Antonio Florentino Neto - Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental
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Anais do Congresso de Fenomenologia da regio Centro-Oeste
Caderno de textos - IV Congresso de Fenomenologia da regio Centro-Oeste - 19 21 de Setembro de 2011
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HEIDEGGER E O INEVITVEL DILOGO COM O MUNDO ORIENTAL
Antonio Florentino Neto Unicamp
O Contato de Heidegger com o mundo oriental
A relao entre Heidegger e o pensamento oriental apresenta um leque amplo de
perspectivas de abordagens das quais algumas j foram bem pesquisadas e outras que
permanecem ainda espera de uma reflexo minimamente satisfatria. Nenhum outro
filsofo ocidental suscita tantas discusses e controvrsias no mbito da relao ou dilogo
Ocidente-Oriente, na filosofia, como ele, e diferente de outros pensadores alemes tais
como Leibniz, Wollf, Hegel, Schelling ou Jaspers, que escreveram textos que tratam
diretamente do pensamento oriental, no h, em Heidegger, tentativas claras de interpret-
lo. Ele quase no tece comentrios explcitos sobre o pensamento oriental e seu nico
escrito completo sobre esse tema foi o texto-dilogo De uma conversa sobre a linguagem:
entre um japons e um interlocutor (Heidegger, 2004, pp. 71-120), no qual ele faz uma de
suas melhores auto interpretaes e est muito distante, porm, de abordar o pensamento
japons propriamente.
A postura de Heidegger diante do pensamento oriental no pode ser classificada
simplesmente como positiva ou negativa, como ocorre em Leibniz e Hegel. Sua
relao com o mundo oriental exige grandes esforos para ser compreendida, visto que ela
somente pode ser reconstituda como um mosaico, a partir de trechos isolados do conjunto
de sua obra, de sua correspondncia e dos relatos fornecidos por colaboradores diretos e
amigos. Em nenhum outro filsofo ocidental, que se ocupa do mundo oriental, os vestgios
e as formas deste ocupar-se se encontram to dispersos como em Heidegger. Porm eles
esto l, quase nunca explcitos e raramente reconhecveis primeira vista. Todavia, so
justamente esses vestgios que permitem a recolocao de uma pergunta pouco original,
mas ainda pertinente: Podem tais vestgios ser considerados como influncias do
pensamento oriental sobre Heidegger?
Considerando que a filosofia de Heidegger seja fundamentalmente um dilogo com
a tradio filosfica ocidental, sobretudo com Anaximandro, Herclito, Parmnides,
Aristteles, Kant, Hegel e Nietzsche, ela s pode, portanto, ser compreendida neste
contexto. Isso no exclui, entretanto, a possibilidade de que ela tenha sido influenciada
significativamente por outras tradies e outras formas de pensar, pois no h
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incompatibilidade alguma em dialogar com a tradio filosfica ocidental a partir de
referncias do pensamento oriental.
Porm, a pergunta sobre uma possvel influncia do pensamento oriental sobre
Heidegger freqentemente ignorada ou desprezada pelos filsofos ocidentais, tal como se
qualquer influncia do mundo oriental sobre a filosofia ocidental fosse, por princpio, sem
consistncia e sem fundamento. Tradicionalmente, no meio acadmico filosfico, h uma
disposio preponderante a excluir o pensamento oriental do mbito da filosofia e, por
conseguinte, a recusar categoricamente toda possibilidade de influncias orientais sobre o
pensamento ocidental. Pode at ser que somente no mundo ocidental tenha ocorrido o que
denominamos de filosofia. Pode-se admitir que a filosofia seja puramente ocidental se
definirmos precisamente o que seja a filosofia e se constatarmos que esta definio precisa
de filosofia tem sua origem s e unicamente na Grcia antiga, mas no h nenhuma
determinao maior ou qualquer necessidade lgica que nos impele necessariamente a
chegar a essa concluso.
O que se constata que, at mesmo filsofos que possuem pouco ou quase nenhum
conhecimento sobre questes fundamentais do pensamento oriental, afirmam com
freqncia, que somente os gregos antigos e os europeus fizeram e fazem filosofia. Esta
postura pode ser compreendida nitidamente a partir da historia da interpretao filosfica
do pensamento oriental, especialmente a partir da interpretao de Hegel sobre o mundo
oriental, que influenciou decisivamente os filsofos posteriores a afirmarem, mesmo
desconhecendo o pensamento oriental, que a filosofia exclusivamente europia. Porm, a
pergunta pela influncia de Lao Ts, Tschuang Ts ou do Zen-budismo sobre Heidegger
to relevante (ou irrelevante) quanto pergunta pela influncia de Anaximandro,
Parmnides ou do Mestre Eckardt sobre seu pensamento. A pergunta posta aqui, mas a
resposta est previamente condicionada intensidade da disponibilidade e abertura da
filosofia ocidental para o futuro dilogo com o pensamento oriental. Ou seja, a pergunta
tem um carter metodolgico, que visa, em primeiro plano, orientar uma reflexo sobre o
dilogo entre Ocidente e Oriente no meio acadmico filosfico.
Com Heidegger inicia-se um novo momento na relao entre o pensamento
ocidental e oriental na filosofia, pois ele esteve ao longo de toda sua vida em contato direto
com representantes do Budismo, do Zen-Budismo e do Taosmo. Vrios pensadores
ocidentais estiveram em contato com pensadores e com o pensamento oriental, mas
nenhum deles foi to solicitado por pensadores orientais quanto Heidegger. Ele se
encontrou pessoalmente com filsofos, estudantes, monges e cientistas do Japo, da ndia,
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da Tailndia, Coria e da China. Heidegger teve tambm alunos de diversos pases do
extremo oriente principalmente do Japo, China e Coria. Este contato pessoal inicia-se em
1921, permanece por toda a vida de Heidegger e dificilmente poderia ter permanecido sem
significado algum para o conjunto de sua obra. Hoje j existem vrios livros publicados que
so resultados de Colquios sobre Heidegger e o pensamento oriental.
De acordo com Petzet, uma das primeiras referncias de Heidegger a um importante
texto oriental, mencionada ainda hoje com freqncia, ocorreu pouco aps a publicao de
Ser e Tempo. Em 1934, logo aps ter proferido a conferncia Sobre a Essncia da Verdade
em Bremen para um grupo fechado, Heidegger faz referncia direta ao dilogo da obra de
Tschuang Ts intitulado A alegria dos peixes. Depois da conferncia Heidegger se
reunira com vrias outras pessoas na casa de um comerciante da cidade onde a discusso
continuara (cf. Petzet, 1977, p. 184). Aps ter sido perguntado sobre a possibilidade de um
homem se colocar no lugar de outro, de se compreender o que o outro compreende,
Heidegger pedira ao anfitrio que lhe trouxesse a edio do livro de Tschuang-Tse, que, em
1911, havia sido traduzida por Martin Buber, do ingls para o alemo. Ao ter o livro nas
mos Heidegger lera a seguinte alegoria:
A alegria dos peixes
Tschuang Tse e Hui Tse passavam pela ponte sobre o rio Hao e Tschuang-Tse diz:
Veja como as carpas nadam graciosamente para l e para c. Isto a verdadeira
alegria dos peixes
Voc no peixe diz Hui Ts, ento como voc pode saber de onde se constitui a
alegria dos peixes?
Voc no eu responde Tschuang-Tse, como voc pode saber se eu no sei de
onde vem a alegria dos peixes?
Eu no sou voc confirma Hui-Tse, e eu no sei o que voc sabe. Mas eu seu sei
que voc no peixe, portanto voc no pode saber o que os peixes sabem
Tschuang-Tse responde: voltemos sua pergunta. Voc me perguntou como eu
posso saber de onde vem a alegria dos peixes. Na verdade voc sabia que eu sei, e ainda
assim me perguntou. Eu sabia da alegria dos peixes, da ponte (Tschuang-Tse, 1951, pp.
124-125).
A interpretao que Heidegger fizera desta alegoria de Tschuang Ts, teria, de
acordo com Petzet, rompido com o carter hermtico da conferncia Sobre a essncia da
verdade e os convidados presentes teriam ficado entusiasmados com a desenvoltura de
Heidegger em recorrer a um texto clssico do pensamento chins para elucidar partes da
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conferncia recm proferida. (Petzet, 1977, p. 184). O fato de Heidegger, j neste
momento, recorrer a um dilogo entre Hui Ts e Tschuang-Tse sobre a questo da
intersubjetividade como esclarecimento de sua conferncia, no significa necessariamente
que ele tenha sido influenciado pela filosofia chinesa, mas indica que h entre esses dois
universos de pensamento certa proximidade.
A pergunta sobre o nvel de conhecimento que Heidegger tinha sobre o pensamento
oriental permanece ainda difcil de ser respondida, visto que referncias diretas sobre
Oriente somente so feitas por ele a partir do final da dcada de 1950 (cf. May, 1989, S. 14).
Isso no significa que Heidegger j no tinha anteriormente um bom conhecimento sobre
o Budismo, o Taosmo ou sobre o Zen-budismo. Na verdade, a questo referente ao
conhecimento de Heidegger sobre o pensamento oriental permanece to secundria quanto
pergunta sobre a influncia que esse pensamento teria exercido no conjunto, ou em
partes, de suas obras. Todavia, essas duas perguntas so as pr-condies para outra
pergunta, qual seja, a da abertura para o incio do dilogo entre o pensamento ocidental e o
pensamento oriental, que surge com Heidegger. Esta abertura aparece em sua forma mais
clara quando ele afirma, no texto Cincia e Pensar Meditativo, que o retorno ao incio do
pensamento ocidental seria a base para o dilogo com o mundo oriental.
Este dilogo espera ainda por seu incio. Ele foi sequer preparado e permanece para
ns mesmo como a precondio para o inevitvel dilogo com o mundo oriental.
(Heidegger, 1954, p.43).
Para Heidegger, o retorno ao princpio do pensamento ocidental a preparao para
um dilogo com o pensamento do extremo oriente, mas a sua idia do dilogo encontra-se
ainda numa perspectiva ocidental. A idia de abertura ao dilogo com o Oriente em
Heidegger tem como referncia direta o dilogo com o universo grego, o retorno ao incio,
que se torna central em seu pensamento a partir do final da dcada de 1930 e que se
expressa em sua forma mais evidente no texto O que isto a filosofia, de 1949, no qual
apontada a necessidade do dilogo com o mundo grego como possibilidade de resgate do
carter ontolgico da linguagem, visto que, naquele momento, as coisas eram ditas de
forma tal que, ao serem nomeadas, o prprio Ser se mostrava nelas mesmas. A idia do
desvelamento do Ser, no incio do pensamento grego, em Heidegger, vincula-se, portanto,
ao fato da linguagem enquanto Logos possibilitar o acesso direto s coisas. Nesse sentido,
as obras de Heidegger que tratam do retorno ao universo Grego esto em sintonia e do
continuidade ao problema do esquecimento da pergunta sobre o Ser, apontado inicialmente
em Ser e Tempo. O pensamento pr-socrtico, particularmente Parmnides, Anaximandro
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e Herclito, considerado por Heidegger como anterior a filosofia, visto que, at eles, o
prprio termo filosofia ainda no havia sido usado e seu carter metafsico somente se
desenvolve a partir de Plato e Aristteles.
A palavra grega philosopha remonta palavra philsophos. Originariamente esta
palavra um adjetivo para como philrgyros, o que ama a prata, como philtimos, o que
ama a honra. A palavra philsophos foi presumivelmente criada por Herclito. Isto quer
dizer indicao: o que dito na lngua grega , de modo privilegiado, simultaneamente
aquilo que em dizendo se nomeia. (Heidegger, 1973, p. 214).
O retorno ao incio significa o retorno ao momento anterior filosofia, o retorno ao
universo grego, e justamente esse retorno que permite a abertura ao dilogo com o
Oriente. Quando Heidegger afirma que a filosofia uma atividade eminentemente
ocidental, ele no se refere ao incio, visto que no incio ela ainda no existia e que o
retorno ao incio, enquanto dilogo com os pensadores originrios precondio para o
incio do inevitvel dilogo com outros incios. O momento inicial da filosofia, que no se
define cronologicamente, mas sim enquanto forma originria de manifestao do
pensamento, no um fenmeno exclusivo do ocidente, mas ocorreu tambm em outras
partes do mundo como na China, com o taosmo. Assim, a abertura ao dilogo com o
Oriente passaria necessariamente pelo dilogo com o mundo grego e o toma como
referncia, visto que ambos se situam, para Heidegger, enquanto pensamentos originrios.
Ento, a pergunta sobre o carter do dilogo com o Oriente pode ser respondida a partir da
forma como Heidegger dialoga com os pensadores originrios gregos.
Entre os textos de Heidegger que tratam diretamente do retorno ao incio do
pensamento, tomo como referncia central a anlise do fragmento 50 de Herclito feita por
Heidegger em Vortrge und Aufstze, do qual cito a seguinte passagem: O Logos de
Herclito foi interpretado dos mais diferentes modos desde a antiguidade: como ratio,
como verbum, como ordem do mundo, como o lgico e como o pensar necessrio, como
o sentido, como a razo. (Heidegger, 1954, p. 208). Heidegger toma como referncia para
sua anlise hermenutica do termo grego Logos as diversas formas de como esse conceito
foi interpretado desde a Antiguidade. O retorno ao que Herclito diz se torna possvel a
partir do dilogo com a lngua grega que aponta, por si mesma, o verdadeiro significado do
Logos. Nesse sentido, um possvel dilogo com o Oriente, especialmente com o taosmo,
que est para o pensamento oriental assim como Herclito para o Ocidente, tem que se
iniciar com a pergunta sobre o que o Tao. Essa pergunta exige uma anlise inicial das
vrias interpretaes e tradues desse conceito para o ocidente. O dilogo comea, ento,
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com uma anlise sobre as tradues do termo Tao, que tambm foi traduzido para as
lnguas ocidentais por ratio, raison, Vernunft, Geist, Gott, Gesetz, Bahn, Sinn e outros
termos prximos aos utilizados pelos tradutores do termo Logos em Herclito.
Para Heidegger, o dilogo com a tradio grega o ponto de partida, o incio do
dilogo com o pensamento oriental, porm para vrios pensadores do oriente, os
verdadeiros pontos de partida para o incio de um dilogo so as prprias reflexes de
Heidegger sobre a superao da metafsica, sobre a tcnica moderna e principalmente suas
consideraes sobre o nada. Para os interlocutores orientais de Heidegger h tambm um
outro motivo importante para o surgimento de um dilogo que no se caracteriza
diretamente como retorno ao princpio do pensamento ocidental, mas que se refere s
reflexes de Heidegger sobre o mundo oriental. Ou seja, os prprios comentrios de
Heidegger sobre o pensamento oriental se tornariam a mais importante perspectiva da
discusso sobre o incio do dilogo entre o pensamento do extremo oriente e a filosofia de
Heidegger.
A idia de Heidegger sobre um retorno ao incio da filosofia ocidental como
preparao para o futuro dilogo com o pensamento oriental, aponta como os filsofos
ocidentais podem preparar-se para esse dilogo. Os pensadores orientais, entretanto, no
consideram em momento algum os primeiros filsofos gregos como a pr-condio para o
incio do dilogo, mas sim, a prpria filosofia de Heidegger.
1. A pergunta sobre a influncia como estmulo para o incio do dilogo
A partir do final da dcada de 1980 inicia-se um novo momento na discusso acerca
da relao entre Heidegger e o pensamento oriental. Com a publicao de vrios livros e
artigos que tratam fundamentalmente de uma possvel influencia do Taosmo e do Zen-
budismo sobre sua obra, pela primeira vez, este tema se torna um importante objeto para
pesquisadores ocidentais dentro do universo da filosofia. Dentre os diferentes trabalhos
publicados neste perodo, sobre este tema, destaco fundamentalmente os livros Ex oriente
lux, de Reinhard May, que traz, pela primeira vez, uma anlise comparativa entre trechos de
algumas obras de Heidegger e passagens de textos de pensadores orientais, com intuito de
apontar uma inquestionvel influncia do pensamento oriental sobre Heidegger. Destaco
tambm o livro Heidegger e o pensamento Oriental, organizado por Graham Parkes, que
traz uma coletnea de diversos artigos, que foram apresentados no primeiro colquio
internacional dedicado exclusivamente a esse tema, ocorrido na universidade do Ava em
1989. Os artigos publicados neste livro podem ser considerados como a primeira reao s
afirmaes categricas de May sobre clara e significativa influncia do pensamento oriental
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sobre as obras de Heidegger. E por ltimo, o livro Heidegger e o Japo, organizado por
Buchner, decorrente de um evento ocorrido na cidade de Mekirch, em homenagem
Heidegger e Nishida, que, assim como o livro de Parkes, tambm uma coletnea de
artigos, mas dedicado exclusivamente relao entre Heidegger e a filosofia japonesa
contempornea. Todos os trabalhos publicados neste perodo, que tratam desta relao,
indicam certa influncia do pensamento oriental sobre algumas obras Heidegger,
principalmente sobre obras escritas a partir da dcada de 1940.
A tnica das pesquisas realizadas aps as publicaes dos livros de May, Parkes e
Buchner deixa de ser a existncia ou no de uma determinada influncia do pensamento
oriental sobre Heidegger. A discusso toma outro curso e passa-se a pesquisar a intensidade
desta influncia. Desta pesquisa destacam-se duas vertentes principais, distintas entre em si,
mas que apresentam elementos comuns. A primeira admite que ao longo de sua carreira
acadmica Heidegger estivera em contato com pensadores e com o pensamento oriental,
mas que esse contato no teria influenciado necessariamente o conjunto de sua obra e
sequer teria sido significativamente importante para obras especficas. Destaca-se como
principal representante desta perspectiva o filsofo alemo Otto Pggeler, que no
considera sustentvel a tese da influncia do Taosmo e do Zen-budismo sobre Heidegger,
porm no desconsidera a importncia do dilogo que ocorrera entre Heidegger e o
pensamento oriental. A outra importante corrente de analise deste tema representada por
May, j citado anteriormente, e Kha Kyung Cho, que afirmam uma inegvel influncia do
pensamento oriental sobre determinadas obras de Heidegger, publicadas a partir do final da
Segunda Guerra Mundial.
Logo aps o final da guerra Heidegger fora proibido de exercer qualquer atividade
acadmica, como punio por seu envolvimento com o Nacional Socialismo em 1933,
quando fora nomeado Reitor da Universidade de Freiburg. Neste momento inicial da
proibio Heidegger comea, juntamente com o germanista chins Paul Shih-Yi Hsiao, os
trabalhos de traduo do Tao Te King do chins para o alemo. A enigmtica tentativa de
traduo desta obra clssica da filosofia chinesa permanece totalmente desconhecida do
grande publico, e at mesmo dos amigos mais prximos de Heidegger, at a publicao do
relato feito por Hsiao, logo aps a morte de Heidegger. Heidegger morre em maio de 1976
e em 1977 Hsiao publica um artigo intitulado Ns nos encontrvamos na praa do
mercado na coletnea organizada por Gnter Neske, Erinnerung an Martin Heidegger,
(Neske, 1977).
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O artigo de Hsiao permanece como a nica referncia escrita desta inusitada
parceria, at a publicao da correspondncia entre Heidegger e Jaspes, em 1990
(Heidegger/Jaspers, 1992, p. 181). Na carta 131 Heidegger comenta rapidamente a
iniciativa do trabalho de traduo com Hsiao e suplanta definitivamente as suspeitas
infundadas de alguns de seus discpulos, de que o relato de Hsiao seria fruto de sua prpria
imaginao e visava apenas sua autopromoo, a reboque da fama do mestre da floresta
negra. Muitas so as tentativas de elucidar os verdadeiros motivos que teriam levado
Heidegger a se dedicar tarefa de traduo do Tao Te King, abordarei aqui, todavia,
somente duas perspectivas opostas que expressam a dimenso da importncia do
pensamento oriental para Heidegger. A primeira hiptese de que o interesse de Heidegger
em um trabalho de traduo com Hsiao teve como base uma preocupao prtica direta:
aps a guerra Heidegger fora submetido a um processo de desnazificao e no tinha,
portanto, acesso a gneros de primeira necessidade e mantimentos bsicos tais como
chocolate, caf, manteiga, salsicha e outros desta espcie. Hsiao, como pertencendo a uma
nacionalidade dos pases amigos dos aliados, que ganharam a Guerra, tinha direito a todos
esses bens e os dividia com Heidegger, durante os meses de trabalho em conjunto (Hsiao,
1977, p.125). Heidegger teria, portanto, como principal interesse no trabalho de traduo
em conjunto com Hsiao o acesso a esses to preciosos bens, em tempos de escassez total.
Essa hiptese pouco plausvel, mas no pode ser totalmente descartada e ela predominou
por um longo perodo entre os heideggerianos e pode ser ouvida ainda hoje.
Outra possvel explicao para a dedicao a esse trabalho seria que, para Heidegger,
a traduo do Tao Te King poderia possibilitar o retorno ao incio do pensamento chins,
um retorno ao universo do Herclito do oriente e tal retorno, enquanto mtodo
hermenutico, torna indispensvel um dilogo com a lngua do pensador originrio. Neste
sentido, a tentativa de traduo do Tao Te King empreendida por Heidegger somente
uma conseqncia da prpria hermenutica heideggeriana.
Estes dois possveis motivos permitem compreenses muito distintas da importncia
desta tentativa de traduo, para a filosofia de Heidegger, que no nos so acessveis
facilmente, visto que Heidegger no se manifestara sobre isso. Os resultados do trabalho de
traduo no esto disponveis para uma anlise mais detalhada, visto que os originais dos
captulos traduzidos desapareceram. Os traos deste trabalho, todavia, permaneceram
presentes em algumas obras posteriores de Heidegger. Antes de aborda-los, porm, farei
uma rpida exposio das distintas formas de considerar o trabalho de colaborao entre os
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dois, expressas por Hsiao e Heidegger. Em seu relato sobre o trabalho com Heidegger
Hsiao esclarece detalhes dos procedimentos empreendidos no processo de traduo.
Hsiao afirma que, devido perspiccia de Heidegger em relao aos mnimos
detalhes no trabalho de traduo o livro todo somente seria concludo em dez anos, visto
que aps um vero de trabalho sistemtico apenas oito captulos haviam sido traduzidos
(Hsiao, 1977, pp.126-26). Heidegger, por sua vez, comenta a parceria com Hsiao de forma
bem diferente. Antes da publicao de Cartas sobre o Humanismo Heidegger havia
enviado o texto para Jaspers que, em uma carta resposta a Heidegger, afirma ter percebido
vestgios do pensamento oriental no texto. O seu Ser, a clareira do Ser, a inverso que
voc faz de nossa referncia para com o Ser da referncia do Ser para ns, o que
permanece do ser mesmo. Creio ter percebido algo disso na sia (Heidegger/Jaspers,
1992, p. 178). A carta seguinte de Heidegger a Jaspers o nico comentrio sobre esta
parceria, escrito pelo prprio Heidegger.
O que voc diz sobre o carter asitico excitante. Um chins que freqentou
minhas prelees sobre Herclito e Parmnides nos anos de 1943-44 (naquele tempo eu
dava curso-interpretao somente de uma hora de poucos fragmentos) encontrou tambm
ressonncias com o pensamento oriental. Onde eu no me sinto em casa com a linguagem,
l eu permaneo ctico. (...) Quando o chins, que telogo cristo e filsofo traduziu para
mim algumas palavras de Lao Tse eu pude perceber, atravs de perguntas, quo estranho
para ns era a linguagem. Ento ns abandonamos a tentativa. (Heidegger/Jaspers, 1992, p.
181).
O comentrio esquivo e tmido de Heidegger sobre o trabalho de traduo do Tao
Te King indica que ele mesmo considerara a tentativa como fracassada em decorrncia de
barreiras lingsticas intransponveis. Muito diferente do relato de Hsiao, ele afirma apenas
que um Chins traduzira para ele algumas palavras do Tao Te King, mas Hsiao, ao
contrario, diz terem sido traduzidos oito captulos completos, sendo estes mesmo os mais
complexos do livro. Em relao disparidade destas duas observaes distintas sobre esse
empreendimento pode-se chegar tambm a duas concluses distintas: a) Heidegger no
teria feito qualquer referncia ao trabalho com Hsiao, com exceo ao rpido comentrio
encontrado na carta a Jaspers, porque tinha a clara inteno de omitir todos os vestgios de
quaisquer elementos do pensamento oriental em seu trabalho; b) Hsiao pretendia se
aproveitar da fama de Heidegger ao tentar transformar a atividade que tivera com
Heidegger em algo mais importante do que realmente fora. Seu relato foi publicado
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somente aps a morte de Heidegger e por isso no podia mais ser confirmado ao
contestado, visto que os nicos que sabiam o que realmente havia sido feito eram os dois
envolvidos.
A anlise da primeira alternativa, mesmo no sendo ela totalmente correta, o ponto
central da discusso sobre a influncia do pensamento oriental em Heidegger. O fato de
Jaspers ter mencionado uma possvel ligao entre a Carta sobre o Humanismo de
Heidegger e o pensamento oriental significativo. Ao ser perguntado por Jean Beaufret se
ele estaria de acordo com a mxima sartriana de que a existncia precede a essncia,
Heidegger responde pergunta, tambm com uma carta, publicada posteriormente, com o
ttulo Carta sobre o Humanismo. A resposta de Heidegger a Beaufret no somente um
golpe impiedoso ao existencialismo de Sartre e aos humanismos, mas , tambm, um
marco na discusso sobre a relao de Heidegger com o pensamento Oriental.
Heidegger trabalha na elaborao da Carta sobre o Humanismo logo aps ter
interrompido os trabalhos de traduo do Tao Te King, com Hsiao e, de acordo com a
anlise do filosofo coreano Kah Kyung Cho, neste escrito j est presente uma forte
influncia do Tao Te King. Cho publica em 1987 um livro intitulado Bewutsein und
Natursein - Phnomenologie in der West-Ost-Perspektive (Fenomenologia na perspectiva
Ocidente-Oriente) onde aborda especificamente, em um dos captulos, a influncia de Lao
Tse na Carta sobre o Humanismo (Cho, 1987).
2. A origem grega da filosofia
A reflexo sobre as influncias e concordncias entre Heidegger e o pensamento
oriental estimulante e pertinente, considerando que, na histria do pensamento ocidental,
nenhum outro filsofo esteve ao mesmo tempo to distante e tao prximo do pensamento
oriental como Heidegger. Os pontos de aproximao esto dispersos como disse
anteriormente. As distncias, porm, mostram-se atravs de afirmaes categricas, que
consideram a filosofia uma experincia exclusivamente ocidental, como se pode ver nas
prelees sobre Herclito em 1943.
O ttulo da preleo trata do pensamento ocidental. A expresso filosofia ocidental
evitada, pois essa designao, rigorosamente pensada, uma expresso sobrecarregada.
No h nenhuma outra filosofia a no ser a ocidental. A filosofia em sua essncia
originariamente grega de forma que ela porta o fundamento da histria do ocidente. E
somente deste fundamento se desenvolve a tcnica. H somente uma tcnica ocidental, e
ela conseqncia da filosofia e de nenhuma outra coisa (Heidegger, 1987, p.3).
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Em outro texto de 1956, O que isto a filosofia Heidegger afirma, mais
enfaticamente ainda, que a filosofia somente poderia ter se desenvolvido no mundo
europeu.
A batida expresso filosofia ocidental , na verdade, uma tautologia. Por qu?
Porque a filosofia grega em sua essncia (...) A frase: a filosofia grega em sua essncia,
no diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, so, na marcha mais ntima
de sua histria, originariamente filosficos(Heidegger, 1973, p.212).
Diante das duas citaes acima o problema da influncia de um pensamento no-
ocidental sobre Heidegger parece perder qualquer relevncia. As afirmaes categricas so
claras, porm, elas no deixam de criar alguns problemas dificilmente superveis, pois elas
no podem mais ser defendidas incondicionalmente. Os princpios bsicos de Heidegger
parecem ser simplesmente uma hybris eurocntrica, que aparecera na histria da filosofia,
em sua forma mais elaborada com Hegel, que nas Conferncias sobre a histria da filosofia,
explicita claramente, como nenhum outro filsofo anterior, sua concepo de filosofia,
excluindo ao mesmo tempo o pensamento oriental da histria da filosofia (Hegel, 1995a, p.
121). A filosofia seria, em sua origem, exclusivamente grega. A filosofia s pode surgir na
Grcia, onde o homem da antiguidade experimentara, pela primeira vez, a liberdade, alega
Hegel. A filosofia em seu sentido prprio comea no Ocidente. Somente no mundo
ocidental emerge a liberdade da autoconscincia (Hegel, 1995a, p. 121).
S e unicamente no mundo grego, ou seja, no ocidente, teria havido as condies
imprescindveis para o surgimento do pensamento filosfico. Os gregos, e somente eles,
segundo Hegel, conheciam os fundamentos do Ser ocidental e a liberdade individual
(Hegel, 1995a, p. 121). O homem que criou o incio da filosofia tinha que ser
necessariamente livre. O homem na filosofia hegeliana experimenta a liberdade em sua
totalidade; ele tem que ser livre em todos os nveis e somente l, onde h liberdade poltica,
pode surgir tambm a filosofia.
Em Heidegger, porm, a liberdade poltica do homem grego no desempenha papel
algum no surgimento da filosofia, que sequer pode ser pensada enquanto resultado da
cultura. Ele se situa, ainda, na contra corrente da tradio metafsica, da qual Hegel um
dos expoentes mximos. Mas se a filosofia para Heidegger, assim como para Hegel,
eminentemente grega, o que distingue ento estas duas concepes de sua origem, e como
elas se situam em relao ao mundo oriental. No pretendo abordar neste momento estas
diferenas entre Heidegger e Hegel em relao ao pensamento oriental, somente avanarei
um pouco mais nas aparentes proximidades entres eles, referentes a esse tema.
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A relao entre linguagem e pensamento, que um dos temas centrais da filosofia
ocidental tambm um elemento fundamental na discusso sobre o dilogo entre ocidente
e oriente, e, a meu ver, est diretamente vinculado tentativa de traduo do Tao Te King,
empreendida por Heidegger com Hsiao. No pretendo abordar, aqui esta questo em
Heidegger, mas sim tocar em um ponto polmico, que permite algumas reflexes sobre o
dilogo entre esses dois universos de pensamento.
O texto de Heidegger De um dilogo sobre a lngua- Entre um Japons e um
Interlocutor (Aus einem Gesprch von der Sprache Zwischen einem Japaner und einem
Fragenden) (Heidegger, 2004, pp. 71-120) o nico escrito, onde ele discute com clareza a
suas idias sobre o pensamento do extremo oriente. Nesse dilogo, os seus comentrios a
respeito do mundo oriental so menos dispersos do quem em todos os outros textos.
Reproduzo abaixo uma parte do dilogo:
J Ao voltar da Europa o conde Kuki proferiu em Kioto vrias conferncias sobre a
esttica da arte e da poesia japonesas, publicadas posteriormete. Procurou considerar a
essncia da arte japonesa valendo-se da esttica europia.
P Mas ser que para tal propsito devemos lanar mo da esttica?
J Por que no? P A palavra esttica e o que ela evoca provm do pensamento
europeu, da filosofia. A considerao esttica deve ser assim, estranha para o pensamento
oriental.
J O senhor tem toda razo. Mas ns japoneses precisamos recorrer ao prstimo da
esttica.
P Para qu?
J A esttica nos empresta os conceitos necessrios para apreender o que nos chega
na arte e na poesia.
P Vocs precisam de conceitos?
J Provavelmente sim. O encontro com o pensamento europeu revelou uma
incapacidade de nossa lngua.
P Como assim?
J Falta a fora das definies para representar objetos num encadeamento preciso
de uns com os outros, dentro de um sistema recproco de subordinao.
P O senhor considera mesmo essa incapacidade uma deficincia de sua lngua?
J No encontro inevitvel do mundo oriental com o mundo europeu, essa pergunta
exige, certamente, uma reflexo profunda. (Heidegger, 2004, pp. 71-72).
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O trecho de Dilogo j toca em um ponto central da discusso sobre a diferena
entre o pensamento ocidental e oriental. Heidegger usa inicialmente a expresso esttica
europia e parece deixar em aberto questo, se tambm poderia existir uma esttica
japonesa. Entretanto afirmado ao mesmo tempo, que uma considerao esttica seja
impossvel dentro do mundo oriental, pois, a esttica seria um modo de pensar ocidental e,
portanto, exclusivamente filosfico. Esse o verdadeiro desdobramento da afirmao de
Heidegger, a saber, de que o conceito filosofia ocidental seria uma tautologia. A
continuao da citao torna-se mais interessante quando Heidegger pergunta ao japons,
se este precisaria de recorrer esttica para compreender a arte japonesa. Ao afirmar essa
pergunta ele argumenta em seguida, que a lngua japonesa no seria capaz de entrar no
mundo da filosofia ocidental. Creio que temos, nesta afirmao a questo central da
discusso sobre um possvel dilogo entre estes universos aparentemente to distintos.
Durante os trabalhos de traduo do Tao Te King, Heidegger perguntara a Hsiao
pelo motivo do carter hermtico da forma de expresso de Lao Ts. Hsiao responde
apontando o desconhecimento da lgica aristotlica, por parte dos chineses antigos, como
a causa principal desta caracterstica do Tao Te King. O comentrio de Heidegger a esta
afirmao foi claro e direto: graas a Deus que os chineses no a conheceram. (Hsiao,
1977, p. 128). Este dilogo conciso entre Heidegger e Hsiao nos coloca uma questo que
perpassa por toda a histria da interpretao ocidental do pensamento oriental, qual seja a
da compatibilidade entre as lnguas ideogramticas, sobretudo do chins, e a lgica formal.
A questo est vinculada funo dos verbos na lngua chinesa, especificamente, ela est
em relao direta com a pergunta pela existncia do verbo ser, em chins antigo. O
problema mencionado por Heidegger e Hsiao do desconhecimento, ou seja, da estranheza
da perspectiva da lgica aristotlica para o pensamento chins antigo, poderia apontar uma
deficincia desta lngua para o pensamento filosfico e cientifico. Ou melhor, a inexistncia
de uma verdadeira perspectiva cientfica na china antiga que teria inibido o surgimento de
uma estrutura de linguagem compatvel com a lgica formal, como afirma Hegel, nas
Prelees sobre a Histria da Filosofia.
Para Hegel, a inexistncia da liberdade do indivduo no imprio chins no teria sido,
contudo, o nico empecilho para o surgimento do conhecimento cientfico na China. To
decisivo quanto a ausncia de subjetividade como empecilho para o surgimento do
pensamento filosfico, seria o limite da estrutura da lngua chinesa, que seria, tambm,
inapropriada para um pensamento sistemtico.
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At mesmo a lngua escrita um grande obstculo para a formao da cincia, ou
mesmo o contrrio, visto que o verdadeiro interesse cientfico nunca esteve presente, por
isso os chineses no teriam um instrumento melhor para a exposio e a propagao do
pensamento (Hegel, 1995b, pp. 169-170).
As reflexes de Hegel sobre as propriedades da lngua chinesa tm como referncia
os escritos do sinlogo figurista francs Jean-Pierre Abel-Rmusat, que fizera um dos
primeiros esquemas da gramtica chinesa, na Europa. Os pressupostos das anlises de
Abel-Rmusat sobre o pensamento oriental so de que os chineses antigos j conheciam,
atravs de seus prprios escritos, os pilares do novo testamento, em sua forma mais
primitiva, o que os aproximariam, por natureza, do mundo cristo. Mesmo assim, suas
consideraes sobre a lngua chinesa, apresentadas na citao acima como inapropriada
para a cincia, permanecem como uma das afirmaes mais difundidas sobre o pensamento
chins, no meio acadmico ocidental e este fato marcara to decisivamente a nossa
concepo sobre o que seja o oriente, que ainda hoje comum ouvir a repetio dos
argumentos de Hegel sobre os limites das lnguas orientais e de suas impropriedades para o
pensamento filosfico.
Ao contrrio destas afirmaes, todavia, os resultados das pesquisas de Joseph
Needham, principal sinlogo ingls do sculo XX, concluem que, na china antiga, o
pensamento cientfico se encontrava no mesmo nvel de desenvolvimento que o da cincia
europia.
Mesmo considerando as lacunas existentes nos escritos chineses antigos que foram
preservados e comparamos os taostas, mostas e lgicos com os seus correspondentes
gregos, se tem a impresso que quase no h diferena entre os europeus e chineses
antigos, principalmente no que se refere aos fundamentos do pensamento
cientfico.(Needham, 1984, p.163).
Em um dilogo com Jean Rivire, publicado posteriormente, no qual Needham
aborda mais uma vez a relao entre o desenvolvimento do pensamento cientfico na china
e sua relao com filosofia encontramos sua afirmao mais radical em relao s
concepes tradicionais das lnguas ideogramticas como inadequadas para o pensamento
lgico formal e cientfico.
Um de meus colaboradores que se ocupa do pensamento chins me surpreendeu
com a afirmao de que a lgica formal aristotlica pode ser to bem expressa a partir da
estrutura da lngua e da gramtica chinesa quanto em qualquer lngua indo-europia. Um
outro colaborador demonstrou que todas as caractersticas da lgica grega j poderiam ser
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encontradas nos textos dos filsofos e escritores do perodo os reinos
combatentes.(Needham, 1978, p. 55)
As afirmaes de que o chins antigo no s preenchia todos os requisitos para o
desenvolvimento da lgica formal, mas que seria at mesmo mais apropriada, referem-se
aos trabalhos de Christoph Harbsmeier, que o responsvel pelo volume sobre lgica e
linguagem na china antiga, na obra Cincia e Civilizao de Needham.
Needham apresenta uma completa reorientao na compreenso europia do
pensamento oriental, principalmente quando se trata da relao entre lngua e pensamento
na China antiga. Entretanto, considero o vasto envolvimento de Needham com o
pensamento chins no como um incio do dilogo, mas um novo ponto de referncia na
interpretao europia do mundo oriental. Sua pesquisa sobre a China rompe, em vrias
reas, com idias tradicionais e concepes no mais sustentveis sobre a incompatibilidade
entre linguagem e pensamento na china antiga, principalmente com a to propagada
concepo de uma lngua imprpria para o raciocnio lgico-formal.
Estes novos elementos colocados por Needham e sua equipe reorientam as reflexes
filosficas atuais ao romperem com as tradicionais concepes de um universo oriental,
principalmente chins, inapropriado para o conhecimento cientfico e para os enunciados
da lgica formal. Isso, porm, no elimina a importncia da filosofia de Hegel e Heidegger
para o dilogo entre o pensamento ocidental e oriental, todavia nos obriga a reformular
nossos argumentos sobre o carter eminentemente grego-europeu da filosofia, caso ainda
nos propomos a defend-los.
Referncias Bibliogrficas: Cho, K.K.: (1987). Bewutsein und Natursein Phnomenologischer West-Ost- Diwan, Mnchen, Heidegger, M. (2004). A caminho da linguagem. Petrpolis: Editora Vozes. ______(1973). Coleo Os Pensadores, So Paulo. ______(1954). Wissenschaft und Besinnung, in: Vortrge und Aufstze, Pfullingen 1954, S. 43. ______(1987). HERAKLIT Der Anfang des Abendlndischen Denkens, Frankfurt a. M. 1987, S. 3 Heidegger, M., Jaspers, K. (1992). Briefwechsel: 1920 1963, Frankfurt a. M. HEGEL, G. W.F (1995a). Vorlesungen ber die Geschichte der Philosophie, Frankfurt a. M. ______(1995b). Vorlesungen ber die Philosophie der Religion, Frankfurt a. M. Hsiao, (1977). Wir trafen uns am Holzmarktplatz, In Neske (Hrsg) Erinnerung an Martin Heidegger, Pfullingen.