Analise - Ilha do Medo

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Universidade Federal de São Carlos Departamento de Sociologia Análise Il ha do Medo Sociologia Contemporânea II, ministrada pelo Prof Dr. Attila Barbosa Magno e Silva

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Universidade Federal de São Carlos

Departamento de Sociologia

Análise Ilha do Medo

Sociologia Contemporânea II, ministrada pelo Prof Dr. Attila Barbosa Magno e Silva

Andressa Gusmon da Silva RA: 346195

Matheus Lucas Hebling RA: 346128

São Carlos, 09 de Novembro de 2010

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"Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco"

Michel Foucault

O presente trabalho tem como objetivo observar, identificar e analisar a partir de

uma perspectiva foucaultiana o filme "Ilha do Medo", do diretor Martin Scorsese, lançado

originalmente no ano de 2010. O filme conta a história do detetive do FBI Teddy Daniels e

seu parceiro Chuck que se dirigem à Ilha Shutter para insvestigar o caso de uma

prisioneira/paciente chamada Rachel Solando, que desapareceu misteriosamente em uma

noite.

A ilha é local de uma instituição psiquiátrica comandada pelo Dr. Cawley, cujo

objetivo é proporcionar, nas palavras do mesmo, uma "fusão moral de lei, ordem e

tratamento clínico" a pacientes com problemas mentais condenados ao carcere e ao

tratamento psiquiátrico. Com o desenrolar da investigação, Teddy, que sofria de

alucinações com a sua mulher morta, além de lembranças constantes do seu passado como

militar que esteve em campos de concentração nazistas, passa a descobrir a sua história e

também a se perguntar o que realmente é a verdade no que acredita. Assim, ele descobre

que toda a sua experiência na ilha não passou de uma interveção psiquiátrica, uma vez que

ele era paciente da mesma instituição há dois anos.

Na obra "Vigiar e Punir", Michel Foucault define como sendo a ideal a disciplina

que se caracteriza por ser infinita, que ocorre através de interrogatório, observação,

inquérito, julgamento e exame constantes e minuciosos (Foucault, 1987, pág. 187), fato que

é extremamente visível no tipo de relacionamento que os funcionários e inclusive os outros

pacientes possuiam com ele, uma vez que ele é constantemente analisado. A instituição

psiquiátrica retratada no filme obedece a descrição feita pelo autor na qual este a relata

como sendo característica por ter uma divisão binária e da marcação desta através da

separação de médico e paciente, louco e não-louco, perigoso e não perigoso, separados no

local por duas alas diferentes, uma para doentes mais sérios e menos perigosos - Alas A e B

e uma ala, denominada Ala C, para os perigosos. Essa divisão binária resulta em uma

determinação coercitiva, além de uma repartição diferencial, exemplificados no uso de

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diferentes uniformes para pacientes e funcionários.

Segundo Foucault, na "Microfísica do Poder", os mecanismos disciplinares são

antigos e existiram em estado isolado e fragmentado até o século XVIII, onde foram

aperfeiçoados como uma nova técnica de gestão de homens: era uma nova forma de gerir

os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-los ao máximo e maximizar seu trabalho,

uma vez que o objetivo da docilização é tornar os corpos úteis ao trabalho. Esse sistema de

poder é visualizado em escolas e no exército. A primeira característica é a distribuição

espacial dos indivíduos, permitindo um aumento da sua eficácia, pois os indivíduos saberão

se colocar, se deslocar e se portarem. No filme, a distribuição se mostra presente na divisão

entre alas A, B, C, como já explicado. A segunda característica é a disciplina exercer um

controle sobre o desenvolvimento da ação, não apenas no seu resultado final. Os gestos são

observados, afim de descobrir qual é o mais eficaz e melhor. O resultado da observação do

comportamento do paciente Teddy levou a encenação, que é a história do filme, afim de

produzir um saber-verdade. A terceira é a vigilância perpétua e constante dos indivíduos,

caracterizada de todos aqueles que vigiam os pacientes. Por fim, há o registro contínuo,

anotações, que passarão do cargo mais baixo para o mais alto, de modo que nenhuma

observação passe despercebida, fato que é corroborado pela manutenção dos registros dos

pacientes da instituição. (Foucault, 1979, p 61).

Na ilha, onde o perímetro é limitado, vigiado, isolado e controlado, não é necessária

a estrutura arquitetural do Panóptico desenvolvido por Bentham e descrito por Foucault

como sendo uma estrutura na qual cada indivíduo está sozinho, individualizado e

constantemente visível, onde esta última representa uma armadilha, o que cria um estado

consciente e de alerta sobre o prisioneiro, assegurando o funcionamento do poder, pois a

instituição psiquiátrica já fornece isso. O poder nela é invisível e inverificável. Para

Foucault, essa forma de poder se originou nas monarquias vigentes na era Clássica,

caracterizadas por permearem, produzirem coisas, induzirem ao prazer, formarem saber e

produzirem um discurso e não apenas serem repressivas, sendo, dessa maneira, contínuas,

ininterruptas e individualizadas em todo o corpo social.

Para o filósofo, são necessários três diferentes e complementares instrumentos

disciplinares: a vigilância e internalização do controle, a sanção normalizadora e o exame.

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O primeiro deles, a vigilância, pode ser vista no filme no fato de que a ilha possui apenas

uma saída, o cais, que é vigiado constantemente e existe também o controle pela instituição

da balsa que leva até ela. Característica por ser perpétua e constante, possui na figura do

parceiro, que também é o médico responsável por Teddy, Chuck, o seu principal meio. Um

outro exemplo de vigilância pode ser encontrado na cena em que Teddy interroga os

funcionários da instituição psiquiátrica para tentar descobrir se algum deles viu a suposta

paciente fugitiva escapar. No seguinte trecho descrito, fica evidente a vigilância contínua e

a irritação do diretor ao descobrir que ela foi violada:

Dr. Cawley: Você estava vigiando, certo?Vigia: Sim.Vigia: Ninguém entraria ou sairia do quarto no corredor sem que eu visse.- Certo, Rachel Solando... Por quem mais ela tinha que passar para chegar aqui?(...)Dr. Cawley: Ficou no posto a noite toda?Vigia: Talvez eu tenha ido ao banheiro.Dr. Cawley: O quê? Violou o protocolo? Cristo!

A sanção normalizadora, entendida por Foucault como o que define o normal do

anormal, pode ser identificada no filme em dois momentos: primeiro quando logo no início

do filme os agentes vêem que existe, na instituição, uma polícia corretiva. Um segundo

momento que a sanção normalizadora poder ser vista que é o fato de no local serem

realizadas lobotomias nos pacientes, que também, ao final do filme, será o destino do

personagem de Teddy. A lobotomia é o fim dos pacientes que não têm os seus corpos

docilizados. Por mais que os doentes presentes na instituição sejam "terminais", ou seja,

não serão ressocializados, eles deverão ser docilizados para não mais representarem perigo

uns aos outros evidenciando-se isso no filme na cena em que o personagem Teddy bate no

paciente George Noyce.

O último instrumento citado pelo autor, o exame, entendido como sendo o que

produz o saber-verdade (que desenvolveremos posteriormente no texto), é a vigilância

permanente, classificatória, que distribui, julga, mede, localiza e utiliza os indivíduos ao

máximo. também é representado no filme pela figura do parceiro de Teddy, Chuck, que

também é o psiquiatra dele e o diretor da instituição, Dr. Cawley. O exame realizado por

eles é ao final do filme, verificar se Teddy havia internalizado a verdade sobre sua situação

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na instituição, se ele havia se conformado com o seu passado e com o fato de ele ter matado

a sua esposa após chegar em casa e achá-la no quintal olhando seus filhos mortos no lago.

Podemos verficar no diálogo abaixo essa situação. Perceba que ao final desse diálogo,

Teddy volta a se referir ao seu médico como o parceiro na ilha, mesmo após ter sido

explicado quem ele era:

Teddy: Meu nome é Andrew Laeddis. E matei a minha mulher na primavera de 52.Chuck: Como você está hoje?Teddy: Bem. E você?Chuck: Não posso reclamar.Teddy: Qual o próximo passo?Chuck/Médico- Diga-me você.Teddy: Temos que sair desta ilha, Chuck.

Como mostrado no início da conversa anterior, o personagem de Teddy internalizou

a verdade porém, como será pontuado no diálogo abaixo, ele preferiu não acreditar e ser

lobotomizado:

Teddy: Este lugar me faz pensar.Chuck/Médico: Em quê, chefe?Teddy: O que poderia ser pior?Viver como um monstro...ou morrer como um homem bom?

A prática da lobotomia representa, dessa maneira, o fim último da produção do

saber-verdade, que, segundo o autor, é o objetivo primário da ciência e também do discurso

filosófico desde que esses se instauraram como os únicos meios de se chegar nesse saber-

verdade, que se tranforma no que se dá, em um acontecimento, ao invés de ser aquilo que é

(Foucault, 1979, pág. 66). As alucinações de Teddy se encaixam nisso. Para ele, elas eram

reais e existiam. Elas "eram". Entretanto, não eram acontecimentos científicos, não

poderiam ser provadas por fatos e nem testadas em laboratórios, em tubos de ensaio.

Segundo Foucault, a passagem da verdade/prova à verdade/constatação é um dos processos

mais importantes e relevantes na história da verdade. A partir dessa mudança, a verdade

começou a tomar forma a partir da produção de fenômenos constatáveis pelos sujeitos de

conhecimento.

A própria imagem da loucura de Teddy é um resultado de transformações históricas.

Na idade clássica, ela seria tida como parte do mundo e só se afastaria dele em caso de se

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tornar violenta ou perigosa. A partir do século XIX, quando os "loucos" passam a ser

internalizados, a loucura deixa de ser relacionada como uma relação do erro para ser

avaliada a partir da relação do indivíduo com o normal e o regular.

O hospital psiquiátrico, nesse contexto, torna-se o campo institucional onde se trata

de vitória e de submissão. As técnicas utilizadas para tratar loucos - isolamento,

interrogatório, punições, disciplina, trabalho obrigatório, recompensa e relações de posse

tinham por função fazer do médico o "mestre da loucura", em um jogo em que o que está

em questão é o sobre-poder do médico. Entretanto, não é na figura do hospício típico do

século XIX que Teddy é atendido. Um dos guardas, já no início do filme , diz que naquele

lugar eles fazem um tratamento diferenciado, e que os pacientes, antigamente tratados

através de torturas, recebiam ali tratamentos diferenciados. O Dr. Cawley, ao explicar para

Teddy o tratamento que ele tinha recebido era, embora ele não gostasse, feito através da

farmacologia, e através de terapias, nas quais os pacientes eram tratados com respeito.

Essa prática é vista por Foucault como sendo resultado de grandes reformas na

psiquiatria. As relações paciente-médico continuavam sendo relações de poder, mas este

era anulado, mascarado e eliminado. Se transfere nessa nova "antipsiquiatria" para o

paciente o poder de produzir a sua loucura e a verdade de sua loucura ao invés de reduzi-la

a nada (Foucault, 1979, pág. 72). Coloca-se as relações de poder da psiquiatria, antes

caracteristicas por serem o a priori da mesma, no centro do campo problemático e as

questiona. A psiquiatria passa, nessa nova configuração, a ser desmedicalizada, o que pode

ser observado no filme, como já referido nesse texto.

Teddy, ao ter sua crise nervosa ao final do filme, uma vez que já não estava

tomando seus remédios, administrados pelo Dr. Cawley, entra em uma crise: suas mãos

estavam paralisando, assim como outras partes de seu corpo e suas alucinações ficavam

cada vez mais constantes. Para Foucalt, “a crise pode ocorrer sem o médico, mas se este

quiser intervir, que seja segundo uma estratégia que se imponha a crise como momento da

verdade” (Foucault, 1979, pág, 65). Fica claro no momento em que o Dr. Cawley, ao ver

Teddy tendo sua crise decide intervir, expondo a ele qual era a sua real situação naquele

lugar.

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A partir da análise fica clara, portanto, a importância da obra de Foucault na

interpretação do filme “Ilha do Medo”, uma vez que inúmeros aspectos da mesma, em

especial a produção da verdade, podem ser verificados ao longo da narrativa do filme. Para

finalizarmos essa análise, uma última citação do autor que inspirou o presente trabalho:

“No fundo da prática cientifica existe um discurso que diz: “nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar” (Foucault, 1979, p. 65)

Bibliografia utilizada:

FOUCALT, M. Microfísica do Poder

____________. Vigiar e Punir

____________. História da Loucura