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    A CONSTITUIO DO COMUM

    Antonio Negri

    Conferncia Inaugural do II Seminrio Internacional Capitalismo Cognitivo Economia do Conhecumento

    e a Constituio do Comum. 24 e 25 de outubro de 2005, Rio de Janeiro. Organizado pela Rede

    Universidade Nmade e pela Rede de Informaes para o Terceiro Setor (RITS).

    Meu discurso esta tarde se delimitar, fundamentalmente, em torno de quatro pontos. O primeiro a

    diferena que existe entre o moderno e o ps-moderno. O segundo a relao que se estabiliza no ps-

    moderno - ou melhor, no altermoderno, e que se constitui como algo novo derivado destes dois conceitos -

    entre singularidade e comum, tentando explicar como a singularidade e o comum anunciam elementos

    diversos na multido e que mudam dentro de uma dinmica continuamente construtiva. Em terceirolugar, muito brevemente, tentaremos ver algumas conseqncias polticas ligadas a esta relao.

    Finalmente, em quarto lugar, refletiremos sobre o conceito de modernidade, o conceito de

    psmodernidade e o conceito, sobretudo, de altermodernidade e de quanto este ltimo pode permitir

    ampliar o conceito de comum e recuperar uma srie de tradies de luta, de pensamento e, sobretudo, de

    consistncia biopoltica que nos possibilitar a fora para avanar na transformao deste mundo e na

    construo da democracia.

    Em relao ao primeiro ponto, comeamos pela diferena entre moderno e ps-moderno. Hoje muitodifcil, quando se fala de Cincia Poltica, no recorrer a uma nova terminologia. Quando nos referimos

    terminologia poltica do moderno, e quando digo moderno me refiro ao pensamento que se desenvolveu

    entre 1500 e 1900, nos encontramos sempre frente a conceitos que so polmicos: soberania, Estado-Nao,

    imperialismo ou colonialismo, cidadania, sujeito poltico. Interpretados da maneira nos quais foram

    definidos hoje significam muito pouco. A soberania era um conceito que tinha seu prprio carter

    absoluto. O Estado-Nao soberano era um Estado que se supunha uma independncia quase absoluta, j

    que tinha a capacidade de fazer a guerra, de cunhar moeda de maneira independente ou de construir

    cultura de maneira isolada. Hoje todos estes elementos so cada vez menos importantes. Vivemos dentro

    de um mundo global, dentro de um mundo no qual, com todas as diferenas, os processos de unificao e

    homogeneizao adquirem cada vez mais importncia.

    E, neste contexto, o que me interessa extrair o fato de que o sujeito poltico diferente, porque se

    transforma pelos menos segundo trs elementos. Em primeiro lugar, o sujeito poltico transformado e

    implicado por uma nova forma de conhecimento e pelo fato de estar inserido dentro de um processo de

    trabalho que cada vez mais cooperativo, o que converte este sujeito em um trabalhador intelectual e

    cooperativo. Os processos de valorizao da produo hoje so dominados por este tipo de trabalhador e

    no h valorizao efetiva seno desta maneira. O segundo elemento que caracteriza a modificao do

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    sujeito consiste no fato de que ele colocado em uma nova temporalidade. A temporalidade que

    conhecemos (pelo menos em meu caso que j sou bastante velho, que vivi a poca do trabalho fordista, do

    trabalho taylorista) era caracterizada por uma extenso temporal da jornada de trabalho: se entrava s seis

    e se saa s duas da fbrica, depois havia o turno das duas da tarde s dez da noite e outro das dez seis

    da manh. A jornada de trabalho, como a das cidades de minha infncia prximas de Veneza, era

    caracterizada assim, a rotina da vida passava pelas horas dos turnos dos trabalhadores. Hoje tudo mudou

    totalmente. Vivemos em um tempo unificado, disperso, no qual a jornada de trabalho clssica no

    medida da temporalidade, j que esta medida desapareceu ou se modificou completamente. Alm disso,

    vivemos em uma situao na qual o espao tambm se alterou completamente. O espao do trabalho, da

    atividade, se converteu em um espao de inter-relaes contnuas, o que se supe uma dimenso

    ontolgica diferente.

    Portanto, dizemos que hoje a vida de trabalho se modificou porque j no se trata somente de uma vida detrabalho dirigida por algum ciclo de tempo e de espao da produo. uma vida que regulada,

    ordenada de alguma forma, por uma espcie de imerso em um fluxo contnuo que chamamos de

    biopoltico. Por que biopoltico? Porque implica efetivamente a vida, envolve formas de vida que so

    conseqentes uma as outras, que esto ligadas uma as outras; porque a estrutura social e poltica entra

    como elemento absolutamente fundamental na vida de cada pessoa; porque j no possvel distinguir,

    como se fazia na velha tradio marxista, o valor de uso e o valor de troca; porque estamos totalmente

    dentro da capitalizao e, portanto, da explorao da vida. No existe um espao natural no qual se

    refugiar, talvez no Brasil, mas seria um caso nico no mundo. Para todos os outros seres humanos existeessa imerso nesse regime da vida, ou melhor dizendo, essa subsuno da sociedade e da totalidade do

    trabalho dentro do capital. nessa subsuno total na relao ao qual - e aqui justamente de onde surge

    o problema - se trata de entender o que hoje a vida e de perguntarmos se existe, todavia, a existncia e se

    existe, todavia, a possibilidade de que a vida suceda de maneira diferente. Este o grande problema que

    colocado pela diferena das relaes entre o moderno e o ps-moderno. O moderno era um mundo que

    herdamos e superamos. Estamos vivendo em outra situao. Estamos imersos em outra vida, em outra

    gua. Este o contexto no qual nossa problemtica deve ser proposta.

    Quais so as categorias que nos permitem fazer uma leitura desta nova realidade? Dizemos que so as

    categorias de multido, comum e de singularidade. Quando falamos de multido falamos de um conjunto,

    mais do que uma soma, de singularidade cooperantes. A multido pode ser definida como o conjunto de

    singularidades cooperantes que se apresentam como uma rede, uma network, um conjunto que define as

    singularidades em suas relaes umas com as outras. Este fato levanta problemas e preciso esclarecer

    que so essas singularidades que se movem desta maneira e que se colocam nesta relao. A primeira

    caracterstica que aparece vem definida pelo fato de que no estamos aqui diante de individualidade e sim

    diante de singularidades. Individualidade significa algo que est inserido em uma realidade substancial,algo que tem uma alma, uma consistncia, por separao em relao totalidade, em relao ao conjunto.

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    algo que tem uma potncia centrpeta. O conceito de indivduo de fato um conceito que colocado a

    partir da transcendncia em que relao no algo entre eu, tu e ele, mas uma relao do indivduo com

    uma realidade transcendente, absoluta, o que d a essa persona a consistncia de uma identidade

    irredutvel. A multido no assim, vivemos com os outros, a multido o reconhecimento do outro. A

    singularidade o homem que vive na relao com o outro, que se define na relao com o outro. Sem o

    outro ele no existe em si mesmo.

    a partir da singularidade que explica o comum. Busca o comum no significa buscar realidades

    pressupostas, o velho conceito de gemeinschaft, de comunidade profunda, o velho conceito de terra,

    natureza. J so conhecidas as horrveis e perversas concepes que podem vir desta identidade. Sabe-se

    perfeitamente como, sobretudo em um pas como o Brasil, funes, mais que conceitos, de poder e de raa

    se uniram profundamente para criar diferenas sociais que hoje se transformaram em hereditrias,

    pesadas, difceis de superar e que supem elementos que negam a democracia e a prpria possibilidade da

    utopia. contra estas coisas que existe este terreno terico de interpretao e a cada terreno terico de

    interpretao deve acompanhar uma capacidade de prtica e de ao. Se consideramos que o mundo est

    feito de singularidades que consistem em relaes e que, portanto, existem na medida que esto em

    relaes, aumentamos nossa capacidade de ao. Antes o ministro1 falava de amor, vamos cham-lo (o

    comum) de amor ento, mas no um amor no sentido romntico, no um amor em um sentido, para

    assim dizer, vinculado simplesmente ao erotismo ou a coisas similares. o amor como fora ontolgica.

    Como dizia Spinoza, diziam os filsofos, como ultimamente at declarou a Teologia da Libertao, uma

    das grandes produes tericas deste pas, este amor constitui o ser porque um ato de solidariedade. Mas

    isto no identitrio, algo que existe na relao, o que absolutamente fundamental porque nos permite

    nos colocarmos em uma situao de efetiva abertura da discusso.

    O que realmente importante no fazer discursos filosficos, retricos, como estou fazendo aqui agora,

    como muitas vezes fazemos, sobre o que j estamos todos convencidos e nos convencemos um pouco

    mais. O problema outro. O problema que detrs disto existe uma realidade real, por assim dizer (...).

    Na anlise das condies fundamentais do trabalho informtico, do trabalho intelectual aplicado s redes

    de telemtica, encontramos as caractersticas de singularidade em uma relao que se convertem em reaise produtivas. e encontramos que a relao entre singularidade e cooperao se tornaram fundamentais.

    Em uma discusso anterior, uma pessoa falava da experincia dos hackers. Queria retomar algumas coisas

    que foram ditas por esta pessoa e colocar assim alguns dos elementos importantes para a qualificao do

    que hoje a condio geral da conscincia do trabalho. Os hackers no so crackers, no so aqueles que

    simplesmente rompem, aqueles que produzem vrus ou entram nos sistemas, os hackers so verdadeiros

    operadores de redes. O que me interessa destacar so algumas caractersticas que esto relacionadas com a

    prtica de seu trabalho e que formam parte de sua tica alm de formar parte de seu trabalho. Penso que

    1Negri se refere a Gilberto Gil, Ministro de Cultura da Repblica Federativa do Brasil, que estava presente na conferncia.

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    os hackers valorizam antes de tudo uma relao com o trabalho que no se baseia no dever e sim na

    paixo intelectual por uma determinada atividade, um entusiasmo que alimentado pela referncia a uma

    coletividade de iguais e reforada pela questo da comunicao em rede. So vrios os autores que

    explicam essa tica hacker e que insistem em pensar que o esprito hacker consiste na recusa das idias de

    obedincia, de sacrifcio e de dever que sempre foram associadas tica individualista, tica protestante

    do trabalho. Os hackers substituem essa tica no de uma maneira egosta, mas, ao contrrio, por um novo

    valor que prega que o trabalho mais alto quanto maior seja a paixo que esse trabalho desperte. Falamos

    de paixo, aderncia, interesse e continuidade. Essa maneira de pensar o trabalho une, fundamentalmente

    e de maneira indissocivel, o prazer intelectual a fora pragmtica e ao compromisso social. O modo de

    produo open-source, que uma inveno dos hackers e que por sorte exportvel (pode ir mais alm da

    prtica mais estrita dos hackers, j que um projeto que pode ser retomado por outros) se tornam

    imediatamente comunicativo. O software livre com cdigo de fonte aberta (open source software) um

    produto de colaborao voluntria, aberta e auto-organizada entre programadores que esto divididospelo mundo inteiro e que esto ligados em rede produzindo programas abertos e modificveis pelos

    usurios locais, que sempre se colocam como competentes iguais. Quando o Linux nasce uma criao

    genial que colocada em circulao. Esta paixo intelectual pelos problemas mais difceis cria

    continuamente.

    Eu sou espinozista, eu me declaro espinozista com prazer, e se queremos pensar nesse tipo de tica,

    encontramo-la inteiramente em Spinosa. A mentalidade hacker se desenvolve dentro desse ambiente

    informtico, dessa maneira informtica de conhecer, que resultado da unio da paixo, da imaginao edo intelecto. Essa atividade cria uma nova forma de razo que no mais a raison abstrata - que perde essa

    funo revolucionria fantstica -, mas que razo que conecta imediatamente o saber, a prtica, a

    imaginao, o social e a cooperao. No se trata simplesmente, neste caso, de aprender a usar mquinas,

    apenas se trata, sobretudo, de fazer passar atravs dessas mquinas aquela construo social que

    horizontal e sempre criativa. Veja bem, a interdependncia nessas relaes absolutamente fundamental,

    no h verdade que no seja interdependente, que no esteja conectada, no nasa junto e, portanto, o

    sentido comum dessa massa de aes a qual cria a consistncia do trabalho hoje. Evidentemente, a

    informtica tambm uma coisa estrita em si, mas esse modo de trabalho no se define simplesmente

    porque trabalha atravs desse tipo de mquina, esse modo de trabalhar se torna cada vez mais necessrio

    para viver, para produzir. Portanto, singularidade e cooperao se tornam fundamentais na construo de

    qualquer que seja o bem, a mercadoria e o produto.

    Hoje o trabalho assim conduzido, neste regime, representa cada vez mais um excedente, isto , essa

    atividade singular, inventiva e social, que introduzida dentro do mecanismo de trabalho, algo que no

    consumido. A fora de trabalho operrio de oito horas acabou, se cerra. O trabalhador intelectual

    continua produzindo. certo que dentro dessa continuidade existe uma possibilidade de explorao

    crescente que vai alm das oito horas, mas o problema no est a. O problema que essa capacidade

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    uma espcie de independncia irredutvel medida capitalista de explorao. No que o

    desenvolvimento capitalista hoje possa ser medido essencialmente por esse tipo de excedente, por esse

    tipo de nova energia construtiva que est em jogo. No estamos ante a uma frmula que explica os rumos

    das tentativas do capitalismo. Est claro que hoje a tentativa do capitalismo para dominar esse tipo de

    realidade passa pela financeirizao internacional dos processos produtivos e pelas grandes foras globais

    de controle. evidente que a chave est no prprio sistema, contudo, tambm evidente que dentro desse

    tipo de controle h algo que falta: a capacidade de amarrar a potncia do processo de singularizao, do

    processo de inveno. Quando se fala de singularizao, de inveno, se fala tambm, de maneira

    necessria e evidente, de resistncia.

    No certo que no desenvolvimento capitalista clssico, fordista, haja simplesmente reproduo dos

    processos produtivos. Todo o mundo que j trabalhou em uma fbrica, que fez trabalho de agitao em

    uma fbrica ou que protagonizou lutas em um sistema fordista sabe perfeitamente que sem a intelignciaoperria, sem o saber profissional, essas fbricas, com suas cadeiras de produo que parecem perfeitas,

    nunca teriam funcionado. Sempre era a capacidade operria de inventar e de aperfeioar as relaes que

    fazia andar ou deter o processo de trabalho na fbrica. Mas hoje essa fora de trabalho vivo infinitamente

    mais caracterizada e se constitui como a fora tendencial, como fora ascendente. Encontramos essa

    capacidade de auto-valorizao efetiva, open free source, na constituio das redes de forma independente e

    livre. Vejam bem, a Microsoft reagiu a este processo e aterrorizou criando um antagonismo interno, no

    externo. Mas contra isto se pergunta aos que trabalham com rede de forma independente e livre: contra

    quem lutas? No luto contra nada, luto para construir minha realidade, estamos construindo estarealidade.

    evidente que agora temos todo o resto que fica fora, o resto, contudo, no irrelevante. A propriedade

    privada e a propriedade pblica confrontam-se com as novas formas de propriedade flutuante em torno

    da rede em nvel internacional e com a capacidade que as grandes empresas tm de criar seu mercado e de

    intervir nessa ordem mercantil e jurdicas que elas criaram com a fora e a capacidade de garantir a ordem

    por meio das multas, penalidades, a excluso etc. Aquelas formas de propriedade, quando no passado se

    viram diante da construo da sociedade por aes, ou seja, da diviso da propriedade em vrias cotas que

    contribuam para a ampliao do capital das empresas, abriram o caminho para falar de socialismo do

    capital. Hoje estamos diante de fenmenos como a enorme cpula financeira, e possvel que tenhamos

    que falar de comunismo do capital. um comunismo do capital que parte dos capitais mais vorazes, que

    recorrem, por exemplo, aos fundos de penses e renem todo esse dinheiro em potncias espantosas.

    Neste contexto, evidente que estamos diante de uma ao coletiva e contnua de esmagamento e

    explorao dessa nova energia nas formas em que se expressa esse excedente generalizado. E no que se

    converteu o conceito de propriedade privada? Converteu-se em um obstculo claro, preciso e contnuo

    expresso deste excedente, expresso do prazer de trabalhar. Foi isso no que converteu a propriedade

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    privada. Tambm temos que estar muito atentos propriedade pblica cuja realidade no muito melhor.

    A propriedade pblica est sempre com o capital, necessita de capital.

    Ento, o que a propriedade comum? A propriedade comum, do ponto de vista jurdico, faclima de

    definir: uma propriedade pblica que, em lugar de ter patres pblicos ou donos pblicos, de sujeitos

    ativos naquele setor ou naquela realidade, administrada por eles. A propriedade comum esse ato,

    essa atividade atravs da qual os sujeitos administram ou gerem, por exemplo, a rede de transportes

    urbanos porque a rede de transporte urbanos deles, porque o comum se tornou ou reconhecido como

    uma condio para a vida, uma condio biopoltica. O que significa, por exemplo, uma metrpole sem

    transporte? Nada. O transporte urbano, sobretudo nas grandes metrpoles, o transporte que d a

    dignidade, a possibilidade de circular rapidamente nesse espao. No espao da comunicao so a

    informtica e a telemtica as que possibilitam essa propriedade comum. A propriedade comum no passa

    simplesmente pelo Estado, passa pelo exerccio que as singularidades fazem desse espao comum, pelamaneira de exercer esse espao comum. No depende de etapas no sentido de primeiro fazermos isto e

    depois fazermos aquilo, como durante tanto tempo ensinaram muitas dogmticas socialistas (primeiro

    fazemos isso e depois aquilo e aquilo outro ser possvel depois de fazer aquela outra coisa). No

    verdade. Agora se trata de pr em movimento tudo a uma s vez. Portanto, para alm da propriedade

    pblica, a definio jurdica do comum aquela que possibilita fazer atuar dentro do carter pblico a

    construo de espaos comuns reais, que so estruturas comuns, e fazer atuar nesses espaos de vontade a

    deciso, o desejo e a capacidade de transformao das singularidades. Isto uma das coisas que mais me

    condicionou na vida e que mais condicionou meu pensamento.

    Eu fui conquistado por uma greve e Paris no inverno de 1995 para 1996. Era uma greve inicialmente de

    defesa corporativa do servio pblico, dos empregados do metr e dos transportes de superfcie. Em

    pouqussimo tempo se transformou em uma enorme luta que durou trs meses, uma luta metropolitana

    para manter o servio pblico, para proibir a privatizao dos servios pblicos e para defender, de

    maneira geral, o que esse servio representava para os cidados de Paris. O poder fez de tudo, claro, para

    intervir, incitando protestos de usurios e outras coisas que esto nos manuais de Cincia Poltica. Mas

    no conseguiram nada. Na neve, 8 milhes de parisienses se deslocavam com automveis particulares,

    que paravam nos pontos de nibus ou nas estaes de metr, abriam as portas e levavam quatro ou cinco

    pessoas at onde necessitavam ir. Isto se prolongou durante trs meses e isto a constituio do comum.

    esta participao, esta capacidade de assumir pelas prprias mos as condies biopolticas da prpria

    existncia, do prprio modo de trabalhar. Esta uma indicao que tem uma importncia em minha

    experincia. fundamental tirar as conseqncias disto, uma espcie de pequena filosofia do comum. Esse

    comum, como j disse, est fundamentalmente articulado, no sentido mais pleno da palavra, com o

    movimento e a comunicao das singularidades. No existe um comum que possa ser referido

    simplesmente a elementos orgnicos ou a elementos identitrios. O comum sempre construdo por um

    reconhecimento do outro, por uma relao com o outro que se desenvolve nessa realidade. s vezes

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    chamamos essa realidade de multido porque quando se fala de multido, de fato, se fala de toda uma

    srie de elementos que objetivamente esto ali e que constituem o comum. Mas o problema

    simplesmente ser comuns ou ser multido, o problema fazer multido, construir multido, construir

    comum, construir comumente, no comum. Este fato cada vez mais fundamental.

    O terceiro ponto a que me vou referir questiona quais so os temas polticos fundamentais que servem

    para esta introduo muito geral da constituio do comum. Alguns temas so absolutamente

    fundamentais. O primeiro deles a crtica de uma de nossas mais queridas tradies: a tomada do poder.

    Creio que uma vez que estamos no terreno do comum necessitamos comear a pensar que no existe uma

    homologao possvel entre o poder assim como ele e aquilo que o comum . O poder uma unificao

    por cima constantemente restritiva, englobadora, mistificadora e destruitiva das singularidades e da

    capacidade de determinar a renovao atravs justamente dessa contnua construo singular do comum.

    Portanto, nos perguntamos como possvel imaginar um processo revolucionrio que no esteja dirigidode maneira paranica para a tomada de poder seno que esteja organizado de maneira criativa atravs de

    uma gesto do comum, de um exerccio do comum. Dentro dessa perspectiva, creio que h indicaes

    importantssimas nestes ltimos anos, sobretudo nos movimentos que nasceram em Seatlle e inclusive em

    algumas das grandes experincias dos zapatistas, entre outros. Assim encontramos ali de onde as foras de

    esquerda tomaram as estruturas, a idia de considerar as estruturas de governo como um espao aberto do

    qual se devem abrir continuamente presses com o objetivo de transformar o governo em governana,

    mas no uma governana concebida como uma forma de administrao atenta s diversidades e capaz de

    resolver ponto por ponto e de maneira paternalista ou funcional os problemas e sim como contradiesabertas e que tem de continuar abertas. Hoje, esta relao entre movimentos e governos algo que est em

    crise. Contudo, essa relao viveu momentos muito ilusrias de abertura e de idias. Nestes casos, o

    problema no era tanto o da tomada do poder atravs da gesto do management, do comum, de uma

    valorizao que se converte efetivamente na capacidade de incidir ou de influencia as redes

    administrativas, comeando a abri-las, insistindo nessa abertura. Em minha opinio, esta uma

    conseqncia da idia do comum que comeamos a elaborar e a maneira como muito provavelmente

    vamos conseguir determinar algumas aberturas novas.

    Eu estou convencido de que o processo poltico alternativo, altermundista, est em dificuldades e que de

    agora em diante ter que enfrentar a novos problemas sociais vinculados s novas formas de trabalho, s

    conseqncias da precarizao geral, s novas divises sociais, ao aumento da misria e da pobreza, etc.

    hoje j se est abrindo um novo ciclo social de lutas que ter, muito provavelmente, novas caractersticas e

    toda uma srie de foras que, todavia, esto repetindo velhos dogmas e velhas ladainhas que, na prtica,

    sero deixadas de lado. Porque o que interessa isso, essa gesto, essa positividade da luta que

    corresponde a um novo prazer do trabalho. Portanto, creio que neste terreno encontraremos muitos

    espaos comuns de discusso.

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    Quero dizer uma ltima coisa para terminar. Creio que hoje, de fato, esta constituio do comum permite

    que nos aproximemos de uma nova construo, muito aberta, da razo, de uma razo biopoltica que vem

    do interior de uma nova realidade. Esta razo biopoltica, em minha opinio, supe trs coisas: antes de

    mais nada, esse reconhecimento fundamental de que no mais possvel um desenvolvimento cannico

    que no seja com base em uma apropriao social dos bens comuns; em segundo lugar, a dimenso

    biopoltica como tal dos corpos e no da ideologia, questo que se converteu em absolutamente prioritria;

    em terceiro lugar, que haja vrias questes relativas liberdade, etc, que so totalmente internas ao novo

    modo de trabalhar e que so mantidas e devem ser desenvolvidas.

    O que mais me interessa destacar o seguinte. Quando falamos desta realidade do comum e a vinculamos

    a nova realidade do trabalho estamos vivendo uma coisa sem dvida original, nova, estamos registrando

    uma nova experincia. Contudo, se olharmos para trs na histria, seja na histria da filosofia ou do

    pensamento, seja na histria das lutas dos povos e dos sujeitos contra o colonialismo, ou seja, em toda ahistria do socialismo revolucionrio, encontramos sempre vivo um modelo de outra civilizao, um

    modelo que no utopia seno permanncia de tradies, de foras, de constituies antropolgicas reais.

    Este outro modelo, da poca do moderno, podemo-lo ver, por exemplo, na filosofia. No h dvida de que

    o pensamento desde Maquiavel a Spinoza ou at Marx, em relao a todos os que elogiavam a

    transcendncia e o poder absoluto do soberano, promoveu idias de origem republicana e idias de

    libertao fortssima que sempre se renovaram e se mantiveram vivas a pesar de ser derrotadas. Podemos

    dizer que estas idias constituem o pouco de bom que a democracia representa como ela , no aquela que

    queremos, seno a democracia como forma de governo, aquela que defendida pelo Sr. Bush., porquealgo se pode salvar dela. O que me interessa so estas outras realidades, as realidades derrotadas ainda

    que sempre vivas ou sempre vencedoras a partir da perspectiva do pensamento. Podem pensar, por

    exemplo, quando falamos do comum, nas experincias formidveis de resistncia nos pases coloniais, nos

    pases colonizados, na Amrica Latina, na ndia ou na China. So experincias fantsticas de comunidades

    que sempre viveram dentro da derrota, sob a represso e que propunham continuamente modelos

    alternativos. No so utopias, so estruturas antropolgicas que encontramos nas mais diferentes formas

    de expresso e que tem uma importncia enorme. Estas ideologias derrotadas, estas realidades esmagadas

    podem converter-se em elementos de construo do novo porque este novo extraordinariamente

    semelhante idia de liberdade, de comum que existiu nesse passado. Pensem no socialismo, at ele viveu

    essa respirao tremenda entre a necessidade de ser Estado e o desejo de massas de liberao. No h

    dvida de que o desejo massivo de libertao foi derrotado e brutalizado na histria deste ltimo sculo,

    mas a idia de comunista foi renovada pelas novas tcnicas, pelos novos sentimentos, pelo desejo de

    valorizao e desenvolvimento e, sobretudo, por nossa necessidade de viver felizes.

    Transcrio de Fabio Malini