Andando Pelo Vale Da Sombra Da Morte

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Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 29, n. 2, jul.-dez., p. 58-73, 2007. 58 Andando pelo vale da sombra da morte... ANDANDO PELO VALE DA SOMBRA DA MORTE: A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE JOCA, PRIMEIRO PREFEITO DE BELFORD ROXO LINDERVAL AUGUSTO MONTEIRO 1 1- Doutor em história social pela UFRJ, bolsista pós-doutor da Faperj (UFRRJ, Seropédica) Algumas trajetórias individuais caracterizam-se por encarnarem de forma muito clara uma determinada cultura política. Parece ser esse o caso do personagem principal desse artigo. Tendo vivido quase toda a vida na região da Baixada Fluminense, Joca poderia ter sua curta, instável e inquieta vida marcada RESUMO: MONTEIRO, L. A. Andando pelo vale da sombra da morte: a trajetória política de Joca, primeiro prefeito de Belford Roxo. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 29, n 2, p. 58-73, jul.-dez., 2007. Este trabalho pretende analisar, a partir da trajetória política do primeiro prefeito de Belford Roxo, a estrutura e o funcionamento do campo político da região da Baixada Fluminense entre os anos 1980 e 1995, momento em que se consolidava o modelo político caracterizador dessa região periférica do Rio de Janeiro. O primeiro prefeito belford- roxense foi escolhido como personagem-modelo pelo fato de ter sido aquele que levou para o executivo a maneira própria da população dessa região resolver seus problemas, sendo, por isso, um líder popular extremamente próximo da população responsável pela sua mitificação mesmo antes de sua violenta morte ocorrida em junho de 1995. Palavras-chave: cidadania, ausência estatal, marginalização popular, violência urbana ABSTRACT: MONTEIRO, L. A. Andando pelo vale da sombra da morte: a trajetória política de Joca, primeiro prefeito de Belford Roxo. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 29, n 2, p. 58-73, jul.-dez., 2007. This piece of work aims at analyzing, from the political career of the first Belford Roxo mayor, the structure and the way of functioning of Baixada Fluminense´s political field, concerning the years between 1980 and 1995, a time when the political model, which would characterize this periferical area in Rio de Janeiro, was establishing itself. The first Belford Roxo mayor was chosen as a model-character because he had been the first politician that had solved problems respecting the way people from Belford Roxo used to do it. Therefore, he was the first political leader who ruled really close the people and these people made him a political myth, even his violent death in June 1995. Key words: citizenship, state absence, popular marginalization, urban violence por uma sucessão de tragédias rotineiras que chamariam a atenção de seus semelhantes somente por alguns instantes para logo após diluir-se no cotidiano de um bairro periférico da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Entretanto, sem possuir características que de fato o diferenciassem de seus vizinhos, o primeiro prefeito de Belford Roxo

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58 Andando pelo vale da sombra da morte...

ANDANDO PELO VALE DA SOMBRA DA MORTE:A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE JOCA, PRIMEIRO

PREFEITO DE BELFORD ROXO

LINDERVAL AUGUSTO MONTEIRO1

1- Doutor em história social pela UFRJ, bolsista pós-doutor da Faperj (UFRRJ, Seropédica)

Algumas trajetórias individuaiscaracterizam-se por encarnarem de formamuito clara uma determinada cultura política.Parece ser esse o caso do personagem principaldesse artigo.

Tendo vivido quase toda a vida naregião da Baixada Fluminense, Joca poderiater sua curta, instável e inquieta vida marcada

RESUMO: MONTEIRO, L. A. Andando pelo vale da sombra da morte: a trajetória política de Joca,primeiro prefeito de Belford Roxo. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR,v. 29, n 2, p. 58-73, jul.-dez., 2007. Este trabalho pretende analisar, a partir da trajetória política doprimeiro prefeito de Belford Roxo, a estrutura e o funcionamento do campo político da região daBaixada Fluminense entre os anos 1980 e 1995, momento em que se consolidava o modelopolítico caracterizador dessa região periférica do Rio de Janeiro. O primeiro prefeito belford-roxense foi escolhido como personagem-modelo pelo fato de ter sido aquele que levou para oexecutivo a maneira própria da população dessa região resolver seus problemas, sendo, por isso,um líder popular extremamente próximo da população responsável pela sua mitificação mesmoantes de sua violenta morte ocorrida em junho de 1995.

Palavras-chave: cidadania, ausência estatal, marginalização popular, violência urbana

ABSTRACT: MONTEIRO, L. A. Andando pelo vale da sombra da morte: a trajetória política deJoca, primeiro prefeito de Belford Roxo. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica,RJ: EDUR, v. 29, n 2, p. 58-73, jul.-dez., 2007. This piece of work aims at analyzing, from the politicalcareer of the first Belford Roxo mayor, the structure and the way of functioning of BaixadaFluminense´s political field, concerning the years between 1980 and 1995, a time when the politicalmodel, which would characterize this periferical area in Rio de Janeiro, was establishing itself.The first Belford Roxo mayor was chosen as a model-character because he had been the firstpolitician that had solved problems respecting the way people from Belford Roxo used to do it.Therefore, he was the first political leader who ruled really close the people and these peoplemade him a political myth, even his violent death in June 1995.

Key words: citizenship, state absence, popular marginalization, urban violence

por uma sucessão de tragédias rotineiras quechamariam a atenção de seus semelhantessomente por alguns instantes para logo apósdiluir-se no cotidiano de um bairro periféricoda Região Metropolitana do Rio de Janeiro.Entretanto, sem possuir características que defato o diferenciassem de seus vizinhos, oprimeiro prefeito de Belford Roxo

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transformou-se em um herói salvador paragrande parte de seus vizinhos que tal comoele conviveram ao longo da colonizaçãopopular desse local com a pequena presençaestatal e com uma série de graves problemasdecorrentes de uma ocupação não planejadado solo outrora agrícola da BaixadaFluminense.

Inicialmente conheçamos nossopersonagem.

O político belford-roxense Jocanasceu em março de 1947 no municípiofluminense de Vassouras, recebendo comonome Jorge Julio Costa dos Santos. Ainda comdois anos de idade mudou-se com sua famíliapara a região da Baixada Fluminense, indomorar no distrito iguaçuano de Belford Roxo.

Era o ano de 1949 e a localidade“escolhida” por Murilo Cardoso dos Santos,seu pai, para viver não passava de um pântanoque começava a receber alguns migrantes quefugiam das favelas cariocas algumas delaslocalizadas em lugares cobiçados pelas classesmédias cariocas e todas elas enxergadas comoum “câncer social” inserido no centro dacapital federal brasileira1, fugitivos que sejuntavam àqueles que vinham do seco interioragrícola atraídos pelo oásis de crescimento queera a cidade do Rio de Janeiro após o iníciodo processo de industrialização da regiãosudeste brasileira com a conseqüente extensãodas regiões periféricas urbanas.

Tal como qualquer outra famíliainteriorana, a de Joca chegou a Belford Roxoindo residir em um bairro periférico e passandoa conviver com os graves problemas queesperavam os migrantes ali chegados: ainstabilidade econômica provocada pelosubemprego, a inexistência de programasoficiais de assentamento dos migrantes e asagruras próprias de se colonizar uma áreasemi-urbana.

A compra de um lote e aautoconstrução da casa foi a salvação dessafamília numerosa formada pelo pai, a mãe etreze filhos sendo quase todos conduzidos aotrabalho ainda durante a infância. Nossopersonagem, por exemplo, aos dez anos deidade passou a trabalhar nos trens urbanos da

Central do Brasil vendendo guloseimas.Destino não muito diferente tiveram seusirmãos e mãe. Enquanto o pai trabalhava desol a sol na manutenção da via férrea, sua mãetransformou-se em merendeira de uma escolapública e seus irmãos “se viravam” realizandotrabalhos informais diversos.

Não admira muito então que fosse umaconstante nos discursos de Joca a valorizaçãodo trabalho. Com um passado marcado nãopela freqüência à escola, mas sim às ruas ondevendia seus produtos, guiava sua carroça,cobrava as passagens de ônibus, lutava lutalivre, ou dirigia ônibus, devia ser difícil paraJoca possuir outra referência que não otrabalho. Assim em mais de uma entrevista aojornal local de Hoje afirmou que seu segundonome era trabalho e que seu desprezo aospartidos políticos e às ideologias derivava dosentido prático que a sua vida possuiu desdesempre. Qualquer sofistificaçao pareciasupérflua a ele, revelando até algumainsensibilidade quando falava sobre problemasenvolvendo menores delinqüentes ou trabalhoinfantil.

Definitivamente a vida de Joca emBelford Roxo não se distinguiu da de tantosoutros migrantes habitantes daquele ex-distritoiguaçuano, também não sendo incomum quealguém dali se transformasse em umimprovisado empresário não por uma opçãoconsciente, porém por dificuldades em inserir-se profissionalmente na vida econômicaformal.Algo como falta de opção ou insatisfação comas pequenas oportunidades disponíveis pareceter conduzido a transformação de Joca em umempresário local possuidor de umatransportadora e de duas lojas especializadasna venda de materiais de construção.Em bairros em franca expansão demográficaos proprietários desse tipo de casa comercialobtinham sucesso com mais freqüência que osdemais lojistas, porém Joca pode ter sidoauxiliado em seu sucesso pelo fato de ter setransformado em um receptor de cargasroubadas (aparas), pelo menos foi a essaconclusão que chegou a promotora judicial,Tânia Maria Sales Moreira, que acusou Joca

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de crimes diversos, sendo um deles a recepçãode produtos roubados.2

Segundo o próprio Joca, entretanto, suaascensão iniciou-se desde que se demitiu deuma empresa de ônibus onde trabalhava comomotorista e usou o dinheiro da indenizaçãopara comprar e vender caminhões velhos. Talprática terminou incentivando-o a comprar umcaminhão para si e a fundar a J.C. SantosTransportadora.As lojas de materiais de construção vieramapós essa época e solidificaram a vidaeconômica do futuro prefeito bem comocolocaram Joca frente a frente com o “seupovo”, uma vez que era procuradofrequentemente pelos moradores mais pobresde alguns dos bairros de Belford Roxonecessitados de doações de alguns materiaisde construção básicos como tijolos, cimento,pedra e areia.Muito embora em uma entrevista ao Jornalde Hoje em 21 de novembro de 1993 Jocatenha dito que a sua primeira forma de “fazero serviço social” foi através de umaambulância, ele mesmo em outrosdepoimentos a periódicos regionais confirmouo que algumas testemunhas de sua ascensãopolítica entrevistadas por mim disseram, sendocorrente a idéia geral de que o “serviço social”iniciou-se bem antes de 1986, ano de comprada primeira das vinte ambulâncias que existiamem seu “trabalho de assistência social” criadotambém nesse ano quando iniciou sua primeiracampanha eleitoral.Para essas testemunhas o ano de 1986 marcauma segunda fase na vida comunitária do“filho do Seu Murilo” que ainda no final dosanos 1970 passou a ser conhecido por auxiliarvárias pessoas e de formas diversas,destacando-se dentre todas o justiçamento debandidos e a condução de doentes até oshospitais em um automóvel do tipo Brasíliatransformado em ambulância principalmenteno horário noturno.Ameaçado de prisão algumas vezes após 1988devido ao envolvimento com os grupos deextermínio bastante comuns em Belford Roxo,a imagem de Joca parece ter sido manipuladapor ele mesmo nos periódicos regionais após

ser eleito vereador e prefeito. Talvez por issoa “Brasília velha” mudada em ambulânciadizem alguns que em 1978 não faça parte dashistórias que Joca conta em suas entrevistas.Esquecê-la significava, talvez, esconder umpassado habitado por parentes de mortos queatribuíam a ele assassinatos insistentementenegados pelo “homem de bem”constantemente vítima de seus adversáriospolíticos que “espalhavam boatos” a seurespeito.Seus adversários quase sempre não eramhabitantes do distrito, porém mantinham lojascomerciais ali e moravam ou na sede domunicípio de Nova Iguaçu ou na cidade doRio de Janeiro, sendo representantes defamílias cujos membros tradicionalmenteconcorriam a cargos públicos apelando paraos votos dos belford-roxenses.A forma de se vencer eleições em BelfordRoxo não diferia em nada daquela comum emqualquer região pobre do Brasil urbano. Emvésperas de eleições os candidatos surgiamnegociando a melhoria parcial dos bairros ouoferecendo facilidades para a resolução deproblemas pessoais para logo em seguidadesaparecerem sem cumprir as promessasgerais de melhora dos bairros.

Até o Joca tinha aí uns políticosafado que vinha na política[campanha eleitoral], erasempre os mesmo. Eles ria,beijava criança e prometia demontão, colocava uns aterro aíe depois só voltava na outrapolítica.3

Esse imediatismo da assistência dospolíticos tradicionais entrava no cotidiano dosmoradores de Belford Roxo tanto como umaforma complementar de amenização dasdificuldades pessoais historicamenteenfrentadas pelos colonizadores popularesdesse subúrbio fluminense, quanto como umamaneira da coletividade alcançar um mínimode benefícios urbanos como fornecimento deágua potável, iluminação pública, eliminaçãode valas negras e ruas sem asfaltamento,

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exemplos, dentre tantos outros, das demandasmais comuns.

Um dos problemas encerrado poresse tipo de relação entre classes subalternase agentes políticos era o pequeno alcance dasações públicas. Utilizando o voto como moedade troca, os membros das classes popularesnão conseguiram de fato fugir de umarealidade em que as ações destinadas ao bem-estar geral restringiam-se ao que os candidatosofereciam em épocas de campanhas eleitorais.No restante do tempo os agentes públicoslegitimados pelo voto ocupavam seus postosa fim de garantir vários privilégios pessoaisenquanto os indivíduos pertencentes às classespopulares permaneciam habitando bairrosonde a invisibilidade estatal era compensadapela intensa e informal ação popular destinadaa ordenar o espaço ocupado de forma cada vezmais febril, entre as décadas de 1930 e 1980.

A ocupação da Baixada através doloteamento da antiga terra agrícola configuroua forma como os colonizadores popularesresolveram seus problemas principais todoseles decorrentes da desorganização provocadapela explosão demográfica experimentada pelaregião até a década de 1980. Distantes de todapreocupação oficial, os migrantes vindos delugares diversos do território nacional auto-resolveram os seus problemas imediatos deuma forma sempre informal que secomplexava na medida em que mais migranteschegavam:

Eu cheguei aqui em BelfordRoxo em 1950. Quase não tinhaninguém ainda, mas aí foienchendo e crescendo ecomeçou a ficar complicadoporque não tinha nada aqui, sóos terreno e as casa que cada umia fazendo e um ia jogando olixo, as merda no quintal vaziodo lado e depois o dono doterreno chegava e aí era umabriga porque tinha que fazervala mas não dava por que atrásjá tinha casa e na frente era a

rua mas era alto e dava até morteaí as vez por causa de vala.4

Tratei das realidades decorrentes daautoconstrução popular e da autoresoluçãoinformal de problemas de complexidadesvariadas em outro trabalho5, tendo concluídoque a maneira popular de resolver a gama dedemandas decorrentes da semi-urbanização deuma área habitada por pobres como a BaixadaFluminense apresentou como conseqüênciaimportante o surgimento de um tipo deliderança comunitária popular cuja marcaregistrada foi a de ordenar o espaçocoletivamente ocupado pelos recém-chegados,dinamizar, portanto, a substituição do Estadoineficiente nessa região fluminense desde osurgimento dos primeiros loteamentos aindana década de 1930.

Na memória dos habitantes maisantigos de Belford Roxo, os líderes popularesatuantes entre as décadas de 1950-1980inicialmente caracterizaram-se por resolveremdisputas entre vizinhos, uma vez que aconstante chegada de novos moradorestransformava em constante a necessidade decriação de mais espaços coletivos, onde, porexemplo, o lixo deveria ser depositado ou poronde as valas negras deveriam seguir.

Exemplifica bem o papel dos líderescomunitários ao longo das décadas maisquentes da ocupação proletária a continuaçãode um depoimento localizado acima:

Morrer por causa de merda?Mas era assim. Tinha muitabriga e aí quando um paraíba seencrencava com outro partiamlogo pra peixeirada e rolavasangue mesmo. Tinha sempre aíuma turma que apartava mas acisma ficava e era um tal devizinho de lado que não sefalava por causa de bobeira.Teve um senhor aí que já morreuque quando tinha um problemaassim de por onde ia passar umavala ele vinha e conversava eescolhia um lugar. O certo era

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ir pra rua na frente da casa, mastinha vez que não dava. Temterreno baixo, casa atrás commuro já feito e o jeito as vez erapassar na casa do vizinho. Elevinha, conversava com jeitinho,colocava a vala na divisa, nofundo do quintal. Tinha vez quetavam brigando aí eleaconselhava, falava que eraimportante ser unido e eleajudava aí colocando aterro eajeitando a luz da rua e cavandopoço e acabava resolvendo asdesavenças.

Algo menos pessoal em relação a esseslíderes comunitários e as suas formas deorganizar a ocupação do espaço surge em umdepoimento como o seguinte:

Depois quando ia chegandocada vez mais gente tinhasempre alguém aqui que viacoisa como lugar pra colocarlixo. Via aí como é que tavacoisa igual buraco na rua, valaindo pra rua, luz nos poste. Elesandava aí no bairro e ajudavatodo mundo. Tinha uns delesque tinha conhecimento comvereador e trazia manilha,máquina pra limpar terrenobaldio e abrir as rua. Até coisaigual cobertura em ponto deônibus eles fazia aí.6

Acompanhar os depoimentos deantigos moradores de Belford Roxo mostrauma situação em que os líderes comunitáriosgradativamente alteram a forma de suapresença na medida em que os novosmoradores constroem as sua casas edinamizam a vida do bairro. Com uma maiorquantidade de habitantes, os bairros periféricosde Belford Roxo, possuidores de carênciasvariadas em se tratando de aparelhos urbanos,transformaram-se em locais bastanteproblemáticos, sendo os seus moradores

atingidos pelas conseqüências da explosãodemográfica.

Os problemas de segurança públicadestacaram-se dentre todos, como lembramvários de meus entrevistados e como citam osarticulistas do Jornal de Hoje queacompanharam a trajetória de Joca e quemarcaram a “era Joca” como aquela em quenão mais voltariam a existir bandidos cruéis ecovardes como aqueles atuantes no distritodurante os anos 1970 e 1980.7

Tanto as falas dos moradores do ex-distrito iguaçuano quanto vários dos artigosdos jornais regionais contrariam o discursooficial de Joca representado pelas entrevistasfornecidas aos periódicos locais. Nessasentrevistas a ambulância e a propagação doslogan “o homem que ama Belford Roxo”através de registros em vários muros do distritoinauguraram a vida política do prefeitoassassinado.

Acreditando na memória de seusvizinhos chegamos a conclusões bem diversas.

Quando a ambulância e o “trabalhode assistência social” surgiram em 1986, afama de Joca já era grande, estando osmoradores dos bairros onde ele morava e ondepossuía empresas já acostumados a recorrerao líder para a resolução de problemasdiversos como o fornecimento de materiaisdestinados, a melhoria das condições sanitáriasde uma rua, de comida para os habitantes dasáreas miseráveis dos bairros, de condução atéhospitais ou, o que chamava mais atenção, desegurança pública.

O distrito de Belford Roxo foiindustrializado a partir da década de 1950quando a multinacional Bayer ali se instalou.Próximo dessa empresa pioneira várias outrasse instalaram. Essa estratégia industrial atraiuuma grande quantidade de moradores,dinamizou a economia regional, porémacentuou o desemprego e a miséria etransformou o distrito no local mais violentode Nova Iguaçu. Esse grau alto de violênciafoi medido sempre pelo tanto de assassinadosencontrados nas ruas dos bairros periféricosdali. Aliás, somente os corpos poderiam sersinais concretos da violência urbana.

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Tradicionalmente os demais crimes nãoeram comunicados às autoridades policiais epor isso as causas geradoras dos justiçamentospermaneciam ocultas. Assim somente osdepoimentos dos moradores de Belford Roxodemonstram que ali durante a década de 1980o número de furtos, assaltos e estupros eraextremamente alto:

Isso era uma perturbação muitogrande. Tinha muito bandidomesmo. Todo dia você ouviafalar de assalto aqui, assalto ali,estupro. Um monte de covardiamesmo. Era muito bandidomesmo. Você tinha que tomarconta da casa, dos filho... iatrabalhar com medo, porque teassaltava de manhã na saída eficar com medo de não entraremna sua casa. O jeito era ir pedirajuda pra essas polícia mineirase não só ia aumentando o tantode ladrão. 8

Aqui tinha muito ladrãozinho.Você nem podia sair de casa quejá vinham e arrombava a suacasa e limpava tudo. Na ruatambém era um problema. Eleste arrochava e levava tudo. Asvez até a roupa da gente elespegava e você chegava em casasem nada. Tinha também essenegócio de estuprador pra todolado e ninguém Ajudava.Ninguém tava nem aí pra gente.9

Esse negócio de assalto earrombamento só deu umadiminuída depois que passou ater matador à beça. Com asmorte aí vão dar um tempo.Continuou tendo essesbandidinho de bairro só que osmatador vinha e fazia a limpa eaí dava uma melhorada umtempo. Se não fosse eles eradifícil viver aqui.10

Percebidos como a única saída paraos problemas de segurança pública, osmatadores ganham status e passam a desfrutarda simpatia de grande parte dos moradores debairros periféricos. Ser amigo de um matadoré algo importante e o próprio Joca ao defender-se das acusações de que era um justiceiroadmitiu pelo menos a sua amizade com váriosmatadores dizendo que por isso oconsideravam também um matador.

Seja amigo, ou ele mesmo ummatador, o fato é que a imagem de Joca em1986 já estava fixada na memória popular esua campanha para a câmara iguaçuana devereadores transcorreu sem grandesproblemas, recebendo ele cerca de 5000 votose se elegendo folgadamente em 1988.

Um parêntese na exposição do microcontexto onde Joca viveu é necessária e podepermitir que vejamos as causas mais profundasde transformação desse migrante em um agentepolítico oficial atuante na região da BaixadaFluminense.

A história política dessa regiãoperiférica do Rio de Janeiro é, tal como aprópria ocupação proletária dali, muitorecente. Somente a partir dos anos 1940 pode-se pensar que passaram a existir políticos cujalegitimidade se ancorava no grosso dapopulação habitante dali e o primeiro dessespolíticos foi o deputado Tenório Cavalcanti.

Os votos que elegeram Tenóriosaíram principalmente de Duque de Caxias epertenciam a recém-migrantes alguns delestrazidos pelo próprio Tenório que enxergouna ocupação maciça da região uma formaeficiente de lutar contra os proprietários ruraisque controlavam a política regional mesmo nãomorando na Baixada Fluminense, percebidanessa época, muito mais que hoje, comosomente um apêndice indesejável domunicípio do Rio de Janeiro.

Líder político violento e bastantepolêmico, Tenório é hoje percebido tanto porestudiosos como por vários de meus entrevis-tados como um dos responsáveis pela visão,veiculada pela imprensa carioca am-plamente,de que a região da Baixada era um “câncer”ou um “faroeste” fluminense.11

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Seja como for, Tenório Cavalcanti,sua capa preta e sua metralhadora lurdinhasimbolizaram agentes políticos baixadensessomente até o ano de 1964 quando ele foi cas-sado pelos militares e jamais recobrou suafama anterior.

Entre 1964 e o momento em que Jocase elege vereador por Nova Iguaçu, 1988,como regra geral a Baixada Fluminense comoum todo foi percebida pelos governantes comoum local que deveria ser vigiado de muito per-to porque não era muito diferente das favelascariocas onde várias das lideranças popularesperderam a vida reivindicando melhorescondições de vida para o conjunto dosmoradores.

Na Baixada o acordo entre militarese elites regionais facilitou o controle políticodas classes subalternas habitantes desses bair-ros periféricos. Assim, o reduto eleitoral deTenório Cavalcanti, Duque de Caxias, trans-formou-se em área de segurança nacional,Nova Iguaçu passou grande parte dos anosditatoriais sob o controle de interventoresescolhidos entre algumas famílias ricas do mu-nicípio, São João de Meriti experimentou acassação de um prefeito eleito e a indicaçãode interventores e Nilópolis foi dominada poruma família de contraventores apoiados pelosmilitares após a deposição de um prefeito deesquerda escolhido democraticamente. 12

Durante essa época a oposiçãorepresentada por políticos do MDB (Movi-mento Democrático Brasileiro) foi constan-temente reprimida principalmente quandoenvolvida em processos de luta pela posse deterra rural ou urbana nessa região13. Novos aresparecem ter surgido somente com o afrouxa-mento do regime de exceção e com a eleiçãode Leonel Brizola.

A chegada desse antigo líder políticopopular ao executivo do estado do Rio de Ja-neiro em 1982 reconfigurou o mundo da po-líticareal fluminense e possibilitou o destaque de alguémcomo Joca, genuíno representante das maneiraspopulares de resolução informal de problemas.

De uma certa forma é possível pensarna escolha de alguém como o futuro prefeitode Belford Roxo para a câmara legislativa

iguaçuana - caracterizada por possuirvereadores que são desconhecidos dapopulação iguaçuana e por estar localizada nosandares superiores de um prédio que chamapouquíssima atenção dos moradores domunicípio - como um grito de quem moravano distrito mais densamente povoado de NovaIguaçu e que, apesar de sua importânciaeconômica, possuía pouquíssimas marcas dasações estatais.

Esse grito surgiu, talvez, comoresultado das injustiças acumuladas ao longode todo o período de ocupação proletária efoi prontamente ouvido por Joca que logo apóssua diplomação cuidou de licenciar-se docargo e retornar a Belford Roxo para abrirnovos trabalhos de assistência social,aumentar o número de suas ambulâncias eligar-se aos líderes do movimentoemancipacionista de Belford Roxo.

O vereador estreante notabilizou-sepor ser alguém inquieto e dinâmico. Cientede que sua carreira a partir de então seconfundiria com a vida política belford-roxense, Joca aproximou-se do prefeitoiguaçuano de então, Aluísio Gama, e dodeputado estadual Nelson Bornier, para osquais um aliado em Belford Roxo pareciaimportante para futuros vôos fora de NovaIguaçu e conseguiu fazer com que quase 200ruas de bairros perifér icos fossempavimentadas, vários postos de saúde fossemabertos e o centro do distrito fosse totalmentealterado, tendo ruas alargadas e praçasconstruídas em lugar de antigas lixeiras.Essas alianças transformaram Joca em um dosprincipais arautos do processo deemancipação política que era uma reivin-dicação antiga das elites locais, que porém nãoagradava a maior parte dos antigos políticosiguaçuanos.

Aluísio Gama e Nelson Bornier apoia-ram esse primeiro movimento emancipa-cionista baixadense pós constituição de 1988e perceberam que Joca era um importantecatalisador da aceitação popular dessespolíticos intimamente vinculados ao primeirodistrito iguaçuano e, portanto, distantes dosbairros periféricos.

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Tendo o jogo político se modificado apartir do processo de democratização do país,parecia fundamental agora para um agentepolítico oficial popularizar-se em um localcomo a Baixada Fluminense, predominante-mente habitada por elementos das classessubalternas cujo voto passava a ser disputadopor ser a chave para a construção de umacarreira política sólida.

Em 1990 o município de Belford Roxoé criado, sendo ainda incerto quando asprimeiras eleições municipais ocorreriam nonovo município. É exatamente nesse primeiroano da nova cidade fluminense que se inicia adisputa pela presença de Joca em uma chapaencabeçada ainda pelos tradicionais políticosdo ex-distrito iguaçuano. Nesse sentido oJornal de Hoje do dia 13 de abril traz umamatéria intitulada “Joca aparece forte naeleição de Belford Roxo” em que o articulistaapresenta o vereador, que naquele momentojá realizara a sua primeira troca de partido,saindo do PMDB para o PDT de Aluisio Gamae do vice-prefeito iguaçuano Laerte Bastos,antigo líder popular ligado a luta pela reformaagrária na região da Baixada Fluminense,como alguém desejado por todos os partidosque disputariam a “eleição tampão” que talvezocorresse em 03 de outubro daquele ano.Todos gostariam de ter Joca como candidatoa vice-prefeito e isso se devia a sua vitóriaeleitoral e ao seu perceptível carisma.

Em 03 de outubro não ocorrerameleições municipais em Belford Roxo, poréma evolução dos fatos desde a emancipaçãodistrital até a certeza de que não haveriaeleições fez o vereador perceber que suasujeição a qualquer nome era desnecessária.Seu carisma pessoal derivado da ligação diretacom os mais diversos anseios popularestransformava-o no único político capaz detornar-se o primeiro prefeito sem que umaeleição em dois turnos fosse necessária.

Consciente desse fato, overeador realizou sua terceira migraçãopartidária abandonando o PDT, onde LaerteBastos era o “candidato natural” e vinculando-se em 1991 ao PL.

Após uma campanha eleitoralconturbada em que foi acusado diversas vezesde ameaçar seus adversários de morte e de umprocesso eleitoral no qual “seus capangas”convenceram os escrutinadores a transforma-rem cédulas em branco em votos favoráveis aJoca, este foi escolhido por 70 mil eleitores, oque correspondeu a 69,8% dos votos.

Uma das primeiras aparições públicasde Joca como prefeito foi para, juntamentecom um grupo de fiscais improvisados, fecharestabelecimentos comerciais em que aslicenças de funcionamento não estivessempagas. Recheadas com fotos do próprioprefeito lacrando lojas, as edições de jornaisregionais do dia seguinte anunciavam ainauguração de um novo tempo 14.

Comparado com o tempo anterior,esse se diferenciava pela observância de regrasbásicas, como a fiscalização do pagamento deimpostos, o condicionamento de novasconstruções à liberação de plantas na prefeiturae ao pagamento de taxas e pela extensão dosserviços públicos básicos a parte mais pobreda população belford-roxense.

Caminhões destinados a recolherdetritos passaram a rodar por Belford Roxotodos os dias, muros pintados nas cores donovo município (azul e branco) não receberammais pichações, ativaram-se antigos postos desaúde e anunciou-se para breve a construçãode outros postos e de um moderno hospital.

Prometeu-se a construção de umbatalhão da polícia militar e de mais escolas.Ação, entretanto, era o forte de Joca e por issoele se apressou em desapropriar terrenosbaldios do centro e de bairros mais populososque abrigavam lixeiras transformando-osrapidamente em praças com brinquedos. Umagrande quantidade de ruas recebeu saneamentoe pavimentação e para que fosse diminuída apericulosidade do trânsito, instalaram-sediversos redutores de velocidade no centro domunicípio. Enfim, a população tinha motivospara surpreender-se ante a enxurrada debenfeitorias que de repente caia sobre BelfordRoxo.

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O centro, marcado pela eterna sujeira,pelas inundações freqüentes, e pelodesrespeito ao espaço público, ganhou umagrande área de lazer, permanecendo limpo econservado. Nos bairros o recolhimento dolixo, as obras de saneamento e as promessasde novos colégios e de melhoria do serviço desaúde e segurança alimentavam as esperançasda transformação de Belford Roxo em umacidade-modelo.

Além disso tudo desabaram osíndices de violência, excetuando-se aí onúmero de homicídios que aumentaramsensivelmente principalmente morrendopessoas através de chacinas nitidamentecaracterizadas como obra de justiceiros.15

Joca assumiu a prefeitura de BelfordRoxo em primeiro de março de 1993. Paraalguns entrevistados que o conheceram bemantes da época em que era prefeito, ele poressa época não lembrava mais o lídercomunitário de 1986 ou o vereador que em1991 entendia, apesar do amplo apoio popular,não ser qualificado o suficiente para assumira prefeitura de seu município. Ele era, emcertos aspectos, o contrário de tudo o que haviasido até ali:

O poder subiu a sua cabeça.Reclamava o tempo todo dapreguiça de todo mundo.Visitava colégios municipaispara fiscalizar o trabalho dasprofessoras e às vezes humilhavaalgumas em público. Chegavaem postos de saúde antes de todomundo e ficava esperando paraver se os médicos chegariamtarde. Fazia questão deacompanhar a fiscalizaçãoquando dava blitz no comércio.Ele mesmo lacrava as portas daslojas. Irritava-se com qualqueropositor e chegou a bater na carade um vereador aqui na praça,na frente de todo mundo.16

Joca sugeria em suas declarações aojornais regionais que o seu comportamento

agressivo devia-se ao meio em que vivia. Alinão era possível ser gentil com os opositoresporque esses eram acima de tudo inimigosprontos para destruí-lo. Entendendo-se comoa única esperança de salvação para o caos queera o seu município, era agressivo para impor-se através do medo.

Joca se notabilizaria peloestabelecimento de símbolos que vinculavamsua imagem pessoal a Belford Roxo: osímbolo de sua campanha à prefeitura haviasido um coração. Esse símbolo pessoal passaráa ocupar o centro do Brasão do município, aslaterais dos pontos de ônibus mandadosconstruir por Joca e um monumento no centrodo novo município.

A estreita vinculação entre Joca eBelford Roxo é, entretanto, melhor entendidaquando lembramos o fato do prefeito termandado gravar um coração em um de seusdentes de ouro e o de ter encomendado umhino oficial que apresentava como tema nãoas características da cidade mas, sim sua figuracomparada no hino a um salvador heróico esolitário:

Ele chega carregando umabandeira / Traz o símbolo da ‘paz e liberdade’/Sobe morro, desce morro / Dia-a-dia semparar / À procura de crianças para ajudar /Olha ele aí, olha ele aí /Sempre ao lado deDeus / Fazendo esse povo feliz / Joca, Joca /Amigo de ontem / Amigo de hoje / Amigo desempre. 17

Ao lado da ampla aprovaçãopopular, acusações sucediam-se: agora ele nãoera somente o receptador de cargas roubadase líder de grupos de extermínio baixadenses.Também passou a ser um voraz consumidordas verbas municipais que encarava como seusrecursos pessoais.

Alguns inimigos mais corajososdestacaram ser a grande quantidade deautomóveis exibidos por Joca e por seusparentes mais próximos incompatível com umaadministração honesta e alguns vereadoresreclamavam do entendimento do prefeito deque não poderia existir oposição aos seus atospessoais e ao seu governo, entendimento quefez com que a casa de alguns deles se

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transformasse em alvo de atentados emvésperas de votações de projetos importantespara o prefeito.18

A cooptação dos vereadoresbelford-roxenses não se fez, entretanto, sempresob uma chuva de balas: em pouco tempo Jocaconseguiu eliminar grande parte da oposiçãoque se fazia a ele de uma maneira quedistingue o governo Joca dos antigos governosiguaçuanos ao mesmo tempo em quepossibilita-nos pensar nesse governo como oestabelecedor de um padrão de gestão levadaadiante pelos líderes marginais da região daBaixada Fluminense.

Não muito depois de iniciar seugoverno no início de 1993, Joca iniciounegociações com os empresários belford-roxenses a fim de definir um plano que deveriaservir de base para a reconstrução de BelfordRoxo,19 plano esse que não deveria somentelevar em consideração as verbas municipaismas que deveria contar com a participação detodos os empresários interessados em obter oapoio do governo municipal, potencialgarantidor de uma expansão econômica dentrodo município. Seguindo o discurso de Joca nareunião que encerrou tais negociações, aexistência de oposição era indesejável uma vezque era pouco prática, propiciando unicamenteum excesso de discussão que emperrava oprosseguimento das medidas emergenciaispropostas e efetivadas por Joca. Portanto cadaum dos empresários deveria preocupar-se emdoar ao município o que estivesse dentro dassuas condições a fim de permitir à novaprefeitura manter o enorme canteiro de obrasem que se transformara o ex-distr itoiguaçuano.

A multinacional Bayer do Brasilficou encarregada de organizar a defesa civilmunicipal, fornecendo para isso sua brigadainterna de bombeiros e doando à prefeitura asviaturas que serviriam ao novo município.Além disso os vasilhames destinados a abrigartemporariamente o lixo de todo o municípiotinham como origem essa empresa que pintavaseus tambores de produtos químicos vazioscom as cores do novo município espalhando-os por todos os bairros.

A parceria com as empresasmunicipais parece ter inspirado Joca nocaminho de transformar a Câmara deVereadores em sua aliada incondicional, algoque foi facilitado pelo fato da casa legislativamunicipal belford-roxense ser formada quaseexclusivamente por líderes popularesrepresentantes de grupos de bairros dos quaisesses vereadores dependiam na medida em quefaziam o trabalho social auxiliando osmoradores na resolução de problemas práticos,o que os caracterizava, portanto, comorepresentantes distritais diversos de umsimples vereador.

Nada melhor para Joca que oloteamento dos bens públicos municipais,transformados em moedas utilizadaslargamente na compra da fidelidade dosvereadores. Dividindo o município em áreasde atuação, em que o vereador, conforme asua fidelidade recebia escolas, postos de saúdee ambulâncias que deveriam ser usadasunicamente no atendimento de necessidadesda população dos bairros responsáveis pela suaeleição. Tal prática transformava os primeirosvereadores belford-roxenses em clientespolíticos de Joca extremamente preocupadosem debelar qualquer sombra de oposição aolíder do poder executivo municipal. Jogada demestre que possibilitava ao novo prefeitodividir suas responsabilidades e carrear parasi louros de uma espécie de trabalho deassessoria realizado pelos vereadores.É possível pensar que a estratégia imaginadae posta em prática por Joca eliminou grandeparte da oposição existente na CâmaraMunicipal. Não tendo significado isso que elenão tenha mais cultivado desafetos entre aantiga elite política regional e até entremembros de associações de moradores.

Característico desse movimento decriação de inimigos foi a sua reação à ausênciada população de um determinado bairro emuma reunião marcada por ele na Associaçãode Moradores. Irado pela ausência dosprincipais interessados, ele os chamou depreguiçosos e disse que se fosse para fumarmaconha ou cheirar cocaína todos estariamali.20

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O talento para cr iar inimigospolíticos é o responsável por diversas versõespopulares para a sua morte prematura. Aconspiração surge como motivo recorrentepara explicar essa morte. Dizia-se que ele foramorto à mando do governador MarcelloAlencar que estaria preocupado com ocrescimento da sua importância política etambém que sua mulher mandara matar Jocacom a finalidade de apropriar-se de toda ariqueza que ele acumulara como prefeito deBelford Roxo.

Apesar de suas estratégias decooptação, vereadores recalcitrantesmantiveram-se na câmara municipal, porém aoposição não sensibilizou a população,surpresa com a rapidez de Joca em substituiro trabalho de autoconstrução de aparelhospúblicos pelo papel de fiscais da prefeituraque Joca passa a atribuir a população deBelford Roxo. Característico desse novo papeldesempenhado pelos belford-roxenses é oseguinte diálogo mantido entre um morador ea prefeita de Belford Roxo Maria Lúcia,esposa de Joca:

Prefeita, não adianta jogarasfalto. A tubulação deescoamento tem um diâmetroridículo. Vai tudo enchernovamente na primeira chuva.Quando o falecido (Joca)passava aqui a gente falava e eraouvido numa boa. Agora asenhora fica toda alterada. Eusei que a senhora é boa, mas épreciso ouvir o povo . MariaLúcia devolve: Vocês é que sãomeus fiscais. Por que nãomandou parar a obra? 21

Acabam surtindo efeito inverso doesperado as acusações de seus opositores namedida em que acusar Joca de corrupto nãodemove os belford-roxenses, sobremaneirainteressados em justificar todos os atos de seulíder providencial.

Os pára-choques das inúmerasambulâncias que Joca mantinha como veículos

essenciais dos seus serviços sociaisostentavam o seguinte versículo bíblico: “Osenhor é meu pastor e nada me faltará”.Encontramos três versículos abaixo desse umoutro trecho bíblico capaz de expressar melhora maneira escolhida pelo primeiro prefeitopara conduzir sua vida política e seu governo:“Ainda que eu andasse pelo vale da sombrada morte, mal nenhum temeria.”

Os dois anos e três meses do governoJoca caracterizaram-se pelo extremismo,especializou-se ele em manter holofotesapontados em sua direção. Tendo diante de sium município pequeno, densamente povoado,possuidor de diversas fábricas e de umaatividade comercial média quando comparadaa outros municípios da Baixada,22 Jocademonstrou saber desde o primeiro dia demandato que a última necessidade de sua genteera possuir um prefeito burocrático tal comoaqueles atuantes em Nova Iguaçu, alguns dosquais originários de Belford Roxo e eleitos,portanto, com amplo apoio desse ex-distrito.

Inexistindo leis, funcionáriosnecessários à burocracia municipal, Jocainiciou seu governo de uma maneiraimprovisada, marcada pela atuação direta. Elesupervisionava pessoalmente as diversas obrasemergenciais como a eliminação dosvazadouros clandestinos de lixo, a pintura dosmuros das cidades e a intimidação aosprincipais pichadores que residiam em um dosmorros localizados no centro da cidade23.As ações iniciais de Joca tiveram como marcaprincipal a percepção de que tudo estava paraser feito e de que a sua missão fundamentalera criar um poder público que pudesse serdefinido como presente. Com essa finalidadetornava-se necessário obter impostosdriblando de imediato a primeira grandedificuldade apontada pela prefeitura iguaçuanaque estimava ser de mais de 70% o índice deinadimplência no município24. Cônscio dissoJoca iniciou o esforço no sentido de, porexemplo, regularizar todas as construções,uma vez que os governos iguaçuanos nuncaexigiram regularidade das construções queoficialmente, portanto, inexistiam, pagandopor isso unicamente impostos territoriais. O

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conhecimento dessa situação inspirou suaprimeira grande ação pública como prefeito:fechar o comércio irregular e multar asdiversas construções não informadas àprefeitura.

Arrecadar fundos, abandonarquotidianamente seu gabinete a fim deacompanhar a realização das obras queinauguravam o novo município, passaram a sermarcas do governo Joca, conseguindo ele nãosomente juntar em torno de si o apoio dosbelford-roxenses mas também a admiração dapopulação de outros municípios da BaixadaFluminense, o que fez com que seu estilo degoverno passasse a ser imitado por outrosprefeitos dessa região, contaminando-se deforma definitiva os distritos restantes de NovaIguaçu com a idéia de que somente através dasemancipações distritais e da eleição de líderesidentificados com as necessidades popularesseria possível resolver os graves problemasdecorrentes das omissões representadas pelaprefeitura de Nova Iguaçu.

As ações de Joca como prefeitobelford-roxense sobretudo demonstraram umaprofunda ligação com o ideal de autoconstrução vivenciado exaustivamente pelosbelford-roxenses.Muito mais que um hábil manipulador decorações e mentes da população do seio daqual se destacou, Joca deve ser lido como oproduto de um meio de cultura cultivado pelospróprios belford-roxenses. Ele foi, portanto,um parceiro de seu povo no estabelecimentode alternativas ao desprestígio da massabelford-roxense ante os organismosoficialmente representativos das diversasesferas de poder estatal.

Embebido em seu sucesso popular,entregou-se ele a essa populaçãoeminentemente proletária habitante de BelfordRoxo, transformando-se em uma espécieespetacular de herói salvador político mesmoantes de localizar-se no posto máximo domunicípio ao qual ajudou construir.Não era difícil imaginar que Joca acabariaassassinado. Motivos não faltavam. Políticoprepotente e sem medidas, notabilizava-se pormobilizar grande quantidade de seguranças a

fim de proteger-se, porém acumulavadesafetos, esbofeteando opositores políticosem pleno centro da cidade de Belford Roxoou participando de ataques armados à casa devereadores que teimavam em não pensarsegundo as suas “sugestões”.

Se a morte violenta era previsível, elaocorreu, entretanto, em um momento e de umaforma inesperada até para seus adversários.Em 1995 Joca estava no auge de seu governoe talvez por causa da quantidade de segurançasou devido as armas que portavaostensivamente, era difícil imaginar ocorpulento e ameaçador prefeito abatido poronze tiros dados durante um assalto malsucedido ocorrido quando Joca e outrosprefeitos baixadenses encaminhavam-se parauma reunião com governador fluminenseMarcello Alencar25.

Mas, em fim, é preciso manter-sepreso a algo concreto e o fato é que eleaproximadamente às 18:30 do dia 20 de junhode 1995 foi assassinado após reagir a umassaltante apelidado de ratinho (apelidoprovavelmente proveniente do pequenotamanho do ladrão) que, atraído pelo grossocolar e pulseira de ouro do prefeito,aproximou-se do carro dirigido por Jocaquando este parou em um engarrafamento nasaída ao túnel Santa Bárbara.

Segundo o então prefeito de São Joãode Meriti - que viajava ao seu lado e tinha aperna imobilizada, conseguindo mesmo assimafastar-se do local do crime enquanto os tiroseram disparados - Joca recusou-se a entregarsuas jóias ao bandido, tentou abrir a porta docarro e sacar suas armas ao mesmo tempo. Obandido, inexperiente e impressionado com otamanho de Joca, “assustou-se” e descarregouuma pistola no corpo do prefeito que morreuinstantaneamente, ficando estendido no asfaltoà mercê de curiosos.26 tal como dezenas decorpos que todos os dias são abandonados naBaixada Fluminense considerada por um dosprefeitos dessa região um “estado cujogovernador é Joca”.27

Algumas horas mais tarde (três horasda madrugada do dia seguinte) uma equipe doJornal O Dia chegando ao centro de Belford

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Roxo encontrou uma multidão concentrada napraça Eliakim Araújo, que é a principal praçado pequeno centro municipal de Belford Roxo.Incentivada pelo filho mais velho de Joca amultidão atacou a equipe desse jornal que eraacusado de ter retirado fotos de Jocaassassinado enquanto a perícia policialrealizava os seus trabalhos deixando Jocasomente de sunga. A multidão apoderou-se doequipamento dos jornalistas que somentedeixaram de ser agredidos devido àinterferência de alguns conhecidos políticos ejornalistas locais que impediram o piorcolocando-se entre a multidão enfurecida e aequipe do jornal carioca.28

A imprensa local calculou que namadrugada do dia 21 de junho mais de cemmil pessoas concentravam-se na praça centraldo município esperando pelo corpo de Joca.É significativo verificar como a populaçãolamentava-se pelo prefeito morto: é certo queum ar de perplexidade pairava sobre aquelamultidão que tentava localizar dentro dasinformações desencontradas um culpado peloultraje ao seu líder. Não existia certezanenhuma a respeito de como aconteceu amorte, mas os relatos de pessoas queacompanharam o cortejo deixam perceber quepensava-se coletivamente de uma formaassemelhada à seguinte:

[...] hoje se diz que ele foi mortoem um assalto. Mas lá na praçaia dar risada o povo se alguémconta uma história dessas.Aquele homem grande daquelejeito, que só andava armado ecom um monte de segurança,morrer assaltado...nem dá prapensar. Você perguntou o queque eu sentia. Sentia tristezapela morte de um parente,porque pra mim ele era que nemum da família. Desde muitotempo ele ajudava a gente lá decasa dando colégio prás criançaestudar[...] levava doente prohospital qualquer hora damadrugada, dava material praobra [...] porque eu e meus

filhos é que fizemos obra pramorar, meu marido morreu hámuito tempo e sobrou pra nós...ele nem era político ainda e jáajudava [...] era um pai prosmeus filhos [...] gostava degente pobre porque ele tambémera trabalhador e pobre [...] eutinha que ficar naquele frioesperando o corpo que nuncachegava, era que nem umaobrigação pra mim [...] nuncavai existir um outro políticoaqui igual ele. Têm uns aí quecisma de dar pão e sopa pragente mais é falsidade. Passa aeleição eles desaparece [...] elenão era só político era umhomem que ajudava se tinha ounão eleição. Tava presente o anotodo [...].29

Cem mil pessoas não ocupariam umapraça na madrugada de quinta para sexta-feirapara esperar um cadáver não querido, é lógico.Existem aspectos dessa espera, entretanto, quea diferenciam de um simples desejo coletivode homenagear um político popular morto.

Escapa do depoimento a nítidaimpressão de que a entrevistada considera oseu deslocamento como uma obrigação. Jocatrata-se para dona Maria de um “membro dafamília”, ou até mais que isso, pois ela chegouem outra parte da entrevista a afirmar quequando “gente da minha mesma família meabandonou, ele me ajudou”. O líder morto,neste momento de velório, está mais quedurante toda a sua vida política unido àpopulação belford-roxense, que não é para aíconduzida, mas, em um típico comportamentode massa, conduz-se com a finalidade únicade reverenciar alguém considerado por essamassa como um herói. O comportamento damassa de belford-roxenses legitima oentendimento de Joca como uma espécie desalvador.

Representantes da antiga elitepolítica local sentiam-se tambémdesamparados ante a morte do primeiro

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prefeito belford-roxense, prova esse fato oeditorial em tom profético do Correio daLavoura do dia 23 de junho de 1995 queconcluía:

[.. .] correr Belford Roxo operigo de retornar ao períodonegro da sua história, quandobandidos conhecidosnotabilizaram-se por infernizara vida de sua população queexperimentou por um prazomuito curto a paz garantida porum dos maiores líderes políticosdessas plagas.30

A idéia de estabilidade do governoJoca lembrada pelo editor de “O Correio daLavoura” talvez se deva à lembranças fortescomo a evocada por um entrevistado quejustificava sua admiração ao prefeito mortorelembrando um acontecimento inusitadovivido pelo prefeito que foi a única pessoa aconseguir fazer com que alguns traficantespermitissem que os bombeiros recolhessem ocadáver de um desafeto deles que, morto já háquatro dias, contaminava com sua podridãotoda a vizinhança. Segundo o entrevistado,morador de um bairro próximo ao centro domunicípio, o prefeito, ao saber por parte demoradores do acontecido, abandonou seugabinete na prefeitura e subiu o Morro daGalinha junto com o carro dos bombeiros.Chegando lá, Joca não se contentou em assistirao recolhimento do cadáver: procurando otraficante que havia impedido a retiradaanterior do corpo, fez com que o própriotraficante levasse o defunto até a viatura dosbombeiros3131 M.G.N.Entrevista concedida em 02 set. 1995.

. Por mais inverossímil que essa história sejailustra-nos ela o modo como Joca eravisualizado pela população: para além de serum político ele era considerado como oproprietário de soluções para problemas que,apesar de poderem ser considerados comosimples, perpetuavam-se ganhando o status deinsolúveis.

A espera na madrugada fria é parte deum processo de mitificação, no entanto éperceptível que tal espera longe de simbolizara construção de um exemplo através das aparasda imagem de um político tradicional, equivalea uma homenagem a quem melhor conseguiuaproximar-se do povo e de suas práticas deresolução de problemas. O papel do mito aquisofre uma espécie de inversão: apesar decontinuar à reboque de uma construção, nãoexistiu espaço para nenhum elemento da elitepolítica regional construir a imagem ideal deJoca: ao contrário disso, o retrato prevalecentefoi o construído pela própria população.Tendendo o resultado a espelhar soluçõespouco convencionais para problemas tornadoscrônicos ante a pequena presença de açõesestatais na região da Baixada.

Amanheceu o dia 21 de junho de 1995.O centro comercial de Belford Roxo logo setornou pequeno demais para comportar amultidão que teimava em não organizar-se afim de ver o corpo de Joca. A fila que seestendeu por mais de dois quilômetros deulugar rapidamente a uma procissão que tevecomo destino final o cemitério da Solidão,tendo inicialmente percorrido todo o pequenocentro da cidade de Belford Roxo. Indo até oostentoso pórtico de entrada da cidadeconstruído um ano antes pelo prefeito agoramorto. A multidão pára sob o pórtico.Enfatiza um jornal local ser possível duranteessa parada “[…] ouvirem-se lamentostraduzidos em frases curtas como: ‘perdemosnosso pai!’ e ‘Belford Roxo nunca mais será amesma’ “. Após essa parada a procissão seguiuseu destino que era o túmulo onde futuramenteseria gravada a frase “Serei sempre Joca” sobum coração construído com lâmpadasfluorescentes.

Durante todo o cortejo fúnebre e aténo cemitério percebeu-se uma disputarealizada por políticos baixadenses quedesejam homenagear o prefeito através dediscursos, as lamentações populares,entretanto, sufocaram tais tentativas dehomenagem.Seguindo as descrições expostas pelosperiódicos locais e mesmo por alguns jornais

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cariocas, percebe-se que ocorre nessacondução do cadáver uma apropriação popularda figura de Joca. Sobra pouquíssimo espaçopara os correligionários do prefeito. A massaformada em torno do cadáver determina aimpossibilidade de pensar-se que essa mortepossa funcionar como uma oportunidade paraque qualquer grupo inicie isoladamente umprocesso de mitificação política. Nos diasseguintes a essa procissão e enterro, o túmulode no 2409 do Cemitério da Solidão passou areceber uma grande quantidade de visitantes,alguns deles deixando alguns pequenosbilhetes como os de algumas alunas de umcolégio particular do município:“Joca, desejamos que você esteja em paz. Pelosorriso que você tinha e pelo prefeito que vocêera, um beijo dos alunos do Centro deEducação Moderna.” Ou esses bilhetesdeixados por populares que não seidentificaram:“Tio Joca, ilumine os nossos dirigentes deonde você estiver.” “Continue ajudando Belford Roxo a ser acidade do amor.”“Nunca mais teremos um prefeito como você,que foi o único a se preocupar com pobre.”Descartada a possibilidade de imaginar queexistiu uma condução para o processo demitificação política de Joca, resta-nos pensarque ele notabilizou-se por refletir anseiospopulares e somente é possível pensar nelecomo alguém que corporificou inúmerosanseios dessa população fundida ao líder.

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História Social) - Programa de Pós-graduaçãoem História Social, Universidade Federal doRio de Janeiro, 2001.6 L.A.T. Entrevista concedida em 04 mar.1988.7 Correio da Lavoura e Jornal de Hoje, 23 jun.1995, p.01.8 L.S.M. Entrevista concedida em 09 de maiode 1985.9 T.F.G. Entrevista concedida em 04 de jun.de 1985.10 J.B.T. Entrevista concedida em 19 de ago.de 1986.11 ENNE, Ana Lucia Silva. “Lugar, meu amigo,é minha Baixada”: memória, representaçãosocial e identidade. 2002. Tese ( Doutoradoem Antropologia). Programa de Pós-graduação em Antropologia. Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro, 2002.12BARRETO, Alessandra Siqueira.Cartografia política: as faces da política naBaixada Fluminense. 2006. Tese (Doutoradoem Antropologia Social), Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Riode Janeiro, 2006.13 Testemunham esses fatos a trajetória políticade Jorge Gama em Nova Iguaçu ou a de LaerteBastos em Belford Roxo.14 Jornal de Hoje, 03 jan. 1993, p. 09 Correiode Maxambomba, 05 jan.199315 Jornal de Hoje, 20 mar. 1993, p. 09 / 18ago. 1993, p. 05. / 15 nov.1993, p. 10. Correiode Maxambomba, 18 maio 1993, p.03 / 17 dez.1993, p.0216 O.D.S. Entrevista concedida em 28 nov.1995.17 Três últimas estrofes de Mensagem ao tioJoca , hino oficial do município de BelfordRoxo entre os anos de 1993 e 1995. Após suamorte o hino oficial do município de BelfordRoxo deixou de ser o Mensagem ao tio,passando o novo hino a referir-se a fatoshistóricos ligados ao antigo distrito de BelfordRoxo. (Jornal de Hoje, Edição de BelfordRoxo, 12 nov.1993. p. 09)18 T.M. Entrevista concedida em 12 set. 1995.19 A Associação Comercial e Industrial deBelford Roxo (ACIBER) mesmo antes da