António Braz Teixeira Obra e Pensamento -...

539
António Braz Teixeira | Obra e Pensamento Porto, 2018

Transcript of António Braz Teixeira Obra e Pensamento -...

AntnioBrazTeixeira|ObraePensamento

Porto,2018

Renem-se aqui os textos apresentados no Congresso Internacional A Obra e o

Pensamento de Antnio Braz Teixeira, co-organizado pelo Instituto de Filosofia da

Universidade do Porto (RG Razes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal) e

pela Universidade Catlica Portuguesa (Centro de Estudos de Filosofia: Porto).

Ficha tcnica

Ttulo: Antnio Braz Teixeira: obra e pensamento

Organizao: Celeste Natrio, Jorge Cunha e Renato Epifnio

Editor: Universidade do Porto. Faculdade de Letras

Local: Porto

Ano de edio: 2018

Capa: Arquivo NOVA GUIA

ISBN: 978-989-54291-5-8

URL: http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id03id1588&sum=sim

O presente livro uma publicao no mbito das atividades do Grupo de Investigao

Razes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal do Instituto de Filosofia da

Universidade do Porto, financiada por Fundos Nacionais atravs da FCT/MCTES -

Fundao para a Cincia e a Tecnologia/ Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino

Superior, no mbito do Projeto do Instituto de Filosofia com a referncia FIL/00502.

3

NDICE

PREFCIO | Guilherme dOliveira Martins 6

Lus de Arajo | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA SIGNIFICADO DE UMA OBRA 8

Aclio da Silva Estanqueiro Rocha | HERMENUTICA E RAZO JURDICA 21

Afonso Rocha | A RAZO ATLNTICA COMO CONCEITO DE RAZO DE UMA FILOSOFIA

ATLNTICA 44

Ana Paula Loureiro | JUSTIA E EQUIDADE NO PENSAMENTO DE ANTNIO BRAZ

TEIXEIRA 52

Anna Maria Moog Rodrigues | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: NA TRILHA DA RAZO ATLNTICA 62

Antnio Paulo Dias Oliveira | O KRAUSISMO PORTUGUS NA OBRA DE ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 72

Artur Manso | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA NA NOVA RENASCENA E NOVA GUIA. UM CONTRIBUTO

PARA A AFIRMAO DO PENSAMENTO E CULTURA LUSFONA 89

Carlos Morujo | SOBRE O KRAUSISMO EM PORTUGAL, COM PARTICULAR INCIDNCIA NO

PENSAMENTO DE ANTERO DE QUENTAL 112

Celeste Natrio | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: DA CULTURA FILOSOFIA 130

Constana Marcondes Cesar | ASPECTOS DA CONTRIBUIO DE ANTNIO BRAZ TEIXEIRA AO

DILOGO FILOSFICO LUSO-BRASILEIRO NO MBITO DA FILOSOFIA DO DIREITO 137

Emanuel Oliveira Medeiros | CULTURA AXIOLGICA E EDUCAO CVICO-JURDICA: DO SER E DA

VERDADE FILOSOFIA DA EDUCAO E DO DIREITO 151

Humberto Schubert Coelho | O CONCEITO DE DEUS E SEU PAPEL NA CONSTITUIO DO FILOSOFAR

LUSFONO SOB A TICA DE BRAZ TEIXEIRA 181

Isabel Ponce de Leo | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E O TEATRO DE AGUSTINA 190

Joaquim Cerqueira Gonalves | FILOSOFIA E DIREITO 197

Joaquim Domingues | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E A ESCOLA DA FILOSOFIA PORTUGUESA 209

Jorge Teixeira da Cunha | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: A TICA LUSO-BRASILEIRA - 222

Jos Accio Castro | ASPETOS DA REFLEXO SOBRE O MITO EM ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 230

Jos Carlos Pereira | O LUGAR DA ESTTICA NO PENSAMENTO FILOSFICO DE ANTNIO BRAZ

TEIXEIRA 240

Jos Esteves Pereira | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E O PENSAMENTO PORTUGUS DO SCULO

XVIII 258

Jos Gama | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E A ESCOLA BRACARENSE 272

Jos Lus Brando da Luz | FRANCISCO M. DE FARIA E MAIA NO CAMINHO DO PENSAMENTO DE

ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 278

Jos Maurcio de Carvalho | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E A FILOSOFIA DA SAUDADE 288

Leonel Ribeiro dos Santos | OS ESTUDOS ANTERIANOS DE ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 302

Lus G. Soto | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E O PENSAMENTO GALEGO. SOBRE A SAUDADE, PIEIRO,

ORTEGA E HEIDEGGER 319

Lus Lia | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: TEORIA DO MITO 332

4

Lus Manuel A. V. Bernardo | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA E O PROBLEMA DO ILUMINISMO

CATLICO 341

Manuel Cndido Pimentel | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: FILOSOFIA E POESIA DA

SAUDADE 361

Manuel da Cruz | OS CICLOS DA SAUDADE UNIVERSAL EM ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 373

Manuel Gama | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: PERIODIZAO E ESCOLAS NA FILOSOFIA EM

PORTUGAL 384

Manuela Brito Martins | DA FILOSOFIA DO DIREITO FILOSOFIA DA HISTRIA DO CRISTIANISMO

DE JOAQUIM MARIA RODRIGUES DE BRITO (1822-1873) 398

Maria Leonor L.O. Xavier | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: SNTESE E MEMRIA 415

Maria de Lourdes Sirgado Ganho | A ANTROPOLOGIA FILOSFICA EM ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 422

Mrio Carneiro | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: CONSIDERAES SOBRE UM PARADIGMA

CONCEPTUAL 429

Mrio Reis Marques | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: FILOSOFIA DO DIREITO PORTUGUESA E LUSO-

BRASILEIRA 437

Miguel Real | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA: A RAZO ATLNTICA 452

Paulo Borges | SAUDADE, ENGLOBNCIA E INCOINCIDNCIA. UMA REFLEXO A PARTIR DE

ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 467

Paulo Ferreira da Cunha | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA, UMA JURISFILOSOFIA DE SUPERAES:

DILOGO SOBRE ALGUNS TPICOS FUNDANTES 483

Pinharanda Gomes | ANTNIO BRAZ TEIXEIRA INTERPRETANDO ORLANDO VITORINO 497

Renato Epifnio | DA RAZO ATLNTICA RAZO LUSFONA: O CONTRIBUTO DE ANTNIO BRAZ

TEIXEIRA NA REVISTA NOVA GUIA 507

Samuel Dimas | A IDEIA DE DEUS E O MISTRIO DO MAL NA FILOSOFIA DA RELIGIO DE ANTNIO

BRAZ TEIXEIRA 514

Selvino Antonio Malfatti | A CONCEPO DE FILOSOFIA SEGUNDO ANTNIO BRAZ TEIXEIRA 523

APNDICE: DOIS TESTEMUNHOS | Antnio Pedro Mesquita e Castro Guedes 533

5

6

PREFCIO

GuilhermedOliveiraMartinsApublicaodeAObraeoPensamentodeAntnioBrazTeixeiracomcoordenaode Jorge Cunha, Maria Celeste Natrio e Renato Epifnio constitui um contributoimportante no s para um melhor conhecimento da obra de um pensadorcontemporneo,marcanteparana culturaportuguesa contempornea,mas tambmpara a compreensoda sua inseronopensamento lusobrasileiro atual.Os textosaqui apresentados resultam do no Congresso Internacional coorganizado peloInstitutodeFilosofiadaUniversidadedoPorto(RazeseHorizontesdaFilosofiaedaCulturaemPortugal)epelaUniversidadeCatlicaPortuguesa(CentrodeEstudosdeFilosofia: Porto). Os textos apresentados, por um conjunto muito relevante deestudiosos do pensamento portugus, tm a grande vantagem de nos darem umaperspetivadinmicaefuturantedeumaculturaqueanimaeprojetaalmfronteirasoqueJaimeCortesoeAgostinhodaSilvadesignaramcomoohumanismouniversalista.AheranadatradiodaRenascenaPortuguesaedeAguia,aRazoAtlntica,odilogofilosficolusobrasileiro,afilosofiadasaudade,ateoriadomito,oiluminismocatlico,arelaoentrefilosofiaeliteratura,arenovaodopensamentojusfilosficoeorepensamentodaHistriadaFilosofiaemPortugalsoalgunsdostemasqueaquivemostratadosequepermitemumaaproximaocoerente,complexaemultifacetadadaobratoricadeAntnioBrazTeixeira.O ensino e a reflexo de Antnio Braz Teixeira constituem excelentes bases para odesenvolvimentodotemadodilogoentreculturaseparaoreconhecimentodovalordas heranas culturais (como conjuntos complexos e dinmicos), segundo umafecundaeessencial tensoentrediversidadeeuniversalismo, entreespecificidadeebusca de valores comuns, que leva compreenso da cultura como fenmeno que,partindo da pluralidade de pertenas, obriga a um pensamento sem fronteiras. E odilogo lusobrasileiro um belo exemplo, uma das pedras de toque que abrehorizontes nessa tendncia universalista. E em especial o dilogo comMiguel Realerevelouse especialmente rico, sobretudo se pensarmos numa conceo aberta decultura, naqual as razeshistricas se vo encontrar coma inovao criadora. Essedilogo filosfico tem sido mutuamente enriquecedor e cordialmente sereno, emespecialquantocapacidadedereceberedeouvir.Acultura,porquecriaohumana marcada, simultaneamente, pela temporalidade, pela historicidade e pelaobjetividade, jqueaobradearte,aproposiofilosfica,anormajurdica,umavezcriadasouformuladas,adquiremvidaprpria,tornamsecomoqueindependentesdoseu autor e do seu criador, so portadoras de um sentido prprio e seu, abertodinamicamenteaoconhecimentoeinterpretaovivificantedaquelesquecomelasentram em contacto, sendo nessa relao, a um tempo cognitiva e estimativa, queplenamentesoeadquiremasuaplenitudedeser.Porumlado,noesquecidaumavisomarcada pelaHistria,mas, por outro, lembrase a circunstncia existencial esocial,queprojetaavidahumanaparaalmdeumavisofechadaeredutora.Easada

7

est na considerao de uma tripla dimenso da vida humana, como realidadeindividual,socialehistrica,astrsconstituindooserpessoaldohomem.Antnio Braz Teixeira , assim, uma presena que nos permite compreender aemergncia da cultura como pedra de toque do desenvolvimento humano e dasalvaguardadadignidadedapessoahumana.

8

ANTNIOBRAZTEIXEIRASIGNIFICADODEUMAOBRA

LusdeArajo

InstitutodeFilosofiaUniversidadedoPorto.FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto

ViaPanormica,s/n,4150564Porto(351)226077100|[email protected]

Resumo:Nestenossotexto,dissertaremossobreosignificadodaobrafilosficaeculturaldeAntnioBrazTeixeira.

Palavraschave:pensamentoportugus,culturadelnguaportuguesa,AntnioBrazTeixeira

Abstract:Inthistext,wewilldiscussthemeaningofAntnioBrazTeixeira'sphilosophicalandculturalwork.

Keywords:Portuguesethought,Portugueselanguageculture,AntnioBrazTeixeira

9

No mbito da vida cultural portuguesa contempornea, Antnio Braz Teixeira vemconstruindoumaobradedicadareflexo, investigaoedivulgaodopensamentofilosficoportugusdossculosXIXeXX,repletadevastssimaerudioeservidaporuma inteligncia penetrante e de honestidade meticulosa, sem outros critrios ouexigncias que os decorrentes do esprito cientfico, fiel a uma justeza cuidada dapalavra, cuja singularidade e grandeza lhe confere uma dimenso prestimosa ebrilhantes, bem como imprescindvel para o conhecimento da trajectria de umapresenaportuguesanoespaouniversaldosaberfilosfico.Mercdosseusnotveislivros1, fruto de paciente investigao e exame aprofundado das ideias de diversosautores, sobressaem perspectivas incontroversas da reflexo eminentementefilosfica de expresso portuguesas, assim contrariando uma certa discursividadesobrePortugaleasuaculturafilosfica,pungentementeautoflagedoraemiserabilistaque levou,por exemplo, SampaioBruno, seguramentedistrado, a afirmarapenrialusitanaemmatriafilosfica2,bemcomoainsistirnaesterilidadefilosficaportuguesa(Idem,ibidem,p.20).Ointeressantepensadorportuensedecertoprecipitouseeteriasido mais adequado referirse, como fez Delfim Santos a uma descontinuidade3 ou,comoescreveuVieiradeAlmeida,aumaspectodispersivo4nopensamento filosficoemPortugal. Tais afirmaes, entre outras, como a do prprio LeonardoCoimbra aconsiderarnosaterramaisantifilosficadoplaneta5,emborainjustaseerradas,noobstante estimulam a interrogao e convidam a uma anlise preocupada e crtica,porm consciente de que no acontea cegarmonos, na nsia de nos valorizarmos,comoescreveuMiguelTorga6, e assim, a estepropsito,merecedevido relevooafinvestigadoreanalticodosestudoseensaioscomqueBrazTeixeiranosofereceumcabalerigorosoconhecimentodapeculiaridadefilosficanoespaodanossacultura.Outro aspecto da sua actividade intelectual justifica, pela sua fecundidade, especialvalorizao, pois da sua bibliografia se destacam estudos acerca do pensamento 1AlmdeSentidoeValordoDireito (1990),destacamsenasuabibliografiaosseguintesvolumes:OPensamento FilosficoJurdico Portugus (1983), Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito LusoBrasileira(991),DeusoMaleaSaudade(1993),OEspelhodaRazo(1997),tica,FilosofiaeReligio(1997), FormasePercursosdaRazoAtlntica (2001)eHistriadaFilosofiadoDireitoPortuguesa(2005).2SampaioBruno,AIdeiadeDeus,Lello&Irmo,Porto,1987,p.19.3 Delfim Santos, O Pensamento Filosfico em Portugal, in Obras Completas, Fundao CalousteGulbenkian,Lisboa,vol.I,1971,p.437.4 Vieira de Almeida, Disperso no Pensamento Filosfico Portugus, in Obras Completas, FundaoCalousteGulbenkian,Lisboa,vol.II,1987,p.475.5LeonardoCoimbra,OPensamentoFilosficodeAnterodeQuental,GuimaresEditores,Lisboa,1991,p.127,n.99.6MiguelTorga,DirioVI,Coimbra,1961,2.ed.,p.14.

10

jurdicoportugus,ondeavultaumapreocupaonarrativaestruturadaemfunodeuma finalidade historiogrfica, no raro acompanhada de uma reflexo crtica,dialogante e tolerante, em torno das posies sustentadas pelos autores maissignificativosdafilosofiadoDireitoportuguesa.Cominegvelrigoreconciso,facultanosumaviagemintelectualqueseinicianotempoimediatamenteanteriorformaode Portugal como estado independente at nossa contemporaneidade isto ,Martinho de Dume a Jos de Sousa e Brito, revelanos o itinerrio da reflexofilosficojurdica no nosso pas, configurandose assim, pela primeira vez, osdelineamentos mais marcantes de um percurso reflexivo em torno do Direito e daJustia,tema,alis,bempresentenopensamentoportugus.Este breve ensaio no visa, porm, o estudo exaustivo dos trabalhos singulares deAntnio Braz Teixeira, porquanto sua inteno constituirse como uma atentameditao sobre os temasmais relevantes que definem os contornos de uma obraonde o seu perfil intelectual e personalidade de inegvel humanismo de raizpersonalista se manifestam exemplarmente, lavrando o caminho para o triunfo deideiasticojurdicopolticosondeapreocupaopeladignidadehumanaaapostainadivel. Quero com isto significar a importncia da sua anlise da problemticaaxiolgicadoDireito,temanuclearerecorrentedoseulivroSentidoeValordoDireito,onde manifestamente a relao entre a tica e o Direito se assume como tarefaincontornvel.QuantoopontodepartidadoseuprojectofilosficoemordemaumareflexosobreoDireito e a Justia, dever assinalarse que o pensador normativista e o carctercoercitivoquecaracterizaoDireitocomosistemadeseguranaestvinculadoaumaessencialpreocupao, isto, realizaoda liberdadeeda justiaqueseconstituemcomometa suprema da ordem jurdica, bem como sua ideia reguladora, situandoacomofundamentoltimoeradicaldovalorouprincpiodequeoDireitodepende7,comooAutorsublinha,meditandosobreovalordoDireitocujavocaoresidenarealizaodaqueles outros valores. Neste sentido, a Justia no nos aparece apenas como oelemento essencial da ideia de Direito,mas tambm como a instncia tica onde oDireito vai buscar o princpio da sua obrigatoriedade, bem como a sua efectivaconcretizaoteleolgica,noobstante,comoreconhece,aJustianoexisteemsi,notem ser, umameta,um objectivonuncaplenamente realizado ou alcanado, uma

7AntnioBrazTeixeira,SentidoeValordoDireito,INCM,Lisboa,1990,p.25.

11

intenoouumaintencionalidade,alutapermanente,infindvelesemprerecomeada

pelasuaprpriarealizao(Idem,ibidem,p.187).Assimsendo,haverdereconhecersequese,nombitomoral,aJustiaaexignciatica,nombitojurdicoconsistirnumaclaraedefinitivaatitudeondeemergeanecessidadedequeaconcepodasleisparta do reconhecimento da igualdade entre os seres humanos, bem como a firmedisposio em alcanar plena equidade na sua aplicao. Disto mesmo nos falouAristteles no seu tratado tica a Nicmaco ou Plato, preconizando a ordemaureoladapela ideia deBem, ou, ainda, Ccero, ao identificar a Justia como a rectaratio, todos pensadores movidos por uma concepo de equilbrio e deperfectibilidadeideaisquedeveconstituirofimdecisivodoDireito.Cremosbemqueneste contexto estimulante que se ficam as perspectivas filosficojurdicas dopensamentodeBrazTeixeira.Tentemos agora determinar outros pontos que nos parecem essenciais para acompreensodoitinerriodoutrinriodonossoAutorexpostonestaobracujaanlise indispensvel para quem pretenda acompanhar o ressurgimento da Filosofia doDireitonaculturaportuguesa,nomeadamenteaconstruotericaemtornodovalordoDireito.Emborasumariamente,importareferirque,antesdemais,BrazTeixeiraumfilsofohumanistaepersonalista,ondeaexignciacrticaaparececomomarca fundamentaldasualivreatitudeproblematizadora,semprealheiaaconvicesdogmticas.Nasuaobra, ressalta uma ideia da Filosofia como actividade radicalmente interrogativa,problemtica e no solucionante (Idem, ibidem, pp. 1314), processo racional sempressupostos com vista a uma fundamentao do saber procurando alcanar umasabedoriaparaavida,sublinhandoasuandoleuniversal,noobstantereconheceradimensosituacionaldofilosofar.Nestalinhadepensamento,ainterrogaofilosficasobreoDireitodeveprecederoobjectoespecficodacinciajurdicaparticularmentevocacionadaconstruodeumsaberprtico interessadosobretudonaperspectivanormativistadoDireito.Narealidade,oquemaisimportareflexofilosficasobreoDireitoocuparseemesclarecero fundamentoltimoeradicaldovalorouprincpiode que oDireito depende (Idem, ibidem, p. 25), assim se evidenciando uma directarelao comatica, quena suadimenso social sepreocupa com regras e critriospara aacohumananorteadosporumsentidodo justo que, apardapreocupaocomobemcomumedaseguranasocial,exprimeoessencialdaideiadeDireito.Comefeito, a busca do sentido do Direito est assim necessariamente articulada com a

12

reflexoacercadoseuvalor,peloqueaproblemtica filosficadoDireitoconvocaainexorabilidade de pensar os seus fundamentos, no s ontolgicos, maspredominantementeaxiolgicos,emrigor,ticos,eporconsequnciaencontramonoscomumnucleartemaeproblemaaJustiaque,comoescreveuCabraldeMoncada,aordemideal,aordemperfeita8, isto,ajustificaoplenadasregrasdaconvivnciahumanaqueoDireitovisapositivamentedefinir.OraestasquestessuscitamaBrazTeixeiraumalcidaesriareflexofilosficaondeavultam a sua anlise da problemtica em torno do chamado direito natural, bemcomoanoodeJustia.ConvirdesdejteremconsideraoquejulgamosexistirumnexofundamentalentreestesdoistemasaxiaisdaFilosofiadoDireito,namedidaemquepensaremdireitonaturalequivaleapensaraJustiaemsentidoabsoluto,dondeoncleo da questo residir no problema da Justia. Vamos, todavia, acompanhar opensador ao longo da sua argumentao, deixando para momento ulterior a nossaapreciaocrtica.Antes de mais, ser necessrio considerar que o Autor procede a uma anlisemeridiana do contedo doutrinrio dosmais significativos cultores do pensamentojurdicoportugus,desdeojusnaturalismoescolsticoerenascentista,bemcomoodoperodoiluminista,parasedebruarnasperspectivasdojusnaturalismoutilitaristaekrausista, detendose em seguida na dimenso positivista da concepo do Direitopara, aps detalhada e gratificante apreciao, nos apresentar, superando o brevetriunfopositivista,anovaatitudeque,porvoltadosanos40dosculoXX,assumeoretorno da Filosofia do Direito mediante o esforado contributo de Lus CabralMoncada,querpelassuasobrasinovadoras,querpelainflunciamanifestaemautorescomo,porexemplo,A.BritoLlamase,maistarde,AntnioJosBrando,porsuavezinspiradores de obras de maior profundidade e rigor, como a de Joo BaptistaMachado,AntnioCastanheiraNevesouManueldeLucena,bemcomoareflexodeAntnioBrazTeixeira,mormenteemSentidoeValordoDireito,emcujaanlisebreve,sinal da minha renovada homenagem, me estou agora dedicando nesta snteseinterpretativa. Embora sumariamente dedicado exposio das mais significativasperspectivas filosficojurdicas de pensadores portugueses9, no captulo III daquelaobra, Braz Teixeira no s sublinha a inequvoca originalidade, e at fecundidade, 8LusCabralMoncada,FilosofiadoDireitoedoEstado,AtlnticaEditora,Coimbra,vol.II,1966,pp.42esegs.9 Cf., a este propsito, paramaior desenvolvimento, o livrodeBrazTeixeiraHistriadaFilosofiadoDireitoPortuguesa,EditorialCaminho,Lisboa,2005.

13

como delineia o essencial da fisionomia peculiar da interpretao nacional darealidade do Direito. , porm, nas partes I e II do seu livro que desenvolve, comassinalveldensidadeerigor,oseupensarfilosficojurdico,primeirointerrogandose acerca da condio humana e a sua relao com a experincia jurdica e, emseguida, abordando a questo da fundamentao do Direito, necessariamenteaxiolgica,porconsequncia,oprincpiodaJustia.Apspertinentesobservaesdiznosqueopensamentoantropolgicocontemporneosimultaneamenteproblemticoe metafsico, existencial e aberto10, logo oposto ao monismo naturalista quecaracterizouofinaldosculoXIXe,portanto,abertocomplexidadedohumano,quesecaracteriza,antesdemais,pelasualiberdadecriadora,facultandoadescobertaearealizao de valores e ideais que do pleno sentido condio essencial eradicalmentesocialdapessoaedohomemenquantopessoa(Idem,ibidem,p.71),assimse projectando na intersubjectividade, onde adquire particular significado asociabilidade de ndole jurdica como experincia especfica que se reporta acohumana na sua exterioridade. E j aqui se distinguir da experincia tica, emboracomsemelhanaseanalogias,massemdvidamaislimitada,dadaamenorrelevnciaqueatribuiexperinciantimaeintencionaldoagirhumano.Aqui,podelevantarse,pertinentemente, uma interrogao: ter sentido a subordinao, a dependncia doDireitofacetica?SerqueavalidadedoDireitonecessitadagarantiadatica?Ou,pelocontrrio,oDireitoqueasseguraocumprimentodatica?Dirseiaumarduatarefa responder detalhadamente a estas questes que a sua leitura suscita, noobstante nos inclinarmos a pensar que importa, para alm da argumentao, que atica e o Direito se reconciliam ao servio da finalidade do convvio humano emordem a que aquilo que eticamente desejvel possa ser jurdica e politicamenterealizvel. Cumpre, porm, regressar ao pensamento do nosso Autor, que sublinhacomovectoresconcretosesingularesdaexperinciajurdica,porumlado,osconflitosdeinteressese,poroutro,ocritriodevalorosentidodojustoedoinjustoaquese

recorre para a respectiva soluo (Idem, ibidem, p. 100). Da que o Direito,inevitavelmentepreocupadocomaharmoniasocial,queiraimporsecoercitivamentemediante enunciados onde se prescrevem determinadas condutas cuja violaoimplica certas sanes; tratase, por consequncia, de um discurso normativo quenecessariamente implica critrios axiolgicos, isto , um deverser composto por

10AntnioBrazTeixeira,SentidoeValordoDireito,op.cit.,p.62.

14

valores,ideaiseprincpios,dequeoprimeiroaJustia(Idem,ibidem,pp.106108),raizdasuaobrigatoriedadeparaoalcancedobemcomum.Assimsendo,haverquereconhecerse a importncia do relacionamento entre Axiologia e Direito, ncleotemticoqueoAutoraprofundaaolongodaltimapartedoseulivro,equacionandootemadodireitonatural,logoseguidopelaanlisedeideaisdejustiaentrevistacomofundamentosupremodaordemjurdica.Acercadodireitonatural,pensamosqueestenosenoumadimensodoidealdoBem, ideal queno mbito jurdico visa inspirar a criaode um sistemadenormasjustas, donde a Justia no mais do que decidida afirmao em cumprir aquelesdireitos que brotam da ordem natural da existncia humana, aps anlise racional.Desde Scrates, Plato e Aristteles, a utilidade e a fora foram impugnadas comofundamento do Direito, perspectiva que a reflexo crist acolhe, mormente nopensamento de S. Toms de Aquino, at ao tempo presente. Por outro lado,independentemente de referncias de ndole religiosa, o pensamento humanistaeuropeu, designadamente com a obra de Hugo Grcio, considerou a razo humanacomo meio de legitimar os pontos de vista jusnaturalistas. A vigncia da ideia deexistncia de umDireito Natural foi, contudo, abalada durante parte do sculo XIX,comoaparecimentodaconcepopositivistadoDireitoque,emsntese,afirmavaqueo direito legtimo procedia da autoridade do Estado, fonte das normasindependentementede seremreconhecidas como justasouno, considerandosedendoleirracionalousimplesmenteemocional,umailuso,comomaistardedirHansKelsen, como tambmAlf Ross e Herbert Hart, admitir outras fontes, para alm doEstado, aptas a criar direito. Nesta orientao positivista, ainda hoje doutrina paraalguns ainda que com matizes, colocar a questo da Justia como pretende a tesejusnaturalista colocla no mbito da ideologia, implicitamente entrevista comodomnio submetido a instncias de natureza tica,mas semmarcas de juridicidade,isto , tos obedientes a critrios extrnsecos da prpria legalidade, apenasajustadas a desejos e convices particulares e arbitrrias de indivduos ousociedades, o que s originaria confucionismos e ambiguidades. De facto, para osjuristas positivistas, o direito no deixa de ser direito pelo facto de ser imposto,emboraasposiescontemporneasdestateseseapresentemmaisflexveiseatentasa estabelecer uma certa conexo entre o carcter jurdico das normas e o ideal daDignidadeHumana,finalidadeticaporexcelnciadarealizaodaJustia.Comefeito,ospartidrioscontemporneosdopositivismojurdico,entreosquaisavultaopensar

15

de Norberto Bobbio, reconhecem certa importncia ao que Jos Lus L. Arangurendesignava,noseuluminosolivroticayPoltica(1968),porfunesjusnaturalistaseque podem resumirse a cinco perspectivas11: a primeira hermenuticamente efacilitaoesclarecimentodediversosconceitos, taiscomoorths, logos,aequitas,etc.,funo,comoArangurenafirma,de lgica jurdicacomaplicao,principalmente,dasregras de analogia e consequncia (Idem, ibidem, p. 36). Em seguida, a funo quepermiteultrapassarlacunasjurdicasnainterelaodoscorposlegislativosdepovosdiversos,oiusgentium.Aoutrafunododireitonaturaldenaturezametajurdicaeapontaparaareflexosobreosvalores,aWeltanschauung,ouowayof life,quedosentidos leise,porfim,aquartaequintafunes,umadendoleconservadoraemqueodireitonaturalremeteparaopassadoeassuasleisqueconsideranaturais,isto,dadas frenteaonovodireito(nomos),meramente imposto (Idem, ibidem, p. 37) e altima funo, claramente progressista e que pressupe uma abertura ao futuro,mediante novas propostas que visam alterar ou aperfeioar as leis em vigor. Narealidade, apesar de norteados pela preocupao de segurana que o positivismoconsidera finalidadeessencialdoDireito,norecusam,emesmoolhamcomalgumasimpatia, o essencial destas perspectivas que Aranguren defendeu ao apontar oDireito como instrumento para a realizao da Justia. Ser agora oportuno queolhemosaposiodeBrazTeixeira.queno seupensarestpresenteumaatitudequerecusaconferirideiadenaturezahumanaadimensodefundamentododireitonatural,vistoquedelanobrotaqualquernormatividadeconcreta[]servindoapenasparamarcardeterminadoslimites12queoDireitodeveobservar,como,porexemplo,orespeitopelaliberdadeedignidadedoserhumano.Todavia,acriaonormativanopoder, como adverte o Autor, ser permevel a certos elementos contraditrios ounegativos, como os instintos, a vontade de poder, o egosmo e certos impulsos

destruidores(Idem,ibidem,p.160)que,tantasvezes,formamocontedoimanentedanatureza humana, tornandoa escrava de paixes e necessidades impeditivas daconvivnciaharmoniosaetambmsolidriaqueimportasalvaguardarexplicitamentenoprocessodesocializaohumana.Defacto,luzdaexigncianormativa,oconceitode natureza humana no , em si mesmo, objectivamente vlido para garantiraxiologicamenteoDireito(Idem,ibidem,p.161),porm,deverestarpresenteemtodaa normatividade jurdica, configurandose como que um contedo mnimo, mas 11JosLusL.Aranguren,ticayPoltica,Gusdarrama,Madrid,1968,pp.3637.12AntnioBrazTeixeira,SentidoeValordoDireito,op.cit.,pp.159esegs.

16

intrinsecamente indispensvel e vinculante, segundo pensamos. De outro modo, oDireitoreduzirseaumsistemacoercitivo,afinalapoiadonafora,porconsequnciaum atentado a valores essenciais da condio humana. Mas impese aqui umesclarecimento: ao ocuparse desta problemtica, Braz Teixeira nunca renuncia anecessria conciliao entre a realidade humana e a funo do Direito, porm, emsentidorigoroso, insisteque,nasuaradicalidade,aordemjurdicanecessitadeumafundamentao firme e inabalvel para conferir uma legitimidade e autoridade queescapeaqualquertentativademanipulao.EsteprincpioouidealaJustia.Nos seus termosmais simples, o problemada Justia abordadoporBrazTeixeiracom amaior clareza e profundidade, permitindo ser interpretado com fidelidade.Oseu ponto de partida consiste em pensar o conceito de Justia, quer como virtudeindividual (Idem, ibidem, p. 163), quer como valor,princpioou ideal (Idem, ibidem),esclarecendo que pertence ao mbito da tica a reflexo acerca da primeiraperspectiva aopassoque a outra especficadaAxiologia edaFilosofiadoDireito.No recusando as virtualidades deste ponto de vista, consideramos que a reflexoticasobrea Justiaacabaporcoincidircomotemacentralda filosofiapoltica,queconsisteemsaberoqueumasociedadejusta,peloquenoacompanhamosemtodaa dimenso a precedentedistino, at porque a Justia comovalor , semmargempara dvida, de natureza tica. Abandonemos, porm, o limiar do que poderia nopassardedesacordosemnticoparaolharmosoessencialdasuaposio.ApsanalisarasmaissignificativastesesfilosficasacercadaJustia,desdeoperodoprsocrticoaopensamentoplatnicoearistotlico,deCceroaS.TomsdeAquino,detendose em Jean Bodin e em Leibniz, dandonos uma panormica que tornapatente a Justia como princpio ou ideal, Braz Teixeira destaca os autores que aconcebemcomosimplesconvenohumana(Idem,ibidem,p.170),lembrandoEpicuroe os Cpticos, comecos no sculoXVII,mais tardeDavidHume eUtilitarismo, paraterminar referindo Alf Ross. Em seguida, debruase na reflexo contempornea,evidenciando como a partir de meados do sculo XX, retorna a preocupao emfundamentar axiologicamente o Direito, destacando o pensamento de ChaimPerelman, IlmarTammelo, JohnRawls(referindoaimportantepolmicacomRobertNozick)e,porfim,aludindospropostasdeSergioCotta.Nodemaisrealarestalargapanormicadeteoriasquepossibilita,mediantesntesesluminosas,oencontrocomaslinhasmestrasdefecundodinamismoactualvoltadaproblemticafilosficadoDireito.MasqualoitinerriodeBrazTeixeira?

17

Opensador portugus parte da tese que defende a Justia como valor, princpio ouideal de natureza objectiva (Idem, ibidem, p. 183) que d sentido ao Direito, porconsequncia,estesomenteexisteparaquea Justiaserealize,pelaqualoDireitoquedeve seraferidopela Justia []nopodendo,em consequncia,esta consistirna

conformidadecomoDireitooucomalei(Idem,ibidem,p.184),daqueoDireitosejaumaordemnormativaquepretendeorganizarasociedadedeacordocomaconcepoda Justiaque se traduznadefesadas liberdades individuais,da igualdadehumana,como j defendia Aristteles, visando estabelecer rectido moral na vida social e,portanto, postular a equidade como critrio assente no respeito pela personalidadelivre de cada um (Idem, ibidem, p. 185) e, como escreve em seguida, no que uma[liberdade] e outra [personalidade]implicam de direitos e bens exteriores, isto , de

propriedade(Idem,ibidem).Poderafirmarseumaconcretacoincidnciaentrejustiaeigualdade?ParaoAutor,aexigncia nuclear de justia implica tratamento igual relativamente a casos iguais edesigualaoscasosdesiguais;todavia,distinguirconcretamenteosquesoiguaiseosque o no so nem sempre evidente na expresso legal, pelo que, dada ageneralidadeda lei, esta sempre,dealgummodo,umamatematizaoda Justia,,tambm, inevitavelmente uma forma imperfeita da Justia e uma fonte potencial de

injustia(Idem, ibidem,p.186).Sopalavrassibilinasqueesclarecemclaramente,aoquepensamos,queaordemjurdicanemsempreordemdejustia.DadoquesdemodorelativocapazderealizaraJustia.NestesentidosecompreendequeoAutorconsidere a Justia como insubstancial (Idem, ibidem, p. 187) e tos uma meta,umobjectivo nunca plenamente realizado ou alcanado (Idem, ibidem), pelo que noparecepossvelconcebercritriosdejustiaobjectivos,claroseprecisos,dondemaisdecisivo o papel de juiz do que o de legislador (Idem, ibidem, p. 188), e assim oconhecimentodaJustiarevelasedendoleintuitivaemocional(Idem,ibidem,p.190)e axiolgica, todaviamais radicadonavivnciadosvalores (Idem, ibidem, p. 191)doquenaevidnciaracionalobjectiva.EnfrentandoacomplexidadedagnosiologiadaJustiaque,comoseviu,sebaseiaemelementosaxiolgicosenodeestritanaturezalgicodedutivaeconsiderandoasuaaplicaoprtica, pensamos, a estepropsito, que se acentuaa importnciadeumaampla formao interdisciplinar dos juristas no sentido da ultrapassagem de umapossvelmentalidadepositivista,maispreocupadaemsabercomooDireitoemenosinteressada em pensar o que ele na realidade. Claro que no esquecemos que o

18

juristatemdeaplicarodireitopositivo,masnodeveassumirsecomomerotcnico.H uma tarefa fundamental na construo jurdica da sociedade e do Estado, alisinadivelnahorapresenteprecisamentealutapelaJustiacontraoatrozatropeloda dignidade e liberdade humanas.Ora, tal luta brotar sempre de uma esclarecidareflexo sobre a Justia, que para ser eficaz carece de uma adequada integrao evalorizao das perspectivas emergentes da chamada tica Aplicada a fim derespondersexignciascontemporneas.Regressemos,paraconcluir,aumaproblemaprementequeBrazTeixeiraequacionou,emboraremetendoparafuturaobraoseudesenvolvimentoesoluo.Reconhecendoa Justia como fundamento do Direito, neste contexto estimulante que o AutorlevantaaquestodaprpriafundamentaodaJustia,temaqueconsideraimplicarumaalargadareflexodendolemetafsica,maisrigorosamentesituadonoespaodeumaontoteologia(Idem,ibidem,p.192)doquenombitodaFilosofiadoDireito,dadoque somente naquele domnio tem sentido a busca e possvel resposta apsconcluses acerca da ideiadeDeus,da realidadedomal,das relaes entre Justia ecaridade e do fundamento ontolgico da prpria liberdade (Idem, ibidem). Noduvidamosdaimportnciaemesclarecerestesaspectos,todavia,aestepropsito,nocremos que o pensamento natural possa ultrapassar a conscincia de uma doutaignorncia, a menos que a Justia aparea como entidade metafsica cuja essnciapossaserencontrada,peloquesenosafigurasuficientepensarasuafundamentaocomo um conjunto de ideias dinmicas e, por vezes, em conflito, mas capazes desuscitaremamplosconsensos,frutodeumaactivaracionalidadedialgicacomvistaaumajustificaodosDireitosHumanosquepensamosequivalentes ideiadeJustia.Com efeito, a Justia a referncia fundamental que configura a conscincia ticaocidentaleasuamatrizideolgicasituasenainterfernciadetrsvectores:areligiojudaicocrist, o pensamento filosfico grego e o direito romano. Determinar a suafundamentao ser, ao que pensamos, no s considerar a detalhada histria dareflexoocidentalsobreoseusignificado,mastambmpenslacomoincontornvelcategoria estruturada da tica social, designadamente como interpelante dosordenamentos jurdicosociais estabelecidos. Fundamentar averiguar dalegitimidade,nestecaso,dosenunciadosnormativos,oraaJustiaencontrasentidodasua fundamentaonaqueleabsolutoquearelaodialgica intersubjectiva,capaz

19

deprtermoou,comoescreveuEdgarMorin,resistircrueldadedomundo13.Destemodo,creioque,apartirdeumaperspectivaexclusivamentehumana,aJustiaumideal que no necessita de um horizonte metafsico ou religioso para afirmar umsentido tico para a existncia, at porque o mais forte baluarte contra todas asformasdeiniquidade.Porm,maisimportantequenosdemorarmosnumadigressoque certamente nos conduziria ao problema faz relaes entre tica e Metafsica,importaconcluircomduaspalavrasfinaisparacomoAntnioBrazTeixeira,filsofodo Direito que aqui homenageamos. Na realidade, nesta sua notvel obra Sentido eValordoDireitodeparasenosmuitomaisdoqueumaintroduofilosofiajurdica,quer pelas sugestivas anlises a queprocedeu, quer pela lucidez e talento filosficocomquelevantandoperspectivasfecundas,seconfrontacomdeterminadascorrentesdeideiasfilosficojurdicasetambmpelassucintasconsideraesfinaiscomvistaaum esforo fundamentador da tica jurdica. Apesar de este ensaio obedecer a umaintenode sntese, e por isso se assinalaramapenas os tpicosmais significativos,porm suficientes, para despertar o desejo de aprofundar o seu estudo, no queroterminar sem exprimir simpatia e admirao pela vocao teorizadora de ntidotimbre personalista de umAutor cujo pensar, independente e crtico, est animadoporuma serenamarcamoralizadora, esclarecendo e reforando, comumaessencialsimplicidade, a fundamentalmissodequalquer jurista isto , adeterminao empraticaroBemapardaimperiosanecessidadedeconstruireaplicaroDireitoemproldeumacidadaniadigna,responsvel,dialgicae,porventura,feliz.E regresso assim, entre a Amizade e o reconhecimento, a Antnio Braz Teixeira,cidado portugus e domundo, norteado pelo culto da Justia e da Filosofia e peloamorLiberdade,empermanenteatenoao ritmodos tempos, comovisvelnosmuitosdiscursosetextosqueproferiueescreveu,manifestamenteevidenciandoasuaelevada formao cultural onde se destaca uma inteligncia calma e prudente,masbrilhanteeemharmoniacomumafirmeautenticidadedeinquebrantvelcoerncia.Preparar estas palavras de tributo ao nosso homenageado foi uma tarefa muitogratificante, facilitada pela profunda admirao intelectual e cvica e pela grandeestimapessoal que acalentohmuito tempo.Por consequncia,BEMHAJA!Comosmeus melhores votos de que possamos beneficiar, durante muitos anos, do seu

13EdgarMorin,thique,vol.6deLaMthode,Seuil,Paris,2004,p.227.

20

convvioedoseutrabalhoinsubstituvelequeesteencontrodehojesejaparasi,comonoversodeJohnKeats,umacoisabelaeumaalegriaparasempre!

21

HERMENUTICAERAZOJURDICA

AcliodaSilvaEstanqueiroRocha

UMinhoIE/CIEdBraga/PortugalCampusdeGualtar4710057Braga

964820491|[email protected]

Resumo:Nestenossotexto,dissertaremossobrearazojurdicanopensamentodeAntnioBrazTeixeira.

Palavraschave:razo,razojurdica,AntnioBrazTeixeira

Abstract:Inthistext,wewilltalkabout"legalreason"inthethoughtofAntnioBrazTeixeira.

Keywords:reason,legalreason,AntnioBrazTeixeira

22

Introduo

Quando li, com gosto e proveito pessoal, o Breve Tratado da Razo Jurdica1, deAntnioBrazTeixeira,publicadoem2012"quepodeserlidoouentendidocomoosegundovolume"deSentidoeValordoDireito2,prestei logoespecialateno,apsumcaptulodedicadoLgicaJurdica(pp.2146),aosseisandamentosfilosficosque o autor perfaz no captulo III (Hermenutica Jurdica), precisamente desde ahermenutica como primeiro momento da racionalidade jurdica prtica, teoriahermenutica (Friedrich Schleiermacher,WilhelmDilthey, Emlio Betti), filosofiahermenutica (Martin Heidegger. HansGeorg Gadamer, Paul Ricoeur), hermenuticacrtica(KarlOttoApel,JrgenHabermas),queconstituemarampadelanamento desse seu empreendimento racional. Com vista ao escopo almejado, onosso distinto jusfilsofo, justamente homenageado com este colquio, parte desseesteio filosfico a hermenutica filosfica , uma rea que ganha cada vez maisterreno no pensamento contemporneo, para depois se lanar numa incansvelindagao sobre a hermenutica jurdica, a retrica jurdica, a incluindo a novaretrica de Cham Perelman, a teoria da argumentao de Stephen Toulmin, NeilMacCormickeos limitesdoraciocnio jurdicodedutivo,ea teoriadaargumentaojurdicadeRobertAlexy,queHabermaspressupecomobasedasuateoriadodebateargumentativo, comvistaaoconsenso;alis,a teoriadeHabermassobrea teoriadoconsenso da verdade serviu de referncia para o desenvolvimento da teoria dainterpretaodeAlexy.Se a hermenutica radica na finitude do ser humano, na comunicabilidade doshumanosentresiqueresideapossibilidadeanalticadecompreenso,que,deacordocomaexperincia,serevelanomundo:osujeitoquecompreende,sendofinito,ocupaum ponto no tempo, determinado demuitosmodos pela histria3. Neste sentido, oesforo empreendidoporBrazTeixeira fulcral, pois compreenderodireito maisqueumameraaplicao: ahermenuticano somenteproduzo estabelecimentodecritrios que permitem uma adequada interpretao, mas, dum outro ngulo, aefectividadedodireitoedolaborlegislativodependedaqualidadedainterpretaodequemaplicaasnormas. 1AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,Sintra,EdiesZfiro,2012,p.13.2 ID., Sentido eValor doDireito: introduo a filosofia jurdica, Lisboa, Imprensa Nacional Casa daMoeda,3ed.reveaum.,2006.3Cf.AcliodaSilvaEstanqueiroRocha,Aquestodauniversalidadedahermenutica:controvrsias,aporias, pluridimensionalidade, Phainomenon: Revista de Fenomenologia, Centro de Filosofia daFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa,Outubrode2003,p.55.

23

Ainstnciahermenuticanaracionalidadejurdicaprtica

Seoinfluxodahermenuticaerareduzidonasdisciplinasjurdicas,maiornaexegesebblica,foicomasobrasdeHeideggeredeGadamerqueessareafilosficacomeouater impacto no campo da interpretao. Detemonos, pois, nesse ncleo dahermenutica filosfica, no fora esse um dos domnios predilectos do nossohomenageado, que j em 1962 presenteara o pblico interessado com a exmiatraduodeElogiodaFilosofiadeMauriceMerleauPonty,cujamensagematravessaasuadensaediversificadaobra,conformetestemunha:"Assim,emsuaradicalidadeoucomosaberradical,aFilosofiasempreteoria,noseuoriginrioetradicionalsentido,isto,intuiointelectual,contemplaodeideias,visoespiritualdoinvisvelouteoriadoseredaverdade"4.Naverdade,oautordeSentidoeValordoDireito,enfatizaque"[...]anorma[...]sseafirmacomoefectivoDireito,quando interpretadaeaplicada,quando o sentido ou sentidos axiolgicos que nela esto como que adormecidos oulatentes so vivificados e postos em movimento atravs da sua interpretao eaplicao, quando os juzos de valor que contm so projectados existencialmente,conformando ou regendo concretas e singulares relaes e condutas humanas esituaesdevidaouresolvendoconflitosdeinteressesigualmenteindividualizadoseconcretos"5.Assim,paraoautordoBreveTratadodaRazo Jurdica,aracionalidadelgica,quecuida apenas de categorias e conceitos formais (independentemente de valores oucontedosvalorativos),noesgotaodomniodaracionalidadejurdica,pois"oDireito,enquantoordemnormativa,temumaessencialdimensoprtica,destinasearegular,ordenar ou rectificar a conduta social, de acordo com determinados valores quepretende tornar efectivos na vida humana intersubjectiva". Quer dizer: "ao lado dalgicajurdica,quecorrespondeaomomentoouaspectoformaldaactividadejurdica,deparasenos o amplo domnio da racionalidade jurdica prtica, que o que dizrespeito aplicao ou concretizao singular da normatividade jurdica, a qualimplica,comoseuprimeiromomento,umainstnciahermenutica,acompreensoedeterminao do sentido actual e concreto da prescrio normativa respeitante ao

4AntnioBrazTEIXEIRA,SentidoeValordoDireito: introduo filosofia jurdica, Lisboa, ImprensaNacionalCasadaMoeda,2006,p.28.5ID.,SentidoeValordoDireito,p.154.

24

casodecidindo,comvistaapermitirumadeciso justa"6.A filosofiahermenutica,ento, um domnio cognitivo fulcral: tudo o que apreendido e representado pelosujeito cognoscenteadvmdeprticas interpretativas:vindoomundo conscinciapelapalavra,esendoalinguagemaprimeirainterpretao,ahermenuticaunssonacomaprpriavidahumana.Hermenutica,umaactividadecriativa

Friedrich Schleiermacher (17681834) o precursor da hermenutica filosfica elaborou uma sntese de todas as hermenuticas precedentes (bblica, jurdica,filolgica)qualartedacompreenso,quepretendecompreenderaexpressooralouescritamedianteumprocedimentomistodeanlisegramaticalepsicolgica:assim,ahermenutica, "como todoodiscurso, temumadupla relao, coma totalidadedalinguagem e com o pensar geral de seu autor; assim tambm toda compreensoconsisteemdoismomentos:compreenderodiscursoenquantoextradodalinguagemecompreendloenquantofactonaquelequepensa"7.Aquesto:comoquetodaaexpressolingusticafaladaouescritacompreendida?Com esse intuito, o nosso Homenageado e ilustre jusfilsofo remonta aSchleiermacher, cujo mrito "consistiu em ter superado a fragmentao dahermenutica"8, j que, antes, a hermenutica era mais um agregado de regras,derivadasmaisdeprticasquedeprincpios;comele,noquadrodatradioexegticadateologiaprotestante,apar,nofinaldosculoXVIII,comoressurgimentodeestudosde filologia clssica, a hermenutica envolve a compreenso. A contribuio deSchleiermacherescreveumaistardeGadamer"desenvolverumarealdoutrinadaartedocompreender,emvezdeumasimplesagregaodeobservaes"9.Pensador romntico e fundadordahermenutica filosfica, Schleiermacher introduzalgo de novo o crculo hermenutico: "discurso algum pode ser interpretado apartirdesimesmo,masapenasnumcontextomaisamplo,assimcomoacompreenso

6ID.,BreveTratadodaRazoJurdica,p.47.7FriedrichDanielErnstSCHLEIERMACHER(1838),HermenuticaeCrtica:comumanexodetextosdeSchleiermachersobrefilosofiadalinguagem,trad.A.Ruedell,rev.P.R.Schneider,Iju(RS),Uniju,2005,p.95.8ID.,BreveTratadodaRazoJurdica,p.53.9HansGeorgGADAMER,WahrheitundMethode:GrundzgeeinerphilosophischenHermeneutik[1960],Tubinga, J.C.B.Mohr(PaulSiebeck),1990,p.189.Traduofrancesa:VritetMthode: lesgrandeslignes d'une hermneutique philosophique, dition intgrale revue et complte par P. Fruchon, J.GrondinetG.Merlio,Paris,Seuil,1996,p.203.Doravante,ooriginaleatraduoseroreferenciadospelassiglasseguintes:WM,p.189;VM,p.203.

25

dotodocondicionadapeladopormenor,talcomo,inversamente,acompreensodopormenor determinada pela compreenso do todo"10; em qualquer interpretao,partimos sempre de uma compreenso parcial do interpretado, para, s ento,alcanarmos o seu todo; do mesmo modo, uma plena compreenso das partesdependeriadainterpretaodotodo.Ento, Schleiermacher prossegue cada vezmais umahermenutica universal, pois apossibilidadedo malentendido comum;quer dizer, o esforode compreenso maiorcadavezquenosedumacompreensoimediataequehapossibilidadedeummalentendido:adificuldadedecompreender,ouomalentendido, jnovistocomoocasional,mascomomomentointegrantequeseprocuraeliminardeantemo.Gadamerafirmou:"DondeadefinioconcisadeSchleiermacher:ahermenuticaaarte de evitar o malentendido"11. A sua resoluo est num cnone de regrasgramaticaisepsicolgicasdeinterpretaoqueseafastamradicalmentedequalquerliamedogmticoousubstancial,mesmonaconscinciadointrprete.Ento, hermenutica arte, j que depende mais da destreza do artista ou dointrpretedoquedeumaaplicaometdicaderegrasoudepadresuniversaisdeinterpretao.TodoodiscursoescreveSchleiermachersempre"aconstruodeum determinado finito a partir de um indeterminado infinito"12: compreender einterpretarumtextorequeressatensoentreofinitodeumaconstruoparticulareoinfinito de sua linguagem e de seu autor, em que nenhuma regra pode darnos acerteza de sua aplicao. Compreenso e interpretao com arte dependem, pois, eprincipalmente,daatitudeedoempenhodointrprete.Aoreferirahermenuticacomoobradearte,claroqueoqualificativodearteestmaisnomododeseuexerccio,quenaobra:aactividadehermenuticadespontacomoarte,poisresultamaisdadestrezadointrprete,isto,doartista,quedumaaplicaometdicaderegrasinterpretativas.Alinguagemuminfinitoporquesoinfinitasassuas possibilidades de ser determinada por terceiros; domesmomodo, infinita aintuioparticulardealgum,e infinitas soaspossibilidadesde receber influxodefora:ento,compreender e interpretar um texto requeressa tensoentreo finitodeuma construo particular e o infinito de sua linguagem e de seu autor, em quenenhumaregradacertezadesuaaplicao. 10AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.55.11HansGeorgGADAMER,WM,p.188;VM,p.203.12FriedrichSCHLEIERMACHER(1838),op.cit.,p.99.

26

Assim, a hermenutica passa a ser vista como arte, nomais concebida atravs demtodos ou tcnicas,mas como uma actividade criativa. Gadamer desenvolver umdospostuladosdeSchleiermacher,que"importacompreenderumautormelhorqueelemesmo se compreendeu"13, como significando que "o acto de compreenso areconstruo de uma produo" e que por "uma tal reconstruo nos tornamosconscientes de muitas coisas que ao autor teriam ficado inconscientes"14. Uma dascaractersticas peculiares dessa hermenutica precisamente essa: ser movimento,semnuncaalcanarofim,portanto,sercaminho.Dai que, para caracterizar este avano, Braz Teixeira invoque Ricoeur, quando estesalientaque, seokantismopdeapenasdiscernir "umesprito impessoal",portadordas condies de possibilidade dos juzos universais, a hermenutica ampliou okantismomasrecolhendodafilosofiaromnticaasuaconvicomaisfundamental:"oespritooinconscientecriadoroperandonasindividualidadesgeniais"15.Oprojectode Schleiermacher trazia, pois, essa dupla marca: crtica, porque elabora regras decompreenso universalmente vlidas; romntica, porque em relao viva com umprocessocriativoindividual.Vivncia,compreensoeexplicao

Um dos contributos de Schleiermacher relevante para se entender Dilthey concerneaoquedevesercompreendido:noapenasaliteralidadedaspalavraseoseusentidoobjectivo,tambmaindividualidadedequemfalae,consequentemente,do autor. Sendo necessrio retroceder gnese das ideias e, paralelamente, interpretaogramatical,estaramosnainterpretaopsicolgicaumdoselementosdeterminantes para a formao das ideias de Wilhelm Dilthey (18831911). ComoescreveBrazTeixeira, se, emSchleiermacher,oelementopsicolgicodesempenhavaimportantepapelnoconjuntodasuavisodahermenutica,nadeDiltheypassaraocuparumlugarcentraledecisivo16.No af de compreenso, omundo surge nas suas duas dimenses uma interior, aoutraexterior;exterior,poisofactohistricoocorreunumadata,masessaapreensoderivadomundointerior,oconsciente;oexteriorenquantodesenvolvimentodeforae 13HansGeorgGADAMER,WM,p.195;VM,p.211.14ID.,WM,p.196;VM,p.211.15AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.54.OautorremeteparaaobradePaulRICOEUR(1986),DuTextelAction:essaisdhermneutique,Paris,Seuil,p.79.16Cf.AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.56.

27

o interior enquanto objecto verdadeiro e consciente no so equiparveis, j que sempre a significao consciente que d sentido a esse desenvolvimento exterior. Oconhecimentodasgrandesformasdaexistnciahumanaexigeacompreenso:"aesteprocesso pelo qual conhecemos um interior com a ajuda de sinais percebidos doexteriorpelossentidoschamamos:compreender(Verstehen)"17.Senareferenciaoexternaqueahistriasebaseia,medianteelaosindivduosdumdeterminadoperodopodemcomunicarseunscomosoutros.Segundo Dilthey, nada h na realidade que, para ser conhecido, no tenha que serapreendido como vivncia psquica: esta estrutura da vida psquica que envolveuma "conexo teleolgica da vida", um sentido interno, que confere realidade umsentido,organizandooconhecimento.AvivnciaassimdefinidaporDilthey:"aquiloque, no fluxo do tempo, forma uma unidade na presena; tendo um significadounitrio,aunidademnimaquepodemosdenominarvivncia.Etambmchamamosvivncia a cada unidade mais abarcante de partes da vida, vinculadas por umsignificado comum para o curso da vida, mesmo quando as partes esto separadasumasdasoutrasporprocessosqueasinterrompem"(Ib.,p.119).Entreascontribuiesdiltheyanasparaahermenuticadascinciashumanas,estadistinojclssicaentrecompreenso(Verstehen)eexplicao(Erklren);destemodoDiltheypretendediferenciaromodusoperandidascinciashumanas, inseridasnas vivncias humanas do das cincias naturais e empricas, que abstraem os seusobjectos do contexto natural que lhes prprio para a respectiva anlise. Talconceptualizao constituiu um avano da reflexo hermenutica. Assim, questo,comosediferenciamascinciashumanasousociaisdascinciasnaturais?,respondeDiltheyqueestasexplicameaquelascompreendem:compreendemtextosediscursos,mas tambm qualquer objectivao significativa da vida humana, desde gestos eaces, figuraes artsticas, a instituies, sociedades, acontecimentos, nossaprpriavidaoudeoutrem.Ento, "as cinciasmorais (Geisteswissenschaften) distinguemse primeiramente dascinciasdanaturezaporqueestastmporobjectofactosqueassomamconscinciacomo fenmenos dados isoladamente e do exterior, enquanto eles se apresentamqueles do interior, como uma realidade e um conjunto que existem originaliter. 17WilhelmDILTHEY,DosEscritossobreHermenutica:elsurgimientodelahermenuticaylosEsbozosparaunacrticadelaraznhistrica[ediobilingue],prlogo,traduccinynotasdeAntonioGmezRamos,eplogodeHansUlrichLessing,Madrid,EdicionesIstmo,2000,p.25.

28

Resulta disso que no existe conjunto coerente da natureza nas cincias fsicas enaturaissenograasaraciocniosquecompletamosdadosdaexperinciapormeiode uma combinao de hipteses; ao invs, nas cinciasmorais, o conjunto da vidapsquica constitui por toda a parte um dado primitivo e fundamental. Explicamos anatureza, compreendemos a vida psquica, porque as operaes de aquisio, asdiferentesmaneirasemqueas funes,esseselementosparticularesdavidamental,secombinamnumtodo,sonosdados tambmpelaexperincia interna.Oconjuntovivido aqui a coisa primitiva, e a distinodas partesque o compem s vememsegundolugar.Seguesequeosmtodospormeiodosquaisestudamosavidamental,ahistriaeasociedade,somuitodiferentesdaquelesquelevaramaoconhecimentoda natureza"18. Da diferena assinalada resulta que as hipteses no tm a mesmafunonapsicologiaenoestudodanatureza:nesta,todooconjuntocoerenteprovmda formao de hipteses; na psicologia, ele um dado primitivo e constante daexperincia:avidasserevelacomoumconjuntoondetudosemantm.Deste modo, desponta a questo: como pode a compreenso dos significados serelevadaaomesmonveldaclarezametodolgicadascinciasdanatureza?Quaissoosmtodosquepermitemumaleituraobjectivadasestruturassimblicasdequalquertipo,incluindoaces,prticassociais,normasevalores?Ora,estaquestorefereseauma busca de cientificidade para as cincias interpretativas numa poca em que jeram visveis os avanos no campo das cincias da natureza. Em sntese, diz BrazTeixeira, "a teoria hermenutica esboada por Dilthey, a partir do vitalismo,historicismo e psicologismo, que caracterizavam a sua filosofia, baseavase emduasnoes fundamentais, de diverso mbito, a de compreenso e a de interpretao ouexegese"19.Nombitodahermenuticaromnticaalem,paradiferenciaralgicadoconhecimentonascinciasnaturaisdodascinciashumanasesociais,Diltheybuscavafundamentos filosficos e epistemolgicosdeuma formade conhecimento cientficodiversodoconhecimentopositivistaenaturalista.Oscnoneshermenuticos

Na senda de Dilthey, Emilio Betti (18901968), historiador do direito italiano,"representaumconsidervel avano relativamenteao filsofogermnico, quehavia, 18 Wilhelm DILTHEY, Le Monde de l'Esprit (1926), t. I, trad. francesa de M. Rmy, Paris, AubierMontaigne,p.320.19AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.59.

29

decertomodo,limitadoasuaatenoreflexivascinciashistricas,eficara,emlargamedida,presodopsicologismo"(Ib.,p.62),prosseguindooprojectoambicionadoporSchleiermacher.OobjectivodeBettidilucidarumaviaseguraparaarelaoentreintrprete e autor, demodoque a reconstituiodos actos cognitivos deste possamgarantiraestabilidadeeaimpessoalidadenainterpretao.Com a suaTeoriaGeralda Interpretao (1955) pretende facultar uma teoria geral,susceptvel de interpretar a diversidade das objectivaes da experincia humana;para isso, estabelece regras que garantam tal empreendimento, pois, para Betti, oproblema hermenutico tornouse uma questo epistemolgica, voltandose explicao do que compreender e fixao de regras que orientem tal esforo,garantindolhesresultados.Porisso,abreassimasuamagnaobra:"IEnto,quandose considera a posio que o esprito um esprito vivo e pensante, sujeito deconscincia e de autoconscincia pode assumir com respeito objectividade, necessriodistinguirentrea)objectividadereal,constituintedodadofenomnicodaexperincia, nesta inserido e descoberto, e b) objectividade ideal, constituinte dopressupostoda experincia, ou seja, do conjuntodaquelaque, comKant, podemserchamadasas"condiesdesuapossibilidade"20.Discernirobjectividade,sejaelaarealou a ideal, na norma ou no ordenamento jurdico , de certa forma, elucidar qual ovalorapresente, jqueo fenmeno jurdicoenvolve trselementos facto,valorenorma.Ahermenuticajurdicasurgecomoumcasoespecialdateoriageraldacompreenso,e a questo jurdica tornase tambm questo filosfica (um pouco como emSchleiermacher, com os problemas filolgico e teolgico). Ora, para caracterizar aincidncia hermenutica no direito, bem diversa da literria, Betti apresenta uma"classificao dos tipos de interpretao segundo a diferena da respectiva funo"(Ib., I, p. 347 ss), em trs grupos: o primeiro concerne a interpretao que buscameramenteentenderoseuobjecto(semqualquerpreocupaodogmtica);osegundorequer mais que o entendimento, pois visa explicar a outros o entendimentoalcanado; o terceiro pretende extrair do entendimento alcanado umamxima dedeciso ou de conduta, isto , uma orientao para uma tomada de deciso na vidaprtica.Tendoemcontaestestrsobjectivos,essesgruposvisamentender,explicare

20EmilioBETTI,TeoriaGeneraledellaInterpretazione,vol.I,Milano,Giuffr,Editore,1990,p.1.

30

regular o agir, conforme s trs funes (cognitiva, reprodutiva e normativa)referenciadas.Taldiscriminaodecorredasdiferenasinterpretativasdasobras literrias(apenassepretendecompreender),dohistoriador (buscareconstruirummomentohistricopara o explicar) e do jurista (toma uma deciso com base na interpretao). Emrelao ao primeiro caso, Betti praticamente repete Schleiermacher (entender reconstruir o que foi construdo, repensar o que foi pensado, retornar o processocriativo em sentido inverso; no segundo caso, ele retoma as teorias historicistas deDiltheyqueidentificamnacompreensoumabaseparaascinciashumanas;porm,oqueinteressapeculiarmenteaBettianalisaroterceirocaso,queeraignoradopelasteoriasfilosficasdahermenutica.No captulo (III) sobre Metodologia hermenutica, Betti trata dos "Cnones, cujaobservnciagaranteoresultadoepistemolgicodainterpretao"(Ib.,p.304),isto,asregrasbsicasdeinterpretao,que,aplicadasdeformacombinada,podemgarantirsimultaneamenteaseguranajurdicaeacorrecomaterialdasdecises(Ib.,pp.304328).Ento,comvistaagarantirtalseguranaeessacorreco,estabeleceosquatrocnones hermenuticos (a serem usados de forma combinada), dos quais os doisprimeirossereferemaoobjectoeosdoisltimosaosujeitodainterpretao,queBrazTeixeira cuidadosamente analisa21. Com palavras minhas, diria que o primeiro (da"autonomiahermenuticadoobjecto"),prossegueainterpretaocomodescobertadosentido da norma, para contrariar a manipulao ideolgica (e no uma atribuioautnomade sentidonorma);o segundo (da "coernciade sentido")buscaextrairdos elementos singulares o sentido do todo e entendlos em funo desse todo(dalgum modo, o circulo hermenutico); o terceiro (da "actualizao dacompreenso")exigequeointrpretereconstrua,nointeriordasuasubjectividade,opensamentooriginaldoautor,isto,umareconstruodopensamentodemodoticoe reflexivo; o quarto ("da correspondncia hermenutica do sentido"), em que ointrpretedeveentenderosentidooriginaldotextoecompreenderoseusentido,detalmodoquepossareconstruloatendendosnovasnecessidadessociais.Oescopo,primeiramente,alcanarumarelativaautonomiadoobjecto,limitandoaactividadedohermeneuta, depois, como as condies de possibilidade do conhecimento sosubjectivas,ohermeneutadeveactualizareadequarosentidodanormajurdica.

21AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.64.

31

Acompreensocomoprojecto

Martin Heidegger (18891976), relegando a via metodolgica ou epistemolgica dahermenutica,foiumdosprimeirosfilsofosaestabelecerumarelaodirectaentreosujeito que compreende e o mundo que o circunda (abandonando a suposio daneutralidade do sujeito), ao defender que a compreenso uma questo deautoconhecimentodosernomundo:atarefadahermenutica,ento,aexplicitaoda constituio desse sera (Dasein). "A filosofia a ontologia universal efenomenolgica queparte da hermenuticado sera, a qual, enquanto analtica daexistncia, amarra o fio de todo o questionamento filosfico a onde todo oquestionamentobrotaeretorna"22.EmSereTempo(1927),Heideggeraprofundouanoo de hermenutica da facticidade, isto , da existncia humana fctica,constatvel, que se inscreve no tempo, isto , na historicidade, onde o tempo horizontedacompreenso,ligandoestaesferadaexistnciahumana.Heidegger inicia assimo 32: "Enquanto compreender, o sera projecta o seu sersobrepossibilidades.Estesersobrepossibilidades,constitutivodacompreenso,elemesmo, pela repercussodas possibilidades enquanto abertas ao sera, um poderser. O projectar do compreender tem a possibilidade peculiar de desenvolverse"23.DaqueBrazTeixeirarelevecomo,paraHeidegger,"acompreensopossuaaestruturaexistencialdeprojecto,vindoaquelaaconsistirnomododeserdoexistenteemqueesteassuaspossibilidadesenquantopossibilidades"24.Naverdade,iniciase,comoautor de Ser eTempo, uma viso ontolgica da hermenutica, em que o sentido daexistncia e do ser valorizado, devendo o homem (sera) ser visto na suatemporalidadeehistoricidade,eoseumododeexistirdeterminadopelalinguagem.A linguagem tornase, pois, a casa do ser, a clareira do ser, que d acesso aossignificados.Setaisexpressessometforasmuitoprprias,elasenfatizamquealinguagemquemanifesta o sera, j que,mediante ela, sedesvela o sentidodo ser:este,enquantoverdadeoriginriaeoculta,queserevelapelareflexo filosfica, temna linguagem o meio mediante o qual o ser, clareandose, vem fala. Ora, foiHeidegger quem apreendeu o compreender em si como destino constitutivo do ser 22MartinHEIDEGGER,SeinundZeit(1927),FrankfurtamMain,VittorioKlostermann,1977,7,S.51.Traduoespanhola:ID.,ElSeryelTiempo(1927),trad.JosGaos,Paris,Authentica,1951,7,p.49.Doravante,SZ/ST.23ID.,SZ,S.197;ST,p.166.24AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.68.

32

humano.Dimensoprodutivadacrompreenso

Ora, estes rasgos remetemnos para a hermenutica gadameriana, patente noneologismo histria efectual (Wirkungsgeschichte), pois, vinculado ao tema dafacticidade, HansGeorg Gadamer (19002003) o filsofo de todo o sculo XX desenvolveuanoodefusodehorizontes(Horizontverschmelzung),segundoaqualointrprete,noseuencontrocomatradio,marcadopelatemporalidade,aomesmotempoqueinstauraumhorizontemaisamplo.Asconcepesdeprcompreensoecircularidade hermenutica, s quais tambm se referiu Heidegger, foramdesenvolvidas por Gadamer, tendoas completado com as de preconceito,autoridade e tradio, presentes na actividade hermenutica do intrprete emrelao obra original do autor, no somente valorizando a ideia de horizontehermenutico, mas mostrando como o processo hermenutico um processolingustico.ParaGadamer,"preconceito(Vorurteil)nosignifica,demodoalgum,falsojuzo:"aocontrrio, o conceito implica que ele possa receber uma apreciao positiva ounegativa"25. Inseridos como estamos na histria, no podemos conceber que noscompreendemos a ns mesmos e aos outros fora dum mundo, abstrados dumarealidade,desencarnadosepartedumasituao:daqueaideiadepreconceitosejatoessencialemGadamer,queatafirma:"ospreconceitosdoindivduo,muitomaisqueseusjuzos,constituemarealidadehistricadoseuser"26.Como o nosso ilustre Homenageado enfatiza, segundo Gadamer, "o processohermenuticoumprocessounitrio,queenglobaacompreenso,ainterpretaoeaaplicao. Assim, a interpretao no um acto complementar e posterior compreenso, pois compreender sempre interpretar, o que significa que ainterpretao mais no do que a forma especfica de compreenso (...). Por outrolado,nacompreenso,temsemprelugaralgocomoumaaplicaosituaoactualdointrprete(...)",sendo"esteltimomomentodoprocessohermenuticotoessencialcomo os outros dois"27. Compreenso, interpretao e aplicao eis omovimentohermenutico que nele inscreve a histria, a tradio, a diferenciao e a fuso de 25HansGeorgGADAMER,WM,p.276;VM,p.291.26ID.,WM,p.281;VM,p.298.27AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.73.

33

horizontes.Na verdade, Gadamerparte da estreita unidade entre compreenso e interpretao;contudo, d um passo mais, integrando neste processo unitrio o momento daaplicao:esta(subtilitasapplicandi)toessencialcomoomomentodacompreenso(subtilitas intelligendi) ou o da interpretao (subtilitas explicandi)28, decorrendo oalcance universal da hermenutica da funo integral que a linguagem exerce nacompreenso.Enota: " significativoqueos trs recebamonomede subtilitas: issoindica que os concebemosmenos comomtodos, de que dispomos, que como umaaptidoqueexigeumaparticularfinuradeesprito"29.Partindo de Schleiermacher e de Heidegger, Gadamer reconstri a ideia do crculohermenutico, a necessidade de uma prcompreenso do conjunto para ainterpretaodaspartes,eviceversa.Comoescreve,"ocrculodacompreensonodemodo nenhum um crculo metodolgico: ao invs, ele representa um elementoestruturalontolgicodacompreenso"30.Finitossoohomemealinguagemhumana;infinitos so, porm, os sentidos susceptveis de interpretao: tal infinitudedesenvolvese atravs do que no est dito claramente; quer dizer: no caminho dacompreenso,temlugarummovimentoespeculativoquesefundanumadialctica;diferentementedadialcticaplatnicaoudahegeliana,Gadamerpraticaadialcticadaperguntaedaresposta31.Comefeito,nohmundosemlinguagem:esta,desdeoprincpio,humana.nestesentidoqueGadamerafirmaque"alinguagemnosomenteumdosdotescomqueestapetrechadoohomemtalcomoestnomundo,masnelarepousaeserepresentaofactodequeoshomenssimplesmentetmummundo"32.Alinguagem,pois,omeiopelo qual se transmite a realidade domundo: no s a linguagem essencialmentehumana,comoohomemumseressencialmentelingustico.Gadamerfezruirolugarda linguagem, colocada por Hegel, como meio centro da conscincia , entreesprito subjectivo alma, conscincia e razo e esprito objectivo direito,moralidade e eticidade. Agora, a linguagem aparece como amediao entre o finito(homem)eoinfinito(sentido),e,comela,otrabalhohermenutico.Na actuao dos juristas, seguindo a hermenutica de Gadamer, ela ser mais 28HansGeorgGADAMER,WM,p.312;VM,p.329.29 ID.,WM,p.312;VM,p.329.Cf.AcliodaSilvaEstanqueiroROCHA, Aquestodauniversidadedahermenutica,op.cit.,pp.5557.30ID.,WM,p.299;VM,p.315.31Cf.ID.,WM,p.240;VM,p.244.32ID.,WM,p.446;VM,p.467.

34

autnoma: na interpretao, e na aplicao (mormente no caso do direito), impossvelareproduo:"enquantoa imagemdoqueumartesosepropefabricarest inteiramentedeterminada,epelousoaquesedestina",ao invs, "oque justonopodeserplenamentedeterminadocom independnciadasituaoquemepedejustia"33.Umanormaadquiretodooseusentidoaquandodaaplicao,poissentoasuavalidadepodeseraferida." claro que aqui afirma Gadamer que se pe o problema da hermenuticajurdica.Aleisempredeficiente,noqueelaosejaporsimesma,masporque,anteoordenamento a que se referem as leis, a realidade humana necessariamentedeficiente e, consequentemente, no permite, sem problema, uma aplicao dasmesmas"34.Ojuristadevelevaremcontaoaspectohistricoaointerpretaralei,paradeterminaroseucontedonormativoeaplicloaocasoaquesededica.Obviamente, a letra da lei no abrange todos os casos porventura envolvidos: "Osentidodeumtextosuperaoseuautor,noocasionalmente,massempre.Por issoacompreenso uma atitude no unicamente reprodutiva, mas tambm e sempreprodutiva"35.Econtinua:"Talveznosejaexactofalarde compreendermelhorparadesignar esse elemento produtivo da compreenso. (...) Basta dizer que, quandocompreendemos,compreendemosdeoutromodo"36.Isto:peranteumcasoconcreto,ojuristatemumpapelcriativo(termaisliberdadeparaadaptaodostextosjurdicos)eprodutivo(poderproduziralgodenovoenoumareiteraodanorma).Braz Teixeira clarifica como Gadamer j estabelecia, no seu incio, "o estreitoparentesco que ligava a hermenutica filosfica jurdica", precisamente "noreconhecimentodaaplicaocomomomentointegrantedetodaacompreenso",pois"na hermenutica jurdica, constitutiva a tenso existente entre o texto da lei e osentidoquealcanaasuaaplicaonomomentoconcretodainterpretaojudicial"37.SeverdadequeahermenuticafilosficadeGadamer,partindodumacrticaquerdopositivismo quer da crena inabalvel no mtodo cientfico, revolucionou o campotericodainterpretao,tambmverdadeque,nocampodainterpretaojurdica,mormentenaaplicaonormativa, oparadigmapositivista continuaainda,demodoimplcito ou explcito. Ainda hoje, o jurista atende simplesmente aomtodo que d 33ID.,WM,p.322323;VM,p.339.34ID.,WM,p.324;VM,p.340341.35ID.,WM,p.301;VM,p.318.36ID.,WM,p.301302;VM,p.318.37AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.73.

35

segurana jurdica, na busca do sentido supostamente verdadeiro do textonormativo, numa ptica meramente reprodutora de sentidos supostamente prexistentes, evitando qualquer interveno construtiva na elaborao de significadosjurdicos.Anormalegalexpressase,pois,comainterpretaoque,medianteaaplicao,lheconferida: o seu sentido no est esgotado no acto da sua promulgao, mas actualizado pela energia que continuamente a revigora qual modo compreensivoinfindo.OcorremeoapelodeGoethe:Interpretaicomfrescuraevivacidade/senotirarmosoulibertarmososentidodaletra,/algoanosficaroculto.Explicarmaisparacompreendermelhor

Tambm Paul Ricoeur (19132005) est presente nesta odisseia hermenutica, quevemampliarombitoantropolgicoeculturalqueascinciashumanasvmpropiciar. partindo de uma crtica ao cogito como apreenso imediata de si, isto , sem amediao da interpretao, que o filsofo francs acolhe o desafio semiolgicocolocado pelas cincias humanas,mormente o desafio que a psicanlise (com o seuconceito de inconsciente pulsional) e o estruturalismo (com o seu conceito deinconsciente estrutural) impuseram s filosofias da conscincia, ou, maisespecificamente, fenomenologia. Amplifica assim a hermenutica: s com umareflexo aturada sobre a linguagem psicanaltica, estruturalista, analtica, etc. sepassadeumaontologia imediata (via curta)paraumaontologiadepercurso (vialonga),exigindo,portanto,umtrnsitodemoradopelasdisciplinasqueestudamtaissignosesmbolos,ouseja,pelascinciashumanas.SeRicoeurcriticaaviacurtaadoptadaporHeideggeremSereTempo,queformulavauma ontologia da compreenso, relegando a discusso sobre os mtodos queenquadrama compreenso, queRicoeur entendeque smedianteumdesviodacompreenso da linguagem, atendose aos signos e smbolos quemais amplamentecompem a cultura, que o sujeito pode compreender o seu prprio estatutoontolgico: portanto, a reflexo, na perspectiva hermenutica, no mais oconhecimento imediatode si maneiradocogito cartesiano, pois "a reflexoumaintuiocegasenomediatizadaporaquiloaqueDiltheychamavaasexpressesnasquaisavidaseobjectiva"38. 38PaulRICUR,OConflitodasInterpretaes:ensaiosdehermenutica (1969),trad.M.F.SCorreia,Porto,Rs,s.d.,p.19.

36

SeRicoeurcontestavaGadamer(queadmiravaeintroduziuemFrana),que,decertomodo,deucontinuidadeviacurtadeHeidegger,prosseguindonumaoposioentreverdadeemtodo,ou,naterminologiadeDilthey,entrecompreensoeexplicao,parao hermeneuta francs, no confronto do conceito heideggeriano de verdade com oconceitodiltheyanodemtodo,"aquestoestemsaber,ento,atquepontoaobra[deGadamer]merecechamarse:VerdadeEMtodo,esenodeveria,antes,intitularse: Verdade OU Mtodo"39. Assim, Ricoeur busca uma hermenutica filosfica queenfrente os desafios das cincias humanas, no podendo fechar os olhos ao grandeavano dessas cincias, devendo antes cruzar os desafios do estruturalismo, dasemiticaedasemntica.DaqueBrazTeixeirasublinheque"adistinoentreexplicaoecompreenso teriade ser entendida em novos termos, pois a primeira daquelas noes deixaria deapresentarsecomoespecficadascinciasdanatureza, jqueoseunexopassariaasercomalinguageme,poroutro,vinhaestabelecerumaestritacomplementaridadeereciprocidade" entre essas noes. Deste modo, "a procura de umacomplementaridade entre estas duas atitudes [explicar e compreender] que ahermenutica de origem romntica [Dilthey e Schleiermacher] tende a dissociar,exprimir, assim, no plano epistemolgico, a reorientao da hermenutica exigidapelanoodetexto"40.Dalgummodo,avialongaricoeurianaseexpressarmelhorporestaproposio:explicarmaisparacompreendermelhor.H, pois, segundo Ricoeur, uma relao dialctica entre compreenso e explicao:"enquanto fases dum nico processo, proponho descrever esta dialctica, primeiro,como um movimento da compreenso para a explicao e, em seguida, como ummovimentodaexplicaoparaacompreenso.Daprimeiravez,acompreensoserumacaptaoingnuadosentidodotextoenquantotodo.Dasegunda,serummodosofisticado de compreenso apoiada em procedimentos explicativos. No princpio, acompreenso uma conjectura. No fim, satisfaz o conceito de apropriao [...]. Aexplicaosurgir,pois,comoamediaoentredoisestdiosdacompreenso.Seseisolar deste processo concreto, apenas uma simples abstraco, um artefacto da

39ID.,DoTextoAco:ensaiosdehermenuticaII(1986),trad.AlcinoCartazoeMariaJosSarabando,Porto,Rs,s.d.,p.103.40Ib.,p.83.Cf.AclioSilvaEstanqueiroRocha,Identidade,alteridadeehermenutica:aexemplaridadedo europesmo de Ricoeur, in Fernanda Henriques (coord.), A Filosofia de Paul Ricoeur: temas epercursos.Coimbra:AriadneEditora,2006,pp.5374.

37

metodologia"41.Ento,ainterpretaodeumtextoresultanacompreensodoprpriointrpretesobresimesmo,oqueexige,inclusive,aanliseconceptualdaapropriao.ComosalientaBrazTeixeira,"aapropriao,quepelainterpretaoserealiza,noaintenodoautor,queseencontrasupostamenteocultapordetrsdotexto,nemadasituaohistricacomumaoautoreaosseusleitoresoriginais,nem,topouco,adaautocompreensoquedesitinhamcomofenmenoshistricoseculturais,massimdosentido do prprio texto, entendido, dinamicamente, como desvelamento de ummundo, que constitui a referncia do mesmo texto"42. Isto estar "o mais longepossveldoidealromnticodecoincidircomapsiquealheia",poisaapropriaodeixadesurgir"comoumaespciedeposse, comoummododeagarrarascoisas; implicaantesummomentodedespojamentodoegoegostaenarcisista",emque"otexto,comoseupoderuniversaldedesvelamentodeummundo,forneceumSimesmoaoego"43.PorissoBrazTeixeiraconcluiesteapartadoreportandoseao"carcterproblemticode toda a subsuno que singulariza o raciocnio jurdico no campo mais vasto doraciocnioprtico",pois"dadialcticaentreambas[argumentaoe interpretao]que decorre a unidade complexa que caracteriza o que Ricoeur denomina aepistemologiadodebate judicial"44.Comefeito, inegvelqueo juiznosecontentaem argumentar, mas interpreta igualmente. Para justificar as premissas da suadeciso,quandosereferedogmticajurdica,vontadedolegislador,aoprecedente,ele deve interpretar, apreendendo o sentido da teoria do direito que funda a suadeciso;deveponderaraintenodolegislador,quenuncaunvoca45;arefernciaao"precedente remete para a similaridade, que no nem dada nem inventada, masconstruda;novocabulriodeDworkin,tratasedeumainterpretaoconstrutiva(...)pondo prova, pela imaginao, a hiptese da semelhana ou da diferena" (Ib., p.167).Assim,paraPaulRicur,aaplicaopelojuiz,deumcasoaumaregra,porumlado,edeumaregraaumcaso,poroutro,portantoumprocessocomplexocomoobjectivode produzir sentido "por ummisto de argumentao e de interpretao, o primeirotermodesignandooladolgicodoprocesso,deduoeinduo,osegundovocbulo

41ID.,TeoriadaInterpretao:odiscursoeoexcessodesignificao (1976),trad.ArturMoro,Porto,PortoEditora,1995,p.120.42AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.81.43Cf.PaulRICUR,TeoriadaInterpretao:odiscursoeoexcessodesignificao,p.138.44AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.82.45Cf.PaulRICUR,LeJuste1,Paris,ditionsEsprit,1995,p.166.

38

enfatizando a inventividade, a originalidade, a criatividade"46, que, para o autor dOJusto,spodeserotrabalhodeumjuizimbudodavirtudedaprudncia.Hermenuticaeacrticadasideologias

Por fim, o ltimo estdio do percurso da hermenutica filosfica, a denominadahermenuticacrticadeKarlOttoApel(19222017)edeJrgenHabermas(n.1929),ambos representantes da Escola de Frankfurt e que reconhecem a linguagem comoinstnciamediadoradoconhecimento.SegundoApeleHabermas,Gadamertemrazonacrticaquefazdesvalorizaodacompreenso praticada pelo positivismo e na importncia que atribuem compreenso intersubjectiva que qualquer cincia objectiva pressupe; contudo, afuso de horizontes sugere a inexistncia de qualquer afastamento entre o nossopontode vista e odoobjecto: compreender seriaumprocessoparaobter o acordo,esquecendo a instncia da crtica ao texto ou ao objecto em questo. Habermas,embora reconhecendo o alcance da hermenutica, teme que a sua autosuficinciaontolgica(heranaheideggeriana)aafastedodebatecomasquestesdomtododascincias.Habermasestemconsonnciacomoescopoprimordialdahermenutica:"paramim,o grande mrito de Gadamer consiste em ter demonstrado que a compreensohermenutica est referida, de forma necessariamente transcendental, articulaodumaautocompreensoqueorientaaaco"47.Noentanto,noaceitaapretensodeuniversalidade da hermenutica: "a conscincia hermenutica estar sempreincompletaenquantonoassumiremsi a reflexo sobreos limitesda compreensohermenutica"48. Se, para Habermas, ao contrrio de Gadamer, a universalidade dahermenuticaumapretensonofundada,porqueoseu interesseespecficonoesgotaatotalidadedosinteressesqueguiamoconhecimentohumano. para o mtodo da psicanlise e a crtica das ideologias que Habermas se volve,concluindoquenoahermenuticamasacrticadasideologiasqueapresentauma

46PaulRICUR,LeJuste2,Paris,ditionsEsprit,2001,p.251.47JrgenHABERMAS,ZurLogikderSozialwissenschaften,Frankfurt,Suhrkamp,1982,p.295.Traduoespanhola:LalgicadelasCienciasSociales,tr.deM.JimnezRedondo,Madrid,EditorialTecnos,1988,p.247.Doravante:LSW,p.295;LCS,p.247. 48 ID., "Der Universalittsanspruch der Hermeneutik (1970)", LSW (p. 331366) p. 343. Trad.: "Lapretensindeuniversalidaddelahermenutica(1970)",LCS(pp.277306),p.286.

39

maior aspirao universalista49. Nesse processo de compreenso, os sujeitosparticipam na aco, coordenando e trocando informaes: cada um apresenta, aooutro,exignciasdevaloracercadaverdade: "Somenteaverdadedasproposies,arectidodasnormasmoraisea inteligibilidadeoucorrectaformaodasexpressessimblicas so, pelo seu prprio sentido, pretenses universais de validade,susceptveis de serem postas prova nos discursos. (). Somente falarei, pois, dediscursos quando o sentido da pretenso de validade que se tornou problemticaforceconceptualmenteosparticipantesasuporque,emprincpio,poderiaalcanarseum acordo racionalmente motivado, significando aqui em princpio a seguintereservaidealizante:seaargumentaopuderserconduzidademodosuficientementeabertaeseforprosseguidaduranteotemposuficiente"50.Apel considera a compreenso uma prestrutura transcendentalhermenutica, demaneira talquehumapriori relativoaumacordo intersubjectivoderivadodeumconsenso,oqueseriao fundamentoltimoda filosofia;dadaa sua ndoledialctica,esse consenso pressupe a crtica ideolgica em relao ao agir humano e oconsequente progresso nas relaes intersubjectivas. Habermas, no obstante asconcepesprximascomApel,distanciasedesteltimoaonopartilhara ideiadetranscendnciaedaconsequenteremissoparauma justificaoltimadoprincpiodauniversalizao.No campo jurdico, o debate HabermasGadamer evidencia a vinculao existenteentreaintenoreprodutoradostextoslegaiseamanutenodaordemsocialatravsde domnio; todavia, reconhecer, como o fez Gadamer, a funo da tradio comopreconceito, tambmumpasso para a autocrtica, pois, o confronto que o acto dequestionarpressupepodeserjumacrticatradio.Braz Teixeira salienta que, para Habermas, "o contexto em que a actividade socialpode ser compreendida constitudo no s pela linguagem, mas tambm pelotrabalho epelopoder, bemcomoquea linguagemse revestede carcter ideolgico.Destemodo,ecomoApeltambmsustentara,acrticadasideologiasnecessriaparatornarpatenteocontextodavidasocialemtodososseusmomentos"51. 49AcliodaSilvaEstanqueiroROCHA,Aquestodauniversalidadedahermenutica,op.cit.,pp.5386.50 JrgenHABERMAS,TheoriedeskommunikativeHandels, I,Frankfurt,Suhrkamp,1981,p.71.Trad.:TeoradelaAccinComunicativa,t.I,Madrid,Taurus,1987,p.69.Cf.AcliodaSilvaEstanqueiroRocha,Democracia deliberativa, in Joo Rosas (coord.), Manual de Filosofia Poltica. Coimbra: LivrariaAlmedina(2008),2ed.,2013,cap.VI,pp.137182.51AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,p.89.

40

J a hermenutica gadameriana postulava a impossibilidade de identificao dosentidooriginriodaleie,portanto,dasuamerareproduonocasoconcreto,dadaavinculao entre compreenso, interpretao e aplicao: esta ser sempre peranteum caso concreto, mediante a fuso de horizontes; assim, as decises judiciaismanifestamumaactividadeprodutiva,contraasdisposiespositivistasqueexigiamao juiz uma actividade meramente reprodutora queMontesquieu j caricaturava,referindoseaojuizcomolabouchedelaloi"abocaquepronunciaaspalavrasdalei, seres inanimados que no podemmoderar nem a sua fora nem o seu rigor"52.Jamais a aplicao de uma norma vai no sentido de encontrar a justificao domomentoemqueocdigofoiescrito(avontadedaleiouavontadedolegislador),mas deve resultar de um balanceamento com os factos e os valores vigentes nopresente.No campo da interpretao jurdica, em que o discurso dominante a dogmticajurdica, a hermenutica filosfica passa a oferecer contribuies assaz importantes,comooreconhecimentoda incompletudedautilizaodemtodos interpretativos,aactuao criativa do intrprete, a vinculao entre os momentos de compreensointerpretaoaplicao, a negao da neutralidade do intrprete, e a inerentevinculaoentreaaplicaodaleiearealidadeenvolvente.RicoeursugerenosqueestedebateentreHabermaseGadamer fazressurgirumconflitomaisantigo:"deumlado,aAufklrungeasualutacontraospreconceitos,dooutro,oromantismoeasuanostalgiadopassado.Oproblemaconsisteemsaberseoconflito moderno entre a crtica das ideologias, segundo a escola de Frankfurt, e ahermenutica, segundo Gadamer, marca algum progresso relativamente a estedebate"53.Evidentemente,Ricoeurnosugerequeexistaperfeitasincroniaentretaisoposies,mastratase,emlinhasgerais,deumproblemafulcraldanossatradiodepensamento.VemosaquioenunciadodopontocentraldedivergnciaentreGadamereHabermas,associadoideiadepreconceito,interpretadoporaqueleenquantoinsupervele,porHabermas,comoenganoeirracionalidade.NaperspectivadeGadamer,estarinseridonahistriapressupequeosujeitosolicitadoporpreconceitos,quepodealterarnoprocessodaexperincia,masquenopodeerradicarcompletamente;atradio,que 52MONTESQUIEU,LEspritdesLois(1748),ed.deRobertDerath,Paris,EditionsGarnierFrres,1973,t.I;LivreXI,ch.VI,p.176.53 Paul RICOEUR, Hermenutica e crtica das ideologias (1973), Do Texto Aco: ensaios dehermenuticaII(1986),pp.333334.

41

assentaempreconceitosqueserevogamesesucedem,evidenciaque,ao inquirirseracionalmente o preconceito, este j no propriamente um preconceito. Por essaimpossibilidadede eliminaodopreconceito, a perspectiva hermenutica difere dadefendidapelocontemporneoiluminismohabermasiano.Ricoeuradvertequepensarosdoiscampostericoscomoexterioresumaooutro,detal modo que a hermenutica no contivesse uma instncia crtica e a crtica dasideologiaspudessepassarsedeumenraizamentohermenutico, correspondeanoanalisarsuficientementeaquesto:"Omeupropsitonofundirahermenuticadastradieseacrticadasideologiasnumsupersistemaqueasenglobaria.Disse,desdeoincio,quecadaumafaladeumlugardiferente.E,defacto,assim.Maspodepedirsea cada uma que reconhea a outra, no como uma posio estranha e puramenteadversa,mascomoerguendo,suamaneira,umareivindicaolegtima"54.OexercciohermenuticopraticadoporRicoeurengloba jomomentocrtico,peloscontributos das hermenuticas da suspeita (Freud,Marx e Nietzsche), segundo asquais a conscincia passa a ser considerada como conscincia falsa, postulada pelacrtica ideia cartesiana que o sentido e a conscincia do sentido coincidem:doravante, "procurar o sentido no significamais soletrar a conscincia do sentido,masdecifrarassuasexpresses"55.Comosmestresdasuspeita,advidairrompeusobre os poderes da conscincia: no cogito cartesiano, penso, logo existo, a autoapreenso imediatadosujeito foipostaemquestopeladescobertado inconscienteemFreud,dosersocialemMarxedavontadedepoderemNietzsche.ParaHabermas,ointeresseemancipatrioqueorganizaocampodaexperinciaaquerespondem as cincias sociais crticas no se articula com a hermenutica, sendo apsicanlise que lhe pode servir de paradigma modelar; ora, segundo Habermas, ahermenutica no pode dar conta deste tipo de interesse. Ricoeur discute asimilaridade entre a psicanlise e a crtica das ideologias: "Para mim, a diferenafundamental no haver nada na crtica das ideologias comparvel relaopsicanalticaentreanalistaepaciente"56.Nestasequncia,humagrandediscordnciadapartedeRicoeur,emfunodomodocomoconcebeaproblemticahermenuticaeo empenhamento de emancipao; dilo, parafraseando Kant: "A hermenutica sem 54ID.,Hermenuticaecrticadasideologias,DoTextoAco:ensaiosdehermenuticaII,op.cit.,p.357.55ID.,Del'Interprtation:essaisurFreud(1965),Paris,EditionsduSeuil,p.40ss.56PaulRICOEUR,Habermas,inMrioVALDEZ(ed),Reflection&Imagination,HarvesterWheatsheaf,1991(pp.159181),p.175.

42

umprocessode libertaocega,masumprojectodeemancipaosemexperinciahistricavazio"(Ib.,p.164).OqueRicoeurnopodeaceitaraquiloquenapropostahabermasiana aponta para um poder absoluto da razo, ao indicar que as cinciassociaiscrticassoumaseparaosuperadoradascinciashistricohermenuticas.Braz Teixeira enfatiza: "Dado que a comunicao sistematicamente perturbada oudistorcidaumaspectodasociedadeemqueoshomensvivemnaalienao,quetemasua origem na dominao de homens sobre homens, a crtica das ideologiasencontraria na comunicao livre de dominao a sua ideia regulativa, o quesignificaria, ento, que uma vez alcanada ou conseguida uma comunicaoplenamentelivre,ahermenuticaviriaacoincidircomacrticadasideologias"57.Eplogo

Nestes seus livros, de grande flego reflexivo, o direito inquirido pelo nossoHomenageadocomocriaocultural,pois"noumdado,umarealidadepreexistentequeo homemencontrenomundoounanatureza, nemuma realidade esttica,massim esprito objectivado, projeco espiritual do homem, algo que est a para serpensado,conhecidoevividoecujaexistnciadepende,porisso,darelaocognitivaevivencialqueohomemcomeleestabeleceemantm,aquallhedvidaecontedoeactualiza,dinmicaecriadoramente,osentidoqueneleestlatenteelheconferidopelarefernciaavalores,princpiosou ideais"58.Porser inacabado,perfectvel,BrazTeixeira no dilucida o direito, como ordem normativa, numa perspectiva somentelgicoformal, mas, criticando a viso do positivismo jurdico, como algo a sercompreendido,interpretadoeaplicado.Em suma, diria que a justia hermenutica. Para Braz Teixeira, releva o espritoenquanto instncia de compreenso e interpretao da justia: esta vidahermenuticadequepropulsoraafaculdadedejulgar,dondearelevnciadafunodojuizedajurisprudncia.Assim,"porqueinsubstancialeconcreta,a Justianosusceptveldeserobjectivadaouaprisionadaouexpressaemfrmulasouregras,deserlimitadaoudelimitadaporqualquerdefinio".Porisso,"aJustianoexisteemsi,no tem ser, umameta, umobjectivonuncaplenamente realizadoou alcanado, uma inteno ou uma intencionalidade, a luta permanente, infindvel e semprerecomeadapelasuaprpriarealizao"(Ib.,p.314). 57AntnioBrazTEIXEIRA,BreveTratadodaRazoJurdica,pp.8990.58ID.,SentidoeValordoDireito,p.150.

43

Emtodasasconsideraesanteriores,emcujaanliseavultaopoderdeconcisoeorigor conceptual donossoHomenageado, est presente, implcita ou explicitamente,esta sua tese, que desenvolve com fulgor raciocinativo: "a interpretao ou acompreenso do sentido das realidades culturais ou normativas apresentase comoimpostergvelelementoconstitutivodosobjectosculturais,emqueoDireitoseinclui,osquaistm,porisso,umaessencialdimensohermenutica"59.

59ID.,BreveTratadodaRazoJurdica,p.140.

44

ARAZOATLNTICACOMOCONCEITODERAZODEUMA

FILOSOFIAATLNTICA

AfonsoRocha

UniversidadeCatlicaPortuguesa/FaculdadedeTeologiaRuaDiogodeBotelho,1327,4169005PortoPortugal

(351)226196200|[email protected]

Resumo:Nestenossotexto,dissertaremossobrearazoatlnticanopensamentodeAntnioBrazTeixeira.

Palavraschave:razo,razoatlntica,AntnioBrazTeixeira

Abstract:Inthistext,wewilltalkaboutthe"Atlanticreason"inthethoughtofAntnioBrazTeixeira.

Keywords:reason,Atlanticreason,AntnioBrazTeixeira

45

paramimmotivo de grande satisfao participar no Congresso Internacional AntnioBrazTeixeira:Aobraeopensamento, organizadopelaUniversidadedoPorto(FLUP)epelaUniversidadeCatlicaPortuguesa(CRP)emparceriacomoutrasUniversidadeseInstitutosSuperiores,aocorreremPortugaleBrasil.Assim, sem renunciar ao rigor cientfico que se lhe impe, a presente Comunicaotambm constituir a minha homenagem pessoal grande figura que ABT foi nocampodopensamentoedaculturanacionais.Personagem plurifacetada, ABT destacouse no desempenho de cargos estataisdiversificados, cargosque foramdagovernaodirecode instituiesdembitoculturaleempresarial,dasfinanaspblicasreformafiscal.Mas, a nosso ver, ABT ficar para os portugueses sobretudo como mestre que fezdiscpulos, como homem da cultura nacional, afirmandoa e divulgandoa, e comopensadorefilsofo,muitodesignadamentenosdomniosdafilosofialusobrasileiraedafilosofiadodireito.Entretanto,paraalmdolegadomencionado,imporserelevarocarcterinovadorecorajosodequeaobradeABTexpresso,querpeloquerespeitainterpretaodopensamentode alguns autores,mormentedeTefiloBraga, de SampaioBruno edeAntnio Srgio, quer pelo que respeita concepo do conceito de razo comorazo atlntica, criando condies por via de tal conceito no s para afirmar aexistnciadeumafilosofia lusobrasileiraemesmodeumafilosofiaatlntica,mastambmparanoslegarumaobradotadadeunidadeecoernciafilosfica.Finalmente, a nvel introdutrio, faltar dizer duas coisas: primeira, que me foisugeridoquemeocupassenesteColquiodo conceitode razoatlnticanaobrafilosficadeABT;segunda,quefoiemboahoraqueaceiteiasugesto,porque,atravsde tal temtica,me ter sidodado reflectir sobreo cernedopensamento e obradeABT. faltade tempo comqueapresenteComunicao sedeparavaparapoder adoptarumametodologiamaisadequadaaoobjectoqueseprope,qualodejustificarquepor excelncia no conceito de razo como razo atlntica que radica, quer aunidadeeacoernciadopensamentoeobradeABT,querarazodesepoderafirmarnosaexistnciadeumafilosofialusobrasileira,masmesmoadeumafilosofiaatlntica, optouse por restringir a abordagem da questo aos pressupostos, aosprincpioseaosparmetrosqueABTporexcelncia faz suporno seuentendimentoacercadoconceitoderazoederazofilosfica.

46

Assim, a nvel dos pressupostos sob que ABT equaciona o conceito de razo e derazofilosfica,tornarsepossvelconstatarque,paraonossoautor,

Amatrizdequalquerfilsofoencontrasenoconceitoderazodequeparteasuareflexo,desortequeaprimeiraemaisessencialdiferenaentreosvriosfilsofose as diversas filosofias radica no conceito de razo de que partem ou em que sefundam; O conceito de razo adoptado em Portugal foi enriquecido na experincia dovastomundodescobertoeunificadopelosportugueses,tornandose