MEU PARTO, MINHAS REGRAS: A CONSTRUÇÃO DO … · dados à luz dos conceitos de “comum” e...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MEU PARTO, MINHAS REGRAS: A CONSTRUÇÃO DO COMUM NA REDE PARTO DO PRINCÍPIO Clarissa Carvalho 1 Resumo: O presente trabalho faz um recorte de dados etnográficos produzidos durante pesquisa de doutorado, em andamento na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e debate tais dados à luz dos conceitos de “comum” e “multidão”, de Antonio Negri (2003). Tais conceitos são aqui elencados a fim de melhor compreender o ativismo em prol da humanização do parto e do nascimento, empreendido por mulheres que fazem parte da Rede Parto do Princípio (RPP). Analisa- se de que formas essas mulheres constroem um novo modelo de ação social, que parece se aproximar da categoria “multidão” (NEGRI, 2003), ao buscar a construção de um comum, através da articulação de singularidades. Busca-se entender como se dá o processo discursivo de refinamento e construção das demandas a partir das experiências pessoais de cada membra; como se articulam esses agenciamentos sociotécnicos no ciberespaço de modo a construir causas comuns às membras da RPP. Dessa forma, busca-se entender, na RPP, como discursivamente se constrói a “vontade política” (MAIA, 2014), pensada aqui não como “grande política”, mas como o processo de reconhecimento de questões, nomeação dessas questões, problematização do que antes era naturalizado e geração de legitimidade dessas questões. Tal processo ocorre por meio de práticas discursivas contínuas (principalmente) nos ambientes de internet da RPP, a partir das experiências pessoais de cada mulher com questões de gravidez e parto. Palavras-chave: Humanização do parto. Ciberativismo. Rede Parto do Princípio Os movimentos sociais pela humanização do parto Parir de cócoras e/ou na banheira, em casa, na companhia de companheiro/a e filhos/as, na presença de animais domésticos, com música relaxante e incensos, sem uso de analgesia e outros fármacos, assistida por enfermeira obstétrica ou obstetriz. Essas são algumas imagens que permeiam o senso comum quanto ao significado do termo “parto humanizado. Embora esses procedimentos e modos de organizar a cena de parto possam, sim, estar presentes em um parto humanizado, é importante frisar que o mesmo não se resume a um ou a uma combinação de alguns desses. Em outras palavras, não existe um “parto humanizado” per si, mas sim um processo de humanização da gravidez e parto que pode culminar em escolhas que incluem as imagens que iniciam esse tópico. Por parto humanizado entende-se, a grosso modo, aquele com o mínimo de intervenções médicas e farmacológicas possível ou, então, o que respeita o tempo físico e psíquico de 1 Doutoranda em Comunicação (PUC-RJ); Mestra em Antropologia (UFPI/2012); Bacharel em Comunicação Social Jornalismo (UFPI/2003); Professora do curso de Jornalismo da UESPI, em Teresina-PI; Líder do Grupo de Pesquisa ComGênero/UESPI Comunicação, corpo, gênero e sexualidade. E-mail: [email protected]

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MEU PARTO, MINHAS REGRAS: A CONSTRUÇÃO DO COMUM NA

REDE PARTO DO PRINCÍPIO

Clarissa Carvalho1

Resumo: O presente trabalho faz um recorte de dados etnográficos produzidos durante pesquisa de

doutorado, em andamento na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e debate tais

dados à luz dos conceitos de “comum” e “multidão”, de Antonio Negri (2003). Tais conceitos são

aqui elencados a fim de melhor compreender o ativismo em prol da humanização do parto e do

nascimento, empreendido por mulheres que fazem parte da Rede Parto do Princípio (RPP). Analisa-

se de que formas essas mulheres constroem um novo modelo de ação social, que parece se

aproximar da categoria “multidão” (NEGRI, 2003), ao buscar a construção de um comum, através

da articulação de singularidades. Busca-se entender como se dá o processo discursivo de

refinamento e construção das demandas a partir das experiências pessoais de cada membra; como se

articulam esses agenciamentos sociotécnicos no ciberespaço de modo a construir causas comuns às

membras da RPP. Dessa forma, busca-se entender, na RPP, como discursivamente se constrói a

“vontade política” (MAIA, 2014), pensada aqui não como “grande política”, mas como o processo

de reconhecimento de questões, nomeação dessas questões, problematização do que antes era

naturalizado e geração de legitimidade dessas questões. Tal processo ocorre por meio de práticas

discursivas contínuas (principalmente) nos ambientes de internet da RPP, a partir das experiências

pessoais de cada mulher com questões de gravidez e parto.

Palavras-chave: Humanização do parto. Ciberativismo. Rede Parto do Princípio

Os movimentos sociais pela humanização do parto

Parir de cócoras e/ou na banheira, em casa, na companhia de companheiro/a e filhos/as, na

presença de animais domésticos, com música relaxante e incensos, sem uso de analgesia e outros

fármacos, assistida por enfermeira obstétrica ou obstetriz. Essas são algumas imagens que

permeiam o senso comum quanto ao significado do termo “parto humanizado”. Embora esses

procedimentos e modos de organizar a cena de parto possam, sim, estar presentes em um parto

humanizado, é importante frisar que o mesmo não se resume a um ou a uma combinação de alguns

desses. Em outras palavras, não existe um “parto humanizado” per si, mas sim um processo de

humanização da gravidez e parto que pode culminar em escolhas que incluem as imagens que

iniciam esse tópico.

Por parto humanizado entende-se, a grosso modo, aquele com o mínimo de intervenções

médicas e farmacológicas possível ou, então, o que respeita o tempo físico e psíquico de

1 Doutoranda em Comunicação (PUC-RJ); Mestra em Antropologia (UFPI/2012); Bacharel em Comunicação Social –

Jornalismo (UFPI/2003); Professora do curso de Jornalismo da UESPI, em Teresina-PI; Líder do Grupo de Pesquisa

ComGênero/UESPI – Comunicação, corpo, gênero e sexualidade. E-mail: [email protected]

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cada mulher para parir, em ambiente respeitoso e acolhedor e com seu consentimento

informado para todo e qualquer procedimento realizado (CARNEIRO, 2011, p. 13).

Da conceituação feita pela pesquisadora do MHPN, depreende-se a negociação com as práticas

farmacológicas do saber médico tradicional e a participação ativa da mulher no processo de

parturição.

O parto humanizado não é uma técnica de parto. Não é o mesmo que parto domiciliar, e

também não é o mesmo que parto natural. Independente do local ou das intervenções, o

parto pode ser humanizado. Assim como pode haver parto em casa ou parto natural que não

é humanizado. Complicado? O parto humanizado é um conceito, onde a mulher é ouvida,

seu tempo, o tempo do bebê e os desejos da mulher são ouvidos e respeitados. E no caso de

algum desejo da mulher que não puder ser atendido, os profissionais que estão assistindo-a

irão explicar o porquê, qual intervenção é necessária e ela dará seu consentimento. (...) O

parto humanizado pode acontecer em um hospital, casa de parto ou na casa da parturiente,

com equipe que assista a mulher com base em evidências científicas, sem terrorismos

desnecessários. O ´parto humanizado pode ser natural ou pode precisar de intervenções, a

pedido da mulher (como a analgesia por exemplo) ou por indicação do profissional que está

assistindo o parto (LEAL, Gisele).2

Para entender toda a multiplicidade semântica do termo “parto humanizado”, é preciso

esclarecer primeiro que se trata não de um modo ou técnica definida de parir, mas de uma forma de

entender o corpo feminino e seus processos de gestação e parto. Assim, fala-se em “humanização

do parto e do nascimento” para caracterizar um tipo de assistência à mulher e ao bebê, mais que em

um tipo de parto especificamente.

A humanização do parto e do nascimento se assenta no seguinte tripé: protagonismo feminino;

atendimento à gravidez e parto por equipe multidisciplinar e procedimentos fundamentados na

Medicina Baseada em Evidências (MBE).3

Assim, em que pesem as representações do parto humanizado no senso comum, associando-

o a um retorno ao natural e/ou um saudosismo do tempo de nossas avós, o movimento do parto

humanizado é sustentado por uma racionalidade científica. Em constante embate com a obstetrícia

tradicional, entendida pelos adeptos da humanização do parto como tecnocrática, iatrocêntrica,

etiocêntrica e hospitalocêntrica4, a Medicina Baseada em Evidências (MBE) é que dá sustentação às

práticas de humanização do parto e do nascimento.

A fim de esboçar o ideário do Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento,

Tornquist (2002) recorre ao ideário do Parto sem Dor (SALEM, 1983) e também à Ecologia,

2 Blog www.vilamamifera.com/mulheresempoderadas 3 Notas do diário de campo, registradas durante curso de formação de doulas, em janeiro de 2015. 4 Respectivamente, centrada na figura do médico, centrada na patologia e que privilegia os hospitais como centros de promoção da saúde.

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movimentos dos quais herdou seus valores. Assim, o MHPN defende a participação do pai ou

acompanhante no processo do parto; a valorização do casal igualitário; a valorização da natureza; a

crítica à medicalização da saúde; a inspiração em métodos e técnicas não-ocidentais de cuidados

com o corpo e saúde; a ênfase na dimensão sexual do parto; e a incorporação de outros profissionais

(obstetrizes, enfermeiras obstétricas, doulas) à equipe de atendimento, uma vez que médicos/as são

vistos como símbolos máximos do poder/saber biomédico intervencionista que é alvo de crítica.

Ao etnografar grupos de apoio ao parto humanizado, Rosamaria Carneiro (2011) encontrou

divergências quanto à necessidade ou não de algumas práticas. Assim, a pesquisadora entende a

proposta do MHPN como “guarda-chuva”, com pontos em comum e alguns divergentes, “quanto a

procedimentos, locais para parir e tempo de espera para dirigir-se ao hospital” (p. 59).

Nos grupos estudados, as propostas de parto humanizado não se dirigem diretamente contra

a cesárea, mas contra banalização de intervenções (de forma geral) das quais a cesárea

desnecessária (desnecesárea5) é o ápice. “O ponto de inflexão do discurso do parto humanizado (...)

é muito mais a regra da cesárea desnecessária e o uso abusivo da tecnologia e da farmacologia”

(CARNEIRO, 2011, p.19). Reconhece-se o saber médico e científico, mas há uma oposição ao

domínio da tecnologia, pois entende-se que o parto é um acontecimento não apenas corporal, mas

também psíquico, emocional, familiar, cultural, sexual e espiritual.

Rede Parto do Princípio

A Rede Parto do Princípio (RPP) foi criada em dezembro de 2005, logo após a II

Conferência Internacional pela Humanização do Parto e do Nascimento (Congresso +20+05),

realizado pela Rede de Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa). Um grupo de mulheres

que participavam da ReHuNa decidiu se desmembrar em uma rede, a partir da necessidade de

partilhar conhecimentos entre usuárias, cidadãs comuns.

O dia 08 de março de 2006 é considerado pelos membros do grupo como a data da

instituição da Rede, pois corresponde à inauguração do site. A escolha da inauguração no Dia

Internacional da Mulher aponta para uma intenção de se aproximar das reivindicações mundiais em

5 Termo êmico usado para designar a cesárea realizada sem indicação real, segundo os fundamentos da MBE.

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nome do reconhecimento de um status social inferior relegado às mulheres historicamente. A sessão

“Quem Somos” do site traz informações sobre os objetivos e formas de atuação da RPP:

A Parto do Princípio é uma rede de mulheres usuárias do sistema de saúde brasileiro que

luta pela promoção da autonomia das mulheres, tendo como principal eixo de atuação a

defesa e a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, em especial no que se

refere à maternidade consciente. Atua na articulação de mulheres nos planos local, regional

e nacional por meios virtuais (redes sociais e e-mails) e presenciais. A rede se constitui de

forma democrática e tem caráter suprapartidário, de modo a estimular o debate entre as

participantes de modo horizontal e aberto. Apoia a auto-organização dos grupos regionais e

a articulação com outros movimentos sociais, o que favorece a elaboração de demandas

locais e regionais bem como a denúncia de conjunturas que firam direitos das mulheres.

Assim, fortalecem-se a participação politica das mulheres e sua atuação como cidadãs a

partir de suas realidades (www.partodoprincipio.com.br). (grifo nosso)

Além do site, a RPP conta com perfil no Twitter, listas de discussão, fanpage e grupo

fechado no Facebook. O grupo fechado no Facebook é aberto a novas adesões: basta solicitar a

entrada através de um perfil pessoal. Alguns e-mails foram criados para responder a dúvidas de

temas específicos de usuárias, como o [email protected],

[email protected], além do e-mail geral

[email protected].

Percebe-se, desde o início das atividades do grupo, a importância do uso do ciberespaço para

a sustentação de suas práticas, articulação e exposição de ideias, bem como organização de

atividades. Assim, busca-se entender essa “nova forma de ação social” do grupo, que se apoia nos

ambientes de internet.

A partir de entrevistas com mulheres que pertencem à RPP, buscou-se entender o percurso

que as levou ao ativismo em prol do parto humanizado, ou seja, de que formas, a partir de suas

experiências pessoais com gravidez e parto, essas mulheres se utilizaram das conexões facilitadas

pela internet e, mais especificamente, pela RPP, para compartilhar dúvidas, informações,

questionamentos, que culminaram em mudanças na forma de perceber gravidez e parto. Como, a

partir disso, essas mulheres constroem um território comum, que justifica a ação política. Para a

produção deste artigo, foi feito um recorte das entrevistas realizadas desde 2014, com mais de 40

mulheres que participam da RPP.

Ciberativismo e construção do comum

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A invenção do protocolo www (world wide web) abriu possibilidades de manifestação de

descontentamentos de grupos até então com pouca ou nenhuma visibilidade nas mídias tradicionais.

Ao propiciar a reunião de material antes segmentado em reuniões de grupo e possibilitar a

constituição de novos movimentos das guerras em rede, “as redes de vida social confundiram-se

com a luta biopolítica no ciberespaço” (MALINI; ANTOUN, 2013, p.55).

Rousiley Maia (2014) destaca que, na sociedade contemporânea, emergem variadas

possibilidades democráticas de representação na esfera civil, a fim de defender interesses e anseios

de grupos étnicos ou de minorias de gênero ou sexuais, entre outros.

(...)novos vocabulários precisam ser criados, a fim de problematizar o que antes não era

reconhecido como problema, no contexto social. (...) Particularmente em casos em que não

há direitos garantidos, algo moralmente relevante, porém ainda não tematizado, precisa ser

mostrado, revelado como injustiça enraizada nas regras de convivência ou nos arranjos

institucionais mais gerais da sociedade (MAIA, 2014,p. 83).

Um exemplo da criação de novos vocábulos, da tematização de um problema que antes nem

sequer era reconhecido como tal, é a questão da violência obstétrica. O termo, cunhado no meio

acadêmico em 2014, pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr.

Rogelio Pérez D’Gregorio, em editorial do Journal of Gynechology and Obstetrics, nomeia um tipo

de violência que passa, ou passava, despercebido “devido ao entendimento cultural do corpo

feminino como destinado ao sofrimento no momento do parto, o que justifica diversas práticas

médicas que vieram a reboque da hospitalização do parto” (CARVALHO, 2015).

Embora esse tipo de violência já seja reconhecido em lei6 no Estado venezuelano desde

2013, no Brasil, os debates sobre o assunto têm acontecido principalmente no âmbito do

Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento. A informante 1, natural de João Pessoa-

PB, que teve parto vaginal hospitalar, de seu primeiro filho, relatou:

Depois que o Miguel nasceu, eu só conseguia chorar. Logo disseram que era depressão pós-parto (...)

Todo mundo dizia que era pra eu tá feliz, meu filho era saudável... Meu marido tava comigo na hora

do parto e não achou nada demais na forma como o médico mandou me segurar pra fazer o corte

[episiotomia]. (...) Só depois que eu entendi que aquilo era violência. A grosseria daquela enfermeira,

o corte que nem precisava(..) e os empurrões em cima da minha barriga [Manobra de Kristeller].

Tudo isso era violência mas eu nem entendia.

6 Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a uma vida libre de violência.

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A nomeação e publicização de casos de violência obstétrica tem acontecido principalmente

em redes sociais e blogs maternos, o que não só permite o entendimento dessa forma de violência

por parte de mulheres, como também começa a chamar a atenção de instituições públicas. Prova

disso é que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo lançou, em 2014, uma cartilha educativa

sobre assunto, elaborada pelo seu Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da

Mulher, pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e pela Ong Artemis,

Podemos, então, pensar nas redes sociais como espaços importantes de ativismo em prol dos

direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ciberativismo, netativismo, internet activism são

alguns dos termos criados para dar conta do fenômeno de apropriação do ciberespaço para a defesa

de causas ou resistência a injustiças sociais. É importante frisar, no entanto, que não se trata de mera

incorporação da internet aos processos comunicativos do ativismo, mas sim da “forma como essa

tecnologia comunicativa transformou substancialmente o próprio ativismo e os conceitos de

participação, espaço democrático, identidade coletiva e estratégia política” (DI FELICE, 2012,

p.35).

Wilson Gomes (2005) defende que a conversação civil ocorrida em ambientes de internet,

mesmo que não deliberativa, se mostra como potência para novas formas de construção democrática

de grupos minoritários.

Desta forma, poderíamos entender a democracia, não como um processo de tomada de

decisão, e, sim, como “forma de vida”, ou seja, como sendo baseada no aumento de certas

características da existência individual e social. No espaço dialógico da realidade virtual da

Internet, a sociedade se revelaria “um corpo multivozes metamorfoseando-se”, implicando

para a democracia, real ou virtual, a necessidade de sustentar a interação ou a solidariedade

das “vozes” do seu corpo e, ao mesmo tempo, de respeitar sua heterogeneidade (MALINI;

ANTOUN, 2013, p. 78-79).

Antonio Negri (2003) chama a atenção para a necessidade de “explorar novas formas

de democracia, formas que sejam não-representativas ou diversamente representativas, descobrir

uma democracia adequada aos nossos tempos” (p.124). Mas que tempos são esses? Se

reconhecermos que há uma crise na democracia representativa e que as formas de resistência vêm

se modificando, que arcabouço teórico podemos utilizar para pensar esses fenômenos?

É a partir do pensamento de Hardt e Negri (2001, 2003, 2014, 2016) que tentamos nos

lançar a essa tarefa. Ao analisar a transição histórica da sociedade disciplinar para a sociedade de

controle, os autores enfatizam que, na última, os mecanismos de comando se tornam cada vez mais

interiorizados nos indivíduos, “distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos” (HARDT; NEGRI,

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2001, p.42). Diferentemente da sociedade disciplinar descrita por Foucault (2012), “esse controle

estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e

flutuantes” (p.43).

Esse novo paradigma de poder tem natureza biopolítica. Ao forjar o termo biopolítica,

Foucault designava uma modalidade de exercício do poder sobre a vida, centrada principalmente

nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos, que passam a fazer parte dos cálculos

explícitos do poder. Peter Pál Pelbart (2011) chama a atenção para a inversão semântica, conceitual

e política desse termo por parte de Michael Hardt, Antonio Negri e outros teóricos, que propõem a

biopolítica não mais como poder sobre a vida, mas como potência da vida, como potência de

resistir e produzir subjetividades.

A biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder e de sua racionalidade

refletida tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução,

sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos

biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e

subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral.

Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo (PÁL PELBART, 2011, p.24).

E é justamente a partir do entendimento da biopolítica como potência na sociedade de

controle que Hardt e Negri propõem o conceito de Império para nomear e definir o ordenamento

global contemporâneo. Diferente do imperialismo, o conceito de Império refere-se a uma nova

estrutura de comando que envolve “não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social

da sociedade mas também o próprio bios social” (HARDT; NEGRI, 2001, p.44). O poder do

Império não é exercido verticalmente; sua lógica é fluida, esparramada, em rede, entrelaçada ao

tecido social e à sua heterogeneidade, articulando singularidades.

Ao definir o Império como um regime biopolítico, reconhece-se nele um poder sobre a vida

de dimensões inéditas, mas também – e por isso mesmo – revela-se uma potência de vida também

inédita. “A esse corpo biopolítico coletivo, em seu misto de inteligência, conhecimento, afeto,

desejo, os autores [Hardt e Negri] deram o nome de multidão” (PÁL PELBART, 2011, p. 83).

O termo multidão, tradicionalmente usado de maneira pejorativa, como agregado disforme a

ser dominado, é apresentado, com outra perspectiva, por Hardt e Negri, diante da dissolução do

conceito de povo na era do Império. Ao contrário do povo, a multidão prescinde da contratualidade

e da representação. Enquanto o povo é representado como uma unidade, a multidão congrega

multiplicidade e singularidades não representáveis.

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Podemos definir multidão como um conjunto de singularidades cooperantes que se

apresentam como uma rede, na qual as singularidades se definem em suas relações umas com as

outras. Não se trata de um processo identitário nem de simples exaltação das diferenças, mas do

“reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir ‘algo comum’, isto é, ‘um

comum’, sempre que ele seja entendido como proliferação de vontades criativas, relações ou

formas associativas diferentes” (NEGRI, 2003, p.148).

É uma nova imagem de sujeito político que é proposta aqui. As singularidades são

concebidas como produção das diferenças. A constituição do comum se dá no processo de

cooperação e individuação, no encontro das diferenças: “é esta participação, esta capacidade de

assumir pelas próprias mãos as condições biopolíticas da própria existência, do próprio modo de

trabalhar” (NEGRI, s.d.).

A partir desse ponto de vista, podemos pensar multidão como potência democrática, e

democracia como a forma através da qual a multidão, articulando singularidades, produz a vontade

comum. O comum, nas palavras de Peter Pál Pelbart (2011, p.30), como “potência de vida da

multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de produção de laço, de

capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de

cooperação”.

No espaço da comunicação, a propriedade comum é possibilitada pela informática e

pela telemática, que permitem que as singularidades exerçam esse espaço comum, construindo

novas formas de organização dos sujeitos políticos, capazes de expressar potência e vontade

política. Henrique Antoun (2001) levanta a questão das mudanças no espaço democrático a partir do

desenvolvimentos de comunidades facilitadas pelas novas tecnologias e das organizações em rede

que elas potencializam: “a multidão encontra na rede um meio privilegiado de exprimir sua potência

de ação, fazendo seus movimentos de luta através da construção de redes” (p. 23).

A informante 2, de São Paulo-SP, foi submetida a uma cesárea, no primeiro parto,

devido a uma “desaceleração no trabalho de parto”, segundo foi informada pela equipe. Passado

algum tempo, começou a pesquisar sobre humanização do parto; primeiro, a partir de “um livro que

eu vi por acaso em uma livraria”, e depois na internet.

O que mudou mesmo o meu olhar foi quando comecei a conversar na lista [de discussão]. (...) Muitas

mulheres tinham histórias parecidas com a minha...Eu sabia desde o início que queria parto normal, é

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o natural, né? Meu médico sabia, desde a primeira consulta. Ele já era meu ginecologista antes. Ele

sabia, e mesmo assim ele não respeitou. Ele só dizia que ia ser normal, e no final acabei na cesárea.

(...)Eu dei a sorte de achar esse livro, porque eu pensava que parto humanizado era coisa de gente

doida, sabe? Tipo, eu não queria ter filho em casa, Deus me livre! (...) Mas aí com o livro eu vi que

era outras coisas, e quando eu fui pra lista e pros grupos e comecei a conversar, parece que abriu um

portal, uma coisa assim que agora eu finalmente entendi. (...) Pouco tempo depois eu tava grávida de

novo. E dessa vez eu sabia que tinha que lutar pelo meu parto.

Depois de passar por um VBAC hospitalar, a Informante 2 começou a atuar cada vez mais em prol

da humanização do parto. Além de usar as redes sociais para disseminar informações a respeito, ela

também dá depoimentos em rodas de gestantes,

porque o que mudou pra mim foi ouvir outras mulheres, então eu quero contar que é

possível, sim, mas tem que brigar muito.

Como exemplificado nas falas acima, a infraestrutura rizomática das redes telemáticas

favorece não só o encontro e a publicização de informações para a organização de ações, mas

também a vocalização de experiências pessoais, aspirações, opiniões e perspectivas individuais. De

acordo com Maia (2014), a partir do refinamento da pluralidade de visões e necessidades, em um

processo discursivo contínuo, é possível construir os pontos comuns e dar visibilidade para questões

até então negligenciadas, de modo a exercer influência contra ou dentro do Estado.

O mundo do comum brota da colaboração das singularidades da multidão em suas

participações e compartilhamentos. As redes são uma forma própria de poder constituinte

através da qual uma multidão inteligente armada pela comunicação distribuída em redes

interativas estaria conquistando sua emancipação social MALINI; ANTOUN, 2013, p.58).

Embora não seja possível determinar com clareza qual o impacto dessa colaboração nas

esferas decisórias do Estado, que determinam políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva,

parece não restar dúvidas de que o “trabalho de formiguinha” empreendido por mulheres que

tornam-se ativistas a partir de suas experiências pessoais surte, além dos óbvios efeitos pessoais - de

mulher para mulher-, algum efeito coletivo. A narrativa mais recorrente entre as informantes traz os

mesmos passos, com pequenas diferenças: 1. Decepção com o primeiro parto, que não teve o

desfecho esperado; 2. Busca de informações que, em quase todos os casos, começa pela

internet/redes sociais e costuma também incluir encontros presenciais em grupos de apoio ao parto

humanizado; 3. Busca por uma nova forma de parir, a partir dos novos conhecimentos adquiridos;

4. Ativismo, principalmente a partir dos ambientes de internet. A construção do comum, através da

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colaboração entre mulheres, se mostra aqui de forma contundente, através da distribuição de

informações em rede. A politização do privado, nesse contexto, influencia ações e estratégias de

resistência ao sistema obstétrico tecnocrático brasileiro. Ainda com Negri (s.d.), podemos pensar o

ativismo político dessas mulheres, essa participação, como “capacidade de assumir pelas próprias

mãos as condições biopolíticas da própria existência”. Ao exigirem o direito aos próprios corpos e

ao protagonismo em seus processos de gravidez e parto, e ao fazê-lo colaborativamente, em rede,

essas mulheres tornam-se multidão, e se insurgem contra esse regime biopolítico, que é o Império.

Referências

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femininas de parto humanizado. [Tese de Doutorado]. Campinas: Unicamp, 2011.

CARVALHO, Clarissa. Violência obstétrica: etnografia de uma comunidade no Facebook. Anais

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My delivery, my rules: construction of common in Rede Parto do Princípio

Abstract: This paper uses ethnographic data produced during doctoral research, in progress at the

Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, and discusses such data in light of the concepts of

"common" and "multitude", by Antonio Negri (2003). These concepts are used here in order to

better understand the activism for the humanization of childbirth undertaken by women who are

part of Rede Parto do Princípio (RPP). We analyze the ways in which these women construct a new

model of social action, which seems to be approaching the "multitude" category (NEGRI, 2003),

when seeking the construction of a “common”, through the articulation of singularities. We attempt

to understand how the discursive process of refinement and construction of the demands takes place

from the personal experiences of each member; how these sociotechnical assemblages are

articulated in cyberspace in order to build common causes for the members of the RPP. In this way,

we try to understand, in RPP, how the "political will" is constructed discursively (MAIA, 2014),

understood here not as "the big politics", but as the process of recognition of issues, naming of

those issues, problematization of what was previously naturalized, and the legitimation of these

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

issues. This process occurs through continuous discursive practices (mainly) in the RPP internet

environments, based on the personal experiences of each woman with pregnancy and childbirth

issues.

Keywords: Humanization of birth. Cyberactivism. Rede Parto do Princípio