“Ao som do passarinho”_ o monge e o tempo nas Cantigas de Santa Maria (séc.XIII) _ História...

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24/11/13 “Ao som do passarinho”: o monge e o tempo nas Cantigas de Santa Maria (séc.XIII) | História Medieval - Prof. Dr. Ricardo da Costa www.ricardocosta.com/artigo/ao-som-do-passarinho-o-monge-e-o-tempo 1/8 Selecione o idioma Pow ered by Tradutor “Ao som do passarinho”: o monge e o tempo nas Cantigas de Santa Maria (séc.XIII) Ricardo da COSTA (mailto:[email protected]) Bárbara DANTAS (mailto:[email protected]) Trabalho apresentado no I Seminário Internacional sobre Hagiografia Medieval, UFRGS, 15-17 de outubro de 2013. Resumo: As Cantigas de Santa Maria são consideradas um marco, tanto para a história da Espanha medieval quanto para toda a Europa do período. Esta magnífica obra do século XIII, ricamente iluminada, é composta por cerca de 420 louvores e relatos de milagres da Virgem Maria escritos em galego-português, além de quase 1.800 iluminuras. A proposta desse trabalho é apresentar à comunidade acadêmica nossa tradução da Cantiga 103, feita diretamente do galego-português, além de sua estreita relação temática com a iluminura correspondente. Palavras-chave : Arte − Idade Média − Cantigas de Santa Maria − Iluminura. *** 1. Introdução: “Un gran miragre vos quer' eu ora contar” (...) e por aquest' eu quero seer oy mais seu trobador, e rogo-lle que me queira por seu Trobador e que queira meu trobar reçeber, ca per el quer' eu mostrar dos miragres que ela fez; (...) e por isso eu hoje quero mais ser seu trovador, e rogo-lhe que me queira como seu trovador e deseje minha trova receber, porque tenho necessidade de mostrar os milagres que ela fez. Um grandioso feito de um notável rei. Os desejos em Afonso X (1221-1284) foram, sempre, de grande envergadura. Produzir uma obra fenomenal com cerca de 100 cantigas, na qual texto, imagem e música se fundem maravilhosamente, não foi o suficiente. Seu projeto inicial de cem cantigas transformou-se em cerca de 420, as Cantigas de Santa Maria. A série documental demonstra que o fôlego e a inspiração das primeiras cantigas ainda estão presentes, de forma majestosa, mais de quatro centenas de cantigas depois. As catedrais dominaram a paisagem do séc. XIII na Europa. Seus pináculos cortavam os céus e ligavam o mundo terrestre ao celeste. Nas fachadas e portais, arquitetura e escultura se fundiam em um espetáculo de sensações estéticas. Vitrais e pinturas povoavam o interior destes edifícios, considerados a Jerusalém terrestre. Neles, cores e luzes representavam a relação cada vez mais estreita entre Deus, os anjos e os bem-aventurados em glória, e os cristãos. Anexas às catedrais, as universidades nasceram e floresceram. Nelas, os scriptorium foram o reduto no qual códices magníficos foram copiados. Saberes compilados. Nestas obras, a arquitetura era o motivo formal preferido para separar ou unir elementos nas imagens. 2. Cantiga 103: “Quena Virgen ben servirá a Parayso irá” Um monge foi ao jardim do santuário. Como sempre fazia, rogou à Virgem que lhe desse uma antecipação do Paraíso. Viu, então, uma linda fonte e sentou-se ao lado dela. Um pássaro começou a cantar uma canção tão maravilhosa que o monge ficou encantado, sem outra coisa pensar ou fazer. Ficou, assim, por mais de trezentos anos, ouvindo o canto do pássaro no jardim. Quando ele parou de cantar, pareceu-lhe que apenas poucos instantes haviam passado. Levantou-se então para se juntar aos outros no mosteiro, para uma refeição. Aterrorizado, deparou-se com um grande portal, ricamente ornamentado, que nunca tinha visto antes. Pensou que não era seu mosteiro. Entrou na igreja, mas não encontrou nem o abade, nem os frades. Ao invés disso, outros desconhecidos estavam naquele lugar. Tomaram-lhe como insano. Mas quando contou o que aconteceu, deram graças à Virgem por mais este milagre. 1 2 3 4 5 6

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“Ao som do passarinho”: o monge e o tempo nasCantigas de Santa Maria (séc.XIII)

Ricardo da COSTA (mailto:[email protected])

Bárbara DANTAS (mailto:[email protected])

T rabalho apresentado noI Seminário Internacional sobre Hagiografia Medieval,

UFRGS, 15-17 de outubro de 2013.

R esumo: As Cantigas de Santa Maria são consideradas um marco, tanto para a história daEspanha medieval quanto para toda a Europa do período. Esta magnífica obra do século XIII,ricamente iluminada, é composta por cerca de 420 louvores e relatos de milagres da VirgemMaria escritos em galego-português, além de quase 1.800 iluminuras. A proposta dessetrabalho é apresentar à comunidade acadêmica nossa tradução da Cantiga 103, feitadiretamente do galego-português, além de sua estreita relação temática com a iluminuracorrespondente.

Palavr as-c have : Arte − Idade Média − Cantigas de Santa Maria − Iluminura.

***

1. Introdução: “Un gran miragre vos quer' eu ora contar”

(...) e por aquest' eu quero seer oy mais seu trobador, e rogo-lle que me queira porseu Trobador e que queira meu trobar reçeber, ca per el quer' eu mostrar dos miragres queela fez;

(...) e por isso eu hoje quero mais ser seu trovador, e rogo-lhe que me queira como seutrovador e deseje minha trova receber, porque tenho necessidade de mostrar os milagres queela fez.

Um grandioso feito de um notável rei. Os desejos em Afonso X (1221-1284) foram, sempre, de grandeenvergadura. Produzir uma obra fenomenal com cerca de 100 cantigas, na qual texto, imagem emúsica se fundem maravilhosamente, não foi o suficiente. Seu projeto inicial de cem cantigastransformou-se em cerca de 420, as Cantigas de Santa Maria. A série documental demonstra que ofôlego e a inspiração das primeiras cantigas ainda estão presentes, de forma majestosa, mais de quatrocentenas de cantigas depois.

As catedrais dominaram a paisagem do séc. XIII na Europa. Seus pináculos cortavam os céus eligavam o mundo terrestre ao celeste. Nas fachadas e portais, arquitetura e escultura se fundiam emum espetáculo de sensações estéticas. Vitrais e pinturas povoavam o interior destes edifícios,considerados a Jerusalém terrestre. Neles, cores e luzes representavam a relação cada vez mais estreitaentre Deus, os anjos e os bem-aventurados em glória, e os cristãos.

Anexas às catedrais, as universidades nasceram e floresceram. Nelas, os scriptorium foram o reduto noqual códices magníficos foram copiados. Saberes compilados. Nestas obras, a arquitetura era o motivoformal preferido para separar ou unir elementos nas imagens.

2. Cantiga 103: “Quena Virgen ben servirá a Parayso irá”

Um monge foi ao jardim do santuário. Como sempre fazia, rogou à Virgem que lhe desse umaantecipação do Paraíso. Viu, então, uma linda fonte e sentou-se ao lado dela. Um pássaro começou acantar uma canção tão maravilhosa que o monge ficou encantado, sem outra coisa pensar ou fazer.Ficou, assim, por mais de trezentos anos, ouvindo o canto do pássaro no jardim. Quando ele parou decantar, pareceu-lhe que apenas poucos instantes haviam passado.

Levantou-se então para se juntar aos outros no mosteiro, para uma refeição. Aterrorizado, deparou-secom um grande portal, ricamente ornamentado, que nunca tinha visto antes. Pensou que não era seumosteiro. Entrou na igreja, mas não encontrou nem o abade, nem os frades. Ao invés disso, outrosdesconhecidos estavam naquele lugar. Tomaram-lhe como insano. Mas quando contou o queaconteceu, deram graças à Virgem por mais este milagre.

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Acima de tudo, a tradução é para o historiador uma atividade hercúlea. Somos ainda conduzidos poruma corrente. Se o texto a ser traduzido não é vernáculo, mas poético, o labor é ainda mais intenso.

A subjetividade e a capacidade de abstração são virtudes notáveis, embora infelizmente escassas, noofício do historiador. Traduzir um texto é uma das atividades que mais exigem a concentração dosinvestigadores de culturas passadas.

O significado das palavras, por vezes, igualam-se. Durante nosso trabalho de tradução, os sete séculosque nos separam do texto original tornam-se um instante, momento fugaz em que o tempo se funde.Como, por exemplo, quando nos deparamos com a palavra vergeu. Encontramos-na em nossovocabulário atual, vergel. E com o mesmo significado. Encantadora descoberta das permanências denossa língua-mãe, o galego-português, com nossa língua materna, o português.

103Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarya,

porque lle pedia que lle mostrasse qual erao ben que avian os que eran en Paraiso.

Como Santa Maria fez um monge estar por trezentos anos ao canto do passarinhoporque lhe pedia que mostrasse qual era

o bem que tinham os que estavam no Paraíso

Quena Virgen ben servirá Quem à Virgem bem servir

a Parayso irá. ao Paraíso irá.

E daquest' un gran miragre vosquer' eu ora contar,

E sobre isso um grande milagre vosquero agora contar,

que fezo Santa Maria por unmonge, que rogar

que fez Santa Maria a um mongeque sempre lhe rogava

ll'ia sempre que lle mostrasse qualben en Parais' á

que mostrasse qual bem há noParaíso

E que o viss' en ssa vida ante quefosse morrer.

e que o visse ainda em vida, antesde morrer.

E porend' a Groriosa vedes que llefoi fazer:

Por isso, veja o que lhe fez aGloriosa:

fez-lo entrar en hũa orta en quemuitas vezes ja

fê-lo entrar em um vergel no qualmuitas vezes entrara

Entrara ; mais aquel dia fez quehũa font' achou

Mas, naquele dia, fez com queachasse uma fonte

mui crara e mui fremosa, e cab' ela

s'assentou.

muito clara e formosa e, ao lado

dela, se sentou.

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s'assentou. dela, se sentou.

E pois lavou mui ben sas mãos,diss': «Ai, Virgen, que será

Após lavar muito bem suas mãos,disse: «Ai, Virgem, será que

Se verei do Parayso, o que ch' eumuito pidi,

verei o Paraíso que eu tanto pedi?

algun pouco de seu viço ante quesaya daqui,

[Desejaria] um pouco de seu viçoantes de sair daqui,

e que sábia do que ben obra quegalardon averá?»

pois quem sabe o galardão quereceberá quem bem obra?».

Tan toste que acababa ouv' o mong'a oraçon,

Tão logo o monge acabou aoração,

oyu hũa passarinna cantar log' entan bon son,

ouviu um passarinho cantar, e emtão mavioso som

que sse escaeceu seendo e catandosempr' alá.

que se esqueceu onde estava e seinteressou apenas por ele.

Atan gran sabor avia daquel cant' edaquel lais,

Tão grande prazer tinha comaquele canto e aquele lais

que grandes trezentos anos estevoassi, ou mays,

que, por trezentos anos, ou mais, omonge esteve assim,

cuidando que non estevera senonpouco, com' está

pensando que estava há pouco, aoinvés de estar

Mong' algũa vez no ano, quandosal ao vergeu.

como algumas vezes no ano,quando saía para ir ao vergel.

Des i foi-ss' a passarynna, de quefoi a el mui greu,

Então, foi-se o passarinho, e eleficou muito pesaroso,

e diz: «Eu daqui ir-me quero, ca oymais comer querrá

e disse: «eu daqui quero ir, porquedesejo muito comer no convento».

O convent'.» E foi-sse logo e achou E logo se foi, quando achou um

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O convent'.» E foi-sse logo e achouun gran portal

E logo se foi, quando achou umimenso pórtico

que nunca vira, e disse: «Ai, SantaMaria, val!

que nunca havia visto, e disse: «Ai,Santa Maria, valei-me!

Non é est' o meu mõesteiro, pois demi que se fará?»

Não é este o meu mosteiro. O queentão será de mim?».

Des i entrou na eigreja, e ouverongran pavor

Assim, entrou na igreja, e houvegrande pavor

os monges quando o viron, edemandou-ll' o prior,

entre os monges quando o viram, eo encaminharam ao prior,

dizend': «Amigo, vos quen sodes ouque buscades acá?»

dizendo: «Amigo, quem sois ou oque buscais aqui?».

Diss' el: «Busco meu abade, queagor' aqui leixey,

Disse ele: «Busco meu abade, queaqui deixei,

e o prior e os frades, de que miagora quitey

e o prior e os frades, dos quais meseparei

quando fui a aquela orta; u seenquen mio dirá?»

quando fui àquele vergel; quemme dirá onde estarão?».

Quand' est' oyu o abade, teve-o porde mal sen,

Quando isto ouviu o abade,tomou-o por louco,

e outrossi o convento; mais des quesouberon ben

e também o convento; mas tãologo souberam bem,

de como fora este feyto, disseron:«Quen oyrá

como tudo aconteceu, disseram:«Quem acreditará em

Nunca tan gran maravilla comoDeus por este fez

tamanha maravilha como esta queDeus fez

polo rogo de ssa Madre, Virgensanta de gran prez!

pelo rogo de sua Mãe, SantaVirgem de grande valor?

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E por aquesto a loemos; maisquena non loará

Por isso, louvemo-na, e quem nãoa louvará

Mais d'outra cousa que seja? Ca,par Deus, gran dereit' é,

acima de qualquer outra coisa?Porque, para Deus, grande justiça

é,

pois quanto nos lle pedimos nos dáseu Fill', a la ffe,

já que, quando lhe pedimos, seuFilho nos dá, de boa fé,

por ela, e aqui nos mostra o quenos depois dará».

por ela, e aqui nos mostra o que anós depois dará».

Além de utilizarmos o resumo que a Universidade de Oxford oferece desta cantiga (e de todas asdemais (http://csm.mml.ox.ac.uk/index.php?p=poem_list) ) e a edição crítica do filólogo alemão WalterMettmann (1926- ) (composta por 03 volumes, o último com um importante glossário), decidimostambém confrontar nossa proposta de tradução com outra, feita por Moacyr Laterza Filho, no livrocoordenado por uma das maiores pesquisadoras brasileiras das Cantigas de Santa Maria, Ângela VazLeão.

Nossa tradução em muito se assemelha às de Oxford e de Moacyr Laterza Filho (UEMG(http://www.uemg.br) ). Mas, não custa relembrar, traduzir é uma atividade subjetiva e, acima de tudo,criativa. Um ato de criação. Recriação. Para que seja compreendida pelos contemporâneos dotradutor sem que perca seu sabor histórico, ela deve, sobretudo, permanecer sensível à proposta dotexto original.

3. Escri ta e Imag em : “Grandes t rezentos anos estevo assi , ou mays”

A tradução do relato, associada à descrição de dois quadros da iluminura, permitem uma abordagemna qual estes distintos objetos de estudos, texto e imagem, tornam-se complementares. Unemrepresentações sensíveis do passado com as emoções do presente.

Figura 1

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Cantigas de Santa Maria, Rei Afonso X de Leão e Castela. Séc. XIII. Biblioteca de San Lorenzo,Complexo de El Escorial, Madri, Espanha. Cantiga 103.

Ainda sobre o vergeu, há na iluminura da cantiga um suporte iconográfico para nossa reconstruçãohistórica do passado. O ambiente no qual o milagre ocorre é ao ar-livre, com uma relva, flores eárvores diversa. Para nós, parece um jardim. Não se trata de uma simples horta, um local de plantio,mas um deleitoso ambiente propício à meditação conventual. Anexo ao santuário, os monges podiamdescansar e orar ao som e visão de uma corrente d’água, “mui crara e mui fremosa”, protegidos do Solpor frondosas árvores, local paradisíaco para o nosso pio monge receber a recompensa por sua fé naVirgem, mãe de Deus.

Figura 2

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Detalhe da iluminura da Cantiga 103.

De acordo com um liturgista do século XIII, “a pintura parece emocionar mais o espírito que aescrita”. Assim, a partir do método pré-iconográfico proposto por Erwin Panofsky (1892-1968) identificamos na figura 2 (à esquerda) o portal do santuário representado com elementos doRomânico : faixas lombardas acima do portal e arco completo em formato redondo. Não há umaprofusão de cores. O arrebatamento visual viria a seguir.

A passagem do tempo em que o monge permaneceu em um maravilhoso deslumbramento causadopela bela canção do pássaro (grandes trezentos anos) é representado no quadro seguinte (à direita)nas mudanças ornamentais do mesmo portal. Uma ornamentação gótica naquela construçãoromânica.

Uma torre foi acrescentada paralela à entrada, sinal de ampliação do ambiente interno com a criaçãode uma nave anexa à central, bem como uma monumentalidade vertical da construção. O arco doportal, em formato quebrado, ogival e trilobado, é sustentado por capitéis ricamente ornamentadoscom motivos florais. Sob eles, pilares trilobados. O mais insigne motivo ornamental representado nailuminura está acima do portal. Trata-se do tímpano. Em seu centro, uma delicada rosácea. O gótico,chamado de “flamejante”, está presente nas chamas que delineiam o tímpano. A paleta de cores doiluminador foi generosa ao deixar a nova ornamentação da fachada do santuário a mais coloridapossível. Os pilares laterais do portal, o tímpano, as chamas, a torre e seu coruchéu, todo este coloridoestá associado à luz e é como um reflexo do Bem Divino.

Conclusão

Extenuante atividade esta de transmitir idéias e sentimentos de épocas passadas para a nossa com omínimo de deturpação ou anacronismo. Essa ousadia nos impele a uma atividade complexa: atradução. Em nossa pretensão de relacionar os discursos textuais e imagéticos, ousamos ir além. Emsincronia, escrita e imagem caminharam juntas na Idade Média. Assim devemos estudá-las. Separá-lastornaria nossa perspectiva incompleta.

Com essa cantiga, o rei Afonso X e seus colaboradores demonstraram que as mudanças ornamentaisna arquitetura da fachada externa do edifício sacro, visíveis na construção românica que se tornouuma catedral gótica, foram o marco temporal no qual o românico representou o passado e o futuro. Opresente, tempo do desfrute do monge com o canto do pássaro, o período atemporal do Paraíso.Tempo sem início, nem fim, tempo exclusivo do êxtase da presença da Glória Divina. Por isso, éincomensurável.

Analisar as Cantigas de Santa Maria é uma instigante e engrandecedora atividade histórico-compreensiva. Os temas abordados pelos textos e iluminuras são tão ricos que ultrapassam uma vidade pesquisa dedicada a um estudo poético da mentalidade, dos fatos e das práticas das diversas partesdo mundo então conhecido. A História deve caminhar ao lado da Poesia e da Arte. É Arte. AVirgem, magnânima, sublime baluarte sobre o qual toda a narrativa foi desenvolvida, estárepresentada no último quadro da iluminura da Cantiga 103, no altar. Era Ela então o mais poderosoinstrumento da fé para a realização dos anseios dos crentes, e, em nosso caso, do desejo do pio monge.

Notas

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Graduanda de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista/UFES do Projeto1.

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Aprenda mais

Palavras-chave: Cantigas, Santa Maria, Arte, Iluminuras.

interinstitucional de pesquisa (UFES-UNESP/Marília) Manifestações estéticas da Arte Românica naPenínsula Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII) - Grupo CNPq Arte, Filosofia e Literatura na Idade Média.

METTMANN, Walter. "Prólogo B". In: Cantigas de Santa Maria. Vol. I. Madri: Castalia, 1989, p. 55.

METTMANN, Walter. "Introducción". In: Cantigas de Santa Maria. Vol. I. Madri: Castalia, 1989, p. 21-22.

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COSTA, Ricardo da. “O historiador e o exercício da tradução: a novela de cavalaria Curial eGuelfa (séc. XV)”. Trabalho apresentado no Colóquio de Pesquisadores e Pós-Graduandos em HistóriaMedieval Perspectivas de Investigação e Colaboração Científica, UFF, 14 de abril de 2011.

Nesta cantiga as palavras orta e vergeu são sinônimas e surgem emdiferentes passagens. Baseados no glossário de METTMAN(Cantigas de Santa Maria. Vol. IV. Madri: Castalia, 1989, p. 644;745), traduzimos como vergel.

METTMANN, Walter. Cantigas de Santa Maria. Vol. II. Madri: Castalia, 1989, p. 16-18 (tradução nossa).

FILHO, Moacyr Laterza. “Um monge à procura da rosa”. In: LEÃO, Angela Vaz. Novas leituras, novoscaminhos: Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008, p.137-147.

COSTA, Ricardo da. “O historiador e o exercício da tradução: a novela de cavalaria Curial eGuelfa (séc. XV)”. Trabalho apresentado no Colóquio de Pesquisadores e Pós-Graduandos em HistóriaMedieval Perspectivas de Investigação e Colaboração Científica, UFF, 14 de abril de 2011.

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COSTA, Ricardo da. “O historiador e o exercício da tradução: a novela de cavalaria Curial eGuelfa (séc. XV)”. Trabalho apresentado no Colóquio de Pesquisadores e Pós-Graduandos em HistóriaMedieval Perspectivas de Investigação e Colaboração Científica, UFF, 14 de abril de 2011.

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