem o Mouro frio,Em quem vê seu exício afigurado;Só com vos ver o bárbaro GentioMostra o pescoço ao jugo já inclinado;Tethys todo o cerúleo senhorioTem para vós por dote aparelhado;Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,Deseja de comprar-vos para genro.

17Em vós se vêm da olímpica moradaDos dois avós as almas cá famosas,Uma na paz angélica dourada,Outra pelas batalhas sanguinosas;Em vós esperam ver-se renovadaSua memória e obras valerosas;E lá vos tem lugar, no fim da idade,No templo da suprema Eternidade.

18 Mas enquanto este tempo passa lentoDe regerdes os povos, que o desejam,Dai vós favor ao novo atrevimento,Para que estes meus versos vossos sejam;E vereis ir cortando o salso argentoOs vossos Argonautas, por que vejamQue são vistos de vós no mar irado,E costumai-vos já a ser invocado.

*CANTO III (Episódio de Inês de Castro)

118

 "Passada esta tão próspera vitória,Tornando Afonso à Lusitana terra,A se lograr da paz com tanta glóriaQuanta soube ganhar na dura guerra,O caso triste, e dino da memória,Que do sepulcro os homens desenterra,Aconteceu da mísera e mesquinhaQue depois de ser morta foi Rainha.

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Literatura portuguesa I 

119 "Tu só, tu, puro Amor, com força crua,Que os corações humanos tanto obriga,Deste causa à molesta morte sua,Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga,É porque queres, áspero e tirano,Tuas aras banhar em sangue humano.

120"Estavas, linda Inês, posta em sossego,De teus anos colhendo doce fruto,Naquele engano da alma, ledo e cego,Que a fortuna não deixa durar muito,Nos saudosos campos do Mondego,De teus fermosos olhos nunca enxuto,Aos montes ensinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas.

121"Do teu Príncipe ali te respondiamAs lembranças que na alma lhe moravam,Que sempre ante seus olhos te traziam,Quando dos teus fermosos se apartavam:De noite em doces sonhos, que mentiam,De dia em pensamentos, que voavam.E quanto enfim cuidava, e quanto via,Eram tudo memórias de alegria.

122"De outras belas senhoras e PrincesasOs desejados tálamos enjeita,Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza,Quando um gesto suave te sujeita.Vendo estas namoradas estranhezasO velho pai sesudo, que respeitaO murmurar do povo, e a fantasiaDo filho, que casar-se não queria,

123"Tirar Inês ao mundo determina,Por lhe tirar o filho que tem preso,Crendo co'o sangue só da morte indinaMatar do firme amor o fogo aceso.Que furor consentiu que a espada fina,Que pôde sustentar o grande pesoDo furor Mauro, fosse alevantadaContra uma fraca dama delicada?

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Literatura portuguesa I 

124"Traziam-na os horríficos algozesAnte o Rei, já movido a piedade:Mas o povo, com falsas e ferozesRazões, à morte crua o persuade.

Ela com tristes o piedosas vozes,Saídas só da mágoa, e saudadeDo seu Príncipe, e filhos que deixava,Que mais que a própria morte a magoava,

125 "Para o Céu cristalino alevantandoCom lágrimas os olhos piedosos,Os olhos, porque as mãos lhe estava atandoUm dos duros ministros rigorosos;E depois nos meninos atentando,Que tão queridos tinha, e tão mimosos,Cuja orfandade como mãe temia,Para o avô cruel assim dizia:

126 - "Se já nas brutas feras, cuja menteNatura fez cruel de nascimento,E nas aves agrestes, que somenteNas rapinas aéreas têm o intento,Com pequenas crianças viu a genteTerem tão piedoso sentimento,Como coa mãe de Nino já mostraram,E colos irmãos que Roma edificaram;

127- "Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito(Se de humano é matar uma donzelaFraca e sem força, só por ter sujeitoO coração a quem soube vencê-la)A estas criancinhas tem respeito,Pois o não tens à morte escura dela;Mova-te a piedade sua e minha,Pois te não move a culpa que não tinha.

128

 - "E se, vencendo a Maura resistência,A morte sabes dar com fogo e ferro,Sabe também dar vicia com clemênciaA quem para perdê-la não fez erro.Mas se to assim merece esta inocência,Põe-me em perpétuo e mísero desterro,Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente,Onde em lágrimas viva eternamente.

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Literatura portuguesa I 

129 "Põe-me onde se use toda a feridade,Entre leões e tigres, e vereiSe neles achar posso a piedadeQue entre peitos humanos não achei:

Ali com o amor intrínseco e vontadeNaquele por quem morro, criareiEstas relíquias suas que aqui viste,Que refrigério sejam da mãe triste." -

130"Queria perdoar-lhe o Rei benino,Movido das palavras que o magoam;Mas o pertinaz povo, e seu destino(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.Arrancam das espadas de aço finoOs que por bom tal feito ali apregoam.Contra uma dama, ó peitos carniceiros,Feros vos amostrais, e cavaleiros?

131"Qual contra a linda moça Policena,Consolação extrema da mãe velha,Porque a sombra de Aquiles a condena,Co'o ferro o duro Pirro se aparelha;Mas ela os olhos com que o ar serena(Bem como paciente e mansa ovelha)Na mísera mãe postos, que endoudece,Ao duro sacrifício se oferece:

132"Tais contra Inês os brutos matadoresNo colo de alabastro, que sustinhaAs obras com que Amor matou de amoresAquele que depois a fez Rainha;As espadas banhando, e as brancas flores,Que ela dos olhos seus regadas tinha,Se encarniçavam, férvidos e irosos,No futuro castigo não cuidosos.

133"Bem puderas, ó Sol, da vista destesTeus raios apartar aquele dia,Como da seva mesa de Tiestes,Quando os filhos por mão de Atreu comia.Vós, ó côncavos vales, que pudestesA voz extrema ouvir da boca fria,O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,Por muito grande espaço repetisses!

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Literatura portuguesa I 

134"Assim como a bonina, que cortadaAntes do tempo foi, cândida e bela,Sendo das mãos lascivas maltratadaDa menina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:Tal está morta a pálida donzela,Secas do rosto as rosas, e perdidaA branca e viva cor, coa doce vida.

135 "As filhas do Mondego a morte escuraLongo tempo chorando memoraram,E, por memória eterna, em fonte puraAs lágrimas choradas transformaram;O nome lhe puseram, que inda dura,Dos amores de Inês que ali passaram.Vede que fresca fonte rega as flores,Que lágrimas são a água, e o nome amores.

*CANTO IV (Episódio do velho de Restelo)

84"E já no porto da ínclita UlisseiaC'um alvoroço nobre, e é um desejo,(Onde o licor mistura e branca areiaCo'o salgado Neptuno o doce Tejo)As naus prestes estão; e não refreiaTemor nenhum o juvenil despejo,Porque a gente marítima e a de MarteEstão para seguir-me a toda parte.

85 "Pelas praias vestidos os soldadosDe várias cores vêm e várias artes,E não menos de esforço aparelhadosPara buscar do inundo novas partes.Nas fortes naus os ventos sossegadosOndeam os aéreos estandartes;

Elas prometem, vendo os mares largos,De ser no Olimpo estrelas como a de Argos.

86 "Depois de aparelhados desta sorteDe quanto tal viagem pede e manda,Aparelhamos a alma para a morte,Que sempre aos nautas ante os olhos anda.Para o sumo Poder que a etérea corte

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Literatura portuguesa I 

Sustenta só coa vista veneranda,Imploramos favor que nos guiasse,E que nossos começos aspirasse.

87"Partimo-nos assim do santo templo

Que nas praias do mar está assentado,Que o nome tem da terra, para exemplo,Donde Deus foi em carne ao mundo dado.Certifico-te, ó Rei, que se contemploComo fui destas praias apartado,Cheio dentro de dúvida e receio,Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

88 "A gente da cidade aquele dia,(Uns por amigos, outros por parentes,Outros por ver somente) concorria,Saudosos na vista e descontentes.E nós coa virtuosa companhiaDe mil Religiosos diligentes,Em procissão solene a Deus orando,Para os batéis viemos caminhando.

89 "Em tão longo caminho e duvidosoPor perdidos as gentes nos julgavam;As mulheres c'um choro piedoso,Os homens com suspiros que arrancavam;Mães, esposas, irmãs, que o temerosoAmor mais desconfia, acrescentavamA desesperarão, e frio medoDe já nos não tornar a ver tão cedo.

90"Qual vai dizendo: -" Ó filho, a quem eu tinhaSó para refrigério, e doce amparoDesta cansada já velhice minha,Que em choro acabará, penoso e amaro,Por que me deixas, mísera e mesquinha?Por que de mim te vás, ó filho caro,

A fazer o funéreo enterramento,Onde sejas de peixes mantimento!" -

91"Qual em cabelo: -"Ó doce e amado esposo,Sem quem não quis Amor que viver possa,Por que is aventurar ao mar irosoEssa vida que é minha, e não é vossa?Como por um caminho duvidoso

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Vos esquece a afeição tão doce nossa?Nosso amor, nosso vão contentamentoQuereis que com as velas leve o vento?" -

92"Nestas e outras palavras que diziam

De amor e de piedosa humanidade,Os velhos e os meninos os seguiam,Em quem menos esforço põe a idade.Os montes de mais perto respondiam,Quase movidos de alta piedade;A branca areia as lágrimas banhavam,Que em multidão com elas se igualavam.

93"Nós outros sem a vista alevantarmosNem a mãe, nem a esposa, neste estado,Por nos não magoarmos, ou mudarmosDo propósito firme começado,Determinei de assim nos embarcarmosSem o despedimento costumado,Que, posto que é de amor usança boa,A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

94"Mas um velho d'aspeito venerando,Que ficava nas praias, entre a gente,Postos em nós os olhos, meneandoTrês vezes a cabeça, descontente,A voz pesada um pouco alevantando,Que nós no mar ouvimos claramente,C'um saber só de experiências feito,Tais palavras tirou do experto peito:

95 - "Ó glória de mandar! Ó vã cobiçaDesta vaidade, a quem chamamos Fama!Ó fraudulento gosto, que se atiçaC'uma aura popular, que honra se chama!Que castigo tamanho e que justiçaFazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,Que crueldades neles experimentas!

96 - "Dura inquietação d'alma e da vida,Fonte de desamparos e adultérios,Sagaz consumidora conhecidaDe fazendas, de reinos e de impérios:Chamam-te ilustre, chamam-te subida,

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Literatura portuguesa I 

Sendo dina de infames vitupérios;Chamam-te Fama e Glória soberana,Nomes com quem se o povo néscio engana!

97- "A que novos desastres determinas

De levar estes reinos e esta gente?Que perigos, que mortes lhe destinasDebaixo dalgum nome preminente?Que promessas de reinos, e de minasD'ouro, que lhe farás tão facilmente?Que famas lhe prometerás? que histórias?Que triunfos, que palmas, que vitórias?

98 - "Mas ó tu, geração daquele insano,Cujo pecado e desobediência,Não somente do reino soberanoTe pôs neste desterro e triste ausência,Mas inda doutro estado mais que humanoDa quieta e da simples inocência,Idade d'ouro, tanto te privou,Que na de ferro e d'armas te deitou:

99 - "Já que nesta gostosa vaidadeTanto enlevas a leve fantasia,Já que à bruta crueza e feridadePuseste nome esforço e valentia,Já que prezas em tanta quantidadesO desprezo da vida, que deviaDe ser sempre estimada, pois que jáTemeu tanto perdê-la quem a dá:

100- "Não tens junto contigo o Ismaelita,Com quem sempre terás guerras sobejas?Não segue ele do Arábio a lei maldita,Se tu pela de Cristo só pelejas?Não tem cidades mil, terra infinita,Se terras e riqueza mais desejas?

Não é ele por armas esforçado,Se queres por vitórias ser louvado?

101- "Deixas criar às portas o inimigo,Por ires buscar outro de tão longe,Por quem se despovoe o Reino antigo,Se enfraqueça e se vá deitando a longe?Buscas o incerto e incógnito perigo

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Por que a fama te exalte e te lisonge,Chamando-te senhor, com larga cópia,Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

102- "Ó maldito o primeiro que no mundo

Nas ondas velas pôs em seco lenho,Dino da eterna pena do profundo,Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!Nunca juízo algum alto e profundo,Nem cítara sonora, ou vivo engenho,Te dê por isso fama nem memória,Mas contigo se acabe o nome e glória.

103- "Trouxe o filho de Jápeto do CéuO fogo que ajuntou ao peito humano,Fogo que o mundo em armas acendeuEm mortes, em desonras (grande engano).Quanto melhor nos fora, Prometeu,E quanto para o mundo menos dano,Que a tua estátua ilustre não tiveraFogo de altos desejos, que a movera!

104- "Não cometera o moço miserandoO carro alto do pai, nem o ar vazioO grande Arquiteto co'o filho, dandoUm, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.Nenhum cometimento alto e nefando,Por fogo, ferro, água, calma e frio,Deixa intentado a humana geração.Mísera sorte, estranha condição!"

*CANTO V (Episódio do Gigante Adamastor)

37"Porém já cinco Sóis eram passadosQue dali nos partíramos, cortandoOs mares nunca doutrem navegados,

Prósperamente os ventos assoprando,Quando uma noite estando descuidados,Na cortadora proa vigiando,Uma nuvem que os ares escureceSobre nossas cabeças aparece.

38 "Tão temerosa vinha e carregada,Que pôs nos corações um grande medo;

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Bramindo o negro mar, de longe bradaComo se desse em vão nalgum rochedo.- "Ó Potestade, disse, sublimada!Que ameaço divino, ou que segredoEste clima e este mar nos apresenta,Que mor cousa parece que tormenta?" -

39 "Não acabava, quando uma figuraSe nos mostra no ar, robusta e válida,De disforme e grandíssima estatura,O rosto carregado, a barba esquálida,Os olhos encovados, e a posturaMedonha e má, e a cor terrena e pálida,Cheios de terra e crespos os cabelos,A boca negra, os dentes amarelos.

40"Tão grande era de membros, que bem possoCertificar-te, que este era o segundoDe Rodes estranhíssimo Colosso,Que um dos sete milagres foi do mundo:Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso,Que pareceu sair do mar profundo:Arrepiam-se as carnes e o cabeloA mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

41"E disse: - "Ó gente ousada, mais que quantasNo mundo cometeram grandes cousas,Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,E por trabalhos vãos nunca repousas,Pois os vedados términos quebrantas,E navegar meus longos mares ousas,Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:

42- "Pois vens ver os segredos escondidosDa natureza e do úmido elemento,A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,Ouve os danos de mim, que apercebidosEstão a teu sobejo atrevimento,Por todo o largo mar e pela terra,Que ainda hás de sojugar com dura guerra.

43- "Sabe que quantas naus esta viagemQue tu fazes, fizerem de atrevidas,

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Inimiga terão esta paragemCom ventos e tormentas desmedidas.E da primeira armada que passagemFizer por estas ondas insofridas,Eu farei d'improviso tal castigo,Que seja mor o dano que o perigo.

44- "Aqui espero tomar, se não me engano,De quem me descobriu, suma vingança.E não se acabará só nisto o danoDa vossa pertinace confiança;Antes em vossas naus vereis cada ano,Se é verdade o que meu juízo alcança,Naufrágios, perdições de toda sorte,Que o menor mal de todos seja a morte.

45 - "É do primeiro Ilustre, que a venturaCom fama alta fizer tocar os Céus,Serei eterna e nova sepultura,Por juízos incógnitos de Deus.Aqui porá da Turca armada duraOs soberbos e prósperos troféus;Comigo de seus danos o ameaçaA destruída Quíloa com Mombaça.

46 - "Outro também virá de honrada fama,Liberal, cavaleiro, enamorado,E consigo trará a formosa damaQue Amor por grã mercê lhe terá dado.Triste ventura e negro fado os chamaNeste terreno meu, que duro e iradoOs deixará dum cru naufrágio vivosPara verem trabalhos excessivos.

47- "Verão morrer com fome os filhos caros,Em tanto amor gerados e nascidos;Verão os Cafres ásperos e avaros

Tirar à linda dama seus vestidos;Os cristalinos membros e perclarosA calma, ao frio, ao ar verão despidos,Depois de ter pisada longamenteCo'os delicados pés a areia ardente.

48 - "E verão mais os olhos que escaparemDe tanto mal, de tanta desventura,

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Os dois amantes míseros ficaremNa férvida e implacável espessura.Ali, depois que as pedras abrandaremCom lágrimas de dor, de mágoa pura,Abraçados as almas soltarãoDa formosa e misérrima prisão." -

49 "Mais ia por diante o monstro horrendoDizendo nossos fados, quando alçadoLhe disse eu: - Quem és tu? que esse estupendoCorpo certo me tem maravilhado.-A boca e os olhos negros retorcendo,E dando um espantoso e grande brado,Me respondeu, com voz pesada e amara,Como quem da pergunta lhe pesara:

50- "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,A quem chamais vós outros Tormentório,Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,Plínio, e quantos passaram, fui notório.Aqui toda a Africana costa acaboNeste meu nunca visto Promontório,Que para o Pólo Antarctico se estende,A quem vossa ousadia tanto ofende.

51- "Fui dos filhos aspérrimos da Terra,Qual Encélado, Egeu e o Centimano;Chamei-me Adamastor, e fui na guerraContra o que vibra os raios de Vulcano;Não que pusesse serra sobre serra,Mas conquistando as ondas do Oceano,Fui capitão do mar, por onde andavaA armada de Netuno, que eu buscava.

52- "Amores da alta esposa de PeleuMe fizeram tomar tamanha empresa.Todas as Deusas desprezei do céu,

Só por amar das águas a princesa.Um dia a vi coas filhas de NereuSair nua na praia, e logo presaA vontade senti de tal maneiraQue ainda não sinto coisa que mais queira.

53- "Como fosse impossível alcançá-laPela grandeza feia de meu gesto,

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Determinei por armas de tomá-la,E a Doris este caso manifesto.De medo a Deusa então por mim lhe fala;Mas ela, com um formoso riso honesto,Respondeu: - "Qual será o amor bastanteDe Ninfa que sustente o dum Gigante?

54- "Contudo, por livrarmos o OceanoDe tanta guerra, eu buscarei maneira,Com que, com minha honra, escuse o dano."Tal resposta me torna a mensageira.Eu, que cair não pude neste engano,(Que é grande dos amantes a cegueira)Encheram-me com grandes abondançasO peito de desejos e esperanças.

55 - "Já néscio, já da guerra desistindo,Uma noite de Dóris prometida,Me aparece de longe o gesto lindoDa branca Tétis única despida:Como doido corri de longe, abrindoOs braços, para aquela que era vidaDeste corpo, e começo os olhos belosA lhe beijar, as faces e os cabelos.

56 - "Ó que não sei de nojo como o conte!Que, crendo ter nos braços quem amava,Abraçado me achei com um duro monteDe áspero mato e de espessura brava.Estando com um penedo fronte a fronte,Que eu pelo rosto angélico apertavaNão fiquei homem não, mas mudo e quedo,E junto dum penedo outro penedo.

57- "Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,Já que minha presença não te agrada,Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?Daqui me parto irado, e quase insanoDa mágoa e da desonra ali passada,A buscar outro inundo, onde não visseQuem de meu pranto e de meu mal se risse,

58 - "Eram já neste tempo meus irmãosVencidos e em miséria extrema postos;

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E por mais segurar-se os Deuses vãos,Alguns a vários montes sotopostos:E como contra o Céu não valem mãos,Eu, que chorando andava meus desgostos,Comecei a sentir do fado inimigoPor meus atrevimentos o castigo.

59 - "Converte-se-me a carne em terra dura,Em penedos os ossos sefizeram,Estes membros que vês e esta figuraPor estas longas águas se estenderam;Enfim, minha grandíssima estaturaNeste remoto cabo converteramOs Deuses, e por mais dobradas mágoas,Me anda Tétis cercando destas águas." -

60"Assim contava, e com um medonho choroSúbito diante os olhos se apartou;Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoroBramido muito longe o mar soou.Eu, levantando as mãos ao santo coroDos anjos, que tão longe nos guiou,A Deus pedi que removesse os durosCasos, que Adamastor contou futuros.

*CANTO IX (Episódio da Ilha dos Amores)

19 Depois de ter um pouco revolvidoNa mente o largo mar que navegaram,Os trabalhos, que pelo Deus nascidoNas Anfióneas Tebas se causaram;Já trazia de longe no sentido,Para prémio de quanto mal passaram,Buscar-lhe algum deleite, algum descansoNo Reino de cristal líquido e manso;

20

Algum repouso, enfim, com que pudesseRefocilar a lassa humanidadeDos navegantes seus, como interesseDo trabalho que encurta a breve idade.Parece-lhe razão que conta desseA seu filho, por cuja potestadeOs Deuses faz descer ao vil terrenoE os humanos subir ao céu sereno.

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21Isto bem revolvido, determinaDe ter-lhe aparelhada, lá no meioDas águas, alguma ínsula divina,Ornada de esmaltado e verde arreio;Que muitas tem no reino, que confina

Da mãe primeira com o terreno seio,Afora as que possui soberanasPara dentro das portas Herculanas.

22Ali quer que as aquáticas donzelasEsperem os fortíssimos barões,Todas as que têm título de belas,Glória dos olhos, dor dos corações,Com danças e coreias, porque nelasInfluirá secretas afeições,Para com mais vontade trabalharemDe contentar, a quem se afeiçoaram.

23Tal manha buscou já, para que aqueleQue de Anquises pariu, bem recebidoFosse no campo que a bovina peleTomou de espaço, por subtil partido.Seu filho vai buscar, porque só neleTem todo seu poder, fero Cupido,Que assim como naquela empresa antigaAjudou já, nestoutra a ajude e siga.

24No carro ajunta as aves que na vidaVão da morte as exéquias celebrando,E aquelas em que já foi convertidaPerístera, as boninas apanhando.Em derredor da Deusa já partida,No ar lascivos beijos se vão dando.Ela, por onde passa, o ar e o ventoSereno faz, com brando movimento.

25 

Já sobre os Idálios montes pende,Onde o filho frecheiro estava entãoAjuntando outros muitos, que pretendeFazer uma famosa expediçãoContra o mundo rebelde, por que emendeErros grandes, que há dias nele estão,Amando coisas que nos foram dadas,Não para ser amadas, mas usadas.

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Literatura portuguesa I 

26 Via Acteon na caça tão austero,De cego na alegria bruta, insana,Que por seguir um feio animal fero,Foge da gente e bela forma humana;E por castigo quer, doce e severo,

Mostrar-lhe a formosura de Diana;E guarde-se não seja ainda comidoDesses cães que agora ama, e consumido.

27E vê do mundo todo os principais,Que nenhum no bem público imagina;Vê neles que não têm amor a maisQue a si somente, e a quem Filáucia ensina.Vê que esses que frequentam os reaisPaços, por verdadeira e sã doutrinaVendem adulação, que mal consenteMondar-se o novo trigo florescente.

28 Vê que aqueles que devem à pobrezaAmor divino e ao povo caridade,Amam somente mandos e riqueza,Simulando justiça e integridade.Da feia tirania e de asperezaFazem direito e vã severidade:Leis em favor do Rei se estabelecem,As em favor do povo só perecem.

29 Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,Senão o que somente mal deseja;Não quer que tanto tempo se releveO castigo, que duro e justo seja.Seus ministros ajunta, por que leveExércitos conformes à peleja,Que espera ter com a mal regida gente,Que lhe não for agora obediente.

30

Muitos destes meninos voadoresEstão em várias obras trabalhando:Uns amolando ferros passadores,Outros ásteas de setas delgaçando;Trabalhando, cantando estão de amores,Vários casos em verso modulando,Melodia sonora e concertada,Suave a letra, angélica a soada.

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Literatura portuguesa I 

31Nas frágoas imortais, onde forjavamPara as setas as pontas penetrantes,Por lenha corações ardendo estavam,Vivas entranhas ainda palpitantes.As águas onde os ferros temperavam,

Lágrimas são de míseros amantes;A viva f lama, o nunca morto lume,Desejo é só que queima, e não consume.

32Alguns exercitando a mão andavamNos duros corações da plebe rude;Crebros suspiros pelo ir soavamDos que feridos vão da seta aguda.Formosas Ninfas são as que curavamAs chagas recebidas cuja ajudaNão somente dá vida aos mal feridos,Mas põe em vida os ainda não nascidos.

33Formosas são algumas e outras feias,Segundo a qualidade for das chagas;Que o veneno espalhado pelas veiasCuram-no às vezes ásperas triagas.Alguns ficam ligados em cadeias,Por palavras subtis de sábias magas:Isto acontece às vezes, quando as setasAcertam de levar ervas secretas.

34Destes tiros assim desordenados,Que estes moços mal destros vão tirando,Nascem amores mil desconcertadosEntre o povo ferido miserando;E tamboril nos heróis de altos estadosExemplos mil se vêem de amor nefando,Qual o das moças Bíbli e Cinireia,Um mancebo de Assíria, um de Judeia.

35 

E vós, ó poderosos, por pastorasMuitas vezes ferido o peito vedes;E por baixos e rudos, vós, senhoras,Também vos tomam nas Vulcâneas redes.Uns esperando andais noturnas horas,Outros subis telhados e paredes:Mas eu creio que deste amor indinoÉ mais culpa a da mãe que a do menino.

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Literatura portuguesa I 

36 Mas já no verde prado o carro levePunham os brancos cisnes mansamente,E Dione, que as rosas entro a neveNo rosto traz, descia diligente.O frecheiro, que contra o céu se atreve,

A recebê-la vem, ledo e contente;Vêm todos os Cupidos servidoresBeijar a mão à Deusa dos amores.

37Ela, por que não gaste o tempo em vão,Nos braços tendo o filho, confiadaLhe diz: "Amado filho, em cuja mãoToda minha potência está fundada;Filho, em quem minhas forças sempre estão;Tu, que as armas Tifeias tens em nada,A socorrer-me a tua potestadeMe triz especial necessidade.

38 "Bem vês as Lusitânicas fadigas,Que eu já de muito longe favoreço,Porque das Parcas sei, minhas amigas,Que me hão de venerar e ter em preço.E, porque tanto imitam as antigasObras de meus Romanos, me ofereçoA lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,A quanto se estender o poder nosso.

39 "E porque das insídias do odiosoBaco foram na Índia molestados,E das injúrias sós do mar undosoPuderam mais ser mortos que cansados,No mesmo mar, que sempre temerosoLhe foi, quero que sejam repousados,Tomando aquele prémio e doce glóriaDo trabalho, que faz clara a memória.

40

"E para isso queria que, feridasAs filhas de Nereu, no ponto fundo,De amor dos Lusitanos incendidas,Que vêm de descobrir o novo mundo,Todas numa ilha juntas e subidas,Ilha, que nas entranhas do profundoOceano terei aparelhada,De dons de Flora e Zéfiro adornada;

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Literatura portuguesa I 

41"Ali, com mil refrescos e manjares,Com vinhos odoríferos e rosas,Em cristalinos paços singularesFormosos leitos, e elas mais formosas;Enfim, com mil deleites não vulgares,

Os esperem as Ninfas amorosas,De amor feridas, para lhes entregaremQuanto delas os olhos cobiçarem.

42"Quero que haja no reino Netunino,Onde eu nasci, progénie forte e bela,E tome exemplo o mundo vil, malino,Que contra tua potência se rebela,Por que entendam que muro adamantino,Nem triste hipocrisia val contra ela:Mal haverá na terra quem se guarde,Se teu fogo imortal nas águas arde."

43Assim Vénus propôs, e o filho inieo,Para lhe obedecer, já se apercebe:Manda trazer o arco ebúrneo rico,Onde as setas de ponta de ouro embebe.Com gesto ledo a Cípria, e impudico,Dentro no carro o filho seu recebe;A rédea larga às aves, cujo cantoA Factôntea morte chorou tanto.

44Mas diz Cupido, que era necessáriaUma famosa e célebre terceira,Que, posto que mil vezes lhe é contrária,Outras muitas a tem por companheira:A Deusa Giganteia, temerária,Jactante, mentirosa, e verdadeira,Que com cem olhos vê, e por onde voa,O que vê, com mil bocas apregoa.

45 

Vão-a buscar, e mandam adiante,Que celebrando vá com tuba claraOs louvores da gente navegante,Mais do que nunca os d'outrem celebrara.Já murmurando a Fama penetrantePelas fundas cavernas se espalhara:Fala verdade, havida por verdade,Que junto a Deusa traz Credulidade.

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Literatura portuguesa I 

46 O louvor grande, o rumor excelenteNo coração dos Deuses, que indignadosForam por Baco contra a ilustre gente,Mudando, os fez um pouco afeiçoados.O peito feminil, que levemente

Muda quaisquer propósitos tomados,Já julga por mau zelo e por cruezaDesejar mal a tanta fortaleza.

47Despede nisto o fero moço as setasUma após outra: geme o mar com os tiros;Direitas pelas ondas inquietasAlgumas vão, e algumas fazem giros;Caem as Ninfas, lançam das secretasEntranhas ardentíssimos suspiros;Cai qualquer, sem ver o vulto que ama:Que tanto, como a vista, pode a fama.

48 Os cornos ajuntou da ebúrnea luaCom força o moço indómito excessiva,Que Tethys quer ferir mais que nenhuma,Porque mais que nenhuma lhe era esquiva.Já não fica na aljava seta alguma,Nem nos equóreos campos Ninfa viva;E se feridas ainda estão vivendo,Será para sentir que vão morrendo.

49 Dai lugar, altas e cerúleas ondas,Que, vedes, Vénus traz a medicina,Mostrando as brancas velas e redondas,Que vêm por cima da água Netunina.Para que tu recíproco respondas,Ardente Amor, à flama feminina,É, forçado que a pudicícia honestaFaça quanto lhe Vénus amoesta.

50

Já todo o belo coro se aparelhaDas Nereidas, e junto caminhavaEm coreias gentis, usança velha,Para a ilha, a que Vénus as guiava.Ali a formosa Deusa lhe aconselhaO que ela fez mil vezes, quando amava.Elas, que vão do doce amor vencidas,Estão a seu conselho oferecidas.

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Literatura portuguesa I 

51Cortando vão as naus a larga viaDo mar ingente para a pátria amada,Desejando prover-se de água fria,Para a grande viagem prolongada,Quando juntas, com súbita alegria,

Houveram vista da ilha namorada,Rompendo pelo céu a mãe formosaDe Menónio, suave e deleitosa.

52De longe a Ilha viram fresca e bela,Que Vénus pelas ondas lha levava(Bem como o vento leva branca vela)Para onde a forte armada se enxergava;Que, por que não passassem, sem que nelaTomassem porto, como desejava,Para onde as naus navegam a moviaA Acidália, que tudo enfim podia.

53Mas firme a fez e imóvel, como viuQue era dos Nautas vista e demandada;Qual ficou Delos, tanto que pariuLatona Febo e a Deusa à caça usada.Para lá logo a proa o mar abriu,Onde a costa fazia uma enseadaCurva e quieta, cuja branca areia,Pintou de ruivas conchas Citereia.

54Três formosos outeiros se mostravamErguidos com soberba graciosa,Que de gramíneo esmalte se adornavam..Na formosa ilha alegre e deleitosa;Claras fontes o límpidas manavamDo cume, que a verdura tem viçosa;Por entre pedras alvas se derivaA sonorosa Ninfa fugitiva.

55 

Num vale ameno, que os outeiros fende,Vinham as claras águas ajuntar-se,Onde uma mesa fazem, que se estendeTão bela quanto pode imaginar-se;Arvoredo gentil sobre ela pende,Como que pronto está para afeitar-se,Vendo-se no cristal resplandecente,Que em si o está pintando propriamente.

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Literatura portuguesa I 

56 Mil árvores estão ao céu subindo,Com pomos odoríferos e belos:A laranjeira tem no fruto lindoA cor que tinha Dafne nos cabelos;Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira com os pesos amarelos;Os formosos limões ali, cheirando,Estão virgíneas tetas imitando.

57As árvores agrestes que os outeirosTêm com frondente coma enobrecidos,Alemos são de Alcides, e os loureirosDo louro Deus amados e queridos;Mirtos de Citereia, com os pinheirosDe Cibele, por outro amor vencidos;Está apontando o agudo ciparisoPara onde é posto o etéreo paraíso.

58 Os dons que dá Pomona, ali NaturaProduz diferentes nos sabores,Sem ter necessidade de cultura,Que sem ela se dão muito melhores:As cerejas purpúreas na pintura,As amoras, que o nome têm de amores,O pomo que da pátria Pérsia veio,Melhor tornado no terreno alheio.

59 Abre a romã, mostrando a rubicundaCor, com que tu, rubi, teu preço perdes;Entre os braços do ulmeiro está a jocundaVide, com uns cachos roxos e outros verdes;E vós, se na vossa árvore fecunda,Peras piramidais, viver quiserdes,Entregai-vos ao dano, que, com os bicos,Em vós fazem os pássaros inicos.

60

Pois a tapeçaria bela e fina,Com que se cobre o rústico terreno,Faz ser a de Aqueménia menos diria,Mas o sombrio vale mais ameno.Ali a cabeça a flor Cifísia inclinaSôbolo tanque lúcido e sereno;Floresce o filho e neto de Ciniras,Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

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Literatura portuguesa I 

61Para julgar, difícil coisa fora,No céu vendo e na terra as mesmas cores,Se dava às flores cor a bela Aurora,Ou se lha dão a ela as belas flores.Pintando estava ali Zéfiro e Flora

As violas da cor dos amadores;O lírio roxo, a fresca rosa bela,Qual reluz nas faces da donzela;

62A cândida cecém, das matutinasLágrimas rociada, e a manjarona.Vêem-se as letras nas flores Hiacintinas,Tão queridas do filho de Latona.Bem se enxerga nos pomos e boninasQue competia Cloris com Pomona.Pois se as aves no ar cantando voam,Alegres animais o chão povoam.

63Ao longo da água o níveo cisne canta,Responde-lhe do ramo filomela;Da sombra de seus cornos não se espantaActeon, n'água cristalina e bela;Aqui a fugace lebre se levantaDa espessa mata, ou tímida gazela;Ali no bico traz ao caro ninhoO mantimento o leve passarinho.

64Nesta frescura tal desembarcavamJá das naus os segundos Argonautas,Onde pela floresta se deixavamAndar as belas Deusas, como incautas.Algumas doces cítaras tocavam,Algumas harpas e sonoras flautas,Outras com os arcos de ouro se fingiamSeguir os animais, que não seguiam.

65 

Assim lhe aconselhara a mestra experta;Que andassem pelos campos espalhadas;Que, vista dos barões a presa incerta,Se fizessem primeiro desejadas.Algumas, que na forma descobertaDo belo corpo estavam confiadas,Posta a artificiosa formosura,Nuas lavar-se deixam na água pura,

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Literatura portuguesa I 

66 Mas os fortes mancebos, que na praiaPunham os pés, de terra cobiçosos,Que não há nenhum deles que não saiaDe acharem caça agreste desejosos,Não cuidam que, sem laço ou redes, caia

Caça naqueles montes deleitosos,Tão suave, doméstica e benigna,Qual ferida lha tinha já Ericina.

67Alguns, que em espingardas e nas bestas,Para ferir os cervos se fiavam,Pelos sombrios matos e florestasDeterminadamente se lançavam:Outros, nas sombras, que de as altas sestasDefendem a verdura, passeavamAo longo da água que, suave e queda,Por alvas pedras corre à praia leda.

68 Começam de enxergar subitamentePor entre verdes ramos várias cores,Cores de quem a vista julga e senteQue não eram das rosas ou das flores,Mas da lã fina e seda diferente,Que mais incita a força dos amores,De que se vestem as humanas rosas,Fazendo-se por arte mais formosas.

69 Dá Veloso espantado um grande grito:"Senhores, caça estranha, disse, é esta!Se ainda dura o Gentio antigo rito,A Deusas é sagrada esta floresta.Mais descobrimos do que humano espíritoDesejou nunca; e bem se manifestaQue são grandes as coisas e excelentes,Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

70

"Sigamos estas Deusas, e vejamosSe fantásticas são, se verdadeiras."Isto dito, velozes mais que gamos,Se lançam a correr pelas ribeiras.Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,Mas, mais industriosas que ligeiras,Pouco e pouco sorrindo e gritos dando,Se deixam ir dos galgos alcançando.

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Literatura portuguesa I 

71De uma os cabelos de ouro o vento levaCorrendo, e de outra as fraldas delicadas;Acende-se o desejo, que se cevaNas alvas carnes súbito mostradas;Uma de indústria cai, e já releva,

Com mostras mais macias que indignadas,Que sobre ela, empecendo, também caiaQuem a seguiu pela arenosa praia.

72Outros, por outra parte, vão toparCom as Deusas despidas, que se lavam:Elas começam súbito a gritar,Como que assalto tal não esperavam.Umas, fingindo menos estimarA vergonha que a força, se lançavamNuas por entre o mato, aos olhos dandoO que às mãos cobiçosas vão negando.

73Outra, como acudindo mais depressaA vergonha da Deusa caçadora,Esconde o corpo n'água; outra se apressaPor tomar os vestidos, que tem fora.Tal dos mancebos há, que se arremessa,Vestido assim e calçado (que, coa moraDe se despir, há medo que ainda tarde)A matar na água o fogo que nele arde.

74Qual cão de caçador, sagaz e ardido,Usado a tomar na água a ave ferida,Vendo no rosto o férreo cano erguidoPara a garcenha ou pata conhecida,Antes que soe o estouro, mal sofridoSalta n'água, e da presa não duvida,Nadando vai e latindo: assim o manceboRemete à que não era irmã de Febo.

75 

Leonardo, soldado bem disposto,Manhoso, cavaleiro e namorado,A quem amor não dera um só desgosto,Mas sempre fora dele maltratado,E tinha já por firme pressupostoSer com amores mal afortunado,Porém não que perdesse a esperançaDe ainda poder seu fado ter mudança,

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76 Quis aqui sua ventura, que corriaApós Efire, exemplo de beleza,Que mais caro que as outras dar queriaO que deu para dar-se a natureza.Já cansado correndo lhe dizia:

"Ó formosura indigna de aspereza,Pois desta vida te concedo a palma,Espera um corpo de quem levas a alma.

77"Todas de correr cansam, Ninfa pura,Rendendo-se à vontade do inimigo,Tu só de mi só foges na espessura?Quem te disse que eu era o que te sigo?Se to tem dito já aquela ventura,Que em toda a parte sempre anda comigo,Ó não na creias, porque eu, quando a cria,Mil vezes cada hora me mentia.

78 "Não canses, que me cansas: e se queresFugir-me, por que não possa tocar-te,Minha ventura é tal que, ainda que esperes,Ela fará que não possa alcançar-te.Espora; quero ver, se tu quiseres,Que subtil modo busca de escapar-te,E notarás, no fim deste sucesso,Tra la spica e la man, qual muro è messo.

79 "Ó não me fujas! Assim nunca o breveTempo fuja de tua formosura!Que, só com refrear o passo leve,Vencerás da fortuna a força dura.Que Imperador, que exército se atreveA quebrantar a fúria da ventura,Que, em quanto desejei, me vai seguindo,O que tu só farás não me fugindo!

80

"Pões-te da parte da desdita minha?Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.Levas-me um coração, que livre tinha?Solta-me, e correrás mais levemente.Não te carrega essa alma tão mesquinha,Que nesses fios de ouro reluzenteAtada levas? Ou, depois de presa,Lhe mudaste a ventura, e menos pesa?

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81"Nesta esperança só te vou seguindo:Que, ou tu não sofrerás o peso dela,Ou na virtude de teu gesto lindoLhe mudarás a triste e dura estrela:E se se lhe mudar, não vás fugindo,

Que Amor te ferirá, gentil donzela,E tu me esperarás, se Amor te fere:E se me esperas, não há mais que espere."

82Já não fugia a bela Ninfa, tantoPor se dar cara ao triste que a seguia,Como por ir ouvindo o doce canto,As namoradas mágoas que dizia.Volvendo o rosto já sereno e santo,Toda banhada em riso e alegria,Cair se deixa aos pés do vencedor,Que todo se desfaz em puro amor.

83Ó que famintos beijos na floresta,E que mimoso choro que soava!Que afagos tão suaves, que ira honesta,Que em risinhos alegres se tornava!O que mais passam na manhã, e na sesta,Que Vénus com prazeres inflamava,Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

84Desta arte enfim conformes já as formosasNinfas com os seus amados navegantes,Os ornam de capelas deleitosasDe louro, e de ouro, e flores abundantes.As mãos alvas lhes davam como esposas;Com palavras formais e estipulantesSe prometem eterna companhiaEm vida e morte, de honra e alegria.

85 

Uma delas maior, a quem se humilhaTodo o coro das Ninfas, e obedece,Que dizem ser de Celo e Vesta filha,O que no gesto belo se parece,Enchendo a terra e o mar de maravilha,O Capitão ilustre, que o merece,Recebe ali com pompa honesta e régia,Mostrando-se senhora grande e egrégia.

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86 Que, depois de lhe ter dito quem era,Com um alto exórdio, de alta graça ornado,Dando-lhe a entender que ali vieraPor alta influição do imóvel fado,Para lhe descobrir da unida esfera

Da terra imensa, e mar não navegado,Os segredos, por alta profecia,O que esta sua nação só merecia,

87Tomando-o pela mão, o leva e guiaPara o cume dum monte alto e divino,No qual uma rica fábrica se erguiaDe cristal toda, e de ouro puro e fino.A maior parte aqui passam do diaEm doces jogos e em prazer contino:Ela nos paços logra seus amores,As outras pelas sombras entre as flores.

88 Assim a formosa e a forte companhiaO dia quase todo estão passando,Numa alma, doce, incógnita alegria,Os trabalhos tão longos compensando.Porque dos feitos grandes, da ousadiaForte e famosa, o mundo está guardandoO prémio lá no fim, bem merecido,Com fama grande e nome alto e subido.

89 Que as Ninfas do Oceano tão formosas,Tethys, e a ilha angélica pintada,Outra coisa não é que as deleitosasHonras que a vida fazem sublimada.Aquelas proeminências gloriosas,Os triunfos, a fronte coroadaDe palma e louro, a glória e maravilha:Estes são os deleites desta ilha.

90

Que as imortalidades que fingiaA antiguidade, que os ilustres ama,Lá no estelante Olimpo, a quem subiaSobre as asas ínclitas da Fama,Por obras valorosas que fazia,Pelo trabalho imenso que se chamaCaminho da virtude alto e fragoso,Mas no fim doce, alegre e deleitoso:

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91Não eram senão prémios que repartePor feitos imortais e soberanosO mundo com os varões, que esforço e arteDivinos os fizeram, sendo humanos.Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,

Eneias e Quirino, e os dois Tebanos,Ceres, Palas e Juno, com Diana,Todos foram de fraca carne humana.

92Mas a Fama, trombeta de obras tais,Lhe deu no mundo nomes tão estranhosDe Deuses, Semideuses imortais,Indígetes, Heróicos e de Magnos.Por isso, ó vós que as famas estimais,Se quiserdes no mundo ser tamanhos,Despertai já do sono do ócio ignavo,Que o ânimo de livre faz escravo.

93E ponde na cobiça um freio duro,E na ambição também, que indignamenteTomais mil vezes, e no torpe e escuroVício da tirania infame e urgente;Porque essas honras vãs, esse ouro puroVerdadeiro valor não dão à gente:Melhor é, merecê-los sem os ter,Que possuí-los sem os merecer.

94Ou dai na paz as leis iguais, constantes,Que aos grandes não dêem o dos pequenos;Ou vos vesti nas armas rutilantes,Contra a lei dos inimigos Sarracenos:Fareis os Reinos grandes e possantes,E todos tereis mais, o nenhum menos;Possuireis riquezas merecidas,Com as honras, que ilustram tanto as vidas.

95 

E fareis claro o Rei, que tanto amais,Agora com os conselhos bem cuidados,Agora com as espadas, que imortaisVos farão, como os vossos já passados;Impossibilidades não façais,Que quem quis sempre pôde; e numeradosSereis entre os Heróis esclarecidos,E nesta Ilha de Vénus recebidos.

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Questões de interpretação literária

1) Em relação ao Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, explique como são caracterizados ojudeu e a alcoviteira Brízida Vaz. Considere, para tanto, a composição dos personagens em

cena, a linguagem, a história pessoal e o destino de cada um.

2) Em O auto da sibilia Cassandra (1513?), de Gil Vicente, acompanhamos o discurso deMoisés convencendo Cassandra da importância do casamento; para tanto, ele evoca a leideterminada e divina.5 

Abaixo, está reproduzido um dos mais célebres sonetos de Luís Vaz de Camões,contemporâneo de Gil Vicente.

Explique quais as diferenças ou similitudes temáticas entre este texto e o soneto deCamões M udam-se os tempos, mudam-se as vontades, considerando o contexto histórico eliterário da época.

3) Didaticamente, a crítica de Camões costuma descrever os seguintes temas como sendo osmais importantes da poesia lírica de Camões:

y  A instabilidade dos sentimentos e da realidadey  Ideal de perfeição física e moraly  Desconcerto do mundoy  Amor platônicoy  Perda da amaday  A própria atividade poética6 

Identifique, no soneto E u cantarei de amor tão docemente, ao menos dois dos temas

supracitados. Justifique sua resposta com exemplos retirados do poema.

4) É bastante comum encontrarmos em livros didáticos a afirmação de que a poesia lírica deLuís de Camões possui uma tópica neoplatonista. Explique se o neoplatonismo está ou nãopresente nos poemas Pede o desejo, Dama, que vos veja e Alma minha gentil, que te partiste.

5) A respeito dos sonetos de Camões, a crítica concorda que os poemas apresentam umapostura racional e filosófica que muitas vezes expõe a intenção pedagógica e esclarecedora naabordagem dos temas.7 Tal postura já foi descrita como lirismo reflexivo ouargumentativo. A mesma postura pode ser encontrada em trechos de sua poesia épica.

Explique de que maneira essa referida postura racional pode ser encontrada no episódio damorte de Inês de Castro (canto III), de Os Lusíadas. Exemplifique com trechos do poema.

5 VICENTE, Gil. O auto da sibila Cassandra. São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 91 a 95.6 TORRALVO, Izet Fragata; MINCHILLO, Carlos Cortez. Introdução. In: CAMÕES, Luís de. S onetos deCamões. Cotia-SP: Ateliê, 2007.7 Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo, no prefácio aos S onetos de Camões. Cotia-SP: Ateliê,2007.

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6) Trace uma comparação entre dois dos episódios mais importantes de Os Lusíadas: a mortede Inês de Castro e o episódio do Gigante Adamastor. Considere, para tanto:

a) questões estruturais do poema (narrador, contexto dos episódios);b) o principal tema dos episódios as vítimas do amor e como esse tema épersonificado em Inês e no Adamastor. Exemplifique com trechos do poema.

7) A propósito da estrofe abaixo, retirada do episódio de Inês de Castro (canto III) de OsLusíadas, responda:

a)  Quem é o narrador deste trecho? E qual o seu interlocutor?b)  Qual o argumento desta estrofe? É uma acusação? Uma declaração de

amor? Uma ode de louvor ao Amor? Explique.

T u , só t u , puro Amor, com força cr ua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. S e dizem, fero Amor, que a sede t ua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, T uas aras banhar em sangue humano.

8) A propósito das estrofes abaixo, retiradas do episódio do Gigante Adamastor, de OsLusíadas (Canto V, estrofes 52 e 53), responda: 

a)  O amor do gigante pela ninfa pode ser caracterizado como amor baixo ouamor elevado? Explique.

b)  Qual foi a estratégia do gigante para conseguir se aproximar da ninfa?

 Amores da alta esposa de Peleu Me fizeram tomar tamanha empresa.Todas as Deusas desprezei do cé u ,S ó por amar das águas a princesa.Um dia a vi coas filhas de Nereu S air nua na praia, e logo presa

 A vontade senti de tal maneiraQue ainda não sinto coisa que mais queira.

Como fosse impossível alcançá-laPela grandeza feia de meu gesto,

Determinei por armas de tomá-la,E a Doris este caso manifesto.De medo a Deusa então por mim lhe fala;Mas ela, com um formoso riso honesto,Respondeu: " Qual será o amor bastanteDe Ninfa que sustente o d um Gigante? 

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Sermão da sexagésima (fragmentos)8 Padre António Vieira

II.

O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, aspedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Osespinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestesafoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se apalavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos eperturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm,outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque adesatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens debom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade eabundância, que se colhe cento por um: Et fr uct um fecit cent u pl um. 

Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ouadmiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus étão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que apalavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um porcento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo.Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência,comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadoresconvertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezandoas riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades eas gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igrejade Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a

palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em sie se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que éisto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menospoderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deustem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta,tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me amim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais aouvir.

III.

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da

parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converterpor meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com adoutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-deconcorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessáriastrês coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; setem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há

8 Na íntegra: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/sexagesi.html 

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Literatura portuguesa I 

mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar umhomem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessárialuz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deusconcorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Orasuposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: deDeus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do

ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definidano Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador,uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeiraperdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira,porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que nãodiz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causapor que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperançados tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porquenão introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ouda chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar asemente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará defrutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelosdescaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser.Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; como sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solemsuum oriri facit su per bonos et malos, et pl uit su per j ustos et inj ustos. Se Deus dá o seu sol e asua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Esteponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineaemeae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que

ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam aculpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra deDeus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dosouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se sãomaus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nosespinhos, nasceu, mas afogaram-no: S imul exortae spinae su ffocaver unt ill ud. O trigo que caiunas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et nat um ar uit. O trigo que caiu na terra boa,nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et nat um fecit fr uct um cent u pl um. De maneiraque o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, nãofrutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é

tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, nãofrutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até naspedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? --Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintesde vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos sãomaus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos,e às vezes também a picar a quem os não pica.  Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou osespinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vospicou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de

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entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque umentendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior;mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais,porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh!Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisésabrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis

silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Ind urat um est cor Pharaonis. E com os ouvintes deentendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tantaa força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da durezanasce nas pedras.

Pudéramos argüir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar aspedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para quese visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nemdespontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancarnem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos coraçõessecos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessasmesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeadordo Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos ocoroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebrarampara lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavrade Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nosespinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações,não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.

Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica,nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica

por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Porculpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpanossa. 

SonetosBocage

1.

Importuna Razão, não me persigas;Cesse a ríspida voz que em vão murmura;Se a lei do Amor, se a força da ternuraNem domas, nem contrastas, nem mitigas.

Se acusa os mortais, e os não obrigas,Se (conhecendo o mal) não dás a cura,Deixa-me apreciar minha loucura,Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projeto encher de pejoEsta alma, frágil vítima daquelaQue, injusta e vária, noutros laços vejo.

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Literatura portuguesa I 

Queres que fuja de Marília bela,Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejoé carpir, delirar, morrer por ela.

2.

Camões, grande Camões, quão semelhanteAcho teu fado ao meu, quando os cotejo!Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,Arrostar co'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,Da penúria cruel no horror me vejo;Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte duraMeu fim demando ao Céu, pela certezaDe que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...Se te imito nos transes da Ventura,Não te imito nos dons da Natureza.

3.

Da triste, bela Inês, inda os clamoresAndas, Eco chorosa, repetindo;Inda aos piedosos Céus andas pedindoJustiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos AmoresDe quando em quando as náiades carpindo;E o Mondego, no caso reflectindo,Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoaA Pedro, que da morte formosuraConvosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roaA malfadada Inês na sepultura.

4.

Proposição das rimas do poeta

Incultas produções da mocidade

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Literatura portuguesa I 

Exponho a vossos olhos, ó leitores:Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedadeNos meus suspiros, lágrimas e amores;

Notai dos males seus a imensidade,A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimentoEncontrardes alguns cuja aparênciaIndique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violênciaEscritos pela mão do Fingimento,Cantados pela voz da Dependência.

5.

 Aos sócios da Nova Arcádia

Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,Macedos e outras pestes condenadasVós, de cujas buzinas penduradasTremem de Jove as melindrosas filhas:

Vós, néscios, que mamais da vis quadrilhasDo baixo vulgo insossas gargalhadas,Por versos maus, por trovas aleijadas,De engenhais as vossas maravilhas,

Deixai Elmano, que inicente e honrado,Nunca de vós se lembra, meditandoEm coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando,Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado,De perna erguida sobre vós mijando.

6.

Marília, se em teus olhos atentara,Do estelífero sólio reluzente,Ao vil mundo outra vez o omnipotente,O fulminante Júpiter baixara

Se o deus que assanha as Fúrias, te avistaraAs mãos de neve, o colo transparente,Suspirando por ti, do caos ardenteSurgira à luz do dia e te roubara.

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Literatura portuguesa I 

Se a ver-te de mais perto do Sol descera,No aúreo carro veloz dando-te assento,Até da esquiva Dafne se esquecera.

E se a força igualasse o pensamento

Ó alma da minhalma, eu te ofreceraCom ela a Terra, o Mar e o Firmamento

7.

Ó tranças, de que Amor prisão me tece,Ó mãos de neve, que regeis meu fado!Ó tesouro! ó mistério! ó par sagrado,Onde o menino alígero adormece.

Ó ledos olhos, cuja luz parece

Tênue raio de sol! Ó gesto amado,De rosas e açucenas semeadoPor quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,E por cujos dulcíssimos favoresTalvez o próprio Júpiter suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores!De quem sois?... Sois de Vênus? - É mentira;Sois de Marília, sois de meus amores.

8.

Oh retrato da morte, oh noite amigaPor cuja escuridão suspiro há tanto!Calada testemunha do meu pranto,Des meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,Dá-lhes pio agasalho no teu manto;Ouve-os, como costumas, ouve, enquantoDorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade,Fantasmas vagos, mochos piadores,Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;Quero a vossa medonha sociedade,Quero fartar meu coração de horrores.

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Literatura portuguesa I 

9.

Lusos heróis, cadáveres cediços,Erguei-vos dentre o pó, sombras honradas,Surgi, vinde exercer as mãos mirradas

Nestes vis, nestes cães, nestes mestiços.

Vinde salvar destes pardais castiçosAs searas de arroz, por vós ganhadas;Mas ah! Poupai-lhe as filhas delicadas,Que. Elas culpa não têm, têm mil feitiços.

De pavor ante vós no chão se deiteTanto fusco rajá, tanto nababo,E as vossas ordens, trémulo, respeite.

Vão para as várzeas, leve-os o Diabo;Andem como os avós, sem mais enfeiteQue o langotim, diámetro do rabo.

10.

Magro, de olhos azuis, carão moreno,Bem servido de pés, meão na altura,Triste de facha, o mesmo de figura,Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,Mais propenso ao furor do que à ternura,Bebendo em níveas mãos por taça escuraDe zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades(Digo, de moças mil) num só momento,E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;Saíram dele mesmo estas verdadesNum dia em que se achou mais pachorrento

11.

Lá quando em mim perder a humanidadeMais um daqueles, que não fazem falta,Verbi-gratia o teólogo, o peralta,Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,Que engrole "sub-venites" em voz alta;

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Literatura portuguesa I 

Pingados gatarrões, gente de malta,Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosaSepulcro me cavar em ermo outeiro,Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

Aqui jaz Bocage, o putanheiro;Levou vida folgada e milagrosa;Comeu, bebeu e fodeu sem ter dinheiro.

Os sofrimentos do jovem Wether (fragmentos)9 Goethe 

Maio, 10Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das

doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meuamigo, e de tal modo mergulhado no tranqüilo sentimento da minha própria existência, queesqueci a minha arte. Neste momento, ser-me-ia impossível desenhar a coisa mais simples; e,no entanto, nunca fui tão grande pintor. Quando, em torno de mim os vapores do meu valequerido se elevam, e o sol a pino procura devassar a impenetrável penumbra da minhafloresta, mas apenas alguns dos raios conseguem insinuar-se no fundo deste santuário;quando, à beira da cascata, ocultas sob arbustos, descubro rente ao chão mil diferentesespécies de plantas; quando sinto mais perto do meu coração o formigar de um pequenouniverso escondido embaixo das folhagens, e são insetos, moscardos de formas inumeráveiscuja variedade desafia o observador, e sinto a presença do Todo Poderoso que nos criou à suaimagem, o sopro do Todo-Amante que nos sustenta e faz flutuar num mundo de tenrasdelícias; então, meu amigo, é quando o meu olhar amortece, e o mundo em redor, e o céuinfinito adormecem inteiramente na minha alma como a imagem da bem-amada; muitasvezes, então, um desejo ardente me arrebata e digo a mim mesmo: Oh! Se tu pudessesexprimir tudo isso! Se pudesses exalar, ao menos, e fixar no papel tudo quanto palpita dentrode ti com tanto calor e plenitude, de modo que essa obra se tornasse o espelho de tua alma,como tua alma é o espelho de Deus!... Meu amigo! Este arroubamento me faz desfalecer;sucumbo sob a força dessas visões magníficas.(...)

Maio, 22A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou nisso. Pois essa

impressão também me acompanha por toda a parte. Quando vejo os estreitos limites onde se

acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nossotrabalho visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outroobjetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito sópode encontrar tranqüilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de umaresignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridase luminosas perspectivas as paredes da sua cela... tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer.Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de

9 Fonte: http://www.starnews2001.com.br/literatura/werther.htm 

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Literatura portuguesa I 

pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutuavagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagematravés do mundo.

As crianças - todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito - não sabema razão daquilo que desejam; também os adultos, da mesma forma que as crianças, caminhamvacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vêm e para onde

vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como ascrianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e ameaças. E, como agem por essa forma,inconscientemente, parece-me, que se acham subordinados à vida dos sentidos.

Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes sãoprecisamente aqueles que vivem, dia a dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindoas suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mãe guardou osbombons, e quando conseguem agarrar, enfim, as gulodices cobiçadas, devoram-nas comsofreguidão e gritam: Quero mais! Eis a gente feliz! Também é feliz a gente que,emprestando nomes pomposos às suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões,conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimentos destinados à salvação eprosperidade do gênero humano. Tanto melhor para os que são assim! Mas aquele quehumildemente reconhece o resultado final de todas as coisas, vendo de um lado como oburguês facilmente arranja o seu pequeno jardim e dele faz um paraíso, e, de outro, como omiserável, arfando sob seu fardo, segue o seu caminho sem revoltar-se, mas aspirando todos,do mesmo modo, a enxergar ainda por um minuto a luz do sol... sim, quem isso observa àmargem permanece tranqüilo. Também este se representa a seu modo um universo que tirade si mesmo, e também é feliz porque é homem. E, assim, quaisquer que sejam os obstáculosque dificultem seus passos, guarda sempre no coração o doce sentimento de que é livre epoderá, quando quiser, sair da sua prisão.

O rei dos elfos10 Goethe

Quem cavalga assim tarde em meio à noite e ao vento?É um pai que traz consigo sua criança;Leva firme nos braços o menino,Aperta-o contra o corpo e o guarda aquecido.

Filho, por que esconde com medo o rosto?Não está vendo, papai, o Rei dos Elfos?O Rei dos Elfos com sua coroa e cauda?Meu filho, é só uma faixa de neblina.

Ei, adorável criança, venha, venha comigo!

Tantos jogos divertidos podemos jogar juntos;Há muitas flores coloridas na beira da praia,E minha mãe tem guardadas várias roupas douradas

Papai, papai, você não está ouvindo?Tudo o que o Rei dos Elfos me fala sussurrando?

10 Fonte: http://gazetadofintelman.wordpress.com/2010/08/01/der-erlkonig-o-rei-dos-elfos/ 

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Calma, fique calmo, meu pequeno:Entre as folhas secas sopra o vento.

Belo garoto, vem comigo, não quer vir?Minhas filhas cuidarão de você muito bem;Minhas filhas estarão ao seu lado à noite

E vão dançar e cantar até você dormir.

Papai, papai, não está vendo bem aliAs filhas do Rei naquele canto escuro?Filho, meu filho, do que vejo estou seguro:Ali brilham os velhos e cinzentos salgueiros.

Eu te amo, me agrada esse belo rosto;Mas se não vem por bem, o trago a contra gosto.Papai, papai, agora ele está me puxando!O Rei dos Elfos está me machucando!

O pai, horrorizado, cavalga veloz,Nos braços traz o agonizante menino;Aflito e cansado, a casa alcança:Em seus braços, morta a criança.

Não te amo Almeida Garrett 

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.E eu n 'alma tenho a calma,

A calma do jazigo.Ai! não te amo, não.Não te amo, quero-te: o amor é vida.E a vida nem sentidaA trago eu já comigo.Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te queroDe um querer bruto e feroQue o sangue me devora,Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.Quem ama a aziaga estrelaQue lhe luz na má horaDa sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,De mau, feitiço azadoEste indigno furor.

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Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tantoQue de mim tenho espanto,De ti medo e terror...Mas amar!... não te amo, não

Este inferno de amar  Almeida Garrett 

Este inferno de amar - como eu amo!Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?Esta chama que alenta e consome,Que é a vida - e que a vida destrói -Como é que se veio a atear,Quando - ai quando se há-de elaapagar?

Eu não sei, não me lembro: o passado,A outra vida que dantes viviEra um sonho talvez... - foi um sonho -Em que paz tão serena a dormi!Oh! que doce era aquele sonhar...Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formosoEu passei... dava o sol tanta luz!E os meus olhos, que vagos giravam,Em seus olhos ardentes os pus.Que fez ela? eu que fiz? - não no sei;Mas nessa hora a viver comecei...

Destino Almeida Garrett 

Quem disse à estrela o caminhoQue ela há-de seguir no céu?A fabricar o seu ninho

Como é que a ave aprendeu?Quem diz à planta --- «Floresce» ---E ao mudo verme que teceSua mortalha de sedaOs fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelhaQue no prado anda a zumbirSe à flor branca ou à vermelha

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Literatura portuguesa I 

O seu mel há-de ir pedir?

Que eras tu meu ser, querida,Teus olhos a minha vida,Teu amor todo o meu bem...Ai! não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,Como no céu gira a estrela,Como a todo o ente o seu fadoPor instinto se revela,Eu no teu seio divinoVim cumprir o meu destino...Vim, que em ti só sei viver,Só por ti posso morrer.

Gozo e Dor Almeida Garrett 

Se estou contente, querida,Com esta imensa ternuraDe que me enche o teu amor?- Não. Ai não; falta-me a vida;Sucumbe-me a alma à ventura:O excesso de gozo é dor.

Dói-me a alma, sim; e a tristezaVaga, inerte e sem motivo,No coração me poisou.Absorto em tua beleza,Não sei se morro ou se vivo,Porque a vida me parou.

É que não há ser bastantePara este gozar sem fimQue me inunda o coração.Tremo dele, e deliranteSinto que se exaure em mimOu a vida - ou a razão.

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Questões de interpretação literária

1)  Em seu pronunciamento ao Conservatório Real, Almeida Garrett explica por que nãointitulou Frei Luís de S ousa de tragédia. Explique seu(s) motivo(s).Ao final da peçaFrei Luís de S ousa, a personagem Mariana ajoelha-se aos pés de Manuel de Sousa e diz:Pai, dá cá um pano da tua mortalha... dá cá, eu quero morrer antes que ele venha.Explique o que é a mortalha a que ela se refere, e por que ela usa essa expressão.

2)  Almeida Garrett, comentando seu drama Frei Luís de S ousa, assumiu que, emboratenha sido escrita em prosa, essa peça possui os elementos mais importantes datragédia clássica. Identifique quais são os momentos, na peça de Garrett,correspondentes aos elementos da tragédia indicados abaixo:

y  Hybrisy  Anagnórisey  Catástrofe

3)  Por que a peça Frei Luís de S ousa pode ser considerada uma metáfora dosebastianismo? Explique. Para tanto, considere a definção de sebastianismo,reproduzida abaixo:

Pode-se dizer que o S ebastianismo é uma forma de messianismo l usitano que tem povoado, ao longo dos séculos, o universo imaginário do povo port u guês e que, devido àcolonização, encontrou seguidores também no Brasil.

Essa crença gira em torno da lenda de D. S ebastião (penúltimo rei de Port u gal antes do domínio espanhol, que d urou de 1580 a 1640). S egundo a mesma, o rei D.S 

ebastião não teria morrido na batalha de Alcácer-Quibir, ocorrida na África a quatro deagosto de 1578, e retornaria, em um dia de nevoeiro, para ocu par novamente o trono e f undar o quinto império, ou seja, um império universal sob a regência port u guesa.

 Ao longo do tempo o termo S ebastianismo ganhou um sentido um pouco maisamplo: o messias, que imporia uma nova ordem política e social, não tinha mais umaidentificação única, passando a ser chamado apenas de o encoberto. Essa lenda, por estar presente no imaginário do povo port u guês, acabou ganhando espaço também naliterat ura e na política. (In: O sebastianismo no romance Pedra Bonita, de José Lins doRego, de Sérgio Fernandes de Lima).11 

4)  No início de Frei Luís de S ousa, a personagem Madalena está lendo um trecho de OsLusíadas. São dois versos do canto III, estrofe 120, referente ao episódio de Inês de

Castro.

Naquele engano da alma, ledo e cego,Que a Fort una não deixa d urar muito 

Qual o sentido desta citação na peça?

11 Fonte: http://professordao.blogspot.com/p/o-sebastianismo-no-romance-pedra-bonita.html 

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8/2/2019 Apostila de Literatura Portuguesa

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Literatura portuguesa I