"CONTOS DE ESCOLA": A LITERATURA MACHADIANA COMO FONTE PARA HISTRIA DA EDUCAO.

Ligia Bahia de Mendona UERJ CNPq

No ano em que comemoramos o centenrio da morte de Machado de Assis, cuja ocasio

tem recebido inmeras homenagens, proponho uma anlise de Conto de Escola, que

narra a infncia de Pilar, a descoberta da delao, da corrupo, com destaque ao objeto

material presente na sala de aula: a palmatria. Discuto o castigo fsico atravs deste

objeto; remontando a outro castigo - o da alma -, pela gide do medo que impe, pela

humilhao sofrida, a tortura amorosa, presente nos mtodos jesuticos.

Notando como a literatura pode contribuir para que o historiador reconstitua um dado

contexto. Prpria da escrita machadiana, este conto, aparentemente falando sobre

aspectos de uma vida privada, se desdobra em uma srie de outros aspectos: a anlise

psicolgica das personagens, da sociedade, o retrato de uma poca.

Machado de Assis marca a literatura brasileira com sua forma nova de escrever, forma

que traz no seu bojo a vida do autor, seu tempo e o Rio de Janeiro de sua poca. Basta

ler nos textos de Machado onde ele recolhe o que viu e viveu.

Numa ousadia, caro leitor, busco articular a anlise do Conto de Escola e seu contedo

narrativo com minha temtica atual em pesquisa1.

Busquei, no livro, pistas deixadas por Machado, refletindo sobre aspectos ressaltados

nas discusses sobre o livro e as editoras, fazendo dois levantamentos para perceber o

movimento de produo, circulao e uso, para percebera atravs destes conceitos

cunhados por Roger Chartier a histria deste livro.

O Conto de Escola escrito em 1884 publicado em 1896, no livro Vrias Histrias,

trazendo material para estudo historiogrfico, pois seu narrador no apresenta

marcadamente dicotomia de carter, afastando-se de modelos julgadores das narrativas

do perodo anterior, porque nas mos de Machado de Assis este conto narra uma

infncia perdida; o pai opressor que v em Pilar um adulto diminuto; a escola no seu

processo educativo de formao para que o adulto cresa; o arrependimento de Pilar

por estar na escola enquanto da janela avista, num cu azul, por cima do Morro do

Livramento, um papagaio de papel; a figura srdida de Raimundo; o desleal Curvelo e a

presena autoritria do professor Policarpo. Em contraponto o narrador-protagonista diz

a fina flor do bairro e do gnero humano, com certa ironia, ao se referir aos

1 Os Colgios Jesuticos na Cidade do Rio de Janeiro no sculo XIX.

meninos vadios do espao externo: a rua. Estes so elementos desta narrativa, e no

nos enganemos: h mais do que simples descries das personagens e locais nos textos

machadianos. Se os textos machadianos so por comentadores voltados para uma

anlise psicolgica do comportamento e dos sentimentos das suas personagens, o que se

apresenta como uma histria individual tem como pano de fundo analisar a instituio

social daquilo que aborda no conto; neste caso a escola e seus elementos.

Como nos alerta Schwarz necessrio perceber as chaves da leitura machadiana,

decifrar seus enigmas faz parte desta leitura.

Podemos j decifrar alguns enigmas machadianos. O protagonista o prprio narrador

dando credibilidade a sua personagem. Outra chave a busca dos interesses sociais

ligados s histrias privadas fazendo aluso, ou uma crtica a sociedade da poca ou ao

momento histrico vivido.

Sua primeira publicao, na Gazeta de Notcias2, em 1884, jornal que consagra um

gnero novo - a crnica -, apoiado pelos maiores escritores da poca, entre eles

Machado de Assis, um grande colaborador do peridico. selecionado para coletnea

Vrias Histrias em 1896, pela editora da cidade do Rio de Janeiro, Laemmert & C

Editores.

As publicaes posteriores foram feitas pelas editoras da mesma cidade: H. Garnier

(1903, 1904, 1920(?), 1924(?)), W.M.Jackson Editores (1937, 1938, 1942, 1946, 1950,

1952, 1957), Jos Aguilar (1959), Civilizao Brasileira (1975) e O Globo (1997). E na

cidade de So Paulo, pela editoras: Mrito (1959) e tica (2000).

Dentre os livros, consultados na Biblioteca Nacional, nota-se uma preocupao com a

ilustrao, tanto para sua capa quanto para seu interior; ressaltamos edies no

encontradas na Biblioteca, como: o da editora Nova Aguilar, com sede no Rio de

Janeiro, lanado em 1994, A obra completa de Machado de Assis, cujo volume II tem

o ttulo Conto de Escola com ilustraes interessantes. A Cmara dos Deputados

lana em 2006, o Conto de Escola e outras obras curtas, contendo alm do Conto de

Escola, mais dez contos de Machado, livro que no pde ser consultado por estar em

fase de remanejamento na Biblioteca. Por fim, o livro lanado pela editora Cosac &

Naif, em 2002, com fonte na publicao da Editora Civilizao Brasileira de 1975, com

belssimas ilustraes de Nelson Cruz, inspirado em diversos artistas.

2 Inaugurado em agosto de 1875, fundado pelo jornalista Ferreira de Arajo.

Pensando sob o aspecto do mobilirio escolar percebe-se a ausncia de mesas

individuais no ano de 1840, e todas as ilustraes analisadas, exceto a da Nova Aguilar

(1994), mostram este tipo de material escolar, notando assim certa incoerncia destas

ilustraes no que se refere cultura material escolar, bem como a arquitetura com salas

bem arejadas, com boa iluminao e bastante espao. Estas so caractersticas

principalmente das Escolas do Imperador cujos prdios foram construdos ou

adaptados para tal, com uma srie de exigncias sobre higiene. A escola tratada pelo o

conto provavelmente parecida com a que Manuel A. de Almeida narra em Memrias

de um Sargento de Milcias:

Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno; morava este numa casa da rua da Vala, pequena e escura. Foi o barbeiro recebido na sala que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discpulos toda cheia de pequenos buracos para o tinteiro... (p.36)

A descrio acima feita de uma sala de aula que era no tempo do rei.

Torna-se relevante o percurso histrico deste livro, particularmente deste conto, para

notar diversos aspectos, presentes em outras fontes como, correspondncias, contratos,

entre outras; nos prefcios, nas advertncias, nas introdues ou nas ilustraes nota-se

riqussimas fontes de pesquisa. Enfim, do conto ao livro.

II - SEGUNDO ATO: A PALMATRIA

Buscando perceber a relao que havia entre professor-palmatria-aluno, pergunto se a

concepo desta relao era um castigo fsico - no o deixa de ser -, ou de uma tortura

amorosa, procurando refletir sobre a palmatria em diversos aspectos trazidos pela

historiografia e pela cultura do material escolar Algumas pesquisas na rea de histria

da educao tm destacado a arquitetura, o espao e o tempo escolar, porm sem

ressaltar e deter-se aos usos e prticas dos objetos encontrados neste ambiente conforme

nos alerta Bastos apud Vino Frago e Escolano Benito (2005), destacando o papel da

sala de aula ou as relaes entre os mtodos pedaggicos e a disposio espacial e dos

objetos. Nesta perspectiva, a anlise do mobilirio escolar reflete a pedagogia

utilizada (p.135).

Trazida cena pelo livro O Conto de Escola, mas no somente por este clssico3, a

palmatria traz questes instigantes para pensarmos a educao. Podemos considerar a

palmatria como mobilirio escolar? Qual a localizao da palmatria na sala de aula?

3 Como podemos observar em livros como: Memrias de um Sargento de Milcias de Manuel A de Almeida, O Ateneu de Raul Pompia, Cazuza de Viriato Correia, Infncia de Graciliano Ramos.

Quais seus efeitos? Em quais situaes era utilizada? E talvez o questionamento que

englobem estes primeiros seja: como era apropriada pela escola, qual sua

intencionalidade?

A palmatria um instrumento introduzido no Brasil atravs dos padres jesutas que a

utilizavam nos aldeamentos corrigindo as crianas ndias malcriadas, dando-lhes

palmatoadas, mas se para os indgenas este ato causava horror, pois no batiam em suas

crianas, para os jesutas, no entanto, era um sinal de amor, uma forma de disciplinar

para torn-las dceis. Deixamos para um pouco adiante estas proposies, caro leitor.

A palmatria em determinado momento, torna-se invisvel; pois em 1854

desaconselhado o seu uso pela Reforma Coutto Ferraz4. Porm no desaparece do

ambiente escolar, est l presente, ainda que sua localizao no seja mais o portal da

janela. Torna-se o invisvel visvel.

Tecendo fios entre a literatura machadiana e pistas no Arquivo Geral da Cidade do Rio

de Janeiro, opero com fontes que prope os agentes e as estratgias utilizadas para

reao Reforma. Operando com trs tipos de correspondncias, a saber.

Na escola da Freguesia de SantAnna, as cartas tratam de denncias encaminhadas a

Instruo Pblica pelos pais de alunos que sofriam todo o tipo de castigo corporal,

inclusive as palmatoadas, tratam-se de denncias feitas ao delegado que emite o ofcio:

Offcio do professor da 2 Escola publica de meninos da Freguesia de SantAnna Jos Joaquim Xavier. Apresentou-se-me hoje neta repartio Antnio Gouva queixando-se que seu filho menor Manuel Joaquim de Gouva, que freqenta a sua escola fora excessivamente castigado por Vm, o que com effeito reconheci pela simples inspeo ocula. (27 de junho de 1872)

H publicao destes castigos nos jornais da poca como o Mercantil e a Gazeta de

Notcias. Outra razo so as instigaes em torno de quem faria tais denncias, uma vez

que no Arquivo foi possvel garimpar pistas, como uma carta do delegado de Instruo

Publica ao Inspetor Geral de Instruo Publica na Corte, constando de um recorte de

jornal da Gazeta de Notcias sobre uma denncia de um castigo fsico: Conquanto eu

nem possa admitir que semelhante ocorrncia se d em escola publica deste districto,

dirigi-me immediatamente, a policia. Esta carta indica que o delegado no recebeu tal

queixa dos responsveis pelo aluno, mas foi surpreendido pela notcia do peridico.

4 Decreto n 1.331, promulgado em 17 de fevereiro de 1854 que aprova o Regulamento para a reforma do ensino primrio e secundrio da Corte.

Ainda as cartas em que os professores justificam seus atos e relatavam o que de fato os

levaram a aplicar determinado castigo corporal, como na carta da Professora da referida

escola, Josepha Thamaria Costa Pafsos que castigou com 4 palmatoadas a aluna:

Illmo... Note a Vsa. nunca na minha Escola usei de palmatria que esta a primeira vs que della me sirvo, depois de esgotados todos os outros meios de represso, e por pedido formal da me da menina, que declarou ser a filha incorrigvel por outro meio, a que tudo poder Vsa. Verificar, inquirindo das minhas disculpas e de seus prprios paes. III Escola Publica do Engenho Velho, em 17 de maio de 1876. (p.24)

Em meio a denncias de pais e as justificativas dos professores para cometer tais

castigos, deparei-me com uma delegao ou abaixo-assinado.

O documento dos Amantes da Instruo, assim se inicia: Ns abaixo assinamos

delegamos ao lente das Primeiras Letras dessa localidade da Instruo a castigar com

palmatria nosso filhos como alunos da dita aula (...).

Segue-se uma srie de assinaturas de pais, e destaco que ao longo deste documento, de

duas pginas de delegao, alguns pais no somente assinam, como complementam

escrevendo e (re)afirmando o uso da palmatria em seus filhos, como neste caso:

Francisco Antnio da Silva Brando a prova que castiguem ao seu filho conforme o

seu crime.

No documento no h data, nem local, porm supomos ter sido escrito aps a Reforma

Coutto Ferraz, pelo fato de dar autorizao a um ato provavelmente proibido ou

desaconselhado, possibilitando perceber a ausncia /presena da palmatria no ambiente

escolar.

Nestas cartas no se ouve a voz do aluno, protagonista deste ato juntamente com a

palmatria, diferente do Conto de Escola, onde Pilar narra sua trajetria escolar.

Podemos considerar estas cartas dos pais, dos professores, na delegao dos pais ao

professor para uso da palmatria, uma forma de resistncia, onde atravs era possvel

tornar verdadeiro o uso da palmatria.

TERCEIRO ATO: UM SALTITO DE CAPITU

Utilizando a expresso de Sidney Chalhoub5, damos um saltito de Capitu praticando o

movimento de ousadia, neste terceiro ato. Vamos da anlise do Conto de Escola, e do

objeto chamado palmatria, para, num movimento de exploso do que este objeto

representa adentrarmos em diferentes formas de castigos corporais que marcam corpos e

5 Cidade Febril: Cortios e Epidemias na Corte Imperial.

mentes, sendo prticas consideradas importantes na educao presente no interior dos

austeros Colgios Jesutas.

Mais que mobilirio escolar a palmatria uma ferramenta do mestre, de mos hbeis e

fortes.

A pedagogia humanista no exclua os castigos corporais como o uso da palmatria

e a tortura psicolgica, pois sua simples presena era o suficiente para que o aluno

vivesse sobre a gide do medo daquele instrumento.

No livro O Mtodo Pedaggico dos Jesutas, o padre Leonel Franca (1952), autor do

livro e jesuta astuto, faz uma descrio, uma anlise e a contra crtica do Ratio

Studiorum, Plano de Estudo dos padres, e a certa altura ele faz referncia metodologia

utilizada pelos jesutas analisando que compreende os processos didticos e os

estmulos pedaggicos.

Um dos exemplos dos processos didticos a preleo, conforme suas palavras so

insensivelmente dos processos didticos aos estmulos pedaggicos em pregados para

incentivar a atividade do aluno (p.60), contra-argumentando: os jesutas no eram

amigos dos castigos corporais. No os suprimiram de todo, mas alistaram-se

decididamente entre os que mais contriburam para suavizara disciplina (p.60).

Segundo o padre os castigos eram utilizados somente em ltimo caso s deveria

recorrer palmatria, dizia a regra do Prefeito de Estudos, quando no bastassem as

boas palavras e exortaes (p.62).

Os golpes no eram aplicados pelo professor, mas por uma pessoa especfica - o

Corretor-, indicando ser na presena de pelo menos duas testemunhas. No deveriam ser

desferidos no rosto ou na cabea e normalmente no podiam ultrapassar os seis golpes.

Constri a contra-fala a possvel crtica dirigida ao fato de uma ordem religiosa utilizar

tal instrumento, primeiramente analisando a normalidade e que no era motivo de

desonra para a sociedade do sculo XVI. Depois justifica, pois a utilizao no visava

humilhar o aluno, mas causar pequena dor fsica para disciplinar com eficcia; Franca

relata os professores, na solene investidura, recebiam oficialmente um chicote, citando

e no os recebia em vo, Pierre Tempte, Principal do Colgio Motaigu, mereceu a

triste alcunha de Grand fouetteur de enfants...6 (p.60).

6 Grande chicoteador das crianas (minha traduo).

O Ratio era o Plano de Estudo e teve seguido seus princpios e orientaes pedaggicas

nos Colgios da Companhia de Jesus brasileiros oitocentistas7 pois Franca (1943)

aponta que o Ratio Studiorum apesar se adaptou s mudanas do regime escolar de cada

pas.

O Conto de Escola alm do aspecto da anlise psicolgica ou da formao de carter,

trs a relao conflituosa entre professor e alunos. No Brasil de disciplina patriarcal, a

disciplina entendida como uma forma de instrumento do professor sobre os alunos.

No entanto, a exploso que se pretende neste terceiro ato justamente alertar para

outros tipos de castigos corporais e at mesmo a utilizao da palmatria, porm

apontando o seu sentido de resistncia, uma vez que estes mtodos j teriam sido

proibidos, atravs de emendas como as apresentadas por Baptista Pereira e Cunha

Mattos, em 1827, na reunio da Comisso de Instruo Pblica da Cmara dos

Deputados ou como a Reforma Coutto Ferraz, em 1854. Em sua tese de doutorado

Heloisa Villela (1998), ao tratar da primeira Escola Normal da Provncia, entre outras

abordagens, reflete sobre a tenso do como ensinar visto por professores da poca

em termos das punies cabveis, pois sem estas punies no conseguiam aprender.

Talvez, na tentativa de burlar as leis e algumas opinies, haja um aumento considervel

de outros castigos que sempre existiram.

Como os registrados nos Colgios Jesuticos: raspar a cabea com navalha, dos aoites,

das horas em joelho sobre o milho, as humilhaes, h sempre lugar nesta outra

pedagogia para a represso e a opresso.

Considero pertinente para refletir se houve realmente uma ruptura com a dor com

prazer, citado por Machado de Assis, e tantos outros que mantiveram contato com a

palmatria-, quando se instaurou as regras ou as normas disciplinares? Ou se apenas

deixam de castigar o corpo com um nico instrumento, ou de uma nica maneira

fsica-, para castigar e punir a alma, restringido-a a uma introspeco no mais

submetida pela dor, mas pela sano, ainda que para atingir um nico objetivo: a

disciplina.

LTIMO ATO: FECHAM-SE AS CORTINAS

Busquei no me deixar fascinar pelas fontes porque poderiam cegar-me, mas fugi da

neutralidade inexistente.

possvel encontrar em Pilar um pouco de Machado?

7 Tema que remete a uma das hipteses da minha pesquisa.

E a escola? Com suas normas para educar, disciplinar e formatar corpos e mentes,

mas vista, atravs dos diferentes perodos, como instituio mediadora importante na

construo da nao brasileira e formadora de uma identidade nacional nunca

alcanada, pois se d tendo como base a negao da multifacetada e colorida populao.

Fechamos as cortinas com uma velha/nova pergunta: qual o sentido da escola para os

que a freqentam? Quem so, onde esto, o que fazem, pensam e sentem os vrios Pilar

que, como no Conto da Escola, continuam freqentando os bancos escolares e, quem

sabe, vislumbrando atravs das janelas de suas salas de aula papagaios azuis,

vermelhos, amarelos que simbolizam os seus sonhos de voar.

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