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Campesinato, fronteira e política* Moacir Palmeira O reconhecimento de que o cientista social está falando sempre a partir de uma posição determinada constitui como que um lugar comum na epistemologia das ciências. O mesmo não parece ser ver- dade, todavia, quando o que está em jogo é, não um discurso abs- trato sobre os fundamentos de sua ciência, mas o trabalho efetivo dos cientistas sociais. Poderíamos até arriscar a hipótese de que, quanto mais é proclamado o “perspectivismo” de um autor, maior parece ser a sua ausência no texto produzido. Isso porque as “pers- pectivas” em jogo numa tal postura remetem sempre a posições da estrutura social supostamente objetivas e dadas a priori, de cuja “visão de mundo” o cientista social seria um porta-voz. Essa espécie de cumplicidade produzida entre o cientista social e uma posição social determinada, que seja a de uma classe social de sua escolha ou aquela de uma comunidade intelectual “acima das classes” com que se identifica, em que pese sua afetação de objetividade, é, em si mesma, testemunho de um voluntarismo e de um subjetivismo incompatíveis com qualquer tentativa de uma ci- ência do social. Tanto quanto aquela outra espécie de “perspectivis- mo” que, fazendo do vício virtude e demitindo-se de qualquer pre- tensão de objetividade, por inatingível ainda que desejável, opta por um mea culpa sistemático e ressentido (onde as “estruturas obje- tivas” voltam a ter o seu lugar) da sua incapacidade de ser objetivo. A resultante em ambos os casos é um tipo de dualismo discursivo em que a teoria é enunciada de um lado — pronta e acabada, objeto da livre escolha de pensares livres de peias — e os fatos articulados de outro, segundo uma ordem com todos os títulos de uma ordem natural, cronológica de preferência. O denominador comum, quer se trate de uma “perspectiva” imposta em termos “situacionais” ou a 308

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Debate sobre campesinato na antropologia brasileira.

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  • Campesinato, fronteira e poltica*

    Moacir Palm eira

    O reconhecimento de que o cientista social est falando sempre a partir de uma posio determinada constitui como que um lugar comum na epistemologia das cincias. O mesmo no parece ser verdade, todavia, quando o que est em jogo , no um discurso abstrato sobre os fundamentos de sua cincia, mas o trabalho efetivo dos cientistas sociais. Poderamos at arriscar a hiptese de que, quanto mais proclamado o perspectivismo de um autor, maior parece ser a sua ausncia no texto produzido. Isso porque as perspectivas em jogo numa tal postura remetem sempre a posies da estrutura social supostamente objetivas e dadas a priori, de cuja viso de mundo o cientista social seria um porta-voz.

    Essa espcie de cumplicidade produzida entre o cientista social e uma posio social determinada, que seja a de uma classe social de sua escolha ou aquela de uma comunidade intelectual acima das classes com que se identifica, em que pese sua afetao de objetividade, , em si mesma, testemunho de um voluntarismo e de um subjetivismo incompatveis com qualquer tentativa de uma cincia do social. Tanto quanto aquela outra espcie de perspectivismo que, fazendo do vcio virtude e demitindo-se de qualquer pretenso de objetividade, por inatingvel ainda que desejvel, opta por um mea culpa sistemtico e ressentido (onde as estruturas objetivas voltam a ter o seu lugar) da sua incapacidade de ser objetivo. A resultante em ambos os casos um tipo de dualismo discursivo em que a teoria enunciada de um lado pronta e acabada, objeto da livre escolha de pensares livres de peias e os fatos articulados de outro, segundo uma ordem com todos os ttulos de uma ordem natural, cronolgica de preferncia. O denominador comum, quer se trate de uma perspectiva imposta em termos situacionais ou a

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  • partir de um certo posicionamento na estrutura social, a desconsiderao da prtica do cientista social (em um caso, reduzida mera possibilidade da empatia, em outro, solitria elaborao de um crebro bem dotado) e do compromisso objetivo que ele assume com o caso particular que analisa, que marca irrecorrivelmente as suas tentativas de generalizao. Por mais geral que uma anlise possa parecer em razo da prpria hierarquia temtica dominante num campo cultural particular, ela , em primeira instncia, necessariamente particular, quer se trate do estudo de um Estado ou de uma comunidade.

    O trabalho de Otvio Guilherme Velho *, que pretende lanar os olhos sobre o desenvolvimento brasileiro (uma noo que vai a cada passo ser ela prpria relativizada) a partir da fronteira, haver de intrigar o leitor acostumado com as snteses feitas no se sabe a partir de onde e os prprios cientistas sociais acostumados com uma diviso de trabalho, tornada rotineira, entre uma histria cada vez mais histria econmica, seno mesmo histria das polticas, e uma cincia poltica cada vez mais, em que pesem os propsitos em sentido contrrio, destinada a dar conta da decalagem entre o Estado e as exigncias da economia. Esse trabalho que tenta, ao contrrio, pensar de modo positivo as relaes entre o econmico e o poltico o que significa dizer, no caso do que o autor designa como capitalismo autoritrio, pensar politicamente as relaes entre o econmico e o poltico arrisca-se pelo que h de intrigante na dmarche, isto , pela prpria dificuldade que impe ao crtico de perceber a ruptura que est operando, a ter o destino de alguns dos melhores trabalhos de cincias sociais no Brasil: tornar-se precocemente um clssico , destino glorioso mas frustrante para o pesquisador e estril para a cincia, permanecendo intocado e tornando-se intocvel, sem que dele se extraiam todas as implicaes terico-metodolgicas, se critiquem e desdobrem as suas mltiplas proposies e se explorem as inmeras possibilidades que abre em termos de investigao.

    D o B o m U s o d a C o m p a r a o

    Otvio Guilherme Velho reivindica o mtodo comparativo que Durkheim dizia confundir-se com o prprio mtodo da socio-

    * VELHO, Otvio Guilherme. Capitalismo autoritrio e campesinato. So Paulo. Difel, 1976, 261 p.

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  • logia, e assume um certo nmero de riscos, dos quais o primeiro ser uma dose de m vontade do leitor que aprendeu a desconfiar de uma certa utilizao do mtodo comparativo onde imperam as tipologias reificadas e a-histricas e que, numa reao que tem algo de saudvel, acostumou-se a ver como condio de toda comparao a existncia de algum tipo de continuidade (histrica, geogrfica ou cultural) entre os objetos da comparao. Capitalismo Autoritrio e Campesinato compara realidades descontnuas a fronteira americana na segunda metade do sculo XIX, a fronteira siberiana na entrada do sculo XX e a fronteira brasileira de nossos dias indo contra o continuismo que marca, por exemplo, os estudos sobre a dependncia, como marcava os trabalhos que Durkheim identificava com o mtodo histrico de A. Comte . Isso no significa negar o valor de estudos que se tm feito base do postulado da continuidade e muito menos, afastar a possibilidade da comparao entre realidades contnuas. O estudo de Otvio Guilherme Velho ilustra mesmo, em numerosas passagens, a possibilidade mais radical do que poderamos chamar de comparao a um (comparao de uma variao com um invariante construdo a partir de sua prpria anlise e com outras variaes possveis como ocorre no captulo XXIII quando explora a oposio centro- -beira), e de forma alguma incompatvel com o que Karl Korsch dizia ser uma tese fundamental do marxismo: o princpio da especificao histrica . A vantagem que oferece o estudo de realidades descontnuas evitar que aceitemos como dada uma continuidade que s pode ser estabelecida atravs do trabalho terico. Assim qualquer comparao deve ser mediada por modelos, para usar o termo de que se vale Otvio Guilherme Velho, em funo da prpria singularidade histrica de cada caso. Com isso se evita tanto o empirismo cego das comparaes internacionais que fascinaram a cincia poltica norte-americana nos anos 50 e 60, quanto o empirismo mope dos estudos latino-americanos, sem cair, por outro lado, naquela espcie de relativismo ctico dos que, em antropologia mais especificamente, reduzem a comparao a um trabalho de simples traduo, a estabelecer equivalncias entre cdigos diferentes.

    Mas se deixarmos de lado, por um momento, a concepo durk- heimiana de um mtodo comparativo latu sensu e pensarmos em termos mais restritivos da comparao como um entre outros mtodos possveis (e ambos os significados esto presentes tanto nas Regras de Durkheim quanto no trabalho de Otvio Guilherme Ve

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  • lho), poderemos perceber melhor a significao da dmarche terica posta em prtica. Se o autor escolheu apreender o movimento da sociedade brasileira a partir da fronteira (ou a partir da posio relativa do campesinato de fronteira ), em funo da prpria experincia de pesquisa que lhe foi dado ter, e se isso lhe garantiu perceber certas articulaes que vistas de outras perspectivas permaneceriam opacas de significado (a comear pelas prprias distines entre capitalismo autoritrio e capitalismo burgus e entre capitalismo autoritrio e regime autoritrio), escolheu arcar tambm com as dificuldades inerentes ao estudo de fronteiras que vo da prpria instabilidade das populaes ausncia de registros escritos. Nesse controle, o mtodo comparativo vai se impor como um tipo de artifcio de que se vale um pesquisador que j experimentou as limitaes dos mtodos convencionais, ou mesmo das tentativas de combin-los, como a de Otvio Guilherme Velho de associar mtodos demogrficos e o recurso memria social dos grupos estudados em seu Frentes de Expanso e Estrutura Agrria, para conseguir juntar fragmentos e dar-lhes sentido.

    Em que pese o cuidado de Otvio Guilherme Velho, em seu prefcio, de proclamar o seu respeito pelos limites tradicionais dos objetos das diferentes disciplinas que integram ss chamadas cincias sociais, considerando que o seu trabalho seria visto melhor como um trabalho de sociologia poltica, preciso lembrar que h algo de especificamente antropolgico na sua comparao, que atravessa todo o trabalho e que o distancia no apenas da postura da sociologia poltica quanto da prpria historiografia: a comparao que faz , em primeira instncia, uma comparao entre diferentes verses de um determinado fato. Nada de juntar fatos constatados por documentos que tenham pass2do pela crtica necessria de seus ttulos de autenticidade e validade, reconstituindo uma espcie de consenso sempre duvidoso. Ao invs disso, confrontar verses conflitantes e dar conta desse conflito como nica maneira de estabelecer fatos.

    Mas mais que uma comparao de verses pura e simples o que posto em prtica em Capitalismo Autoritrio e Campesinato. uma comparao por etapas e progressiva. Para ficarmos apenas nos grandes movimentos : ao invs de uma comparao a trs, o que temos uma primeira comparao do caso americano com o caso russo e, a seguir, uma comparao do caso russo com o caso brasileiro. Mas de comparao para comparao ou, antes mesmo, de caso para caso a matria prima da comparao vai mu-

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  • dando: no caso americano a doutrina de Turner que analisada; no caso russo fundamentalmente um debate poltico- -intelectual que trabalhado; no caso brasileiro muito mais uma determinada realidade o que est em jogo. Mas no s muda a matria prima (e os instrumentos que parece exigir para o seu tratamento), como os prprios resultados parciais so de natureza distinta. Otvio Guilherme Velho explcito quando afirma (p. 61) que o caso americano que lhe forneceu uma viso inicial das relaes entre fronteira e desenvolvimento capitalista ; ao passo que o caso russo deve propiciar uma compreenso melhor das relaes entre campesinato, fronteira e capitalismo autoritrio e

    uma viso mais clara das implicaes polticas mais amplas desse modo de desenvolvimento capitalista e do papel poltico de uma fronteira sobre ele por meio de uma anlise da rica polmica russa das primeiras dcadas deste sculo,

    enquanto que no caso brasileiro (p. 173) o que vai estabelecer o papel do campesinato e da fronteira numa transio ao capitalismo que tende a cristalizar-se enquanto tal num processo contnuo de acumulao primitiva .

    Se a comparao, nos termos que vimos, garante simultaneamente a no comparao de grandezas incomparveis (ou no necessariamente comparveis e descarta a suposio de que em cada caso singular todos, e sempre os mesmos, elementos estejam presentes, para ser exaustiva, seguindo as indicaes de Durkheim, ela se obriga a considerar em cada caso emprico todo e qualquer elemento, mesmo que esteja de fato tentando estabelecer relaes entre certos elementos determinados apenas (p. 13), isto , aqueles que so objeto de sua comparao. a tentativa da comparao exaustiva que leva Otvio Guilherme Velho a acompanhar todos os ingredientes incorporados elaborao de ideologias ligadas fronteira e ao papel do campesinato nos rumos do capitalismo autoritrio bem alm das reas em que o contato entre campesinato d fronteira e Estado se colocam de maneira explcita, fazendo desfilar diante do leitor, fora da ordem em que est acostumado a v-las, figuras bem conhecidas suas como o FMI , o Nordeste, o nacionalismo , o imperialismo , etc., referncias obrigatrias nas interpretaes correntes da histria recente do Brasil.

    Um trabalho conduzido nessa linha no poderia manter com as teorias de que se nutre a relao encantada em que muitas vezes se circunscrevem alguns dos bons trabalhos de cincias sociais. Cada passo da comparao significa necessariamente a relativizao da teoria que lhe permite ser dado. A teoria assim concebida, como

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  • instrumento e resultado, necessariamente transformada. A dicotoma aceitao/rejeio ou a tricotoma aceitao/rejeio/correo no se coloca. No se trata de corrigir mas de fazer sofrer teoria e aos seus possveis desdobramentos o caso alimentando as possibilidades de desenvolvimento terico a transformao imposta necessariamente por uma anlise concreta. As fronteiras frouxas entre o cientfico e o ideolgico levam o autor a no aceitar a postura acientfica e moralista de estabelecer cortes a priori que localizem este ou aquele autor em um ou outro domnio e a tratar com o mesmo respeito e o mesmo rigor, sem que isso signifique estabelecer equivalncias simples, a produo de historiadores como Barrington Moore e de idelogos como F. J. Turner.

    Algumas Questes

    O bom uso do mtodo conduz a resultados substantivos alentadores e a uma abertura de possibilidades de pesquisa que precisariam ser exploradas. O melhor exemplo, talvez, seja a anlise brilhante que faz do perodo constitucional (1946-1964) e do perodo subseqente (ver o captulo Nacionalismo e Cosmopolitismo ) a partir da distino capitalismo autoritrio/regime autoritrio. Ao contrrio das anlises que aproximam liberalismo econmico e liberalismo poltico, Otvio Guilherme Velho vai chamar a ateno para o carter autoritrio do capitalismo naquele perodo de regime no autoritrio. A partir da, tornam-se compreensveis paradoxos como a vocao suicida do liberalismo brasileiro (que vai patrocinar a passagem ao regime poltico autoritrio em 64) ou o atrelamento da esquerda ao carro estatal. Outros exemplos, mas de forma alguma os nicos, so a crtica das anlises correntes sobre o desenvolvimento (cf. p. 168) e a anlise das perspectivas do capitalismo autoritrio no Brasil (cf. Concluses ) . Nessa ltima, particularmente importante o que nos ensina sobre o papel da oposio consentida e da crtica exercida pelos intelectuais como demarcadores dos limites das possibilidades do capitalismo autoritrio, na sua atual roupagem de um regime autoritrio :

    Como no capitalismo autoritrio (tal como na transio da dominncla de um modo de produo para a de outro) o que necessrio nem sempre se d automaticamente, a prpria crtica parece ajudar o capitalismo autoritrio, atravs de uma espcie de cooptao da produo intelectual e ideolgica (sem falar da eventual cooptao dos seus prprios produtores), nos seus ajustamentos regulares atravs de mecanismos polticos e administrativos. Pelo menos ajuda a indicar quando os limites

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  • de uma certa fase esto sendo alcanados (no caso do Brasil por vezes pela impresso que a crtica possa causar no corpo de oficiais das foras armadas); particularmente porque, ao que tudo indica, a conscincia dos funcionrios governamentais, eles mesmos, no parece em geral marchar muito adiante da poltica implementada em cada momento. O fato de o sistema funcionar, apesar dessa ausncia de conscincia , de certa maneira, um sinal de fora, no de fraqueza, que contrasta com a situao inversa ocorrida no Estado Novo (229).

    Todavia o livro suscita algumas questes que gostaramos de discutir aqui por sua relevncia para os estudos sobre campesinato a comear pela que diz respeito ao prprio status terico do conceito de capitalismo autoritrio.

    Ainda que Otvio Guilherme Velho afirme que o capitalismo autoritrio o herdeiro direto de sistemas de represso da fora de trabalho, h um esforo constante de afastamento do conceito de B. Moore. verdade que B. Moore vai distinguir (B. Moore Jr., 1969, p. 434) aqueles sistemas de outros, enfatizando o uso de mecanismos polticos por oposio a mecanismos de mercado. Esse poltico , que B. Moore enfatiza estar tomando em sentido amplo, continua referido a uma relao muito precisa aquela entre proprietrios de terra e camponeses. J Otvio Guilherme Velho vai estar pensando em propriedades mais gerais do prprio sistema capitalista ou do desenvolvimento desse capitalismo em circunstncias histricas especficas. O carter autoritrio do capitalismo brasileiro ou do capitalismo russo tem menos a ver com a preexistncia de sistemas de represso da fora de trabalho do que com o prprio atraso com que esse capitalismo tem incio. Assim, sistemas de represso da fora de trabalho podem ser a prpria conseqncia do desenvolvimento capitalista.

    O capitalismo autoritrio, tal como Otvio Guilherme Velho o concebe, , por isso mesmo, um tipo de capitalismo que, juntamente com o seu simtrico oposto, o capitalismo burgus, poderia ser legitimamente perfilado ao lado de tipologias mais clssicas, como as que opem capitalismo financeiro e capitalismo industrial, por exemplo. O que seria especfico da tipologia proposta seria que ela no visaria simplesmente ao econmico mas estaria referida s formas de dominao e articulao entre o poltico e a economia (43). E a especificidade do tipo capitalismo autoritrio estaria na dominncia do poltico e na existncia de uma burguesia economicamente dominante mas no hegemnica (politicamente?). Mas,

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  • lembra Otvio Guilherme Velho, isso parece semelhante ao que Marx chamou Bonapartismo , para sair-se brilhantemente, estabelecendo uma distino entre regime poltico autoritrio, resultante conjuntural de um equilbrio temporrio entre as classes (de que o bonapartismo seria um exemplo), e o capitalismo autoritrio, que tem a ver com a relao estrutural entre o poltico e o econmico, podendo ou no ser reforado por um regime poltico autoritrio . A questo aqui saber se Otvio Guilherme Velho no est afastando com uma mo o que apanhou com a outra. Num primeiro momento., junta o que estava separado: o poltico e o econmico ; num segundo momento estabelece uma distino radical entre, de um lado, uma relao estrutural entre o poltico e o econmico e, de outro, o regime poltico . Ora, ser que a condio para pensarmos o regime poltico em separado no exatamente o tipo de anlise que est combatendo? No seria necessrio repensar o bonapartismo, para sermos coerentes com o projeto de Otvio Guilherme Velho, tambm em termos da relao estrutural entre o poltico e o econmico ? Um dos supostos da concepo do bonapartismo a que se refere no exatamente a identificao de todo capitalismo com a sua variante burguesa ? Mas o que curioso que uma tal inconsistncia vai mostrar-se paradoxalmente frutfera nas anlises que so feitas. Isso nos leva a supor que a dificuldade talvez no esteja exatamente a. Talvez esteja, antes, na prpria escolha da oposio poltica clssica democracia (aqui lida como burguesia) - autoritarismo, para pensar formas de articulao entre o poltico e o econmico que se mostram cada dia como as mais complexas e variadas. Em todo caso, uma resposta a essa questo passaria pelo conhecimento dos outros possveis termos da tipologia e pelas formas possveis de articulao (que Otvio Guilherme Velho reconhece vivel) com algumas das tipologias clssicas mais centradas sobre o econmico . Ou, mais efetivamente, deveria passar pela anlise das repercusses que tem, ao nvel do prprio processo econmico, uma forma determinada de articulao entre o poltico e o econmico.

    Um segundo ponto que gostaramos de abordar a concepo do campesinato como modo de produo. O autor acompanha Tepicht ao referir-se a um modo de produo necessariamente subordinado. A subordinao no exclui, portanto (e da falar-se em modo de produo), regras prprias, diferentes daquelas que regem outros modos de produo. Como conciliar isso com a concepo do campesinato como uma protoburguesia que Otvio Guilherme Velho

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  • tambm avana? Onde fica a especificidade dessas regras se, no momento em que a subordinao suspensa, o campesinato aparece ipso facto como uma burguesia talvez sem os ares civilizados de de uma burguesia citadina, mas burguesia? Como juntar esse tipo de concepo com aquela que o prprio Otvio Guilherme Velho avana, no final do captulo III, a respeito das implicaes de pensar o campesinato como modo de produo sobre as noes de feudalismo e modo de produo asitico : tambm a o campesinato seria uma protoburguesia? Tepicht (Tepicht, 1975, p. 45) tenta encaminhar uma soluo para esse problema tentando mostrar como em cada situao histrica o campesinato encarna as caractersticas dominantes da formao econmico-social, de forma que ele sempre seria um embrio de alguma ou algumas das classes que comporiam aquela formao. Mas onde fica nesse caso a especificidade do modo de produo campons? conveniente lembrar que os autores nos quais se inspira Otvio Guilherme Velho para formular a idia de uma protoburguesia vem tambm o campesinato (ou uma parte dele) como um protoproletariado. Por que a suspenso de subordinao do campesinato revelaria apenas e necessariamente a sua face burguesa ?

    Esse talvez seja o preo do privilegiamento intencional pelo autor da fronteira como ponto de partida e objeto de suas reflexes. At que ponto, ao tentar ver as coisas a partir da fronteira, no deixa de considerar as relativizaes sucessivas que ele prprio impe a esse conceito (a fronteira aberta como uma variante apenas e no como a prpria fronteira ; fronteira no sendo necessariamente uma fronteira fsica) e passa a ver o movimento da sociedade brasileira a partir de uma fronteira turneriana (fsica e aberta) ? No ser por isso que, ao identificar uma trajetria ascendente do campesinato, vai identificar esse ltimo com uma protoburguesia, com uma camada de kulaJcs modernizante , descartando os conflitos reais da fronteira que diriam respeito trajetria descendente de um campesinato marginal em liquidao? No vai, em conseqncia, privilegiar a posio poltica potencial de um campesinato protoburgus da fronteira fsica e no as implicaes de uma trajetria de classe sobre o prprio projeto poltico de uma classe, como pretende, a fronteira fsica entrando apenas como exemplo privilegiado? Ser que a tentativa de deslocar o suporte social da democracia da burguesia como um todo para o que seria uma pequena burguesia especial no pode terminar por reintro- duzir o mito turneriano da democracia de fronteira, com todas as implicaes que Otvio Guilherme Velho nos revela?

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  • B I B L I O G R A F I A

    DURKHEIM, Emile. As regras do mtodo sociolgico. Traduo de Maria Isaura Pereira de Queiroz. So Paulo, Companhia Ed. Nacional, 1963.

    KORSCH, Karl. Karl Marx. Paris, Champ Libre, 1974.MOORE JR., Barrington. Social origins of dictatorship and democracy.

    Penguin Books, 1969.TEPICHT, Jerzy. Marxisme et agriculture: le paysan polonais. Paris, Ar-

    mand Colin, 1973.VELHO. Otvio Guilherme. Frente de expanso e estrutura agrria. Rio

    de Janeiro, Zahar, 1972.

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