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Anais

1a ediçãoRio de Janeiro, 2010

Serviço Social do Comércio

Seminário naCional Mesa BRasil sesC

Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

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seRViÇO sOCial DO COMÉRCiOPresidência do Conselho Nacionalantonio oliveira Santos

Departamento nacionalDireção-Geralmaron emile abi-abib

Divisão Administrativa e FinanceiraJoão Carlos Gomes roldão

Divisão de Planejamento e Desenvolvimentoluís Fernando de mello Costa

Divisão de Programas Sociaisálvaro de melo Salmito

Consultoria da Direção-GeralJuvenal Ferreira Fortes Filho

Gerência de Saúdeirlando Tenório moreira

Grupo Gestor do proGrama mesa Brasil sesC

CoordenaçãoClaudia márcia ramos roseno

Assessoria técnicaana Cristina Corrêa Guedes Barrosroberta de Vilhena Pires

Apoio técnico dos Departamentos Regionais do SESCTeresa Cristina Carvalho dos anjosCoordenadora do Programa mesa Brasil SeSC/al

luciana oliveira de azevedo nascimentoCoordenadora do Programa mesa Brasil SeSC/SC

Publicação do Seminário nacional mesa Brasil SeSC, realizado em 8 e 9 de outubro de 2008 em Brasília.

Apoio técnico-científicoInstituto de Estudos do Trabalho e Sociedademanoel Thedimmaurício Blanco

edição

Assessoria de Divulgação e Promoção/Direção-GeralChristiane Caetano

Coordenação editorialrosane Carneiro

Edição e revisãoDuas Águas Editoração e ConsultoriaCláudia Sampaioieda magri

Projeto gráficoana Cristina Pereira (Hannah23)

DiagramaçãoSusan Johnson

Seminário Nacional Mesa Brasil SESC (2010: Rio de Janeiro, RJ)

Anais Seminário Nacional Mesa Brasil SESC: segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias. 1. ed. -- Rio de Janeiro: Serviço Social do Comércio, 2010.

182 p. ; 21 cm.

Bibliografia: No final de alguns artigos

ISBN 978-85-89336-43-7

1. Segurança alimentar. I. Título.

CDD 363.192

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apresentação do Presidente do Conselho nacional do SeSC 07

apresentação da Direção-Geral do Departamento nacional do SeSC 09

introdução 10

aRtigOs

a expansão da oferta e a melhoria da distribuição de alimentos

Eliseu Roberto de Andrade Alves 30

Cenário da pobreza e da fome no Brasil

Ricardo Paes de Barros 38

o novo cenário da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil: implicações para políticas públicas

Carlos Augusto Monteiro 46

Desafios para uma política de segurança alimentar e nutricional integrada

Walter Belik 58

insegurança alimentar no contexto brasileiro

Renato Maluf 70

algumas notas sobre segurança alimentar e comércio internacional

Marta dos Reis Castilho 80

avanços recentes e ameaças à segurança alimentar mundial

Ricardo Abramovay 88

Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal?

Mauricio Teixeira Leite de Vasconcellos 98

a dimensão nutricional do Bolsa Família

Eduardo Rios-Neto 110

impactos do Programa de aquisição de alimentos no campo produtivo e social

Silvio Isopo Porto 120

Sumário

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agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

Porfírio Silva de Almeida 128

o papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro

Jorio Dauster 138

a dimensão da segurança alimentar nos programas de redução da pobreza

Wanda Engel 144

o fortalecimento da segurança alimentar nas políticas sociais

Crispim Moreira 152

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada

Ricardo Manuel dos Santos Henriques 158

a dimensão social da segurança alimentar

Paul Singer 170

Fome, ética e assistência

Danilo Santos de Miranda 174

anexo: Programação do Seminário nacional mesa Brasil SeSC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias 178

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Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

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Prezado leitor

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É com enorme satisfação que apresentamos a publicação Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias, fruto do Seminário nacional mesa Brasil SeSC, realizado em Brasília em outubro de 2008.

o mundo contemporâneo impõe a segurança alimentar e nutricional como con-dição sine qua non para caracterizar as nações modernas no século XXi. a sociedade brasileira está plenamente consciente de que esse é um dos mais importantes fatores de desenvolvimento socioeconômico do país.

Tradicionalmente, o empresariado do comércio no Brasil assume – das mais di-versas formas – sua responsabilidade neste tema e entende que é tarefa de todos contribuir de forma efetiva para superar seus desafios. Seja com inicia-tivas individuais, seja por meio das suas instituições sociais, o empresário, in-dependentemente da sua região e atividade, tem colaborado para consolidar a segurança alimentar e nutricional no Brasil. É árdua tarefa para a sociedade prover condições sustentáveis de longo prazo que permitam enxergar o futuro com otimismo.

neste sentido, inspira-nos especial orgulho a contribuição do mesa Brasil SeSC. a arquitetura do Programa promove, entre muitos outros objetivos, a articu-lação e mobilização dos atores em torno desta questão. Dentre os resultados mais expressivos ressalta-se a redução do desperdício nas diversas fases da cadeia alimentar.

o mesa Brasil SeSC enfrenta com visão inovadora o debate democrático e plural sobre os desafios da segurança alimentar e nutricional. o presente volume é o resultado desse anseio da instituição.

Boa leitura!

Antonio Oliveira SantosPresidente do Conselho nacional do SeSC

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Decorridos sete anos do lançamento nacional do Programa mesa Brasil SeSC, pode-se afirmar que ele veio ocupar um espaço importante na agenda da pro-moção da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros em situação de pobreza e exclusão.

não obstante a complexidade e abrangência das suas ações assistenciais e edu-cativas, o SeSC assumiu a difícil tarefa de promover o Seminário nacional mesa Brasil SeSC – Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias com o objetivo de promover uma reflexão articulada sobre a segurança alimentar e nutricional nos cenários nacional e internacional.

Congregando não apenas um conjunto de especialistas, mas também atores em todos os níveis, foram abordados temas que reforçam a concepção multifaceta-da da fome, promovendo uma ampla interlocução entre as políticas de seguran-ça alimentar – pautados na qualidade, quantidade, regularidade e dignidade no acesso aos alimentos – e as políticas de assistência social, que reconhecem a alimentação como um direito social garantido constitucionalmente.

Trazer estas questões à tona, além de oportuno, dado o cenário anunciado da crise dos alimentos, foi estratégico no enfrentamento dos desafios que levam à formulação de políticas e programas em prol daqueles que vivem em situação de insegurança alimentar. esta publicação se propõe, assim, a aprofundar teo-rias, confrontar pontos de vista e instigar reflexões a partir do conjunto de textos apresentados no Seminário.

Maron Emile Abi-AbibDiretor-Geral do Departamento nacional

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Seminário naCional Mesa BRasil sesC

Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias Introdução

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Desde meados dos anos 60, o Brasil tem se en-gajado de forma inequívoca no esforço global de combate à fome. o primeiro momento desta trajetória foi a assinatura do Pacto internacional dos Direitos econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), em 1966. nas décadas posteriores, o país renovou esse compromisso permanente-mente, não apenas marcando presença nos mais diversos foros internacionais e regionais sobre o tema, mas também introduzindo de forma prioritária a questão da fome e da segu-rança alimentar na agenda pública do estado e ampliando este debate na sociedade civil.

após a redemocratização do país, em 1988, o com-bate à fome e à desnutrição ganhou um caráter transversal, permeando praticamente todas as políticas setoriais: saúde, educação, cultura, preservação do meio ambiente e, naturalmen-te, políticas de combate à pobreza. atualmente, uma proporção significativa de programas so-ciais específicos tem desenvolvido tecnologias que visam à redução dos níveis de desnutrição, seja por meio da distribuição de comida e da ampla difusão de práticas adequadas de con-sumo e de tratamento dos alimentos, seja por meio do desenho de processos de redução do desperdício em toda a cadeia alimentar.

a acumulação de conhecimento do setor público nessas áreas tornou necessários a criação e o desenvolvimento de arcabouços institucionais participativos em todos os âmbitos do estado. na estrutura vertical do setor público brasilei-ro funcionam hoje conselhos de segurança alimentar nas três esferas (federal, estadual e municipal). estas entidades têm o papel não só de sensibilizar a população para uma das ma-nifestações mais hediondas da pobreza, mas

também o de ser o espaço de articulação de so-luções eficazes, que frequentemente precisam ter um caráter local.

na estrutura horizontal do estado, órgãos interse-toriais com diversos formatos e os mais variados instrumentos foram desenvolvidos desde a dé-cada de 90. muitos tiveram vida efêmera, outros foram aperfeiçoados. na verdade, trata-se de um processo de experimentação institucional, na busca permanente de ajustes para se enfren-tar com sucesso o desafio do combate à fome e à desnutrição.

assim, em 19951 se constituiu o Comunidade So-lidária, ao mesmo tempo em que se extinguia o Conselho nacional de Segurança alimentar (Consea), criado em 1993. este é um capítulo importante na história institucional do combate à fome no âmbito do estado. Se o Consea teve o mérito de introduzir o combate à desnutrição e à miséria na agenda da Presidência da repú-blica, o Comunidade Solidária tornou viável a ação do governo federal, ao introduzir conceitos instrumentais como parcerias, solidariedade e descentralização. o Comunidade Solidária foi inovador no desenho de uma metodologia de gerenciamento das ações públicas com base na integração e na descentralização das ações de governo e na abertura à participação e à parceria da sociedade. o objetivo comum era o de buscar as soluções mais adequadas para a melhoria das condições de vida das populações mais pobres.

as propostas do Consea e do Comunidade Solidá-

1 embora o Comunidade Solidária tenha sido criado por meio do Decreto 1366 de 12/01/1995, desde 1993 vinha sendo discutido e em 1994 algumas ações já tinham sido realizadas, como apontado por Peliano et al (1995) em texto disponível no site http://www.ipea.gov.br/pub/ppp/ppp12/parte2.pdf.

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ria já adotavam uma visão multidimensional e abrangente da segurança alimentar. nas pala-vras da então Secretária executiva do Comuni-dade Solidária, ana Peliano:

o combate à fome e à pobreza passa pela estabilidade da moeda, pelo crescimento econômico e pela redistri-buição da renda nacional. Passa também pela priorida-de conferida às áreas de saúde e educação, como políti-cas essenciais para a promoção da cidadania e inclusão social. Passa igualmente pela política de assistência so-cial voltada para a garantia dos mínimos sociais, para o atendimento das necessidades básicas, em especial dos segmentos mais vulneráveis da população brasilei-ra. e, finalmente, passa pela implementação de uma es-tratégia de ação que possa trazer benefícios imediatos para a parcela da população que não usufruiu os bene-fícios do crescimento do país. Tal estratégia reveste-se do reconhecimento de que o combate à pobreza não se esgota no âmbito restrito das ações sociais. mas não é cabível imaginar que milhões de brasileiros indigentes possam continuar aguardando os resultados de uma nova fase de desenvolvimento. eles demandam provi-dências imediatas que só terão eficácia se adotadas de forma continuada e conjunta, mediante união de esfor-ços do governo e da sociedade.assim, a dimensão nutricional do combate à fome

é apenas um dos elementos da estratégia pro-posta. a dimensão assistencial, a necessidade de iniciativas de caráter estrutural e o caráter emergencial da distribuição da renda como ins-trumento de acesso ao alimento já estavam sen-do pensados em 1995. Deve-se sublinhar que os elementos macroeconômicos, como a esta-bilidade da moeda e o crescimento econômico, visam incorporar à segurança alimentar fatores que influenciam diretamente a produção e o co-mércio da produção agrícola.

em 2003, o Programa Fome Zero introduziu novos determinantes no debate público sobre a fome, com a intenção de acrescentar ferramentas iné-ditas ao desenho e à implementação de políticas públicas neste campo. alguns pontos fortes do Fome Zero foram a promoção de um movimento de empoderamento das organizações da socieda-de civil e o apelo ao setor privado para contribuir na luta contra a fome e a insegurança alimentar. Como toda iniciativa pública de caráter abran-gente e complexo, o programa acumulou uma série de sucessos e de dificuldades. a mobiliza-ção efetiva dos diversos segmentos da sociedade rapidamente se constituiu em um ativo de gran-de relevância. assim, a sociedade organizada passou a atuar não apenas no âmbito nacional ou regional, mas também nos territórios locais.

Segurança alimentar e nutricional:

desafios e estratégias

Introdução

Por meio do Fome Zero, a provisão de acesso a alimentos ganhou novas dimensões, como di-namização da agricultura familiar, melhora dos mecanismos de distribuição e transporte e con-vocação dos representantes da sociedade civil e do setor privado para construir uma rede de proteção social capaz de identificar os bolsões de vulnerabilidade nutricional em todo o país.

Cristalizou-se, assim, um novo patamar, mais abran-gente e profundo, das políticas sociais ligadas à segurança alimentar. Hoje, elas assumem um caráter de promotoras do desenvolvimento das economias locais, das zonas rurais, das regiões metropolitanas, das populações tradicionais e das áreas geográficas assoladas pela desnutri-ção.

no setor público, uma das sinergias mais impor-tantes do Programa Fome Zero deu-se com o Programa Bolsa Família. este, como se sabe, surgiu em 2003, quando nele foram fundidos muitos dos programas públicos federais de transferência de renda. os ótimos resultados do Bolsa Família, em termos de redução da pobreza e da extrema pobreza, são de amplo conhecimento público. na área educacional, atribui-se ao programa o maior acesso à edu-cação Fundamental das crianças entre 7 e 14 anos de idade. o impacto do Bolsa Família no nível nutricional dos beneficiários, entretanto, ainda é pouco conhecido, mesmo pelos pes-quisadores.

em termos da coordenação e da articulação das várias entidades públicas envolvidas de alguma forma com o combate à fome e com a seguran-ça alimentar, diversos desenhos institucionais já foram testados. a configuração definitiva, que ainda prevalece, alocou a responsabilidade de articulação geral ao ministério do Desenvolvi-mento Social e Combate à Fome (mDS). este, por sua vez, criou, através da lei nº 11.346/06, lei orgânica de Segurança alimentar e nutri-cional (losan), o Sistema de Segurança alimen-tar e nutricional (Sisan). a losan “dispõe sobre as condições para respeitar, proteger, promo-ver, prover e monitorar a realização do direito humano à alimentação adequada por meio da instituição do Sistema nacional de Segurança alimentar e nutricional” (Presidência da repú-blica, 2006). a nova lei, portanto, consolida uma definição bastante ampla do conceito de segu-rança alimentar.

o Sisan é composto por órgãos e instituições das diversas esferas públicas, por fundações man-tidas pelo Poder Público, pelos Conselhos de

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Segurança alimentar e nutricional em todas as esferas, e por organizações privadas, com e sem fins lucrativos. o mDS, como órgão responsá-vel por executar e supervisionar a estratégia do Fome Zero, preside a Câmara interministerial composta por 18 ministérios. esta Câmara é responsável pela elaboração e coordenação da Política nacional de Segurança alimentar e nu-tricional (San).

a descrição de alguns momentos de inflexão histórica da segurança alimentar e nutricional, feita nas páginas anteriores, permite identifi-car um traçado institucional de consolidação e também põe em relevo a complexidade da agenda neste setor. esta consolidação acarre-tou a incorporação gradual de temas que, de forma direta ou indireta, compõem o quadro da segurança alimentar e nutricional: o papel dos diversos atores, as parcerias com a socie-dade civil, a eficiência e a eficácia das políti-cas públicas, a coordenação e a articulação de entidades públicas, a produção agrícola, a distribuição e o acesso ao alimento de boa qualidade, as iniciativas estruturantes, os di-reitos individuais, o comércio internacional e o desenvolvimento tecnológico, entre outros. este amplo e diversificado conjunto de temas dá uma amostra da riqueza e da complexidade do debate.

Toda esta miríade de temas indica claramente que a discussão séria não pode mais se ater apenas à questão do acesso e do aproveita-mento dos alimentos. Dessa forma, o Serviço Social do Comércio (SeSC), que desenvolve a maior rede nacional de programas de combate à fome, denominada mesa Brasil SeSC, reali-zou em Brasília, nos dias 8 e 9 de outubro de 2008, o Seminário Segurança alimentar e nutri-cional: desafios e estratégias.

o Seminário foi desenhado com o objetivo am-bicioso de incorporar o maior número possível de dimensões, de tal forma que se pudesse ter o quadro mais completo possível sobre a situ-ação atual e os desafios futuros da segurança alimentar no Brasil.

Diante de um amplo leque de alternativas para o formato do Seminário, optou-se por uma abor-dagem conceitual em três estágios:

1) discussão do instrumental técnico e das informações disponíveis sobre os diversos aspectos da segurança alimentar;2) a demanda e a oferta de alimentos, em um conceito mais amplo;3) a dimensão social da segurança alimentar.

Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Introdução

Uma vez definida a estrutura do Seminário, pro-curou-se reunir as personalidades mais desta-cadas – especialistas e representantes do poder público e do setor privado – em cada um dos temas, cujos textos resultantes de suas partici-pações constam nesta publicação.

Visamos, nesta apresentação, dar conta da rique-za do debate do Seminário, assim como extrair algumas trajetórias para o futuro, levando em conta particularmente os desafios do Programa mesa Brasil SeSC. a próxima seção apresenta os aspectos principais da discussão conceitual sobre o que é fome, sobre a quantificação da demanda por alimentos e sobre a eficácia dos principais programas de transferência de renda na redução da desnutrição. ainda na segunda seção, há uma reflexão sobre o papel do setor público no combate à fome e na garantia da se-gurança alimentar no Brasil.

a terceira seção aborda a oferta de alimentos em termos nacionais e globais, e analisa os fatores que podem vir a alterar a sua disponibilidade no futuro, tais como as condicionantes da produ-ção mundial, o comércio internacional, os bio-combustíveis e o financiamento das atividades agrícolas. Todos esses fatores afetam a oferta e a disponibilidade de alimentos no Brasil e nos países em geral.

a quarta seção, finalmente, sintetiza os aspectos mais importantes da dimensão social da segu-rança alimentar. nela, mostra-se como o acú-mulo de capital social, a promoção do direito à alimentação e o fortalecimento das redes insti-tucionais podem ser desenvolvidos por intermé-dio de programas e iniciativas de redução da desnutrição. Um olhar atento a esses aspectos pode ter enormes consequências no alcance e no impacto de programas como o mesa Brasil SeSC.

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IIA demAndA por segurAnçA AlImentAr e nutrIcIonAlem 1996, foi adotado na Cúpula mundial da alimentação, promovida pela orga-

nização das nações Unidas para agricultura e alimentação (Fao), o conceito de segurança alimentar. ele foi definido, como se poderá conferir adiante, no texto de Walter Belik, como a situação na qual “toda pessoa, em todo momento, tem acesso físico e econômico a alimentos suficientes, inócuos e nutritivos para satisfazer suas necessidades alimentares e preferências, a fim de levar uma vida saudável e ativa”. ressalte-se que esse conceito vai além do acesso à alimentação, ao se referir ao acesso permanente a uma alimentação adequada.

Posteriormente, em 2004, na Segunda Conferência nacional de Segurança alimentar e nutricional, realizada em olinda, foi aprovado no Brasil o con-ceito de Segurança alimentar e nutricional (San), que “é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitam a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambiental-mente sustentáveis”.

este conceito de San avança em relação ao da Fao, já que incorpora o direito básico à alimentação sem comprometer outros direitos previamente garan-tidos e também inclui dimensões culturais, sociais, ambientais e de saúde, que ampliam o conceito, tornando-o multifacetado e plurissetorial.

na origem, o direito à alimentação é um direito social básico, assegurado pelo inciso 1° do artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um primeiro problema que surge quando se aborda esta questão é o de que, em-bora o direito à alimentação seja universal, e deva ser estendido à população como um todo, alguns grupos se encontram em situações mais vulneráveis e, portanto, devem ser alvo de políticas públicas mais focalizadas.

Um dos desafios de uma estratégia de segurança alimentar é justamente o de definir quais são esses grupos. Quem e quantas são as pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil? Trata-se de assegurar o direito à alimen-tação, o direito à alimentação adequada, ou o direito à alimentação adequada de forma sustentada? Qual o patamar que define uma crise de segurança alimentar? existem várias abordagens para identificar uma população em situação de insegurança alimentar. Dependendo do método utilizado, o diag-nóstico, os resultados e as intervenções decorrentes poderão diferir de forma significativa.

o Seminário indicou que os argumentos conceituais e empíricos são igualmen-te relevantes para responder às perguntas acima. no primeiro caso, definir de forma conceitual o número de pessoas que passam por uma situação de vulnerabilidade nutricional apresenta dois pontos nevrálgicos: a) desnutrição não é apenas o resultado da falta de acesso ao alimento ou da sua baixa qua-lidade, mas decorre também da falta de educação alimentar adequada; b) a relação entre renda e desnutrição parece não ser tão óbvia.

no caso da estimativa empírica da demanda por alimentos, os instrumentos públicos disponíveis hoje apresentam sérias deficiências metodológicas e pecam pela falta de informações sobre as redes informais de solidariedade em torno do alimento.

Segurança alimentar e nutricional:

desafios e estratégias

Introdução

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demanda por alimentos: conceitosnas exposições de Walter Belik (Unicamp) e de Carlos augusto monteiro (USP),

apresentou-se um diagrama, aqui reproduzido, que ajuda a discutir a fome conceitualmente. Parte-se do conceito mais amplo de insegurança alimentar, que abrange populações em risco, e chega-se finalmente ao núcleo duro, que seria o círculo da fome. Um aspecto importante, e que foi objeto de amplo debate durante o Seminário, é a relação entre pobreza e fome: no diagrama, todas as pessoas que passam fome são pessoas em situação de pobreza (seja esta absoluta ou relativa).

a fome, porém, é parte do fenômeno mais amplo da desnutrição. neste caso, não se trata somente da falta de acesso à alimentação, mas também da falta de acesso à alimentação adequada. a alimentação inadequada caracteriza-se tanto pela obesidade, que afeta apenas uma pequena parcela da população em situação de extrema pobreza, quanto pela insuficiência na ingestão de nutrientes, que atinge não somente os extremamente pobres, mas também os que estão fora desta situação.

Fonte:Takagi & Graziano da Silva, 2004.

Diagrama 1: insegurança alimentar

assim, a partir desse diagrama, surgem quatro constatações, que indicam o quão complexa é a definição de grupos de pessoas assoladas pela fome, pela desnutrição e pela subnutrição:

a) a fome refere-se primordialmente à falta de acesso a alimentos e, em segundo lugar, a deficiências na alimentação;

b) a fome é um fenômeno exclusivo da população em situação de extre-ma pobreza;

c) a fome e a obesidade são fenômenos de desnutrição;

d) a obesidade atinge essencialmente a parcela da população que não está em situação de extrema pobreza.

o primeiro ponto reflete certo consenso de que a fome deve ser entendida como falta de acesso ao alimento e deficiência na alimentação. Carlos au-gusto monteiro dividiu a fome em fome total e fome parcial ou oculta. a fome total refere-se à inanição – isto é, a falta pura e simples de alimentos. Já a fome parcial é aquela na qual há falta permanente de determinados elemen-tos nutritivos e, portanto, ela é muito relacionada à desnutrição.

Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Introdução

fOMe

OBesiDaDe

DesNutRiÇãO

iNseguRaNÇa aliMeNtaR

pOBRezaextReMa

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Há, entretanto, obstáculos que praticamente im-possibilitam a mensuração direta do número de pessoas que passam por um quadro de desnu-trição. nas palavras de monteiro:

as dificuldades técnicas em se medir de forma confiável a ingestão alimentar habitual dos indivíduos e suas correspondentes necessidades energéticas tornam difícil, se não impossível, a mensuração direta e precisa da extensão da fome ou da deficiência energética crônica em uma população. Dois fatores dificultam a avaliação da ingestão calórica dos indivíduos: a grande variabilidade na ingestão diária de calorias em um mesmo indivíduo, o que torna necessário estender a avaliação por um grande número de dias, e a virtual inexistência de métodos de avaliação que não interfiram com o padrão de ingestão alimentar, sobretudo quando o indivíduo é estudado por um longo período de tempo. não menos complexa é a determinação da necessidade real de energia de cada indivíduo, havendo novamente que considerar as amplas variações individuais decorrentes de variações genéticas, variações do estado fisiológico (gestação, lactação) e variações do padrão de atividade física.

os dois fatores mencionados por monteiro expli-cam parcialmente porque é útil olhar para a ren-da quando se discute a fome. Como as pessoas que passam fome são aquelas que não possuem acesso aos alimentos, uma forma de se pensar o assunto é, evidentemente, avaliar se a renda é suficiente para a alimentação.

Quando ela não é teoricamente suficiente, che-ga-se ao grupo definido como o dos extrema-mente pobres. o trabalho de ricardo Paes de Barros (ipea), porém, colocou em questão essa identidade simples entre falta de renda para se alimentar e fome. Definindo a fome como a fal-ta de alimentos em quantidades que possam satisfazer as necessidades nutricionais de um indivíduo por um mês, ele nota que passariam fome aquelas pessoas que não possuem renda suficiente para adquiri-los, ou seja, as pessoas que possuem renda mensal abaixo do custo da cesta básica (segundo o estudioso, r$ 88 per capita).

entretanto, observou Paes de Barros, quando se leva em consideração que as pessoas possuem outras necessidades além da nutricional, e que o gasto com alimentação estimado representa aproximadamente 36% do total da renda dos 10% mais pobres, o montante de renda necessá-rio para as pessoas se alimentarem deveria ser bem maior, equivalente a r$ 243 mensais. isso significa, em outras palavras, que o número de pessoas com fome superaria em muito o daque-

Segurança alimentar e nutricional:

desafios e estratégias

Introdução

las que moram em famílias com renda per capita mensal inferior a r$ 88.

assim, o número de pessoas que passam fome pode estar subestimado, caso se faça uma associação direta com o número de extrema-mente pobres. a fome, portanto, não seria um fenômeno exclusivo daquelas pessoas em situ-ação de extrema pobreza. mas Paes de Barros apresentou um argumento adicional, que torna ainda mais complexa e sutil a sua análise do fe-nômeno da fome no Brasil. os indicadores an-tropomórficos, mesmo se considerando os seus problemas e imprecisões (objeto de outras apre-sentações no Seminário), indicam que a fome e a desnutrição no Brasil não devem superar os 10% da população. estão, portanto, muito abai-xo do número de pessoas que vivem em famílias com renda per capita de até r$ 243, que abrange cerca de 40% da população. este fato, para Paes de Barros, sugere que o papel das redes formais (das quais a maior é o mesa Brasil SeSC) e infor-mais de suporte alimentar e nutricional no país têm um peso muito significativo na redução da fome e da desnutrição.

resumindo os argumentos, é possível afirmar que as famílias extremamente pobres ou próximas da pobreza podem enfrentar uma situação de fome dependendo dos seguintes fatores:

a) a porcentagem alocada da renda monetá-ria para a compra de alimentos;

b) a capacidade de ter acesso a alimentos por outros meios além da disponibilidade de renda monetária, como as redes de solidarie-dade alimentar e nutricional;

c) a eficiência de cada família para aprovei-tar os alimentos disponíveis, seja através de (a) ou de (b).

os três fatores acima possuem um impacto signi-ficativo não somente para se calcular o núme-ro de pessoas que efetivamente se encontram numa situação de vulnerabilidade nutricional severa, mas também para definir os formatos e a abrangência das políticas públicas e dos pro-gramas públicos e privados de combate à fome. Dessa forma, para se identificar de maneira mais precisa e verossímil o número de pessoas com fome, é preciso levar a sério e mapear os mecanismos de solidariedade que operam na sociedade na distribuição de alimentos, para além das iniciativas públicas.

não apenas grandes programas formais com for-matos semelhantes ao do mesa Brasil SeSC, mas também outras intervenções informais po-

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dem estar contribuindo para aliviar a demanda insatisfeita por alimentos. o volume dessas ini-ciativas pode ser significativo – tanto no número de beneficiados quanto no impacto na redução da desnutrição –, dado que a fome mobiliza de forma mais dinâmica as ações de solidariedade social do que, por exemplo, a insuficiência de renda. em outras palavras, as pessoas e a socie-dade em geral tendem a ser mais ativas no alívio do espetáculo degradante da fome do que na as-sistência em relação a outras carências típicas da pobreza e da extrema pobreza.

assim, uma tarefa importante para o futuro em curto prazo é a de coletar e sistematizar as in-formações sobre as redes de assistência ali-mentar: o número de beneficiários atendidos, a natureza da iniciativa, o tipo de instituições que promovem essas ações, as modalidades da dis-tribuição dos alimentos, entre outros aspectos. o conhecimento aprofundado dessas questões pode vir a se constituir em fator crucial para o desenvolvimento e fortalecimento do Sisan, as-sim como para sua articulação eficiente com o conjunto de políticas e programas públicos.

a eficiência de cada família em aproveitar os ali-mentos disponíveis está ligada ao conceito de nutrição. aqui, entra-se no também complicado terreno da definição de termos como nutrição, subnutrição e desnutrição. Carlos monteiro de-fine a nutrição como um complexo processo de etapas que tornam viáveis a sobrevivência, o crescimento, o desenvolvimento e a reprodução do indivíduo, e no qual a ingestão de alimentos é apenas a primeira delas. a nutrição, neste enfo-que, só se conclui com a absorção dos nutrien-tes presentes nos alimentos pelo organismo. o termo desnutrição refere-se, portanto, a distúr-bios determinados pela ingestão insuficiente de alimentos ou por doenças que tornem insu-ficientes a ingestão ou a absorção (neste tipo de abordagem, exclui-se a obesidade).

monteiro acrescentou que a população vulnerável à fome define-se por um conjunto de carências: insuficiência de renda, acesso deficiente a ser-viços de saúde, problemas de saneamento bá-sico, más condições habitacionais, exposição à degradação ambiental e pouca educação.

o pesquisador não discutiu apenas a desnutrição da população vulnerável à fome, mas a ótima nutrição para todos. a população brasileira tam-bém encontra problemas relacionados ao con-sumo excessivo e desequilibrado de alimentos. Sinais desse tipo de desequilíbrio são os dados referentes à obesidade, que é o segundo fator de

mortes no Brasil, à pressão alta, que é o terceiro e está ligado ao consumo excessivo de sódio, e ao colesterol alto, que é o quinto fator de mor-tes, ligado ao consumo de gordura de origem animal e de alimentos processados.

Belik levou em conta todas as dificuldades apon-tadas por monteiro e Paes de Barros, ao abordar a definição de quem passa fome e de quem tem problemas nutricionais com a seguinte reco-mendação:

essas situações diversas mostram que o caminho é o de desenvolver alguns indicadores que possam dar conta de explicar a maioria dos fatores de risco, identificando claramente o que denominamos anteriormente de núcleo duro da pobreza extrema e da insegurança alimentar. esses indicadores devem reunir informações da renda familiar, saúde, educação, condições de moradia e percepção de segurança alimentar.

essa recomendação derivou de uma constatação que ficou clara diversas vezes durante o Semi-nário: a insegurança alimentar é um fenômeno complexo e multifacetado para o qual ainda não se obteve um consenso amplo em termos de definição, de estabelecimento de indicadores e, consequentemente, do cálculo efetivo do núme-ro de pessoas vulneráveis. esta falta de conver-gência na definição e na forma de medir trans-mite-se, irremediavelmente, ao planejamento e à montagem de iniciativas e intervenções para combater a fome e as carências nutricionais. resumidamente, a dificuldade de definir o ini-migo torna mais difícil a tarefa de combatê-lo.

o exemplo do Programa Bolsa Família é muito pe-dagógico em demonstrar esse problema, como ficou evidente na apresentação de eduardo rios-neto (CnPD), pesquisador dedicado nos últimos anos a avaliar os efeitos do programa.

rios-neto mostrou as dificuldades da avaliação de impacto do Bolsa Família, mencionando proble-mas metodológicos como a inexistência de ale-atorização dos beneficiários. isso significa que não é possível comparar grupos selecionados para serem beneficiários do Bolsa Família na si-tuação em que um deles é sorteado para ingres-sar efetivamente no programa e o outro não, de tal forma que este último sirva de grupo de con-trole perfeito. na impossibilidade de assim proce-der, até por conta de restrições éticas colocadas pelos gestores do Programa, restou o enorme desafio de constituir um controle adequado, o que significa trabalhar com os chamados grupos de tratamento, ou seja, buscar na população que não foi selecionada para o Bolsa Família pesso-as que tenham características as mais similares

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Introdução

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possíveis com aquelas que o foram. esta é, sem dúvida, uma dificuldade para se mensurar o im-pacto real do Programa. Feitas estas ressalvas sobre o alcance técnico do seu trabalho, rios-neto apresentou dois resultados centrais e inter-relacionados das suas pesquisas:

a) os beneficiários do programa mostraram, consistentemente, um diferencial positivo nas despesas com alimentos quando com-parados com os não beneficiários; isso indi-ca que o programa tem o impacto desejável de prover recursos para a complementação do orçamento de alimentação das famílias;

b) não foi possível, entretanto, identificar diferenciais significativos nos valores antro-pométricos entre beneficiários e não benefi-ciários; nesse caso, e até de forma aparente-mente contraditória com o item a, não surge o efeito esperado de melhora nos indicado-res que medem a fome e a desnutrição entre os beneficiários do Bolsa Família.

mesmo levando-se em conta os problemas meto-dológicos que podem ter influenciado as duas conclusões anteriores (e cuja discussão foi parte importante da apresentação do próprio rios-neto), os resultados reforçam os questio-namentos e as perplexidades já mencionados nos trabalhos de monteiro e Paes de Barros. em primeiro lugar, a insuficiência de renda não se mostra um indicador fidedigno do número de pessoas que se encontram na condição de fome, já que não se registraram diferenças sig-nificativas entre os beneficiários do Bolsa Famí-lia que recebem transferência e populações de características semelhantes que não recebem. em segundo, os resultados apresentados têm uma implicação importante de política social: a falta de diferença significativa nos indicadores antropométricos dos dois grupos sinaliza que programas de transferência de renda podem não ser os mais eficazes no combate à fome.

essa constatação, por sua vez, fortalece a visão de Crispim moreira, representante do ministério do Desenvolvimento Social, sobre a efetividade das principais ações que integram o Fome Zero. elas não se baseiam apenas na transferência de re-cursos, como o Programa Bolsa Família e o Pro-grama nacional de alimentação escolar (Pnae), mas também incluem ações de incentivo ao agri-cultor familiar, como o Programa nacional de Fortalecimento da agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de aquisição de alimentos (Paa). esses últimos têm sido de extrema importância essencialmente no nordeste, cuja agricultura

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desafios e estratégias

Introdução

familiar representa 83,3% dos estabelecimentos rurais nordestinos e 82,9% da ocupação da mão de obra, como mostram os dados apresentados por Porfírio Silva de almeida, do Banco do nor-deste.

Um último ponto de destaque, do qual tratou mau-rício Vasconcellos (iBGe), é o conhecimento so-bre a eficiência de cada família em aproveitar os alimentos disponíveis. É uma questão ligada di-retamente a uma das diretrizes estratégicas do mesa Brasil SeSC, que se apropria de alimentos que seriam desperdiçados na cadeia alimentar para combater a fome dos seus beneficiários.

Todo o conjunto de ações do mesa Brasil SeSC volta-se para o objetivo de reduzir o desperdício na oferta, na distribuição, no tratamento domi-ciliar e no consumo de alimentos. assim, o Pro-grama capta parte dos estoques excedentes da produção agrícola e de alimentos produzidos in-dustrialmente; reduz o desperdício de alimentos na distribuição e comercialização; e desenvolve um conjunto de ações educativas que contribui para o processamento do alimento e dissemina práticas adequadas de alimentação.

iniciando suas ações nutricionais em 1947, para seu público específico – os trabalhadores de co-mércio –, o SeSC passou a desenvolver, a partir da década de 90, uma série de iniciativas neste campo, voltadas ao público mais geral. o mode-lo Colheita Urbana foi adotado em 1997 e foram implantados bancos de alimentos no rio de Ja-neiro, no Ceará e em Pernambuco, entre 2000 e 2001. em 2003, foi lançado o Programa mesa Brasil SeSC, uma rede nacional de solidarieda-de contra a fome e o desperdício de alimentos. entre fevereiro de 2003 e dezembro de 2008, fo-ram distribuídos 108.425.300 kg de alimentos, beneficiando 1.175.528 pessoas, amparadas por 5.554 entidades assistenciais. Para isso, foi fun-damental o compromisso social de participação no programa de 3.324 doadores.

o mesa Brasil SeSC, portanto, tem muito a ga-nhar, em termos de eficiência do Programa, com o conhecimento aprofundado das diversas formas do desperdício alimentar no Brasil. essa foi uma das constatações feitas por mauricio Vasconcellos na sua apresentação “Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal?”, da qual recortamos um fragmento:

a quantificação do volume de desperdício na cadeia produtiva é um elemento importante para as políticas de abastecimento e para a avaliação nutricional embutida nas pesquisas mundiais de alimentos (...). o conhecimento do volume de desperdício durante o

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consumo (em residências e em serviços de alimentação) permite estimar a quantidade de energia e nutrientes não ingerida, aperfeiçoando as estimativas sobre o estado nutricional da população. (...) ou seja, a coleta e distribuição pelo Programa mesa Brasil SeSC dos alimentos que seriam desperdiçados pode crescer até o limite do desperdício total de alimentos produzidos, desde que o programa seja capaz de apropriar-se de todos esses alimentos, evitando que se transformem em desperdício. assim, o conhecimento desse limite permitiria avaliar a eficácia do Programa e planejar metas para seu crescimento.

o conhecimento de todas as formas de desper-dício, segundo Vasconcellos, envolve etapas desde a pré-colheita de produtos agrícolas (não pertinente para os objetivos do presente docu-mento) até o momento do consumo. Dois eixos são particularmente importantes:

a) o desperdício a partir da pós-colheita até o consumo: armazenamento nas diversas fa-ses, transporte, comercialização no atacado, comercialização no varejo, compra, conser-vação no domicílio, preparação dos alimen-tos e o próprio ato de consumir;

b) o desperdício gerado pelos próprios pa-drões de consumo e pelas exigências comer-ciais do agronegócio: padrões de industriali-zação, de embalagem dos produtos etc.

assim, o desafio é tentar mensurar o volume e o conteúdo calórico e energético do desperdício, utilizando os instrumentos disponíveis. É mais uma tarefa, portanto, que demanda uma análise empírica da questão alimentar no Brasil.

demanda por alimentos: aspectos empíricosa existência de diversos conceitos para um mes-

mo fenômeno faz da sua medição um desafio, já que diferentes dimensões pedem diferentes indicadores. em relação à fome e às questões nutricionais em geral, observam-se basicamen-te quatro categorias de indicadores: os que se referem à renda; os antropométricos, como ade-quação da altura à idade, do peso à altura, e o índice de massa corporal; a disponibilidade de alimentos por pessoa; e, finalmente, a insegu-rança alimentar.

essa multiplicidade refletiu-se na diversidade de fontes de dados utilizadas pelos palestrantes. Foram apresentados indicadores da organiza-ção das nações Unidas para a agricultura e alimentação (Fao); da organização mundial de

Saúde (omS); e bases de dados do instituto Bra-sileiro de Geografia e estatística (iBGe), essen-cialmente da Pesquisa nacional por amostra de Domicílios (Pnad) e da Pesquisa de orçamento Familiar (PoF). Também foram mostrados indi-cadores da Pesquisa nacional de Demografia e Saúde (PnDS), realizada em 2006, e de outras pesquisas. À diversidade de fontes de dados so-mou-se a variação dos anos e dos períodos das estimativas.

o que se depreende das apresentações é que os indicadores antropométricos são utilizados quando se deseja medir a subnutrição ou des-nutrição, enquanto os indicadores de renda e de disponibilidade de alimentos estão mais rela-cionados à fome propriamente dita. em alguns casos, os mesmos indicadores foram medidos a partir de bases de dados diferentes. e houve até situações nas quais com as mesmas bases de dados foram encontradas estimativas dife-rentes.

Segundo Walter Belik, “começando pelos indica-dores de caráter antropométrico ou de perfil clínico, observa-se que uma redução nos indica-dores de pobreza extrema não se refletiu direta-mente sobre uma queda de indicadores como a desnutrição crônica infantil ou mesmo a subnu-trição (medida pelo indicador de disponibilidade da Fao)”.

Belik definiu, como objetivo a ser perseguido, o desenvolvimento de um sistema de indicadores que possa dar conta de explicar a maioria dos fatores de riscos nutricionais. ele teria de reve-lar, portanto, a interação de dimensões como renda familiar, saúde, educação, condições de moradia e indicadores antropométricos.

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IIIcenárIo e perspectIvAs dA ofertA de AlImentos no BrAsIla alta recente dos preços dos alimentos, em 2007 e 2008, levantou temores

sobre uma possível crise global na oferta de comida. a alta foi determinada essencialmente pela queda dos estoques globais, e é amplamente sabido que esses preços são determinados no mercado internacional. assim, as flu-tuações no âmbito internacional provocam tendências similares de preços no mercado doméstico. a questão que surge, portanto, é a de saber quais são as implicações dessa alta dos preços para a segurança alimentar e nutricio-nal, especialmente no Brasil.

Como lembrou marta Castilho (UFF), o comércio internacional é um dos deter-minantes da quantidade de alimentos ofertados domesticamente. o mercado global pode complementar a oferta doméstica de alimentos, ou auxiliar no escoamento de excedentes. os preços de alimentos no mercado doméstico, portanto, refletem os preços internacionais, convertidos pela taxa de câmbio, e as tarifas da política comercial.

em sua apresentação no Seminário, marta Castilho explicou que uma das atri-buições da política comercial é a de minimizar os efeitos das flutuações dos preços internacionais nos preços domésticos. as políticas comerciais utili-zam tarifas aduaneiras ou barreiras não tarifárias (como restrições quantita-tivas, por exemplo). Dessa forma, pode-se encarecer o produto estrangeiro, protegendo o produtor doméstico, mas também restringindo as possibilida-des de compra dos consumidores.

medidas de proteção à produção local foram utilizadas intensamente no pós-guerra, para estimular a produção regional. o objetivo era o de manter a se-gurança alimentar por meio da estabilização da oferta doméstica e da garan-tia de rendimentos para os agricultores dos países em situação de risco.

no Seminário, o modelo atual de comércio internacional foi amplamente ques-tionado. Diante de uma possível crise global da oferta de alimentos (o Semi-nário foi realizado em um momento em que os preços das commodities ainda estavam próximos ao seu pico), vários conferencistas defenderam a revisão das bases do comércio internacional nesse setor, consideradas excessiva-mente liberais.

nesta seção, o objetivo é o de analisar a evolução da oferta de alimentos e as perspectivas de médio e longo prazo dos preços e das quantidades no cenário nacional e mundial. entender os determinantes do mercado global de alimentos e suas interações com o mercado doméstico é importante para avaliar os impactos na segurança alimentar e nutricional no Brasil, o que também será aqui tratado. e há ainda o debate sobre os biocombustíveis, que podem gerar mudanças na produção agrícola e levar ao encarecimento global da comida. Por fim, discute-se o papel do financiamento das ativida-des agrícolas.

evolução da oferta de alimentos: preços e quantidadeos preços internacionais dos alimentos apresentaram um crescimento acen-

tuado de 2003 até 2008 com a forte volatilidade de alguns produtos agríco-las. mesmo com o recuo das commodities desde o início da crise financeira global, no segundo semestre do ano passado, alguns analistas consideram que o mundo estava rumando para uma grande crise mundial de alimentos

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em meados de 2008. o processo foi interrompi-do pela desaceleração global, mas suas causas estruturais ainda podem estar presentes. neste caso, a crise de alimentos pode reaparecer no momento em que houver uma retomada da eco-nomia mundial.

Há, portanto, uma importante discussão sobre o tema, que poderia ser sintetizada nas seguintes perguntas: a) Trata-se realmente de uma crise estrutural? b) existe uma tendência de médio e longo prazo de elevação do patamar dos preços, ou simplesmente se verificou, no movimento de 2003 a 2008, o retorno a um nível anterior de pre-ços? c) Quais fatores explicam a forte elevação dos preços? d) Qual o papel da estrutura atual do comércio internacional na tendência de pre-ço dos alimentos e, portanto, qual é o espaço e a efetividade da intervenção estatal?

renato maluf (Consea), na sua palestra, subli-nhou que a expectativa é de que os preços se estabilizem num nível mais alto do que aquele que prevaleceu por algumas décadas até 2003, uma vez que se atinja um novo equilíbrio depois do boom, cujo auge se verificou em 2008, e da correção que se segue. não se sabe qual será a nova estrutura de preços relativos no setor de alimentos quando se alcançar esse novo pata-mar. ele nota ainda que, mesmo que a correção atual esteja devolvendo parte do sobrepreço atingido no pico do boom, em partes, a elevação de preços a partir de 2003 foi efetivamente uma recuperação de perdas reais sofridas pelos pro-dutos agrícolas no passado.

Já eliseu alves (embrapa) previu que aquela alta era apenas transitória, e que os preços tende-riam a se estabilizar, e até mesmo a cair. ele acrescentou que, analisada numa perspectiva histórica, a elevação até meados de 2008 não foi tão acentuada. alves argumentou que o salá-rio mínimo no Brasil tem se elevado a um ritmo muito mais acelerado do que o preço da cesta básica. isso significa, portanto, que o encareci-mento dos alimentos é mais uma percepção do consumidor no momento e no local da compra, e não um aumento em relação aos preços da economia como um todo.

alves também lembrou que, antes do aumento re-cente dos preços dos alimentos, houve, a partir da década de 70, um longo decréscimo, que re-presentou uma transferência real de renda para os consumidores. essa queda dos preços agrí-colas decorreu do crescimento da produtivida-de da agricultura brasileira e de outros grandes produtores de commodities, processo iniciado,

no caso nacional, em 1975. apesar da alta des-de 2003, os preços já estiveram em patamares mais elevados, como ocorria, por exemplo, em 1975.

Por outro lado, continuou alves, há uma cren-ça generalizada de que não deve ocorrer uma interrupção dos ganhos de produtividade de-correntes do avanço tecnológico na produção agroindustrial, o que indica uma continuidade da redução de preços como tendência de longo prazo.

esta visão foi questionada por ricardo abramo-vay (USP), em sua apresentação no Seminário, como fica evidente no seguinte trecho:

(...) são claros os sinais de esgotamento das bases técnicas sobre as quais se apoiou o imenso sucesso da revolução Verde, que responde por parcela muito significativa da redução da fome no mundo nos últimos anos. a energia barata que permitiu a ampliação sem precedentes das safras está em claro processo de esgotamento.

a revolução Verde, por ele mencionada, foi a com-binação de avanços tecnológicos e investimen-tos que permitiu um vasto aumento na produ-ção agrícola nos países subdesenvolvidos. ela se caracterizou, principalmente, pela invenção e disseminação de novas sementes e práticas agrícolas, com a intensiva utilização de semen-tes melhoradas (particularmente as híbridas), insumos industriais (fertilizantes e agrotóxicos), mecanização e diminuição do custo de manejo. em outras palavras, a revolução Verde é fruto do uso intensivo da tecnologia no plantio, na ir-rigação e na colheita.

esse aumento de produtividade, no entanto, teve custos ambientais pesados. Para abramovay, as bases técnicas daquela revolução não serão suficientes para reagir, em termos de ampliação da produtividade e de barateamento dos pro-dutos, ao aumento populacional esperado até 2050. a principal proposta por ele apontada para enfrentar esse desafio está na intensificação da abordagem ecológica na produção agrícola. isso significa redirecionar a pesquisa e a tecnologia do setor, buscando combinar os avanços na preservação ambiental com o aumento da pro-dutividade. nessa visão, a produção não poderá mais se apoiar na energia fóssil e no consumo de água em alta escala. Trata-se de mobilizar o capital humano e político hoje empenhado na causa ecológica para a resolução simultânea do problema de garantir a oferta adequada de alimentos.

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Diante do desafio dessa oferta em um mundo de população crescente, e que aumenta seu con-sumo per capita, existem os que enxergam a uti-lização de sementes transgênicas como forma consistente de elevar o rendimento da produção agrícola, sobretudo em ambientes ecologica-mente frágeis. essa solução, porém, enfrenta dois obstáculos principais: o primeiro é a forte oposição aos organismos geneticamente mo-dificados, por causa da redução da diversidade genética e do controle que um reduzido número de grandes corporações exerce sobre os trans-gênicos; o segundo é o fato de que, embora representem economia no uso de agrotóxicos e água, os transgênicos ainda exigem grandes volumes de fertilizantes, cujo custo tende a cres-cer com a alta das matérias-primas (interrompi-da com a crise econômica global, mas que pode ser retomada, se for um fenômeno estrutural).

em relação à questão específica da tendência dos preços dos alimentos, maluf ressaltou a impos-sibilidade de se fazer prognósticos robustos:

avaliações ficam ultrapassadas em poucos dias. Dois meses atrás, o quadro poderia ser sintetizado como uma conjuntura – de fato, não apenas uma conjuntura, pois era uma tendência que já vinha de alguns anos – de crescimento bastante significativo da demanda mundial por alimentos, associado a uma elevação acelerada dos preços. (...) Com a atual crise financeira é possível que se assista a uma desaceleração da economia mundial, afetando o emprego e a renda e consequentemente a demanda por alimentos e os programas sociais.

marta Castilho sublinhou que essa volatilidade é resultado também da especulação nos merca-dos internacionais, que influencia os preços das commodities e as taxas de câmbio, ambos deter-minantes para o preço doméstico da alimenta-ção. assim, segundo o pesquisador, a incerteza gerada pela volatilidade dos preços tem sido um dos fatores que explica a atual crise internacio-nal de alimentos.

as exportações são outra variável importante quan-do se pensa nos possíveis impactos na seguran-ça alimentar. os preços internacionais, notou Castilho, determinam a parcela da produção na-cional que será dirigida aos mercados externos. Com a possibilidade de vender sua produção no exterior, o produtor somente a ofertará no merca-do doméstico se puder obter preço semelhante ao do mercado internacional. assim, face a uma elevação dos preços internacionais, ou bem ele passa a privilegiar as exportações, ou então re-passa o aumento para o mercado doméstico.

determinantes dos preços dos alimentosem relação às causas da alta dos preços verifi-

cada até o ano passado, houve certo consenso entre todos os participantes. a causa mais cita-da é o crescimento de países emergentes como a China, o Brasil e a Índia, que fez com que a população mais pobre passasse a comer mais e melhor, pressionando a demanda global por alimentos e seus insumos.

outra causa importante é a elevação do preço do petróleo, que incide no custo dos fertilizantes e dos transportes. Uma consequência adicional do encarecimento do petróleo é tornar mais atraente a produção dos biocombustíveis. o crescimento da exploração desses substitutos do petróleo tem sido apontado também, embora em menor grau, como causa do aumento dos preços dos alimentos. Há, finalmente, as mu-danças climáticas, que (possivelmente) ao tor-narem mais frequentes e imprevisíveis fenôme-nos extremos como secas e chuvas abundantes, também teriam sido limitadoras da produção agrícola nos últimos anos.

Sobre o crescimento da produção de biocombus-tíveis, notou-se que, embora nos estados Unidos se tenha incentivado a substituição de culturas agroalimentares pelo milho para produção de etanol, no Brasil não parece ter ocorrido o mes-mo tipo de processo com a cana-de-açúcar. a exceção, no caso brasileiro, como apontado por eliseu alves, foi alguma substituição do plantio de milho por cana-de-açúcar, mas que não pa-rece ter elevado significativamente o preço do cereal. o que ocorreu de forma mais intensa no Brasil nos últimos anos, segundo o especialis-ta, foi a substituição de diferentes lavouras, in-clusive a cana-de-açúcar, pela soja – o que, ob-viamente, não afeta negativamente a oferta de alimentos.

em relação aos movimentos especulativos e fi-nanceiros, a constatação mais relevante foi a de que os principais produtos agroalimentares, como trigo, milho e soja, se converteram em commodities. Como tal, viraram alvo da especu-lação financeira global, tornando-se sujeitos às flutuações do mercado. a todos esses fatores somam-se as quebras de safras ocorridas em várias partes do mundo, possivelmente ligadas a fenômenos climáticos.

Se, na visão dos participantes, todos esses fato-res contribuíram conjuntamente para a alta dos

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preços dos alimentos, o aumento da demanda (na esteira do crescimento econômico de gran-des países emergentes) e a alta do preço do petróleo foram apontados como as principais causas. eliseu alves, porém, foi o único para quem apenas a elevação do petróleo pode ser considerada uma causa dominante. o encare-cimento do petróleo, ele observou, incidiu sobre os custos dos fertilizantes, dos transportes e da infraestrutura, levando os produtores a planejar seus negócios com mais cautela, o que reduziu o ímpeto de crescimento da oferta.

Todos esses fatores foram agravados pelo fato de que, face ao momento de crise que teve sua cul-minância em meados do ano passado, muitos países restringiram suas exportações, reduzindo ainda mais a oferta internacional de alimentos.

oferta de alimentos e crise de insegurança alimentar no Brasila alta dos preços de alimentos afeta os países de

diferentes formas, que variam de acordo com o seu grau de desenvolvimento. a crise tem um impacto maior nos países mais pobres ou com um contingente maior de pessoas pobres. es-sas nações, de forma geral, exportam bens pri-mários, mas são importadoras de alimentos, o que as torna mais vulneráveis ao aumento dos preços. Já os países ricos reagem à alta liberali-zando as importações de alguns produtos para ampliar a demanda doméstica.

em relação aos países de renda média, há vários que, como o Brasil, são grandes exportadores de alimentos e vêm aumentando sua produtivi-dade, o que reforça ainda mais sua posição de celeiros da humanidade.

esta força do Brasil como produtor agropecuário leva a uma percepção de que a alta interna-cional dos preços dos alimentos é uma gran-de benesse para o país. Quando se considera a segurança alimentar, porém, a ideia de que aquilo que é bom para o agronegócio também é bom para o Brasil se complica. embora não tenha havido no Brasil uma crise de oferta quan-titativa de alimentos, mesmo no momento mais crítico do ano passado, isso não significa que a segurança alimentar esteja assegurada, e mui-to menos a soberania alimentar. Como já ficou evidente em outras seções deste documento, a produção total de alimentos de um país, mesmo que em teoria suficiente para alimentar toda a sua população, está longe de significar a inexis-

tência de fome ou da desnutrição; o grande en-trave à segurança alimentar reside basicamente no acesso aos alimentos.

renato maluf destacou que, embora no Brasil os impactos da inflação internacional de preços te-nham sido atenuados quando comparados com outros países e embora não tenha havido desa-bastecimento, o custo de aquisição da cesta bá-sica, segundo dados do Dieese, aumentou nas principais capitais estaduais entre 27% e 52% nos dozes meses encerrados em maio de 2008. o aumento dos preços no início de 2008 atin-giu essencialmente a população de baixa renda, cujo gasto proporcional com alimentos é maior.

marta Castilho, por sua vez, ressaltou que o co-mércio internacional pode ser um fator prepon-derante na segurança alimentar, como comple-mento à produção nacional. mas ela faz uma importante ressalva:

(...) para que se garantam os objetivos de segurança alimentar (e também de segurança dos alimentos), é necessário que se reconheçam as limitações do mercado e dos objetivos puramente econômicos de eficiência produtiva no que se refere às questões de abastecimento e de acesso aos alimentos.

Já ricardo abramovay defendeu a regulação no âmbito nacional, pois não se pode confiar unica-mente no comércio internacional para garantir a segurança alimentar. ele explicou que existem no Brasil ao menos dois modelos de agricultura, ambos integrados nas cadeias agroindustriais e participantes do processo de exportação: o agro-negócio (ou agricultura patronal) e a agricultura familiar, que é muito heterogênea. abramovay enfatizou, referindo-se principalmente à agricul-tura familiar, que não é o agronegócio brasilei-ro como um todo que se beneficia da inserção no mercado mundial na forma como ela ocorre atualmente. essa opinião é compartilhada por maluf, como mostra o seguinte trecho de sua apresentação:

estudos mostram estarem elas [as exportações] também sob controle de um reduzido número de grandes empresas e corporações, como ocorre em todos os componentes do sistema alimentar global (insumos agrícolas, industrialização de alimentos, distribuição-varejo).

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IvA dImensão socIAl dA segurAnçA AlImentAr

a última seção deste documento está voltada para aquele que talvez re-presente o maior desafio atual para as iniciativas de combate à fome e de garantia da segurança alimentar no Brasil – a inter-relação com o conjunto das políticas sociais. a ideia chave é fazer do direito à alimentação um alicerce da questão global da emancipação e da superação da pobreza, levando-o além do imprescindível e fundamental atendimento da necessi-dade orgânica de nutrição.

os três palestrantes convidados para discutir o tema – Wanda engel (instituto Unibanco), Paul Singer (mTe) e ricardo Henriques (BnDeS) – trouxeram à tona três pontos cruciais da assistência social moderna, e que estão profun-damente ligados, seja por sua presença ou ausência, à história da questão social na sociedade brasileira:

a) a evolução dos programas sociais, em termos de instrumentos, abran-gência e objetivos estratégicos;

b) o fortalecimento da sociedade civil, por meio do adensamento do teci-do social;

c) a transformação do acesso ao bem-estar social em um processo eman-cipatório por meio do qual populações carentes e marginalizadas levem-se ao patamar de plena vigência de direitos individuais e sociais, que seria, afinal, estendido a todos os brasileiros.

essa visão moderna de intervenção social, integrando todas essas dimen-sões, quebra a velha dicotomia entre assistência social e assistencialismo. a apresentação de Wanda engel foi pedagógica na sua proposta de superar esse dilema:

longe de pensar que existe uma dicotomia entre dar o peixe e ensinar a pescar, para as pessoas que vivem na extrema pobreza não há dúvidas de que é preciso dar o peixe, ensinando a pescar. É absolutamente importante oferecer programas de proteção social. esses programas não podem ser desqualificados sob o título de assistencialismo, uma vez que sem eles torna-se muitas vezes impossível começar qualquer processo de desenvolvimento humano, social e econômico. Tais políticas podem ser classificadas como assistencialistas caso se transformem num fim em si próprias e não no ponto de partida de um processo de desenvolvimento.

Para ilustrar seu ponto de vista, Wanda engel descreveu as cinco gerações ou etapas de programas sociais referindo-se a uma evolução histórica orgâ-nica, que precedeu sua análise e classificação. o quadro a seguir (extraído da apresentação da pesquisadora) sintetiza a evolução das políticas sociais a partir de variáveis como foco, proteção social, desenvolvimento humano, desenvolvimento social e demandas específicas.

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É importante notar que as três últimas etapas mudam o foco do indivíduo para a família, dentro da visão de que a superação das condições de pobreza é uma tarefa a ser perseguida no universo das inter-relações familiares. num passo além, os programas de última geração já incorporam a dimensão da territorialidade, na qual se trabalha a coletividade na sua inserção específica – geográfica e socioeconômica – no resto da sociedade.

Paul Singer reforçou esta visão:Quando a família se dissolve – hoje há uma crise familiar no mundo inteiro, não é só no Brasil – as grandes vítimas são as crianças. Temos que tentar fortalecer os laços afetivos no seio das famílias, fazer com que a revolução feminina – uma das grandes revoluções da nossa época – contribua para o fortalecimento da família.

esse tipo de reflexão, que foge à pauta convencional da proteção social, é uma mostra da grande evolução recente do tema. o que era visto como uma sim-ples questão de acesso a alimentos caminhou para a garantia de uma renda mínima (sem dispensar a primeira etapa), e para o acesso prioritário a pro-gramas assistenciais. as dimensões familiar e territorial fecham esse ciclo. na verdade, à medida que diminui o número de pobres, a população que permanece nesta condição é crescentemente aquela mais desprovida das ferramentas da cidadania, e a que mais demanda uma visão holística de po-lítica social para atingir a sua emancipação.

Wanda engel notou que o desenvolvimento social não era uma dimensão pre-sente nas três primeiras gerações de programas. na quarta geração, a di-mensão social finalmente aparece, mas ela ainda se limita a uma extensão próxima ao indivíduo: a do fortalecimento da família. É somente na quinta e última geração que surgem temas como o fortalecimento do tecido socioe-conômico das comunidades, a consolidação das suas organizações de base e os planos de desenvolvimento local. o mais interessante, porém – e funda-mental para a reflexão dos gestores e participantes do mesa Brasil SeSC –, é que os programas de segurança alimentar, que ainda são percebidos às vezes

Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Introdução

Cinco gerações de programas de redução da pobreza

foco proteção social

Desenvolvimento Humano

Desenvolvimento econômico

Desenvolvimento social

Demandas específicas

Distribuição de alimentos

indivíduoSegurança alimentar

Saúde Sistema distributivo

Transferências não condicionadas

indivíduo renda mínima mercado consumidoragências bancárias (aB)

Transferências condicionadas

Família renda mínimaSaúde e educação como condicionalidades

mercado consumidor

- aB - Sistema integrado de informação de Beneficiários (SiiB)

Programas integrais de desenvolvimento familiar com transferência condicionada

Família

- renda mínima - acesso prioritário a programas assistenciais

- Saúde e educação como condicionalidades - acesso prioritário a programas de educação, saúde e habitação

acesso prioritário a programas de capacitação, geração de renda, inserção no trabalho e crédito

Fortalecimento da família

- aB - SiiB - Sistema integrado de informação sobre Programas e Serviços (SiiPS) - Promotor de famílias

Programas integrais de desenvolvimento familiar e comunitário com transferência condicionada

Família e território

- renda mínima - acesso prioritário a programas assistenciais

- Saúde e educação como condicionalidades - acesso prioritário a programas de educação, saúde e habitação

- acesso prioritário a programas - Projetos produtivos locais e infraestrutura

- Fortalecimento da família

- Fortalecimento das organizações de base: Plano de Desenvolvimento local

- aB - SiiB - SiiPS - Promotor de famílias - agente de desenvolvimento comunitário

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como iniciativas da primeira geração, podem perfeitamente se integrar numa es- tratégia global de política social de quinta geração. Como observou Wanda engel:

Programas de segurança alimentar poderiam contribuir para o incremento do capital social dos grupos mais pobres caso incluíssem ações de fortalecimento da família, qualificação de instituições intermediárias (prestadoras de serviços sociais) e fortalecimento das organizações de base local. Por outro lado, poderiam promover um aumento da coesão social entre grupos de diferentes contextos socioeconômicos se previssem ações de fomento da responsabilidade social como doação de alimentos e trabalho voluntário.

Fica claro, portanto, que uma das tarefas que se impõem, para programas liga-dos ao combate à fome e à garantia da segurança alimentar, é identificar e intensificar, nas suas muitas ações, as características de quinta geração. ou, em outras palavras, buscar os caminhos, já existentes de forma potencial ou efetiva no interior dos próprios programas, que levam a uma visão totalizante e emancipatória de política social.

na ótica integrada dos objetivos estratégicos de uma política social moderna dissolvem-se naturalmente os dilemas anteriormente mencionados, como assistencialismo versus intervenções de caráter estrutural, ou transferência de renda versus distribuição direta de complemento alimentar.

De forma muito complementar à apresentação de Wanda engel, ricardo Hen-riques (BnDeS) abordou as ações de fomento da responsabilidade social, o trabalho voluntário e o fortalecimento de redes sociais. Segundo Henriques, “a reflexão sobre a política social no Brasil, considerando, entre outras, as áreas de segurança alimentar, educação, assistência social, saúde, sanea-mento, meio ambiente e transporte, deve remeter inicialmente às alternativas sobre o modelo de desenvolvimento do país”. ao colocar a política social não como acessório, mas como parte central do desenvolvimento econômico, Henriques pôs em primeiro plano a necessidade de se reformular e ampliar a esfera pública para adequá-la ao atendimento daquele objetivo.

a premissa inicial do argumento de Henriques é simples. Um modelo de de-senvolvimento que exclui uma parcela significativa da população do direito à segurança alimentar e de uma série de outros direitos básicos da cidadania é simplesmente um modelo falho. assim, é impossível imaginar que a inclusão social possa ser um processo paralelo e acessório a um modelo fundamen-talmente excludente. o erro básico está no modelo e não haverá medida pa-liativa que substitua a tarefa incontornável de reformá-lo para inserir no seu âmago uma estratégia social que garanta a inclusão de todos no círculo dos direitos básicos da cidadania.

Para que isso ocorra, entretanto, é preciso não apenas que existam programas e políticas sociais integrados. É necessário que entrem na pauta do governo e da sociedade questões como territorialização da política social e preserva-ção e fortificação do tecido social. É preciso também atrair e constituir novos atores, que se engajem e reforcem a estratégia comum de combate à pobreza e às suas diversas carências específicas. no âmbito do setor público e das diversas organizações privadas e da sociedade civil que participam desse esforço comum, algumas das principais fragilidades, observou Henriques, são a fragmentação, o isolamento setorial e a sobreposição das inúmeras iniciativas de políticas e programas sociais. essas falhas estão na origem de gargalos estruturais, que prejudicam a agilidade e a qualidade da implemen-tação de programas e políticas.

as considerações de Henriques são um útil pano de fundo para discutir as potencialidades de programas como o mesa Brasil SeSC:

Colocado em perspectiva histórica, o mesa Brasil SeSC deve pensar sua expansão em um cenário de médio e longo prazos. Há que se colocar a questão sobre qual a principal

Segurança alimentar e nutricional:

desafios e estratégias

Introdução

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meta a ser perseguida. a disjuntiva inicial parece ser entre priorizar o aumento da escala e da cobertura do programa ou consolidar um desenho institucional que conceda maior autonomia e sustentabilidade para os objetivos do programa.

Henriques deixou clara sua preferência pela segunda alternativa:o cenário de intervenção no médio prazo deveria, portanto, estar orientado para aproveitar a tecnologia social de sensibilização e mobilização desenvolvida pelo programa e a importante cobertura territorial das redes instaladas em 290 municípios como base de uma maior integração com outros programas nessa área. o principal desafio seria, portanto, reorientar essa tecnologia social no sentido de contribuir para uma maior coordenação entre distintos programas, atores e instituições envolvidos na pauta de segurança alimentar.

as reflexões de Wanda engel e ricardo Henriques sobre a integração das po-líticas sociais e a constituição do espaço público em torno do direito básico à alimentação apontam caminhos para os programas ligados à segurança alimentar. Fica evidente que muitas dessas iniciativas dispõem hoje de uma infraestrutura institucional e territorial e de um acúmulo de experiência que habilitam os seus gestores a torná-las parte de uma agenda integrada de se-gurança alimentar e nutricional nas localidades onde estão presentes. essa agenda, por sua vez, pode se integrar a uma estratégia globalizante de eman-cipação social.

Um tema correlato é a ampliação do espaço público, que não se restringe ape-nas à incorporação de outros atores e de seus objetivos na agenda pública da segurança alimentar e nutricional. a construção desse espaço público am-pliado, com múltiplos atores, deve ser acompanhada da transformação das políticas públicas de viés assistencialista e compensatório em ações emanci-patórias, nas palavras de Paul Singer. ele mostrou, em sua apresentação, que esse é justamente o objetivo último do Conselho nacional de economia Soli-dária e do Grupo de Trabalho amazônico, entre outros movimentos sociais:

Talvez o trabalho essencial no combate à pobreza, para eliminá-la de vez, seja uma luta de resgate humano. os pobres estão acostumados a essa condição, sobretudo os pobres hereditários. Da grande maioria dos pobres, no Brasil, o pai, o avô, o bisavô já eram pobres. então, cria-se uma cultura de aceitação, de resignação e até de crença de que somos inferiores mesmo, porque não fomos à escola e por isso não temos conhecimentos. É uma ideia falsa. mas está lá. então, dar a essas pessoas a oportunidade de acreditarem em si é absolutamente essencial.

Sem a transformação mencionada por Singer, se corre o risco de agravar uma contradição descrita por Belik em sua apresentação:

Há uma evidente contradição no desenho das políticas públicas voltadas para a garantia dos direitos sociais. (...) a revisão das políticas sociais colocou para dentro do estado, através de reformas constitucionais ou outros processos, uma série de direitos que haviam sido conquistados pela população ou por categorias sociais isoladas ao longo das décadas passadas. em um contexto de fragilidade financeira e ruptura social, como o da década de 90, a política social reaparece de forma precária – e não mais universal, privilegiando a extrema focalização dos benefícios. nesse contexto, os direitos sociais se concretizam de forma mercantilizada, vigiada pelo estado e em troca de condicionais. De um lado rompe-se com os preceitos de atendimento de direitos, em que a política seria executada para todos os cidadãos de forma individual e sem contrapartidas. De outra parte, as políticas de focalização imprimiram maior eficiência ao estado, o que acabou por garantir a inclusão, em termos concretos, de um maior número de famílias sob o guarda-chuva dessas mesmas políticas.

Para Singer, a economia solidária é uma etapa natural no processo de eman-cipação. Dessa forma, é um caminho que pode ajudar a romper a dicotomia entre o ideal da universalização e a necessidade da focalização. o represen-

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Introdução

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tante do mTe frisou que o empoderamento da família não é viável sem o for-talecimento simultâneo da comunidade de que ela é parte. assim, a focaliza-ção na família pode se ampliar para a abordagem da comunidade integrada ao seu território, preenchendo as lacunas de cidadania no tecido geográfico e social, a caminho da universalização.

Singer notou que a Secretaria nacional de economia Solidária (Senaes) possui um programa de desenvolvimento de comunidades pobres, o Brasil local, que atua por meio de agentes de desenvolvimento solidário. É um programa que trabalha com o conceito de endodesenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento de dentro para fora, e não de fora para dentro. os agentes de desenvolvimento são responsáveis pela articulação dessas comunidades com o resto do país.

Como já mencionado, o conjunto de fatos e análises desta seção oferece muito material para as reflexões do mesa Brasil SeSC e dos programas sociais em geral. Combinados com o conteúdo das outras seções, forma-se um amplo pai-nel sobre a segurança alimentar – inserida no desafio mais amplo da política social –, do qual se podem extrair eixos estratégicos para se pensar os rumos de médio e longo prazo de cada programa.

Um dos elementos mais constantes, e marcantes, de todas as apresentações é o caráter multifacetado da questão social. É impossível se pensar em comba-te à fome ou emancipação social se não forem colocados juntos, e de forma integrada, aspectos como cidadania e direito básico à alimentação, adensa-mento do tecido social e das relações institucionais, consolidação da auto-nomia e da autossustentabilidade de redes e instituições, inclusão social e educação. Todos esses temas estão, sem sombra de dúvidas, profundamente implicados em um programa como o mesa Brasil SeSC.

o Seminário organizado pelo SeSC procurou contribuir para o debate sobre se-gurança alimentar, buscando – de forma estruturada – uma visão abrangente do tema, que se expandisse além dos objetivos imediatos de programas como o mesa Brasil SeSC. Do debate, surgiram lições importantes que são um sub-sídio muito útil para a reflexão futura não só sobre o mesa Brasil SeSC, mas também sobre a segurança alimentar em geral e sobre a política social em seu sentido mais amplo. Também é evidente, por outro lado, que dois dias de deba-tes revelaram saudáveis dissensos e perplexidades, como seria de se esperar de uma discussão madura em uma sociedade democrática e plural.

Caracterizar uma situação de vulnerabilidade alimentar revelou-se uma tarefa complexa, para a qual uma abordagem adequada não pode prescindir de uma trabalhosa diversidade de prismas e enfoques. É um caso típico em que simplificar não é necessariamente o melhor caminho. entre as muitas dificuldades da tarefa, estão a definição do que se entende como fome, a quantificação e a identificação das pessoas expostas a esta vulnerabilidade e o mapeamento das suas características. Tudo isso é importante para detec-tar as causas da insegurança alimentar e combatê-la. essa é uma agenda, aliás, que engatinha – não há clareza ainda nem mesmo sobre a natureza dos instrumentos de medição do fenômeno, cujos alcance e qualidade são extremamente discutíveis.

Um segundo eixo de reflexões dirigiu-se ao comércio internacional de alimen-tos. aqui, a questão central é como o papel crescente do mercado externo e a especulação financeira a que ele está submetido afetam o mercado interno e, consequentemente, a segurança alimentar. o novo cenário de mercados de alimentos crescentemente globalizados apresenta-se quase como uma rup-

Segurança alimentar e nutricional:

desafios e estratégias

Introdução

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tura em relação ao passado, indicando a provável ocorrência de mudanças estruturais. Há, contudo, elementos conjunturais envolvidos, ligados às enor-mes oscilações da economia global. É preciso cautela antes de saltar para conclusões muito definitivas sobre o papel das transformações do comércio internacional na segurança alimentar dos países. a recente crise econômi-ca global, por exemplo, pode criar sérias restrições à demanda mundial por alimentos, ajudando a atenuar – de forma perversa, sem dúvida – a crise de oferta que se configurava em meados de 2008.

os avanços tecnológicos da revolução Verde, ao incrementarem a produtivi-dade, contribuíram para tornar viável o grande aumento per capita de consu-mo de alimentos das últimas décadas. agora, porém, essa revolução esbarra numa nova agenda que não pode ser mais ignorada. Já não é possível pensar em agronegócio sem levar em conta a preservação do meio ambiente e o desafio de conciliar a produção de alimentos com a de biocombustíveis.

ao reconhecer o direito humano à alimentação, inserindo o beneficiado no conjunto de direitos da cidadania, os programas de segurança alimentar ul-trapassam seus limites tradicionais, e vão além do essencial atendimento da necessidade orgânica da nutrição. Qualquer reflexão mais profunda sobre o tema precisa incorporar a visão mais ampla da questão social, como discu-tido na seção anterior. É um debate no qual entram temas como os distintos papéis do estado, da sociedade civil e do setor privado, com o reconhecimen-to mútuo de que a tarefa não pode recair apenas em um único ator.

o Seminário assumiu o objetivo estratégico de promover um grande encontro de visões, de olhares disciplinares, de atores e de temas. Dissensos e consen-sos foram permanentemente estabelecidos ao longo de dois dias de intenso trabalho. É bom que assim seja, pois esta é a verdadeira contribuição para um debate constante e enriquecedor em médio e longo prazos.

Para dar condições de uma reflexão autônoma e mais aprofundada para os interessados, a seguir publicamos na íntegra os textos das apresentações de cada um dos palestrantes, que generosamente se dispuseram a sistematizá-las para publicação neste livro.

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A expansão da oferta e a melhoria da distribuição de alimentos eliseu roberto de Andrade Alves*

* engenheiro agrônomo com mestrado e doutorado em economia

rural pela Purdue University, USa. É pesquisador da embrapa,

atuando na área de política agrícola, desenvolvimento institucional e

economia de produção e recebeu diversos prêmios e condecorações,

dentre os quais Doutor Honoris Causa, da Purdue University,

Distinguish international alumnus, da national association of the

State Universities and lasnd Grant Colleges e Prêmio Frederico de

menezes Veiga, da embrapa. Foi Diretor Presidente da embrapa e

Presidente da Codevasf.

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A produção de alimentos no Brasilas pesquisas na área da agricultura existem

exatamente para fundamentar o incremento da produtividade, ajudar a conquistar áreas que antes não eram usadas para produzir alimentos – como são os casos do Cerrado e da região amazônica – e contribuir para que o aumento da produção no Brasil tenha um excedente, que é encaminhado ao mercado internacional e que traz uma quantidade enor-me de divisas, desempenhando um papel fun-damental: ajudar o crescimento da indústria e do setor de serviços, alimentando bem o povo brasileiro.

Portanto, a agricultura tem o papel de alimentar o povo brasileiro, sobretudo os mais pobres, e tem também o papel de ampliar as exportações bra-sileiras, que são importantíssimas, no momen-to, para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

É importante investir na produção de alimentos no Brasil porque temos uma grande quantida-de de recursos naturais e temos uma população importante no meio rural. a competência dessa população é que faz a produção acontecer. re-curso natural, convenhamos, não produz nada.

Analisando por diversas vias o que estamos chamando de criseQuem sofre mais com a subida dos preços dos

alimentos é a população mais pobre, que gas-

ta uma parte enorme do seu orçamento para comprar comida. Portanto, o aumento dos pre-ços dos alimentos significa uma transferência de renda às avessas, enquanto baixá-lo signi-fica uma transferência de renda importante para os mais pobres. Possivelmente, grande parte dos ganhos que estamos tendo em trans-ferência de renda, no Brasil, se deve ao grande crescimento da produtividade da agricultura brasileira que vem, a partir de 1975, incremen-tando sua produtividade e trazendo uma oferta de preços de alimentos decrescente para a so-ciedade brasileira.

os preços de alimentos, no Brasil, não são mais formados no mercado brasileiro, são formados no exterior, primeiro, para os produtos exporta-dos como soja, milho, carne etc. Já no caso de um produto como o feijão, por exemplo, pode-se questionar: se o Brasil não exporta feijão, por que o mercado internacional é tão importante? acontece que a soja pode ser plantada no lugar do feijão. então, o feijão, para poder ser planta-do no Brasil, tem que competir com a soja, tem que competir com o milho e com o trigo. e essa competição é que, via um mecanismo indireto, faz com que os produtos não exportados pelo Brasil passem a depender também do mercado internacional.

ao observarmos o Gráfico 1, teremos a percep-ção da crise de alimentos por parte dos consu-midores:

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A expansão da oferta e a melhoria da

distribuição de alimentos

Gráfico 1 - Percepção da crise de alimentos pelos consumidores Índices de preços reais da cesta básica

em 1975 os preços eram muito altos. Houve enorme crise de alimentos. Como consequência do enorme investimento que o Brasil fez em pesquisa não só na embrapa, mas também nas universidades e institutos de pesquisa, esses pre-ços começaram a cair de maneira significativa. Percebemos que em 2005-8, em consequência da crise do petróleo, esses preços começaram a subir novamente, mas estão muito longe do que foram em 1975. Portanto, essa enorme queda de preços da cesta básica foi transferida para os consumidores brasileiros e para os consumidores de outros países para os quais o Brasil exporta alimentos. esses ganhos atestam a importância fundamental do aumento da produtividade da agricultura: ganhos permanentes de preços, no sentido de preços mais baixos, só podem ocorrer em consequência do aumento da produtividade.

Gráfico 2 - Crise dos alimentos: índice de commodities agrícolas

esta é outra forma de ver a mesma coisa para as commodities agrícolas, só que pelo lado dos produtores. Há muita oscilação nesses preços e novamente uma subida, a partir de 2003, também com a crise do petróleo. essa subida de pre-ços é entendida como a real crise nos alimentos. ninguém sabe se isso vai continuar, mas os preços dos alimentos já estão se estabilizando ou caindo. o Gráfico 3 mostra como os trabalhadores percebem a crise dos alimentos:

Fonte: Dieese 2008. Elaboração: Embrapa

evolução dos preços reais da cesta básica no município de São Paulo(1975 = 1)

© Commodity Research Bureau

CrB Foodstuffs Food-index (1947 = 100)

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A expansão da oferta e a melhoria da distribuição de alimentos

Gráfico 3 - Percepção da crise de alimentos pelos trabalhadores Salário mínimo nominal e corrigido para agosto de 2008

na linha verde está o salário real dos trabalhadores. na linha preta está o sa-lário nominal. o salário nominal está crescendo, mas os salários reais não cresceram muito. Começaram a crescer substancialmente e permanente-mente no governo do Presidente lula. no Gráfico 4 vemos a variação entre a cesta básica e o salário mínimo:

Gráfico 4 - Percepção da crise de alimentos pelos trabalhadores Salário mínimo e cesta básica em reais de agosto de 2008

É possível observar que o salário mínimo está subindo muito mais do que a cesta básica. e, portanto, há um ganho substancial para os trabalhadores brasileiros em consequência do crescimento da produtividade da agricultura brasileira.

o consumidor não está preocupado com o preço real, que é deflacionado por um índice de preços apropriado. Procura-se manter o poder de compra de uma cesta básica de mercadorias. o preço nominal do boi gordo, por exem-plo, está subindo. então, os consumidores enxergam, quando vão comprar

Fonte: MTE pelo Ipeadata. * Corrigido pelo IGP-DI da FGV.

Fonte: TEM e Dieese, pelo Ipeadata.

* Valores corrigidos pelo IGP-DI da FGV.

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A expansão da oferta e a melhoria da

distribuição de alimentos

no supermercado, o preço nominal. mas o preço real, se levarmos em conta o salário dos consumidores, não está subindo, está decrescendo, como po-demos observar no Gráfico 5:

Gráfico 5 - Percepção da crise de alimentos pelos consumidores Preços recebidos pelos produtores de boi gordo

no final de 2006-7 há uma subida. É um período pequeno para se caracterizar uma crise, mas essa subida é caracterizada pela televisão brasileira, pelos meios de comunicação do mundo inteiro como uma crise de alimentos. É preciso lembrar, no entanto, que antes dessa subida houve um decréscimo enorme, que representou uma transferência de renda para os consumidores. agora nós estamos tendo o efeito contrário, os consumidores estão devol-vendo um pouco para os produtores. então, quando se ouve falar em crise de alimentos, significa que os preços que os consumidores estão pagando nos supermercados estão subindo. não quer dizer que esses preços, com-parados ao acréscimo de todos os preços da economia, estejam realmente subindo. Portanto, a crise de alimentos tem uma interpretação no lado real da economia e tem uma interpretação psicológica, que representa o fato de os consumidores estarem sentindo, no supermercado, a subida dos preços.

o que faz o preço do alimento subir? a demanda tem que deslocar para cima mais do que a oferta. isso em escala

mundial. Se a demanda não subir mais do que a oferta, o preço do alimento também não sobe. os países pobres da áfrica, e, principalmente, os casos da Índia e da China, tremendamente populosos, começaram a ficar ricos. o povo começou a consumir mais, então houve uma subida na demanda de alimentos. nos países ricos, quando a renda sobe, o consumo de alimentos não aumenta porque o estômago tem uma capacidade limitada de consumir. os ricos já estão consumindo tudo o que poderiam nos seus países. Portanto, o aumento de renda num país rico não traz um aumento consequente de con-sumo. mas esse aumento de renda em países pobres como a Índia, a China, a ásia, de um modo geral, e também no Brasil, com a distribuição de alimentos incentivada pela política do Presidente lula, esse aumento de renda traz um efeito dramático no incremento da demanda.

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Fonte: FGV. Disponibilizado em www.Ipeadata.gov.br(acesso em 29/09/2008).* Valores corrigidos pelo IGP-DI da FGV.

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A expansão da oferta e a melhoria da distribuição de alimentos

o efeito da demanda nós não negamos, existe, mas não é o efeito dominante. o efeito dominante é a crise do petróleo, que aumentou consideravelmente os custos dos alimentos e, em consequência, os produtores foram muito mais cautelosos em planejar a expansão da produção. a oferta passou a crescer menos do que a demanda e o preço dos alimentos subiu. mas não subiu de maneira tão dramática, como podemos imaginar. e os gráficos anteriores mostraram isso.

A crise do petróleoestamos realizando uma pesquisa na embrapa para saber quanto 10% no au-

mento do preço do petróleo – e, portanto, de fertilizantes – traz ao aumento do preço da soja, do milho etc. Por enquanto nós terminamos o caso da soja. e 10% no aumento do preço de fertilizante traz um incremento de 8% no preço da soja. Se o preço dos fertilizantes subir, também o preço dos alimentos sobe. É uma relação direta.

em outra pesquisa que fizemos, percebemos que o cultivo de cana-de-açúcar no Brasil só substituiu o milho. o que substitui lavouras aqui no Brasil é a soja. a expansão da soja está substituindo todas as outras lavouras, inclusive a área de cana-de-açúcar, como podemos observar pelos dados do Quadro 1:

Quadro 1 - Área de grãos (arroz, feijão, milho, trigo e soja) e de cana-de-açúcar e relação de áreas de cana e grãos

este quadro mostra, primeiro, que a participação da área de cana-de-açúcar na área total cresceu. os números em destaque são os picos de crescimento, e com eles podemos observar que em 2008 não há diferença muito grande de um pico de 1996. Portanto, a área de cana não está aumentando mais do que a área de lavouras no Brasil. inicialmente, a área de cana expandiu mais do que a área da lavoura, mas, nos últimos anos, a área de cana está, basica-mente, acompanhando a área de lavoura.

anos Cana-de-açúcar grãos Cana / grãos (R$)

1990 4.272.602 34.168.384 12,60

1991 4.210.554 34.250.049 12,28

1992 4.202.604 34.506.341 12,15

1993 3.253.702 32.282.680 11,07

1994 4.345.260 36.998.000 12,67

1995 4.559.062 35.998.000 12,87

1996 4.750.296 31.827.278 15,02

1997 4.224.084 33.030.050 14,57

1998 4.985.819 31.873.822 15,74

1999 4.898.844 33.890.117 14,48

2000 4.204.611 34.883.183 13,85

2001 4.957.837 34.883.193 13,85

2002 5.100.405 37.507.887 13,80

2003 5.371.020 41.822.105 13,00

2004 5.631.740 44.468.689 12,55

2005 5.805.518 44.523.506 13,04

2006 6.144.286 43.225.212 14,21

2007 6.652.472 42.877.258 15,57

2008 7.819.165 44.848.587 16,99

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serviço social do Comércio |

A expansão da oferta e a melhoria da

distribuição de alimentos

Pelos Gráficos 6 e 7, percebemos como o petróleo e a cesta básica estão su-bindo na mesma proporção:

Gráfico 6 - Evolução dos preços do petróleo e dos alimentos (jan/ 1980 a abril/ 2008)

Há uma coincidência muito grande na variação do preço do petróleo e na varia-ção do preço dos alimentos. isso dá a entender que a crise de alimentos foi basicamente produzida pelo incremento do preço do petróleo, que agora já está caindo. o preço de todas as carnes, por exemplo, apesar de todos esta-rem falando na crise de alimentos, até 2007, decresceu.

Como disse, o preço dos fertilizantes é tremendamente dependente do preço do petróleo. Vejamos, pelo Gráfico 8, o que aconteceu com o preço dos ferti-lizantes e do petróleo:

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Fonte: FMI

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1977

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2007

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1975

Fonte: DIEESE e BP Nota: Preços de 2008 referentes ao mês de julho.

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1)

Cesta básica (SP) Petróleo

Fonte: Dieese e BPnota: Preços de 2008 referentes ao mês de julho

Fonte: FMI

Gráfico 7 - Evolução dos preços da cesta básica (SP) e do petróleo1975=1

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

A expansão da oferta e a melhoria da distribuição de alimentos

Fonte: Empresas do setor, Secex e preços do mercado. Manipulação

dos dados: AMA

Gráfico 8 - Evolução recente nos preços internacionais do petróleo

Um está acompanhando o outro. Portanto, o preço do petróleo sobre, fazendo subir os preços dos fertilizantes, dos transportes, da infraestrutura e aumen-tando o custo de produção. Com custo de produção mais alto, os produtores vão planejar a sua produção de tal modo a reagirem com mais cautela, re-duzindo não a oferta, quantitativamente, mas reduzindo o ímpeto de cresci-mento da oferta. e esse ímpeto pode ser menor que o da demanda, como aconteceu recentemente, forçando a subida de preços.

nesse período grande, de 1975 até 85, houve um crescimento fantástico da agricultura brasileira e mundial, que se transferiu em ganhos para os consu-midores e, principalmente, para os consumidores de renda mais baixa.

o crescimento da produtividade não se deve à expansão da fronteira agrícola, nem mesmo no Brasil, mas, basicamente, ao incremento da produtividade, o que é sinônimo de tecnologia. Portanto, foi a tecnologia que trouxe esse grande benefício para a sociedade brasileira: alimentos mais baratos e com-petência nas exportações, o que resultou em ganhos para os consumidores.

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serviço social do Comércio |

Cenário da pobreza e da fome no Brasil ricardo paes de Barros*

* Pesquisador do instituto de Pesquisa econômica

aplicada (ipea), desde 1979, no campo de desigualda-

de social, educação, pobreza e mercado de trabalho

no Brasil e américa latina. Doutor e pós-doutor em

economia pela Universidade de Chicago (eUa), pesqui-

sador e professor visitante do Centro de Crescimento

econômico, da Universidade de Yale (eUa).

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Tradicionalmente, o trabalho de todos os que es-tudam as questões sociais no Brasil tem sido o de tentar explicar por que certos problemas sociais são mais graves do que deveríamos es-perar, dada a riqueza do país. ao invés de tentar explicar e argumentar por que a fome no Brasil é maior do que se deveria esperar, vamos discu-tir quase o oposto: como conseguimos ter níveis de subnutrição e fome relativamente baixos, dado o nível de desenvolvimento de nosso país?

embora ainda não tenhamos acabado com a fome, o desempenho ao longo dos últimos anos tem sido bastante favorável, nos colocando com um resultado considerado bom, em relação ao nível de desenvolvimento econômico atual. o objetivo desta breve nota é identificar os fatores por trás desse bom desempenho e argumentar o que fazer para reforçá-lo.

A pobreza no Brasil resulta da má distribuição e não da escassez de recursosa argumentação de que no Brasil não deveria

existir fome pode ser muito simples. o custo de uma cesta básica, segundo a metodologia do ipea e da Cepal, é de cerca de r$ 88 por pessoa ao mês. isso é o que alguém precisaria para sa-tisfazer suas necessidades nutricionais durante um mês.

a renda per capita apropriada para as famílias é de r$ 533, ou seja, seis vezes o custo da cesta bási-ca. isso quer dizer que o volume de recursos que o Brasil precisa para alimentar todas as pessoas é 17% da renda que temos. a renda brasileira daria para alimentar uma população seis vezes maior do que a sua população, obviamente, se toda essa renda fosse gasta com alimentação. Portanto, se temos um problema de fome, esse não se deve à falta de recursos, mas à má distri-buição dos mesmos.

alguns podem dizer que esse resultado indica apenas que as famílias têm renda. mas exis-tem alimentos no país em quantidade suficien-te para alimentar toda a população? Um cálcu-lo simples mostra que o custo da cesta básica é de mais ou menos r$ 88. Se considerarmos que o preço ao produtor é a metade do preço ao consumidor, o custo da cesta ao produtor seria de r$ 44. Com uma população de 182 mi-lhões, o Brasil precisaria produzir, por ano, 96 bilhões de reais em produtos agropecuários. Produzimos 157 bilhões de reais. esta é uma estimativa rápida que mostra um excedente de 40% da produção agropecuária brasileira.

assim, se o país possui uma renda seis vezes maior do que o necessário para alimentar a população, e uma produção agropecuária duas vezes maior, como podemos estar discutindo fome?

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serviço social do Comércio |

Cenário da pobreza e da

fome no Brasil

A distribuição de renda e a fome o Brasil reduziu dramaticamente a desigualdade de renda nos últimos seis

ou sete anos e, consequentemente, a pobreza extrema. a primeira meta de desenvolvimento do milênio, que exige que a extrema pobreza seja reduzida à metade até 2015, já foi cumprida em 2006, quase dez anos antes da data comprometida internacionalmente.

no entanto, continuamos sendo extremamente desiguais.

o Gráfico 1 mostra todos os brasileiros alinhados, como se o Brasil tivesse 100 pessoas. Quando observamos a pessoa 50, sua renda é igual a aproxi-madamente r$ 300. ou seja, embora nossa renda média seja quase r$ 600, metade da população vive com menos que r$ 300.

Gráfico 1 - Distribuição das pessoas segundo a renda domiciliar 'per capita': Brasil, 2007

ainda mais grave é que 10% da população possui renda inferior aos r$ 88 (custo da cesta básica). Uma conclusão precipitada seria assumir que 10% da população brasileira têm fome.

mas o pobre não tem apenas uma única necessidade: a fome. Possui várias outras. Deve pagar aluguel, transporte, vestir-se etc.

o Gráfico 2 é um passeio pela distribuição de renda brasileira, do mais pobre ao mais rico. o resultado estudado é a porcentagem da renda que uma pes-soa gasta com alimentação. À esquerda, temos os mais pobres, e à direita, os mais ricos. os mais ricos gastam 10% de sua renda com alimentação. os mais pobres estão gastando, hoje, 36%. isso quer dizer que mesmo os pobres só gastam um terço de sua renda com alimentação. logo, para conseguir gastar r$ 88 com alimentação, a renda total da pessoa deve ser no mínimo r$ 243.

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Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Domicílio (Pnad) 2002-3

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Cenário da pobreza e da fome no Brasil

Gráfico 2 - Gasto com alimentos como porcentagem do gasto total por centésimos da distribuição das pessoas segundo o consumo 'per capita'

logo, o problema é bem mais grave porque, em vez de nos perguntarmos quan-tas pessoas vivem abaixo de r$ 88, o relevante é saber quantas vivem abaixo de r$ 243. isso quer dizer que 40% da população brasileira, em princípio, não têm renda suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais, quando levamos em consideração todas as outras necessidades da família. outra conclusão precipitada é a de que neste país 40% da população têm fome.

Surpreendentemente, os dados sobre fome indicam que menos de 10% da po-pulação enfrentam esse problema. os vários indicadores de subnutrição têm ordem de magnitude igual a 6 ou 7%. em sociedades onde não há fome, por exemplo, o índice de desnutrição infantil está em torno de 3%. então, na ver-dade, estamos de três a quatro pontos percentuais acima do desempenho de uma população bem alimentada. afinal, em qualquer que seja a população bem alimentada, sempre existirão algumas pessoas que, por algum motivo, estarão com peso ou altura abaixo do normal.

Como conseguimos isto? e o mais impressionante aparece ao se avaliar o con-texto internacional.

A fome no contexto internacionalo Gráfico 3 relaciona uma medida de subnutrição e o grau de extrema po-

breza de um país (definido como insuficiência de renda). Quanto mais alto o grau de extrema pobreza, maior tende a ser a subnutrição. a linha apresentada é a norma internacional. note que, de acordo com ela, um país com 30% de extrema pobreza deve apresentar 37% de subnutrição. Da mesma forma, um país com 20% de extrema pobreza deve ter 32% de subnutrição.

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Centésimos da distribuição

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Estimativa produzida com base na Pesquisa de Orçamento

Familiar (POF) 2002-3

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serviço social do Comércio |

Cenário da pobreza e da

fome no Brasil

Cenário da pobreza e da

fome no Brasil

Gráfico 3 - Relação entre a proporção de crianças abaixo da altura recomendada e a porcentagem de pessoas em famílias com renda 'per capita' abaixo da linha de extrema pobreza

o Brasil apresenta extrema pobreza igual a 7%. Com isso, se esperaria um índi-ce de subnutrição igual a 20%, mas nosso desempenho é inferior a 10%.

a questão fundamental para a política de combate à fome e à subnutrição é: como um país com uma distribuição de renda tão desigual, que leva 40% da população a não ter recursos para comprar os alimentos dos quais precisa, tem um nível de subnutrição abaixo de 10%?

políticas redistributivas da renda não são iguais às políticas de combate à fomeComo conseguimos equacionar o problema nutricional, sem termos equacio-

nado o problema da distribuição de renda?

existem várias possíveis explicações. Uma delas é que existe, no Brasil, uma enorme quantidade de redes de solidariedade operando, sendo as pessoas muito mais propensas à doação de alimentos do que de renda. É muito mais fácil uma família um pouco menos pobre convidar outra mais pobre para almoçar do que transferir-lhe alguma renda.

Talvez tenhamos redes de solidariedade muito mais fortes e, às vezes, invisíveis, extremamente locais e informais. Definitivamente, não temos essas mesmas redes na redistribuição da renda. Como consequência, a distribuição de ren-da é muito mais desigual do que a de alimentos.

o Gráfico 4 mostra que entre os 10% mais pobres, o grau de subnutrição, medido pela relação peso e idade, é de 8%. estamos falando algo muito impressionante: 92% das pessoas que vivem com renda abaixo de r$ 90 não são subnutridas. Como isso pode ter acontecido? essas pessoas não compraram a comida que consomem, mas esta lhes apareceu de alguma maneira.

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Porcentagem de pessoas em familias extremamente pobres (%)

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Brasil Observado

Brasil Predito

Fonte: Estimativas produzidas com base no Human Developed Report (2007-2008) PnudUniverso: Países no mundo para os quais há dados disponíveis no HDR

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Cenário da pobreza e da fome no Brasil

Cenário da pobreza e da fome no Brasil

Gráfico 4 - Grau de subnutrição por décimos da distribuição de renda: peso em relação à idade

Parte dessas políticas no país está mapeada, mas talvez o sucesso seja tão grande que um conjunto delas permaneça informal e invisível.

É possível acabar com a subnutrição transferindo renda às pessoas mais pobres. mas, como tentei argumentar, o pobre tem muitas outras necessi-dades. Para acabar com a subnutrição simplesmente transferindo renda, temos que elevar a renda de cada pessoa a r$ 240. o Gráfico 5 mostra que dois terços dos nossos subnutridos não são extremamente pobres. logo, acabar com a extrema pobreza não vai tocar em dois terços dos desnutri-dos. Por quê? Porque eles já estão um pouco acima da extrema pobreza.

Gráfico 5 - Porcentagem acumulada de crianças com peso em relação à idade por décimos da distribuição de renda: Brasil, 2002-2003

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Familiar (POF) 2002-3

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Décimos da distribuição da renda per capita

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Fonte: estimativa produzida com base na Pesquisa de Orçamento

Familiar (POF) 2002-3

Décimos da distribuição da renda per capita

Décimos da distribuição da renda per capita

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serviço social do Comércio |

Cenário da pobreza e da

fome no Brasil

Quem são os subnutridos?Há uma certa especulação sobre quem são os subnutridos no Brasil. Parto do

suposto de que os subnutridos são aqueles que não têm acesso às redes de solidariedade, que, por alguma razão, estão desvinculados, sem capital social.

É bom chamar a atenção para o fato de que o aumento da renda no Bra-sil é de extrema importância e ajudará muito no combate à fome. mas demonstramos historicamente que não precisamos esperar por esse au-mento para acabar com a fome. aliás, nós estamos acabando com ela mais rapidamente do que com a pobreza entendida como insuficiência de renda. Contudo, vale ter em vista que simplesmente aumentar um pouco a renda das pessoas pode não acabar com a subnutrição. ou seja, se quiser-mos atacar a fome apenas com transferências de renda, tem que ser um aumento substancial. Vinte reais a mais não farão a diferença, mas r$ 200. a alternativa é reforçar as redes de solidariedade, de tal maneira a atacar o problema diretamente.

Quando chegamos aos níveis de subnutrição que temos hoje no Brasil, ficamos com a seguinte ideia: onde existem alimentos, a população está sendo mais ou menos solidária. Portanto, o nosso problema de fome fica espacialmente centrado em alguns locais. nas áreas em que há um problema crônico de alimentos, onde todos são pobres, será mais difícil criar uma rede de soli-dariedade. ou seja, cada vez mais, a fome e a subnutrição no Brasil estarão presentes em enclaves.

principais conclusõesa primeira conclusão é que pequenas transferências de renda sempre ajudam

e sempre vão ajudar, mas não vão resolver o problema da fome. É importante aumentar o valor do benefício de programas como o Bolsa Família, e é tam-bém fundamental aumentar sua cobertura, mas sem esperar que a fome seja largamente combatida.

além disso, deve-se melhorar o sistema de seleção de beneficiários para o combate à fome. Como a renda ainda não está muito proximamente relacionada à subnutrição, não se pode basear o processo de seleção de beneficiários puramente no critério de renda. É claro que, entre os pobres, o nível de subnutrição é mais elevado. mas, como procurei mostrar, mui-tos dos extremamente pobres não têm problema de subnutrição. logo, o critério de seleção, em alguma medida, tem que estar relacionado di-retamente com a subnutrição. Daí a importância de se aproveitarem as complementaridades entre cadastros que cobrem a população pobre no Brasil, como o Siab (preenchido pelo agente Comunitário de Saúde) e o Cadastro Único. o Siab apresenta informações sobre subnutrição com frequência muito maior e, portanto, permite identificar mais facilmente as famílias em risco.

Uma terceira conclusão é que, apesar de termos uma grande quantidade de brasileiros (quase 40%) que, considerando todas as suas necessidades bá-sicas, não têm condições de comprar o que precisam para se alimentar, o nível de subnutrição de nossa população é muito baixo. note também que o grau de subnutrição no Brasil é inferior ao que se deveria esperar de um país com nosso nível de extrema pobreza, definida como insuficiência de renda. isso quer dizer que existem, portanto, alternativas eficazes a programas de transferência de renda.

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Cenário da pobreza e da fome no Brasil

Talvez a grande razão por detrás da subnutrição abaixo do esperado em nosso país é que contamos com um conjunto grande de redes privadas, locais e muitas vezes informais, de proteção social, que podem ser uma alternativa eficaz, comparada às transferências de renda governamentais. É importante que façamos um mapeamento dessas redes.

Que política teremos que fazer daqui para frente? em que medida desejamos uma política única e ampla, que vá substituir essas redes informais? ou será melhor ter uma política de combate à fome e à subnutrição que, ao invés de substituir essas redes locais, venha a complementá-las?

Uma vantagem dessas redes é que elas têm mais informação do que qual-quer outro programa sobre quem são exatamente as pessoas que precisam de atendimento, quem são as pessoas em risco de insegurança alimentar. É difícil, para um programa nacional ou estadual, identificar tal população. a dificuldade, contudo, é que os beneficiários não sabem se estão recebendo apoio como um direito ou um favor. então, a grande solução é aproveitar es-sas redes, dando-lhes apoio técnico, potencializando-as de tal maneira, que elas sejam um instrumento e um mecanismo que possa levar o direito à se-gurança alimentar a todos os brasileiros.

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serviço social do Comércio |

O novo cenário da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil:implicações para políticas públicas carlos Augusto monteiro*

* Professor Titular do Departamento de nutrição da Faculdade de Saúde Pública

da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador Científico do núcleo de

Pesquisas epidemiológicas em nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo

(nupens/USP). É editor Científico da Revista de Saúde Pública, integra o comitê

da organização mundial da Saúde (omS) para implementação da Global Strategy

on Diet, Physical activity and Health e a força tarefa da oPS para eliminação das

gorduras trans nas américas. É também bolsista de produtividade científica do

CnPq nível ia e membro da academia Brasileira de Ciências, com graduação em

medicina, doutorado em Saúde Pública pela USP e pós-doutorado no instituto de

nutrição Humana da Columbia University.

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

a dimensão da fome e da desnutrição e as medi-das mais eficazes para lutar contra esses pro-blemas têm sido objeto de intensa e tradicional polêmica no Brasil. Parte dessa polêmica pode ser creditada ao esforço insuficiente emprega-do no entendimento da natureza e conceituação desses dois problemas e à frequente improprie-dade de se considerá-los equivalentes entre si e, ainda, como meros sinônimos da pobreza. outra razão para os comuns desacordos nessa matéria poderia ter raízes na não consideração, por parte de alguns interlocutores do debate, dos resultados de abrangentes inquéritos nu-tricionais realizados no Brasil ao longo das três últimas décadas.

este texto pretende contribuir para um melhor en-tendimento da dimensão e das possíveis solu-ções para a fome e a desnutrição no Brasil. ini-cialmente, procuraremos esclarecer a natureza distinta de cada um desses problemas e o que os distingue conceitualmente da pobreza. a se-guir, examinaremos as alternativas disponíveis para operacionalizar os conceitos de pobreza, desnutrição e fome, em estudos empíricos que buscam aferir a frequência desses problemas na população. Finalmente, apresentaremos re-sultados e análises de inquéritos recentes que permitem estimar a frequência, distribuição e evolução da pobreza, da desnutrição e da fome em nosso meio. este texto atualiza ensaios an-teriores sobre o mesmo tema, apresentados em dois seminários sobre fome, desnutrição e pobreza, organizados pelo instituto de estudos avançados (iea), da Universidade de São Paulo

(USP), em 1994 e 2003, e publicados em núme-ros especiais da revista do iea em 1995 (mon-Teiro, 1995) e 2003 (monTeiro, 2003).

definindo pobreza, desnutrição e fomeDos três problemas, a pobreza talvez seja o mais fá-

cil de definir. De modo bastante simples, pode-se dizer que pobreza corresponde à condição de não satisfação de necessidades humanas elementa-res como comida, abrigo, vestuário, educação, assistência à saúde, entre várias outras. a des-nutrição ou, mais corretamente, as deficiências nutricionais – porque são várias as modalidades de desnutrição – são doenças que decorrem do aporte alimentar insuficiente em energia e/ou nutrientes ou, ainda, com alguma fre quência, do inadequado aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos – geralmente motivado pela presença de doenças, em particular doenças in-fecciosas. Semanticamente, poderíamos também incluir entre as modalidades de desnutrição, ao lado das deficiências nutricionais, os distúrbios nutricionais decorrentes da ingestão excessiva ou desequilibrada de energia e/ou nutrientes, em particular a obesidade, problema crescente no país. não o faremos para não tornar este texto demasiado extenso e complexo. remetemos os leitores interessados na dimensão, distribuição social e tendência secular da obesidade no Brasil a outro texto: monTeiro et al, 2007.

a fome é certamente o problema cuja definição se mostra mais controversa. Haveria inicialmen-te que distinguir a fome aguda, momentânea,

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serviço social do Comércio |

O novo cenário da pobreza, da

desnutrição e da fome no Brasil:

implicações para políticas públicas

da fome crônica. a fome aguda equivale à urgência de se alimentar, a um grande apetite, e não é relevante para nossa discussão. a fome crônica, per-manente, a que nos interessa aqui, ocorre quando a alimentação diária, ha-bitual, não propicia ao indivíduo energia suficiente para a manutenção do seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas. nesse sentido, a fome crônica resulta em uma das modalidades de desnutrição: a deficiência energética crônica.

Para Josué de Castro, um dos maiores estudiosos do problema da fome no mundo, a fome crônica poderia ser subdividida em fome total ou inanição e fome parcial ou fome oculta, a primeira caracterizada pela falta absoluta de alimentos e a segunda por dietas suficientes em quantidade, mas permanen-temente deficientes em nutrientes específicos (CaSTro, 1965). a fome total de que fala Josué de Castro corresponderia, grosso modo, à deficiência crô-nica de energia, enquanto a fome parcial ou oculta corresponderia à desnutri-ção ocasionada por deficiências dietéticas específicas. esta não abrangeria, portanto, casos de desnutrição ocasionados por doenças e aproveitamento biológico deficiente da alimentação ingerida, condições muito frequentes, sobretudo, nos primeiros anos de vida.

a diferenciação entre fome (ou fome total, na terminologia de Josué de Cas-tro), desnutrição e pobreza ficará possivelmente mais clara através de exem-plificações. Um indivíduo pode ser pobre sem ser afetado pelo problema da fome, bastando que sua condição de pobreza se expresse por carências básicas outras que não a alimentação – o instinto de sobrevivência do ho-mem e de todas as outras espécies animais faz com que suas necessidades alimentares tenham precedência sobre as demais. a situação inversa, ocor-rência da fome na ausência da condição de pobreza, não ocorre, ou ocorre apenas excepcionalmente e por tempo limitado por ocasião de guerras e catástrofes naturais. Fome e desnutrição tampouco são equivalentes, uma vez que, se toda fome leva necessariamente à desnutrição – de fato, a uma modalidade de desnutrição: a deficiência energética crônica – nem toda de-ficiência nutricional se origina do aporte alimentar insuficiente em energia, ou, sendo mais direto, da falta de comida. ao contrário, são causas relativa-mente comuns de desnutrição, sobretudo na infância, o desmame precoce, a higiene precária na preparação dos alimentos, o déficit específico da dieta em vitaminas e minerais e a incidência repetida de infecções, em particular doenças respiratórias, gastrenterites e parasitoses intestinais. ainda que também não equivalentes, os terrenos da pobreza e da desnutrição são os que mais se aproximam, sobretudo no caso de crianças, pois o bom estado nutricional na infância pressupõe o atendimento de um leque abrangente de necessidades humanas, que incluem não apenas a disponibilidade de alimentos, mas também a diversificação da dieta, condições salubres de moradia, o acesso à educação e a serviços de saúde, entre outras. ainda assim, a presença da pobreza torna mais frequente, mas não compulsória, a presença da desnutrição na criança, sendo extremamente importante a modulação que pode ser exercida por programas bem planejados de as-sistência integral à saúde infantil. em suma, embora igualmente graves e indesejáveis e ainda que compartilhem causas e vítimas, fome, desnutrição e pobreza não são a mesma coisa. a Figura 1 procura representar espa-cialmente os domínios próprios e comuns desses três problemas em uma população hipotética.

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O novo cenário da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil:implicações para políticas públicas

Figura 1 - Pobreza, desnutrição e fome

Aferindo a extensão da pobreza, da desnutrição e da fome em uma populaçãoDefinições operacionais de pobreza geralmente levam em conta a renda (mo-

netária e não monetária) das famílias e uma linha de pobreza (nível crítico de renda) baseada no custo estimado da aquisição das necessidades humanas básicas. Contabilizam-se como pobres as famílias cuja renda seja inferior à linha da pobreza. Quando a linha da pobreza se baseia apenas no custo da alimentação, fala-se em pobreza extrema ou indigência (roCHa, 2000).

Como a maioria das doenças, as deficiências nutricionais podem ser diagnosti-cadas por meio de exames clínicos e laboratoriais. Por serem biologicamente mais vulneráveis a diversas deficiências nutricionais, as crianças são habi-tualmente escolhidas como grupo indicador da presença de desnutrição na população, admitindo-se que o percentual de crianças com retardo de cresci-mento, uma das primeiras e mais precoces manifestações de desnutrição na infância, propicie uma excelente indicação do risco de deficiências nutricio-nais a que está exposta uma coletividade (WHo, 1995).

as dificuldades técnicas em se medir de forma confiável a ingestão alimentar habitual dos indivíduos e suas correspondentes necessidades energéticas tornam difícil, se não impossível, a mensuração direta precisa da extensão da fome ou da deficiência energética crônica em uma população. Dois fatores dificultam a avaliação da ingestão calórica dos indivíduos: a grande variabi-lidade na ingestão diária de calorias em um mesmo indivíduo, o que torna necessário estender a avaliação por um grande número de dias, e a virtual inexistência de métodos de avaliação que não interfiram com o padrão de in-gestão alimentar, sobretudo quando o indivíduo é estudado por um longo pe-ríodo de tempo. não menos complexa é a determinação da necessidade real de energia de cada indivíduo, havendo novamente que considerar as amplas variações individuais decorrentes de variações genéticas, variações do esta-do fisiológico (gestação, lactação) e variações do padrão de atividade física.

Desnutrição

Pobreza

Fome

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O novo cenário da pobreza, da

desnutrição e da fome no Brasil:

implicações para políticas públicas

a organização das nações Unidas para alimentação e agricultura (Fao) esti-ma anualmente, para todos os países em desenvolvimento, a proporção da população cuja alimentação diária não atenderia aos requerimentos ener-géticos. essa proporção é utilizada frequentemente como indicadora da magnitude da fome ou da deficiência crônica de energia nos países. entre-tanto, quando se atenta para como essa estimativa da Fao é calculada, fa-cilmente se conclui que se trata de um indicador extremamente impreciso e, portanto, de pouca utilidade. Para chegar à proporção da população cuja alimentação não atenderia aos requerimentos energéticos diários, a Fao se baseia em estimativas sobre o número de habitantes de cada país, o total diário de calorias disponíveis para consumo, a forma pela qual esse total calórico é distribuído entre os habitantes e os requerimentos energéticos desses habitantes. exceto talvez pelo número de habitantes de cada país, as demais estimativas estão sujeitas a grande imprecisão. a estimativa sobre a disponibilidade de calorias é baseada em informações fornecidas pelos países sobre produção, exportação e importação de alimentos e em esti-mativas de desperdícios ao longo da cadeia produtiva. a estimativa sobre como a disponibilidade total de calorias é distribuída entre os habitantes de cada país, mais do que imprecisa, é inadequada, na medida em que se ba-seia em indicadores da distribuição da renda no país. ou seja, assume que a distribuição de calorias em cada país segue o padrão de distribuição da renda nacional. Finalmente, na maioria dos países, a ausência de inquéri-tos sobre os padrões de atividade física da população implicam estimativas grosseiras dos requerimentos energéticos.

Uma alternativa para aferir na população a frequência e distribuição da de-ficiência crônica de energia ou da fome (ou, ainda, da fome total de Josué de Castro) consiste em se avaliar as reservas energéticas dos indivíduos, o que se consegue, de modo prático, avaliando-se a relação entre peso e altu-ra. neste caso, admite-se que o percentual de indivíduos com insuficiente relação peso/altura, portanto emagrecidos, expresse razoavelmente bem a magnitude da deficiência crônica de energia na população. essa alternativa será a que utilizaremos na seção seguinte deste texto.

A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasila Tabela 1 apresenta estimativas do instituto de Pesquisa econômica aplicada

(ipea) sobre a frequência e distribuição da pobreza no Brasil, tendo como base a Pesquisa nacional por amostragem de Domicílios (Pnad), de 2007. Tais estimativas consideram todas as fontes de renda declaradas pelas famí-lias e levam em conta linhas de pobreza construídas com base no custo de vida estimado para as distintas regiões do país. Duas linhas de pobreza são consideradas: a linha de pobreza e a linha de pobreza extrema. a linha de pobreza extrema (ou linha de indigência) corresponde ao custo estimado das necessidades de uma pessoa com a aquisição apenas de alimentos. a linha da pobreza corresponderia à aquisição de todas as necessidades básicas de uma pessoa e, em termos práticos, é definida como duas vezes o valor da linha de pobreza extrema.

Segundo as estimativas do ipea, haveria 17,2% de famílias pobres no Brasil, sendo 6,1% extremamente pobres. Tanto a pobreza como a pobreza extrema se mostram de três a cinco vezes mais frequentes nas regiões norte e nor-deste, se comparadas às regiões Sudeste, Sul e Centro-oeste (Tabela 1).

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Tabela 1 - Proporção de famílias pobres ou extremamente pobres, segundo macrorregião: Brasil, 2007

Região % de famílias pobres* % de famílias extremamente pobres**

norte 28,9 9,5

nordeste 35,5 14,0

Sudeste 9,1 2,9

Sul 9,2 2,7

Centro-oeste 8,4 2,7

Brasil 17,2 6,1

Séries históricas sobre a frequência da pobreza no Brasil indicam declínios subs-tanciais nos anos 70 e estagnação ou declínios muito lentos nas décadas de 80 e 90. Já a concentração de renda, das mais elevadas do mundo, pouco se modifica ao longo dessas três décadas (PaSTore et al, 1983; ToloSa, 1991; roCHa, 2001). na década de 2000, sobretudo a partir de 2003, observa-se acen-tuado declínio da pobreza em todas as regiões brasileiras. entre 2003 e 2007, segundo estudo do ipea, a frequência de famílias brasileiras pobres é reduzida de 26,7% para 17,2% e a de famílias extremamente pobres de 10,5% para 6,1%. o índice de Gini, que mede a concentração da renda, declina de 59,4 em 2001 para 54,5 em 2007, caindo em média 0,7 ponto ao ano, o que supera a velocida-de de queda da concentração da renda registrada em países desenvolvidos no período de construção dos seus estados de bem estar social (SoareS, 2008). estudiosos do assunto atribuem a três fatores a melhoria recente na distribui-ção da renda e a redução da pobreza no Brasil: a reativação da economia e a consequente queda no desemprego, aumentos no valor real do salário mínimo e a intensificação dos programas de transferência de renda (neri, 2007).

Conforme mencionado, por serem mais vulneráveis a deficiências nutricio-nais, as crianças constituem o grupo indicador preferencial para o estudo da presença da desnutrição em uma população. admite-se que a proporção de crianças menores de cinco anos com valores muito baixos de altura- para-idade ou de peso-para-altura (valores aquém de dois desvios-padrão dos valores esperados em crianças adequadamente alimentadas e saudáveis) retrate, não apenas a prevalência da desnutrição na infância, mas também a dimensão global que o problema da desnutrição alcança na sociedade. importa esclarecer que crianças com alturas ou pesos tão baixos quanto os referidos são encontradas em populações bem nutridas, mas em proporção não superior a 2-3%, correspondendo, neste caso, à fração normal de crian-ças geneticamente pequenas ou magras (WHo, 1995).

a Tabela 2 apresenta estimativas sobre a frequência e distribuição de indica-dores antropométricos do estado nutricional infantil no Brasil tendo como base a Pesquisa nacional de Demografia e Saúde da Criança e da mulher (PnDS), 2006-7. Crianças com valores muito baixos de altura-para-idade, indicativos de formas de desnutrição de longa duração, correspondiam, em 2006-7, a 7% da população infantil brasileira, portanto ainda três vezes mais frequentes do que a proporção esperada quando são ótimas as condições de alimentação e saúde da população. Crianças com valores muito baixos de peso-para-altura foram encontradas com frequência inferior a 2%, deno-tando a virtual ausência de formas graves de desnutrição, em geral associa-das à perda aguda de peso.

* renda per capita inferior a duas vezes

a linha de pobreza extrema.

** renda per capita inferior à linha de

pobreza extrema, a qual corresponde ao custo

em cada região brasileira de uma cesta de

alimentos necessária para uma pessoa.

Fonte: Ipeadata (www.ipeadata.gov.br,

acesso em 08/12/2008).

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desnutrição e da fome no Brasil:

implicações para políticas públicas

Tabela 2 - Prevalência de desnutrição na infância segundo macrorregião e classe de poder aquisitivo: Brasil, 2006-7

Região/classe % de crianças < 5 anos com déficit de altura-para-idade

% de crianças < 5 anos com déficit de peso-para-altura

Região

norte 14,7 0,5

nordeste 5,8 1,6

Sudeste 5,6 1,5

Sul 8,5 1,9

Centro-oeste 5,5 0,9

Classe

a, B ou C1 3,7 1,1

C2 6,1 1,5

D 9,6 1,7

e 10,9 1,5

Brasil 7,0 1,4

a distribuição regional do déficit de altura-para-idade indica prevalência de desnutrição substancialmente maior na região norte (14,7%) e valores se-melhantes (entre 5% e 8%) nas demais regiões do país, incluindo a região nordeste (5,6%). em nenhuma região brasileira a frequência de déficits de peso-para-altura ultrapassou 2%.

a distribuição dos déficits de altura-para-idade segundo classes de poder aqui-sitivo indica diminuição do risco de desnutrição com o aumento do poder aquisitivo das famílias (3,7% nas classes a, B e C1 a 10,9% na classe e). em nenhuma classe de poder aquisitivo a frequência de déficits de peso-para-altura chegou a 2%, confirmando a não relevância populacional de formas graves de desnutrição infantil no Brasil.

estimativas extraídas de um banco internacional de dados sobre crescimento infantil, compilado pela omS, indicam que a prevalência de 7% de crianças com déficit de altura-para-idade no Brasil é menor do que a observada em países com nível de desenvolvimento econômico semelhante (como o Uru-guai, onde a prevalência de déficits de altura é de 13,9%) ou mesmo supe-rior (como a argentina, onde a prevalência de déficits de altura é de 8,2%). (Cf.: Global Database on Child Growth and malnutrition, em: www.who.int/nutgrowthdb/database/countries/en).

a tendência secular da desnutrição na população brasileira de crianças meno-res de cinco anos tem sido objeto de estudos e análises graças à disponibili-dade de inquéritos antropométricos nacionais realizados no país desde me-ados da década de 70. Com base nesses inquéritos, tendências declinantes na prevalência de crianças de baixa estatura foram identificadas entre 1975 e 1989, entre 1989 e 1996 e entre 1996 e 2006-7. o declínio foi particularmente intenso no último período, quando alcançou uma taxa média de redução de 6,3% ao ano (contra 5% e 5,7% ao ano, nos dois primeiros períodos, respecti-vamente). a redução na prevalência da desnutrição foi particularmente inten-sa entre as crianças da região nordeste e entre famílias das de menor poder aquisitivo (classes D e e), o que contribuiu para a redução substancial das desigualdades regionais e socioeconômicas na prevalência da desnutrição (monTeiro et al, 2009a).

Fonte: Monteiro et al. (2009a).

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os fatores responsáveis pelo declínio da desnutrição infantil, nos intervalos de tempo delimitados pelos inquéritos realizados no Brasil desde 1975, não são imediatamente comparáveis em função das diferentes estratégias ana-líticas empregadas para sua identificação e da desigual disponibilidade de dados nos períodos correspondentes. De qualquer modo, o declínio da desnutrição no período 1975-89 foi atribuído essencialmente a progressos moderados na renda familiar e à excepcional expansão da cobertura de serviços públicos de educação, saneamento e saúde (monteiro et al, 1992). melhoria na escolaridade das mães, maior acesso a cuidados básicos de saúde e expansão da rede pública de abastecimento de água foram con-siderados os fatores mais relevantes para o declínio da desnutrição no pe-ríodo 1989-96, cabendo, novamente, papel modesto ao aumento da renda familiar (monTeiro et al, 2000).

Um detalhado estudo dos fatores responsáveis pelo excepcional declínio da desnutrição infantil entre 1996 e 2006-7 atribuiu cerca de dois terços do declínio da desnutrição a melhorias, por ordem de importância, na esco-laridade das mães, no poder aquisitivo das famílias (sobretudo das mais pobres), no acesso à assistência à saúde e nas condições do saneamento (monTeiro et al, 2009b).

Conforme referido anteriormente, a aferição da dimensão da fome ou da de-ficiência energética crônica em uma população poderia ser feita a partir da avaliação das reservas energéticas dos indivíduos ou, mais especificamente, a partir da proporção de indivíduos emagrecidos. embora a deficiência ener-gética crônica seja um evento essencialmente familiar, acometendo simul-taneamente crianças e adultos, sua aferição se torna mais específica quan-do feita sobre indivíduos adultos; crianças podem responder à deficiência energética com a redução do crescimento linear, enquanto adultos sempre respondem com o emagrecimento. Consideram-se magros os adultos que têm relação peso/altura (Índice de massa Corporal) inferior a 18,5 kg/m2. em populações onde se sabe não existir fome, adultos magros não ultrapassam 3% a 5% da população, considerando-se proporções acima desses valores como indicativas de risco de deficiência energética crônica. a omS classifica proporções de adultos magros entre 5% e 9% como indicativa de baixa preva-lência de déficits energéticos, o que justificaria a necessidade de monitorar o problema e estar alerta para sua eventual deterioração. Proporções entre 10% e 19% caracterizariam prevalência moderada da deficiência energética crônica enquanto proporções entre 20% e 29% e proporções iguais ou su-periores a 40% caracterizariam, respectivamente, prevalências altas e muito altas (WHo, 1995).

a Tabela 3 apresenta estimativas sobre a frequência e distribuição da prevalên-cia da deficiência energética crônica em mulheres adultas brasileiras entre 20 e 49 anos de idade, conforme a mesma pesquisa (PnDS 2006-7).

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desnutrição e da fome no Brasil:

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Tabela 3 - Prevalência de deficiência crônica de energia em mulheres de 20 a 49 anos segundo macrorregião e classe de poder aquisitivo: Brasil, 2006-7

Região/classe % de mulheres com iMC < 18,5 kg/m2

Região

norte 2,8

nordeste 4,8

Sudeste 4,3

Sul 2,9

Centro-oeste 3,8

Classe

a, B ou C1 2,9

C2 5,0

D 5,4

e 4,7

Brasil 4,0

em 2006-7, mulheres magras correspondiam a 4% do total da população fe-minina, proporção compatível com o intervalo de variação esperado para o indicador em populações teoricamente não expostas à deficiência energética crônica (3% a 5% de indivíduos magros). a estratificação regional do indica-dor não aponta qualquer região onde a proporção de mulheres magras exce-da os 5%. nas classes de menor poder aquisitivo (classes D e e), a proporção de mulheres magras fica em torno de 5%. a situação brasileira se mostra, portanto, muito distinta da situação encontrada em países onde a deficiên-cia energética crônica é reconhecidamente endêmica como Haiti, etiópia e Índia, onde a proporção de indivíduos emagrecidos na população adulta se aproxima de 20%, 40% e 50%, respectivamente (WHo, 1995).

inquérito realizado em 2002-3, em amostra probabilística da população adulta masculina e feminina do Brasil, já indicava baixa proporção de indivíduos magros e reduzida exposição da população à deficiência crônica de energia. apenas entre mulheres da região nordeste e entre mulheres de famílias de muito baixa renda, a proporção de indivíduos magros excedia o limite espe-rado, situando-se entre 6% e 8% (iBGe, 2004). Conforme se depreende das estimativas apresentadas para 2006-7, a situação de alguma exposição à de-ficiência crônica de energia foi inteiramente corrigida neste período.

conclusões e implicaçõesem 2007, a condição de pobreza, medida pela insuficiência de renda, foi encon-

trada em cerca de 17% das famílias brasileiras, disseminando-se por todas as regiões do país, mas afligindo, em particular, a região norte (mais de um quarto de famílias pobres) e, ainda mais, a região nordeste (mais de um terço de famílias pobres). a pobreza extrema alcançava cerca de 6% das famílias brasileiras, novamente afligindo mais as regiões norte e nordeste. em 2006-7, a desnutrição, medida pelo déficit de altura-para-idade, alcançava

Fonte: Monteiro et al. (2009a).

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O novo cenário da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil:implicações para políticas públicas

7% das crianças brasileiras, sendo mais frequente nas classes de menor po-der aquisitivo (11% na classe e) e na região norte (15%), mas não na região nordeste (6% de crianças desnutridas). no mesmo período, a fome ou a defi-ciência energética crônica, medida pela depleção de reservas energéticas na população adulta, não alcançou relevância populacional em nenhuma região brasileira ou classe de poder aquisitivo.

Séries históricas de indicadores da pobreza indicam declínio do problema na década de 1970, acompanhando o crescimento exuberante da economia, mas sem redução da enorme concentração da renda nacional. nas déca-das de 80 e de 90, há declínios muito modestos, ou mesmo estagnação da pobreza, acompanhando o crescimento econômico medíocre do país, novamente, sem mudanças substanciais na distribuição da renda nacional. a partir de 2000, sobretudo a partir de 2003, há intensa redução da pobreza no Brasil, desta vez acompanhada de diminuição na concentração da renda nacional.

indicadores antropométricos da desnutrição, estimados a partir de inquéritos realizados na segunda metade do século XX, apontam declínio do problema entre 1975 e 1989, e entre 1989 e 1996; o primeiro atribuível a aumentos mo-destos na renda dos mais pobres e à ampliação da escolaridade das mães e da cobertura de serviços de saúde e saneamento; o segundo atribuível quase que exclusivamente à ampliação da escolaridade materna e da cobertura de serviços básicos. o inquérito realizado em 2006-7 evidenciou aceleração do declínio da desnutrição infantil no período 1996-2007, com reduções particu-larmente intensas na região nordeste e nas classes de menor poder aquisi-tivo. neste período, o declínio da desnutrição deveu-se à combinação entre forte aumento do poder aquisitivo dos estratos mais pobres da população e forte expansão da escolaridade das mães e da cobertura de serviços de saúde e saneamento. mantidas as tendências do período mais recente, em mais uma década o problema da desnutrição infantil poderia ser considerado controlado no Brasil.

inquéritos realizados no Brasil desde meados da década de 1970 sugerem que o problema da deficiência crônica de energia, medida a partir da proporção de adultos emagrecidos, nunca tenha alcançado magnitude elevada em nos-so meio, sendo que no período mais recente (1996-2007) desaparecem os indícios da exposição (reduzida) ao problema antes existentes na região nor-deste e nos estratos mais pobres da população.

as diferenças identificadas na magnitude, distribuição e evolução da pobreza, da desnutrição e da fome confirmam a natureza distinta desses problemas, tal como sustentado na introdução deste trabalho, ao mesmo tempo em que determinam implicações importantes na definição de prioridades, conteú-dos, escalas e alvos para políticas públicas.

ações governamentais específicas de combate à pobreza devem continuar a receber máxima prioridade no país e devem continuar a perseguir essencial-mente o aumento da renda dos mais pobres. ações que permitam a manu-tenção do crescimento econômico com melhor distribuição de renda e que levem à criação de empregos são vistas, ao lado dos programas de transfe-rência condicionada de renda, como soluções consensuais para o aumento da renda dos mais pobres no Brasil.

ações que sigam combatendo eficientemente a pobreza serão obviamente de enorme valia para a luta contra a desnutrição infantil. entretanto, a experiên-cia brasileira e a de outros países em desenvolvimento indicam que o pros-seguimento da melhoria na escolaridade das mães e a universalização ainda não alcançada do acesso a serviços de saneamento e cuidados básicos de

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implicações para políticas públicas

saúde, incluindo o monitoramento do estado nutricional infantil e a detecção e correção precoces da desnutrição, serão essenciais para se alcançar a de-finitiva erradicação do problema (GilleSPPie et al, 1996; SmiTH & HaDDaD, 2000; monTeiro et al, 2000; monTeiro et al, 2009b).

ações específicas de combate à fome, em particular ações de distribuição de alimentos, como as desenvolvidas com grande destaque em 2003, no início do Programa Fome Zero, não encontram respaldo na realidade epidemiológi-ca atual do país e, como tal, deveriam ser empregadas de modo excepcional e focalizadas apenas quando houvesse evidência de sua real necessidade (por exemplo, em períodos de seca prolongada em algumas regiões do país). essa recomendação não se aplica à distribuição gratuita de alimentos visan-do outras finalidades que não o combate à fome, como para evitar o desper-dício de alimentos que de outro modo seriam descartados ou para estimular a ingestão de alimentos saudáveis consumidos de modo insuficiente pela população (como frutas e hortaliças). a distribuição indiscriminada de ali-mentos, ao contrário do que talvez indiquem o senso comum e a indignação justificada diante de uma sociedade ainda tão injusta e plena de problemas como a brasileira, implicaria consumir recursos que poderiam faltar para ações sociais mais bem justificadas e mais eficientes. a distribuição gratuita de alimentos processados de baixo valor nutricional, situação infelizmente não rara em nosso meio, contribui, ademais, para a destruição de culturas alimentares tradicionais e para a indução de hábitos alimentares não sau-dáveis na população.

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serviço social do Comércio |

Desafios para uma política de segurança alimentar e nutricional integrada Walter Belik*

* livre docente em economia pela Universidade estadual de Campinas

e professor associado do instituto de economia da Unicamp, com

graduação em administração de empresas e mestrado em economia

aplicada à administração, ambos pela escola de administração de

empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, e doutorado em

Ciência econômica pela Unicamp. realizou estudos de pós-doutorado

na Universidade de londres e na Universidade da Califórnia em Berkeley.

É conselheiro do núcleo de estudos e Pesquisas em alimentação,

foi membro do Conselho nacional de Segurança alimentar e Diretor

Superintendente da onG empresarial ação Fome Zero entre 2003 e 2006.

atualmente é conselheiro do Banco de alimentos da associação Prato

Cheio de São Paulo.

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Desde a realização da Cúpula mundial da alimen-tação, promovida pela organização das nações Unidas para a agricultura e alimentação (Fao), em 1996, em roma, e que contou com quase duas centenas de países participantes, o mundo discute a possibilidade de erradicar totalmente a fome do nosso planeta. na ocasião, os países participantes assinaram um compromisso vi-sando reduzir o número de pessoas subnutridas pela metade até o ano de 2015. nessa reunião, consagrou-se também a utilização do conceito de Segurança alimentar e nutricional como ele-mento de política pública no combate à fome.

Segundo documento elaborado durante o encon-tro, definiu-se assim a Segurança alimentar e nutricional de uma população: “quando toda pessoa, em todo momento, tem acesso físico e econômico a alimentos suficientes, inócuos e nutritivos para satisfazer suas necessidades alimentares e preferências quanto aos alimen-tos a fim de levar uma vida saudável e ativa”. observa-se, portanto, que a definição é feita em aspecto condicional, verificada ao nível de cada indivíduo e situada em várias dimensões: dispo-nibilidade de alimentos, acesso aos alimentos, forma de utilização e estabilidade ao longo do tempo.

o termo Segurança alimentar já vinha sendo uti-lizado por alguns países desde o pós-guerra, le-vando-se em conta os aspectos macro das socie-dades que nos anos 50 entraram em um período de paz, em situação de total vulnerabilidade no que dizia respeito às suas fontes de suprimento alimentar. nos anos 70, o conceito foi adotado pela Fao e outros organismos internacionais, incorporando-se a ele aspectos domiciliares e da situação nutricional do próprio indivíduo.

Paralelo a esse movimento, em 1976, praticamen-te todos os países representados na onU firma-ram o Pacto internacional dos Direitos econômi-cos Sociais e Culturais (Pidesc) reconhecendo o “direito fundamental de toda pessoa estar prote-gida contra a fome”1. esse pacto representou o maior avanço em termos de reconhecimento de direitos desde a Declaração dos Direitos do Ho-mem de 1948. até o ano de 2006 um total de 153 países já haviam ratificado o Pidesc e alguns de-les haviam desenvolvido leis e decretos regula-mentando o direito humano à alimentação.

a participação do Brasil nas negociações inter-nacionais da Cúpula de 1996 e no reconheci-mento do direito humano à alimentação se dá em um contexto de grande efervescência. após vinte anos de regime militar e um longo período de redemocratização, o país entra nos anos 90 disposto a olhar para as suas mazelas, entre es-tas, a fome e a pobreza. em 1992 é lançada a ação da Cidadania Contra a Fome e a miséria pela Vida, a campanha de Betinho, que mobili-za a sociedade brasileira e reúne as mais diver-sas correntes políticas e religiosas. em 1993 o governo federal lança o primeiro programa de combate à fome e se instala pela primeira vez o Conselho nacional de Segurança alimentar e nutricional (Consea). Várias iniciativas são tomadas no âmbito da sociedade civil visando acabar com a fome, inclusive os primeiros ban-cos de alimentos a se instalarem no país. em 2001, o instituto Cidadania lança o “Programa Fome Zero – uma proposta de política de segu-

1 artigo 11, parágrafo 2 do Pidesc. Vale mencionar que no parágrafo 1 se “reconhece o direito de toda pessoa ter um nível de vida adequado para si e sua família, inclusive uma alimentação adequada”.

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Desafios para uma política de segurança

alimentar e nutricional

integrada

rança alimentar” que se transforma em política pública com a posse do novo presidente em 2003. nesse ano, toma posse também uma nova composição do Consea, estrutura essa que passa a ser reproduzida nos níveis estadual e municipal por todo o Brasil. em 2006 se aprova no Congresso nacional a lei orgânica de Segurança alimentar (losan), que embora sancionada pelo Presidente da república, até o momento não foi regulamentada pelo seu con-selho de ministros.

a nova lei brasileira e outras que surgiram em países latino-americanos (argen-tina, equador e Guatemala) incorporaram os dois elementos mencionados anteriormente: o conceito de direito humano à alimentação e o reconheci-mento da alimentação como um direito. É nesse contexto que se colocam os desafios para o pleno atendimento de uma política integrada que possa dar conta dos vários aspectos envolvidos na questão da segurança alimentar e nutricional.

conceitos envolvidosParece ser fundamental definir exatamente o nosso objeto de estudo. Por

um lado, estamos tratando de uma política que possa atender a um direito universal, extensível a todos os brasileiros. Por outro, estamos nos referin-do a um conjunto de cidadãos em situação emergencial que deveriam ter prioridade no propósito de uma política. observa-se que pode haver uma contradição entre esses dois elementos: os direitos são universais, mas as políticas podem ser focalizadas nos públicos em situação de maior vulne-rabilidade.

nesse sentido, temos que admitir que determinadas políticas devam ser vistas como emergenciais e transitórias, atendendo às situações de maior vulnera-bilidade, extinguindo-se logo em seguida. outras políticas, de alcance mais geral, precisam ser permanentes, garantindo direitos, além de estarem aces-síveis a toda a população, sem qualquer condicionalidade. o diagrama apre-sentado em seguida ilustra como se daria o funcionamento de uma política voltada para atender às situações emergenciais e, ao mesmo tempo, garantir direitos.

Figura 1 - Conceitos envolvidos em uma política pública

fOMe

OBesiDaDe

DesNutRiÇãO

iNseguRaNÇa aliMeNtaR

pOBRezaextReMa

Fonte:Takagi & Silva, 2004.

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Desafios para uma política de segurança alimentar e nutricional integrada

observa-se que o que denominamos de fome é o chamado “núcleo duro” da pobreza extrema e da insegurança alimentar. a garantia dos direitos sociais, entre eles o direito à alimentação, se coloca em um plano superior atendendo a toda a sociedade. Porém existem grupos em situação de risco que exigem programas diferenciados. o que denominamos de segurança alimentar deve abarcar todas as situações de risco, desde os que passam fome até aqueles que são obesos, não vivem na pobreza extrema mas têm sérios problemas de avitaminose e falta de nutrientes.

existem vários métodos que podem ser empregados para identificar uma popu-lação em situação de insegurança alimentar. Dependendo do método utiliza-do chegaremos a um resultado distinto e, portanto, a um diagnóstico diverso, levando a que se prescrevam intervenções de política de cunho diferenciado. em resumo, se utilizarmos estatísticas de indigência e pobreza para avaliar a situação de insegurança alimentar da população, estaremos trabalhando com indicadores de renda e, portanto, o remédio prescrito para combater a pobreza vai ser a política de transferências de renda. o mesmo se pode afir-mar com relação à situação de desnutrição, cujos indicadores são o Índice de massa Corporal (imC), ou subconsumo de alimentos (em termos individuais), ou a disponibilidade de alimentos, calculada pela Fao para o coletivo de uma nação. Da mesma forma, podemos utilizar a chamada percepção de insegu-rança alimentar e construir um indicador com base na escala Brasileira de insegurança alimentar (ebia), utilizada pelo iBGe na Pesquisa nacional por amostra de Domicílios (Pnad) de 2004. no caso de utilização de qualquer um desses indicadores, a política pública recomendada engloba o aumento da produção de alimentos, mudanças na comercialização ou mesmo uma políti-ca ativa de saúde preventiva entre a população mais carente.

a Tabela 1 nos mostra as dificuldades que existem para eleger os públicos priori-tários que deverão merecer a atenção dos programas sociais. nessa tabela se observa que qualquer que seja o indicador escolhido irão ocorrer problemas de focalização e os números tomados como base para a aplicação das políticas podem apresentar diferenças enormes dependendo do método utilizado.

Tabela 1– Estimativa de públicos objetivos para programas sociais: Brasil, 2004

levantamento estimativa Comentários

Déficit de Peso pelo Índice de massa Corpórea

5,4% da população ou 3,8 milhões de pessoas com idade superior a 20 anos (PoF 2003)

não mede a pobreza e nem a segurança alimentar. Só pode ser aplicado à população adulta. não leva em conta problemas de avitaminose. não trata do acesso aos alimentos.

Disponibilidade de alimentos inferior ao mínimo de 1.900 kcal/dia (famílias)

Famílias com rendimento até um salário mínimo per capita, 44,1% ou 77,6 milhões de pessoas que consomem até 1.724 kcal per capita dia no domicílio (PoF 2003)

Dificuldades de contabilização. não leva em conta a questão do acesso aos alimentos.

Disponibilidade de alimentos inferior ao mínimo de 1.900 kcal/dia (crianças)

3,7% de crianças desnutridas e 6% da população subnutrida em 2003-05 – 11.7 milhões de pessoas (Fao)

estimativa com base em indicadores secundários de renda.

Fonte: dados do autor.

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alimentar e nutricional

integrada

levantamento estimativa Comentários

insegurança alimentar 39,8% da população ou 72,1 milhões. Com insegurança alimentar Grave: 7,7% da população ou 13,9 milhões de pessoas (Pnad 2004)

indicador objetivo com o propósito de avaliar a vulnerabilidade da população à fome.

linha da Pobreza de r$ 120 per capita/ mês

25,4% da população ou 46,1 milhões de pessoas (Pnad 2004) entre aquelas que declararam renda

Condicionada às diferenças de valores de cestas de consumo regionais. Deve incluir a produção para o auto consumo nas áreas rurais e a economia com casa própria.

linha da indigência de US$ 1,00 per capita/ dia

5,3% da população ou 9,6 milhões (Pnad 2004) entre aquelas que declararam renda

idem, levando-se em conta também as dificuldades oferecidas pela flutuação do câmbio.

Um exame sumário da Tabela 1 apresenta diferentes estimativas para o público alvo de uma política focalizada no combate à fome. Se tomarmos as estatís-ticas disponíveis da Pnad 2004, Pesquisa de orçamentos Familiares (PoF) de 2003, ou mesmo da Fao de 2003, vamos encontrar valores que variam de 46,1 milhões a 15,8 milhões de pessoas. Tudo vai depender do indicador utilizado para a estimativa e do grau de gravidade a ser pesquisado.

políticas públicas e cidadaniaHá uma evidente contradição no desenho das políticas públicas voltadas para

a garantia dos direitos sociais. Passado o período populista dos estados cor-porativistas dos anos 40 e 50, a américa latina só voltou a rediscutir os seus instrumentos de política social nos anos 90 (ivo, 2006). a revisão das políticas sociais colocou para dentro do estado, através de reformas constitucionais ou outros processos, uma série de direitos que haviam sido conquistados pela população ou por categorias sociais isoladas ao longo das décadas pas-sadas. em um contexto de fragilidade financeira e ruptura social como o da década de 90, a política social reapareceu de forma precária, e não mais universal, privilegiando a extrema focalização dos benefícios.

nesse contexto, os direitos sociais se concretizaram de forma mercantilizada, vigiada pelo estado e em troca de condicionalidades. De um lado rompeu-se com os preceitos de atendimento de direitos, em que a política seria execu-tada para todos os cidadãos, de forma individual e sem contrapartidas. De outra parte, as políticas de focalização imprimiram maior eficiência ao esta-do, o que acabou por garantir a inclusão, em termos concretos, de um maior número de famílias sob o guarda-chuva dessas mesmas políticas.

os organismos internacionais como o Banco mundial e o BiD, patrocinadores dessa nova política social, costumam atribuir ao contexto dos anos 90 como o de disseminador de uma nova geração de programas sociais. os elementos básicos dessa nova política seriam os mecanismos diretos de transferência de rendas e o desenvolvimento do capital humano. os programas seriam tra-balhados sob uma base territorial, sob fiscalização de conselhos da socieda-de civil e indicadores de acompanhamento. entretanto, no que diz respeito à execução desses programas propriamente ditos, surge uma série de proble-mas descritos na literatura como a “captura dos recursos pelo poder local”,

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a falta de efetiva base territorial de apoio, a falta de investimentos públicos complementares e mesmo o efeito nulo desses programas no cur-to prazo, principalmente diante de baixas taxas de crescimento econômico regional ou nacional (cf.: GimeneZ, 2005; TakaGi, 2006, orTeGa & menDonça, 2007).

Do ponto de vista da política de distribuição de renda e de redução da pobreza, as transferên-cias de renda condicionadas estão cumprindo o seu papel. Já se podem observar alguns ganhos significativos no Brasil e em outros países da américa latina, que também foram beneficia-dos com o crescimento econômico e com a alta dos preços das exportações. Contudo, conside-rando os indicadores de subnutrição da Fao, ou mesmo o conjunto de indicadores subjetivos de segurança alimentar, esse progresso é muito mais lento.

Um exemplo concreto dessa imobilidade da re-dução da insegurança alimentar pode ser vista no acompanhamento dos indicadores das me-tas e objetivos do milênio. o objetivo número um do milênio, acordado na Conferência do milênio por todos os países participantes, era o de reduzir pela metade, até o ano de 2015, a proporção de pessoas com fome e em situa-ção de pobreza absoluta. esse objetivo guarda uma semelhança com o objetivo estabelecido na Cúpula mundial de alimentação de 1996, que pretendia reduzir pela metade o número de pessoas subnutridas até 2015. Tomando-se como base as estatísticas de 1992, e utilizando esses números para 1996, se considerou que haveria um total mundial de 823 milhões de indivíduos (20%) da população em situação de subnutrição. no balanço de 2006, ultima edi-ção do levantamento que a Fao realiza a cada ano, encontra-se a estatística de 2003 mostran-do que, após cinco anos do compromisso do milênio, o nosso planeta convivia ainda com 820 milhões de subnutridos (17% da popula-ção), situação ainda muito distante das metas de 410 milhões para 2015 (Fao, 2006).

apesar dos problemas, a américa latina tem apresentado progressos, embora ainda esteja bastante longe das metas fixadas para 2015. em 1992 a Fao estimava um contingente de 59,4 mi-lhões de subnutridos na região (13%). em 2003 essas cifras haviam se reduzido para 52,4 mi-lhões (10% da população). Dadas as dimensões das suas populações, Brasil, Colômbia, méxico e Venezuela reuniam 50% a mais dos subnutri-dos estimados pela Fao em 2003. no entanto, a

situação mais grave era a do Haiti, onde 47% da população estava em situação de subnutrição em 2003. evidentemente, a atualização dos da-dos de países como Brasil, méxico e Colômbia, para 2007 ou 2008, deverão mostrar progressos enormes tendo em vista o período de crescimen-to econômico e de implementação das políticas de transferência de renda.

Uma bem-sucedida política de transferências de renda representa um enorme alívio em termos de pobreza, mas não se traduz direta-mente em uma melhora dos indicadores de segurança alimentar. Começando pelos indi-cadores de caráter antropométrico, ou de per-fil clínico, observa-se que uma redução nos in-dicadores de pobreza extrema não se refletiu diretamente sobre uma queda de indicadores como a desnutrição crônica infantil ou mes-mo a subnutrição (medida pelo indicador de disponibilidade da Fao). Cruzando-se essas informações verificamos também que, curio-samente, países com o mesmo nível de pobre-za extrema apresentam enormes disparidades em termos de subnutrição e desnutrição. Para o ano de 2005 a Cepal (2007b, 31) nos infor-ma que países como equador e nicarágua, por exemplo, possuem a mesma porcentagem de pobreza extrema na população (42%) com níveis de subnutrição de 5% e 27%, respectiva-mente. Da mesma maneira, Paraguai, Bolívia e Haiti possuem os mesmos níveis de pobreza extrema (cerca de 30%), e as taxas de desnu-trição crônica infantil são de 10%, 26% e 49%, respectivamente.

política social e situação macroeconômicao crescimento dos últimos anos no Brasil, e princi-

palmente na américa latina, levou a resultados importantes em termos de redução da pobre-za extrema na nossa região. novos empregos, criados a partir do crescimento econômico, ge-raram novas oportunidades de trabalho e mais arrecadação de impostos, favorecendo o gasto social. entretanto observa-se que os próximos anos serão de reversão do crescimento devido aos efeitos da crise financeira internacional desencadeada neste ano. a recessão mundial deverá impactar diretamente nos preços das ex-portações e na demanda dos países desenvolvi-dos, diminuindo as possibilidades de dar segui-mento ao processo de redução da pobreza.

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alimentar e nutricional

integrada

Como vimos anteriormente, não há uma relação direta e unívoca entre pobreza e segurança alimentar, portanto mesmo com a redução da pobreza podemos observar a permanência de alto nível de insegurança alimentar. Um exemplo dessa situação foram os efeitos decorrentes da alta dos preços dos alimentos durante os anos de 2007 e parte de 2008 na situação de insegurança alimen-tar das famílias. Segundo estimativas (cf. SeanaUer & SUr, 2001: 31), se os preços agrícolas se mantivessem elevados, em torno de 20% sobre a base atual até 2025, teríamos um acréscimo no número de pessoas subnutridas da ordem de 440 milhões, o que aponta no sentido totalmente inverso das metas fixadas pelos objetivos do milênio.

a melhor forma de combater os impactos na segurança alimentar, causados por flutuações nos preços dos alimentos ou outras causas, seria a de tra-balhar em uma política completa de segurança alimentar, levando-se em conta não só os aspectos diretos do combate à pobreza, como também pro-gramas específicos de alimentação e combate à fome. Uma política social mais abrangente abarcaria programas específicos de alimentação. no cam-po estrutural, trata-se de promover programas de produção, principalmente da agricultura familiar, programas de segurança e qualidade dos alimentos, reforma agrária nas áreas ociosas, manutenção de estoques de segurança evitando oscilações nos preços dos alimentos ao consumidor, entre outros. no campo específico da alimentação, deve-se fazer um esforço no sentido de intensificar a gestão de programas de alimentação escolar (até o ensino mé-dio), alimentação para população em situação de risco através de restauran-tes populares, distribuição de alimentos pela ação dos bancos de alimentos, combate à desnutrição infantil e outros programas voltados para públicos específicos. em termos locais também há muito o que fazer, desenvolvendo programas de agricultura urbana, novos sistemas de abastecimento e par-cerias com supermercados para a comercialização de produtos regionais e alimentos sazonais. enfim, trata-se de estruturar uma rede mais ampla de programas que possa dar sustentação às políticas sociais.

na américa latina o volume de gastos em programas sociais ainda é baixo em alguns países, mas vem aumentando a cada ano. estimativas da Cepal (2005) demonstram que o gasto médio por habitante na nossa região é de apenas US$ 440, sendo que o Brasil é um dos países nos quais o gasto per capita é o mais elevado: US$ 860. Considera-se como nível ideal um montante equiva-lente a 15% do PiB para o gasto social, o que vem sendo atingido pelo Brasil nos últimos anos. o nosso problema é que uma parte importante desse gasto refere-se a pagamento de benefícios da previdência, aproximadamente um terço do gasto social.

Tecnicamente o gasto para o pagamento de aposentadorias não poderia ser considerado gasto público, uma vez que o governo estaria apenas devolvendo à sociedade o que havia sido recolhido pelos contribuintes durante a sua vida ativa. Todavia uma parte importante dos fundos da previdência vai para o pa-gamento de benefícios para trabalhadores que não contribuíram diretamente com recolhimentos. esse é o caso dos mais de oito milhões de trabalhadores rurais que não recolheram diretamente contribuições e que foram beneficia-dos pela Constituição Brasileira de 1988. infelizmente, nesse caso, o uso de fundos da previdência pela população mais pobre acaba sendo amplamen-te superado pela destinação das aposentadorias para a população de renda mais elevada, o que é natural dada a maior contribuição dos estratos de renda mais elevada.

nos últimos cinco anos, o Brasil e a américa latina viveram uma situação excepcional em termos macroeconômicos. Provavelmente diante da crise financeira internacional de 2008, deveremos interromper um ciclo de cres-

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cimento em que o PiB per capita superou os 3%. Somente nos anos 70, du-rante o período do “milagre”, esses países cresceram a taxas tão elevadas. a situação geral de indicadores positivos nos permite entrar em um período de turbulência em situação privilegiada em termos de américa latina, pois: i) o crescimento médio do PiB esteve dois pontos percentuais acima da média mundial desde 2003; ii) quase todos os países estão praticando um superávit primário e, para a média da região, ele esteve em 2% do PiB; iii) houve uma melhora das contas fiscais (dívida pública abaixo de 40% do PiB para a média da região); iv) o desemprego caiu, de forma inédita, ficando abaixo dos 9% nos últimos três anos; v) o valor dos produtos exportados teve um aumento de 36% entre 2000 e 2006.

em resumo, podemos observar que as condições macroeconômicas dos úl-timos anos prepararam as bases e favoreceram a possibilidade de se apro-fundarem os investimentos sociais, reformulando sua destinação e, ao mes-mo tempo, complementando os programas de transferência de renda com programas voltados para a alimentação. não se trata de aumentar a carga tributária para gastar mais (embora a arrecadação de impostos seja extrema-mente baixa em alguns países latino-americanos), e sim gastar promovendo a rede de proteção social e de segurança alimentar a que nos referimos2.

elementos para uma análise multidimensionalTendo constatado que a pobreza pode se apresentar de inúmeras maneiras e

que a situação de insegurança alimentar pode ser uma das manifestações desse nível de pobreza, vamos avançar no sentido de estabelecer alguns ele-mentos que possam dar conta de determinar os fatores de risco. Como vimos, uma família pode possuir renda que, teoricamente, garanta sua habilitação para o consumo de alimentos, mas, por meio de levantamentos de campo, chegamos à conclusão de que existe um estado de insegurança alimentar. Da mesma forma pode ocorrer que a família tenha acesso aos alimentos, mas, devido às condições de saúde, ou mesmo à falta de informação sobre esses alimentos, ocorrerem casos de desnutrição.

essas situações diversas mostram que o caminho é desenvolver alguns indi-cadores que possam explicar a maioria dos fatores de risco, identificando claramente o que denominamos anteriormente de “núcleo duro” da pobreza extrema e da insegurança alimentar. esses indicadores devem reunir infor-mações da renda familiar, saúde, educação, condições de moradia e percep-ção de segurança alimentar3.

a Tabela 2 apresenta um conjunto desses indicadores, destacando-se a situa-ção nos quatro primeiros decis da população brasileira, segundo a amostra da onad, ou seja, entre os 40% mais pobres da base da pirâmide. essas in-formações são comparadas com o último decil, os 10% do topo da pirâmide de renda brasileira. Para efeito de comparação acrescentamos também o 1% dos mais ricos e mais pobres da população.

2 na média da américa latina a carga tributária tem girado em torno de 17% do PiB, o que é muito abaixo dos 41% da União européia, 36% da oCDe e 26% dos estados Unidos. o Brasil é considerado um caso excepcional com uma carga que supera os 30%, mas países como a Guatemala, Haiti, equador ou Venezuela possuem uma carga tributária que se mantém há quatro décadas abaixo dos 10% do PiB (Cepal, 2007).3 Para identificar melhor as condições de moradia, o iBGe trabalha na Pnad com o nível de carências do domicílio. reconhece-se seis tipos de carências: 1) material não durável nas paredes, 2) material não durável no teto, 3) mais de uma pessoa por quarto, 4) falta de acesso a água corrente, 5) falta de acesso a esgoto, 6) falta de acesso a eletricidade.

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alimentar e nutricional

integrada

Tabela 2 - Indicadores sociais: Brasil, 2004

Características 1-

Décimos da distribuição de renda

1+

1º 2º 3º 4º 10º

Zona mais frequente rural rural Urbana Urbana Urbana Urbana Urbana

Proporção de domicílios na zona urbana

0,40 0,40 0,48 0,51 0,54 0,55 0,50

Proporção de domicílios na zona metropolitana

0,15 0,14 0,18 0,22 0,25 0,42 0,46

Proporção de domicílios na zona rural

0,45 0,46 0,34 0,27 0,22 0,03 0,03

rendimento per capita médio 10,30 37,10 71,21 97,89 128,03 1.382,45 3.632,98

número médio de carências 2,15 2,05 1,42 1,12 0,89 0,10 0,05

número médio de crianças com até 5 anos que não frequentam escola ou creche

0,92 0,83 0,62 0,52 0,46 0,22 0,21

número médio de crianças de 6 a 14 anos que não frequentam escola ou creche

0,12 0,11 0,07 0,05 0,05 0,00 0,01

Proporção de pessoas sem instrução

0,41 0,35 0,23 0,18 0,14 0,00 0,00

Proporção de pessoas da cor branca ou amarela

0,25 0,27 0,31 0,37 0,40 0,78 0,83

Valor observado da proporção de famílias em insegurança alimentar (leve, moderada ou grave)

0,914 0,850 0,712 0,603 0,524 0,049 0,005

Valor estimado da probabilidade de a família estar em insegurança alimentar

0,977 0,875 0,718 0,602 0,503 0,035 0,011

observa-se pela Tabela 2 que há uma profunda desigualdade entre os estra-tos de renda mais baixa da população e o topo da pirâmide. as famílias de renda mais baixa estão localizadas em zonas rurais ou em zonas urbanas não metropolitanas, ao contrário das famílias mais ricas, domiciliadas nas grandes cidades. entre os 10% mais ricos apenas 3% vivem na zona rural. o rendimento familiar per capita dos mais pobres (estrato dos 10% mais po-bres) é 134 vezes menor que o rendimento dos 10% superiores. entre as seis carências pesquisadas, o número máximo encontrado, que está obviamente no estrato de renda mais baixo, é apenas de duas carências. a questão da educação também tem relevo: nos estratos de renda mais baixa há um con-tingente importante de crianças (até 5 anos) fora da creche e sem receber serviços de saúde. a média é de quase uma criança por família no estrato mais baixo, chegando a uma média de quase 0,5 criança no quarto decil. a

Fonte dos dados brutos: Pnad, 2004.

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situação é um pouco melhor com as crianças em idade escolar. a partir do quarto decil, o número de crianças fora da escola é praticamente zero por família, e o mesmo se pode afirmar em relação à proporção de pessoas sem instrução, que chega a 35% no primeiro estrato. outra constatação é a de que os domicílios mais pobres possuem uma esmagadora maioria de com-ponentes na raça negra e parda, enquanto nos domicílios mais ricos a cor predominante é a branca ou amarela.

Toda essa situação se reflete nos indicadores de segurança alimentar. entre o 1% das famílias mais pobres, a porcentagem de domicílios considerados em situação de insegurança alimentar atinge 91%, em comparação com o 1% mais rico. Calculando-se todos esses componentes, verificamos que a probabilidade de um domicílio estar em situação de insegurança alimentar é de 98% entre o 1% mais pobre, decrescendo à medida que melhoram as condições de moradia, educação e renda. ainda assim, até o quarto decil, a probabilidade de encontrarmos um domicílio em situação de insegurança alimentar era maior que 50%.

na Tabela 3 mostramos o cruzamento das informações de segurança alimentar (grave, moderada ou leve) com a linha de pobreza, medida a partir de meio salário mínimo corrente na data de realização da pesquisa. observa-se que o Brasil possuía um total de 13,6 milhões de indivíduos em situação de in-segurança alimentar grave, dos quais um total de 9,6 milhões estava abaixo da linha de pobreza (70,5% do total). Tomando-se os indivíduos das famílias consideradas em situação de insegurança alimentar moderada, e os estratos até três vezes a linha de pobreza, vamos identificar um contingente de 27 milhões de indivíduos, aos quais podemos denominar de “núcleo duro da pobreza extrema e insegurança alimentar”.

Tabela 3 - Pobreza e segurança alimentar: Brasil, 2004

pobresDe 1 a 2 vezes

a linha de pobreza

De 2 a 3 vezes a linha de pobreza

Mais de 3 vezes a linha de pobreza

total

Números absolutos (1.000)

Sa 11.601 24.069 20.713 49.875 106.257

ia leve 11.196 11.097 5.087 4.507 31.887

ia moderada 13.716 7.823 2.219 1.364 25.122

ia Grave 9.643 2.888 752 387 13.670

Total 46.156 45.877 28.771 56.133 176.937

Números Relativos (%)

Sa 10,9 22,7 19,5 46,9 100,0

ia leve 35,1 34,8 16,0 14,1 100,0

ia moderada 54,6 31,1 8,8 5,4 100,0

ia Grave 70,5 21,1 5,5 2,8 100,0

Total 26,1 25,9 16,3 31,7 100,0

a Tabela 3 nos indica que um total de 15,2% da população brasileira, ou 27 mi-lhões de indivíduos, necessitariam de uma atenção especial propiciada por programas públicos de combate à pobreza e à fome. Para esses indivíduos, a simples transferência de renda através de programas como o Bolsa Família não é suficiente, pois o nível de carências é elevado e a capacidade des-ses indivíduos de saírem da pobreza é bastante limitada, dado o seu grau de instrução, atividade econômica exercida e localização do domicílio, também com limitadas oportunidades econômicas (cf. Belik, 2007).

Fonte dos dados brutos: Pnad, 2004.

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Desafios para uma política de segurança

alimentar e nutricional

integrada

observa-se pela Tabela 3 que a pesquisa estimou também que 70,6 milhões de brasileiros se declararam em situação de ia (grave, moderada ou leve), o que representa quase 40% da população. São pessoas que encontram dificuldade no seu dia a dia para conseguir alimentos, principalmente para a alimenta-ção das crianças. Considerando que o Direito Universal à alimentação pode e deve ser exercido a qualquer momento, o estado não pode desconsiderar a enorme parcela de cidadãos que necessitam de apoio direto para comprar gêneros mais baratos, garantir uma alimentação saudável nas escolas e no trabalho, além de receber apoio direto em momentos de maior dificuldade.

conclusõesVimos neste trabalho que o desenho de uma Política de Segurança alimentar

e nutricional passa por diversas dificuldades e que, em muitos casos, nosso objeto de estudo acaba sendo trocado por outro. Com isso não se atinge o verdadeiro objetivo de uma Política de Segurança alimentar e nutricional, que é o de garantir o exercício do direito humano à alimentação.

a fome enquanto representação de uma situação de dificuldades está muito clara para o cidadão comum. no entanto, quando se passa a uma observa-ção de caráter científico ou como objeto de política pública, torna-se muito difícil seguir em frente. Por esse motivo, tomou-se o conceito de Segurança alimentar e nutricional, da forma como este foi definido na Cúpula mundial da alimentação da Fao, como objeto principal de política pública. essa tarefa foi facilitada pela Pnad-iBGe 2004 que aplicou sobre uma amostra de domicí-lios a escala Brasileira de insegurança alimentar (ebia), de modo a medir a percepção das famílias diante desse problema.

o cruzamento dessas informações com outras referentes à renda das famílias e outros dados sobre condições de moradia, saúde e educação nos permi-tiram identificar aquele que denominamos de “núcleo duro da pobreza ex-trema e insegurança alimentar”. Um exercício utilizando os resultados da ebia e a linha de pobreza mostra que haveria um contingente de 27 milhões de pessoas em situação de extremo risco. Para este grupo seriam dirigidas prioritariamente as políticas de alimentação, embora o acesso ao alimento barato e saudável devesse ser um direito garantido pelo estado.

em termos de américa latina, o Brasil vai caminhando rapidamente para o atendimento desse direito, mas o mesmo não se verifica em toda a região. o presente artigo destaca o fato de que em termos macroeconômicos e dentro de uma perspectiva de médio e longo prazos vivemos um período de bons resultados, o que permitiria à maior parte dos países elevarem o seu gasto social, promovendo uma verdadeira rede de proteção social em apoio à pro-dução e ao acesso aos alimentos.

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Desafios para uma política de segurança alimentar e nutricional integrada

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Insegurança alimentar no contexto brasileiro renato maluf *

* Professor do Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento,

agricultura e Sociedade, da Universidade Federal rural do rio de Janeiro

(CPDa/UFrrJ), onde coordena o Centro de referência em Segurança

alimentar e nutricional (San). É o atual Presidente do Conselho nacional

de Segurança alimentar e nutricional (Consea). economista por formação,

com mestrado e doutorado em economia pela Unicamp e autor dos livros:

Economic development and the food question in Latin America. Food policy;

Reestruturação do sistema agroalimentar: questões metodológicas e de

pesquisa; Abastecimento e segurança alimentar – os limites da liberalização;

Para além da produção: multifuncionalidade e agricultura familiar; Segurança

alimentar e nutricional.

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Para abordar a insegurança alimentar no contexto brasileiro é obrigatório iniciar tratando do con-texto internacional cuja análise está difícil de ser feita. avaliações ficam ultrapassadas em poucos dias. Há dois meses, o quadro poderia ser sintetizado como uma conjuntura – de fato, não apenas uma conjuntura, pois era uma ten-dência que já vinha de alguns anos – de cresci-mento bastante significativo da demanda mun-dial por alimentos, associada a uma elevação acelerada dos preços. esse foi o modo como se expressou o que depois passou a ser chamado de crise mundial dos alimentos.

o primeiro fator explicativo da crise, ressaltado por quase todos os analistas, é a expansão econô-mica dos países emergentes, entre os quais se destacam a China, a Índia e, em menor grau, o Brasil. Uma característica importante desse cres-cimento foi ter sido acompanhado pelo aumento de poder de compra dos setores mais pobres da população, por causa de uma combinação de fa-tores relacionados com a recuperação do empre-go e dos salários e com políticas sociais.

aqui já se coloca um ponto de interrogação sobre a atual conjuntura e perspectivas futuras, pois não há mais dúvidas de que a recente crise eco-nômica, iniciada como uma crise da bolsa de valores, assumiu características de uma impor-tante crise de crédito e irá se refletir na desacele-ração da economia mundial. Sua profundidade ainda não é sabida, muito menos sua duração ou se chegaremos a uma depressão econômica. o fato é que esse componente de expansão eco-nômica é um dos pontos da avaliação da crise de alimentos, que precisa ser repensada, pois devemos assistir a uma desaceleração da eco-nomia mundial.

É certo que a demanda por alimentos tem um pa-tamar mínimo abaixo do qual ela só se estabele-ce em circunstâncias de conflito agudo. então, embora essa demanda não acompanhe, linear-mente, as oscilações da curva de crescimento do produto, pode-se esperar algum impacto negativo num ambiente de desaceleração mais profunda ou de recessão mais grave por suas repercussões no emprego e na renda, afetando, consequentemente, a demanda dos alimentos, mas também pelo que pode vir a comprometer os programas sociais em curso, cujo papel é fundamental. Desse modo, cabe perguntar em que medida a atual conjuntura comprometerá os avanços que vinham sendo obtidos no aces-so à alimentação e, portanto, na promoção do direito humano à alimentação e, mesmo, se es-taremos frente a um retrocesso.

outro fator explicativo da crise mundial de alimentos é a demanda não alimentar por produtos alimen-tares, a muito destacada e controversa agroener-gia. o exemplo mais evidente da correlação entre a utilização de bens alimentares para geração de energia e a segurança alimentar é a produção de etanol a partir do milho, nos estados Unidos. as previsões para este ano são de que esse país utili-ze, para produzir etanol, um volume corresponden-te a 11% da produção mundial de milho. Trata-se de um percentual significativo o suficiente para se imaginar que, certamente, provocará impactos no mercado desse produto. o exemplo menos eviden-te dessa correlação, mas não sem repercussões sobre a segurança alimentar, é o modelo brasileiro de etanol obtido a partir da cana-de-açúcar, e o uso da soja para o biodiesel.

esse fator também pode vir a ser objeto de alguma revisão, em função do contexto internacional.

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Insegurança alimentar

no contexto brasileiro

embora sem sabermos a extensão da recessão econômica, algum impacto ela terá na deman-da mundial por energia. importa observar, par-ticularmente, o comportamento dos preços do petróleo, referência principal para a viabilização de fontes alternativas como a agroenergia. o etanol se viabiliza como combustível em função do que se passa com o petróleo. esse é outro ponto de interrogação.

Contribuíram também para a alta dos preços dos alimentos as quebras de safra ocorridas em vá-rias partes do mundo, agravadas pelos baixos níveis dos estoques mundiais. esse foi um fa-tor importante na origem da crise e que pode manter alguma incidência. Houve também um componente de elevação nos custos dos pro-dutos agroalimentares relacionado com a alta nos preços do petróleo, que segue tendo reper-cussões nos preços finais apesar da recente redução nesses preços. o petróleo tem pelo menos duas implicações no custo dos alimen-tos, a saber, na produção agrícola em função do elevado uso de agroquímicos e do padrão de mecanização, e no custo de transporte des-ses bens. esse último fator se vê agravado por uma das características do sistema alimentar mundial que é a tendência de distanciamento, no tempo e no espaço, da produção e do con-sumo. isso significa, entre outras coisas, o que costumamos chamar de passeio das mercado-rias. Portanto, o custo de transporte é relevante e se faz, sobretudo, com derivados do petróleo.

Por fim, um fator com impacto bastante acentuado na alta de preços: os principais produtos agroa-limentares – como trigo, milho e soja, principal-mente – se converteram em commodities. essa palavra, já quase aportuguesada, designa mer-cadorias que permitem o comércio internacio-nal padronizado e normatizado, são negociadas em bolsas mundo afora, de modo que os títulos referentes a essas mercadorias são objetos de demanda como qualquer outro ativo financeiro. isso fez com que a alimentação, que sempre foi de alguma maneira um negócio, virasse obje-to de especulação financeira por pessoas que têm tanto interesse material neste ou naquele alimento quanto um de nós poderia ter por não importa que coisa, ou seja, nenhum.

os títulos emitidos com base nesses produtos agrícolas constituem ativos financeiros cujas oscilações de valor quase sempre refletem o que se passa nos mercados dos demais ativos financeiros, sem correspondência necessária com o mundo dos bens físicos, embora reper-

cuta sobre eles na forma de impactos nos pre-ços dos produtos. Já disse que é preciso cautela com as previsões, mas não há razão para espe-rar que retorne a especulação com mercadorias agrícolas, bastante forte no início de 2008 e cujo impacto já foi bastante reduzido.

o fato é que, até o ano passado, pela estimativa da Fao, 75 milhões de famílias passaram a ter di-ficuldade de acesso à alimentação, juntando-se aos 850 milhões da estimativa anterior. isso quer dizer que o primeiro dos objetivos de desenvol-vimento do milênio, apesar de modesto, não só não está sendo cumprido como a situação mundial voltou a se agravar, ao menos no último ano. essa é uma média mundial que não reflete a realidade diferenciada dos países. Já sabemos que o Brasil e alguns outros países e regiões do mundo são exceções a esse movimento mais geral.

as pesquisas mostram que houve intenso proces-so de elevação dos preços dos alimentos, sobre-tudo dos lácteos, cereais e oleaginosos a partir do segundo semestre de 2006. Desde meados de 2008 se observa uma inflexão dessa tendência. a pergunta é: passado esse momento em que a especulação financeira contribuiu para en-gordar a tendência altista dos preços – e parece que ela sumiu em parte – em qual patamar es-ses preços irão se estabilizar? Se é que ocorrerá uma estabilização. Daí decorre uma segunda e fundamental questão: saber se, como resultado desse processo, ocorrerá o encarecimento rela-tivo da alimentação. ou seja, se estamos assis-tindo a uma recomposição de preços relativos que tornará a alimentação mais cara.

muitos dizem, e é verdade, que uma parte desse aumento de preços a que assistimos foi uma recuperação de perdas sofridas pelos preços agrícolas no passado como reflexo da conhe-cida tendência secular de queda desses pre-ços em termos reais. no entanto, cabe verifi-car se essa recomposição de perdas passadas se manterá e se os alimentos e a alimentação estarão em outro patamar de preços relativos. nesse caso, outras questões terão que ser le-vadas em conta.

estamos presenciando a reconstrução de um pa-drão de regulação nacional no âmbito agroali-mentar. Por caminhos sempre difíceis, custosos e dolorosos, parece estar se confirmando o que muitos de nós dizíamos já no início dos anos 90: que o comércio internacional não é fonte confi-ável de segurança alimentar. isso não quer dizer que se deva desprezar ou desconhecer o papel

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Insegurança alimentar no contexto brasileiro

do comércio internacional, muito ao contrário. no entanto, está evidente não haver qualquer fundamento para as formulações que, equivoca-damente, fazem crer na perspectiva de livre co-mércio, fluxo desimpedido de mercadorias etc.

embora não se trate da mera recomposição do padrão de intervenção do pós-guerra, os países que são atores globais (estados Unidos, União européia, Japão, China e Índia) estão recons-truindo instrumentos de regulação nacional, até mesmo no interior da europa, tida como contra-exemplo da regulação nacional. e parte da refe-rida reconstrução se expressa na construção de estratégias de segurança alimentar, basicamen-te na forma de apoio à produção doméstica e, em alguns casos, na busca de fontes externas de matéria-prima. a China é o principal exem-plo, com uma estratégia bastante evidente de assegurar fontes externas de matérias-primas, dado o nível de demanda que se criou por lá.

no caso da américa latina e do Caribe, particular-mente do mercosul, todos os países foram afeta-dos pela inflação de preços dos alimentos, em-bora com intensidades bastante diferenciadas. a primeira e imediata reação de quase todos foi o que se chama de desgravação das importações, isto é, redução de barreiras tarifárias e outros constrangimentos visando agilizar e baratear as importações com vistas a enfrentar, imediata-mente, problemas de abastecimento interno.

Quanto aos países do mercosul, a discussão en-volve outro elemento pelo fato de entre eles es-tarem os dois principais ganhadores no atual contexto, como exportadores, que são o Brasil e a argentina. então, a inserção do Brasil no mer-cosul está marcada, por um lado, pelo aumento da sua participação no comércio mundial; por outro lado, temos iniciativas ainda muito tími-das para pensar estratégias regionais. Já se co-meçam a ter os primeiros sinais de interesse, por parte dos países da região, na direção de construir estratégias conjuntas de apoio à pro-dução, de abastecimento e de enfrentamento de questões que estão no âmbito da segurança alimentar.

Sobre o Brasil, quero destacar três pontos. em primeiro lugar, os impactos da inflação inter-nacional de preços foram atenuados quando comparados com outros países. não chegou a haver desabastecimento e, muito menos, povo se mobilizando nas ruas por alimentos, como aconteceu em vários países. isso não quer di-zer, porém, que a alta de preços interna foi des-prezível. o custo de aquisição da cesta básica,

segundo pesquisa do Dieese, aumentou nas principais capitais estaduais entre 27% e 52% nos doze meses encerrados em maio de 2008. aumento da cesta básica em 52% em um ano não é nada desprezível.

É verdade também que todos os indicadores de preços estão mostrando desaceleração, a partir de julho e agosto. note-se que embora os preços tenham parado de crescer, do ponto de vista da população, a alimentação continua cara. reto-mando uma questão anterior, cabe observar se estamos assistindo a uma recomposição de pre-ços relativos com o encarecimento da alimen-tação, ou se a interrupção da alta virá acompa-nhada de um recuo dos preços aos patamares antes vigentes.

o segundo ponto é a integração do país no sis-tema global. o Brasil é um grande exportador líquido de alimentos. em 2007, as exportações agrícolas totais estavam na casa dos US$ 58 bilhões; parte significativa do aumento havido nas exportações agrícolas mundiais nos últimos anos concentrou-se na argentina e no Brasil. o problema, aqui, diz respeito ao discurso hege-mônico no país, presente em vários setores de governo e fora dele, na imprensa etc., que dá a entender que todos nós, enquanto país, somos os beneficiários dessa oportunidade única: o mundo precisa de comida, sabemos produzir e somos competitivos, então, vamos faturar. Sabe-mos que não é bem assim.

Trata-se da perspectiva do mercador que quer se beneficiar da conjuntura para vender mais. É uma resposta possível que encontra fundamen-tos na realidade e legitimidade social. nem se trata de fazer um discurso contrário às expor-tações, inclusive pelo papel que elas cumprem no abastecimento de outros países. ressalto, no entanto, que essa não é a única resposta possí-vel e, mesmo ela, a resposta do mercador, deve ser olhada com cuidado porque a exportação não é um negócio que beneficia a todos. estu-dos mostram estarem elas também sob controle de um reduzido número de grandes empresas e corporações, como ocorre em todos os com-ponentes do sistema alimentar global (insumos agrícolas, industrialização de alimentos, distri-buição-varejo).

Uma característica nem sempre destacada é que temos, no Brasil, ao menos dois modelos de agricultura, que são o do chamado agronegó-cio ou agricultura patronal e o do conjunto que agrupamos na denominação de agricultura fa-miliar. Para além de um modelo de agricultura –

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Insegurança alimentar

no contexto brasileiro

de fato se trata de uma categoria sociopolítica – a denominação agricultura familiar comporta grande heterogeneidade dentro dela. observe-se que não estou descrevendo dois mundos separados, que não se intercomunicam. Parce-las da agricultura familiar estão integradas em cadeias agroindustriais, muitas participam do processo exportador. De todo modo, essa carac-terística confirma que a agricultura brasileira, como as de outras partes do mundo, não é um conjunto homogêneo que se beneficia, todo ele, com o atual padrão de inserção internacional de exportação.

Tomem-se como exemplo as negociações de um acordo comercial, afinal não concluído, entre a União europeia e o mercosul, que o Consea acompanhou. Tivesse o Brasil feito passar a pro-posta dos grandes exportadores de zerar a ta-rifa de importação de leite – numa negociação com o maior produtor mundial de lácteos com pesados subsídios –, em troca de alguns poucos percentuais de acesso ao mercado europeu, e a consequência seria uma espécie de política de terra arrasada para um grande número de pe-quenos agricultores produtores de leite no Bra-sil. esse exemplo mostra que não é uma única agricultura que se beneficia.

o trigo constitui um caso paradigmático em nosso país. Por razões que não há tempo para detalhar, entre as quais se destaca a política de ajuda ali-mentar e venda subsidiada de excedentes dos estados Unidos, o trigo se tornou – sem trocadi-lho – um bem de consumo de massa, apesar de não estar inscrito entre os produtos que temos aptidão de produzir e, consequentemente, sem estar inscrito nos hábitos culturais da população brasileira em geral até meados dos anos 1950. o fato é que produtos derivados de trigo são con-sumidos, regular e massivamente, do oiapoque ao Chuí. Chegamos perto da autossuficiência nesse cultivo em 1986, ao custo anual de US$ 1 bilhão em subsídios. então, por mais que a embrapa tenha se dedicado a esse produto, em 2008 tivemos uma produção doméstica que mal alcançou 50% da demanda, daí que somos im-portadores líquidos de um produto que, por sua vez, constituiu um dos alicerces da construção inicial do mercosul.

resta-me abordar um ponto fundamental, que diz respeito aos instrumentos de regulação pública dos mercados e de promoção do acesso aos ali-mentos. Temos enfatizado no Consea que um dos aspectos mais graves da atual crise mundial de alimentos é o despreparo dos governos para

enfrentá-la. Duas décadas após o lançamento do Consenso de Washington e da promoção (imposição) do que se chamou de ajuste estru-tural das economias do Sul, com a liberalização comercial e desregulamentação dos mercados, nota-se a reconstrução de um padrão de regu-lação nacional já mencionado antes. Governos com um mínimo de senso de responsabilidade e capacidade político-institucional não deixarão a segurança alimentar do seu país ao sabor do que se passa nos mercados mundiais. ocorre que nem todos os países têm esse poder e ca-pacidade. Há países, sobretudo do Hemisfério Sul, que ficaram duas décadas desmontando os instrumentos que tinham.

o Brasil fez isso também, mas é um país com si-tuação diferenciada por ter um marco político-institucional e competência estabelecida para reconstruir tais instrumentos ou instituir novos. Tome-se como exemplo o que ocorreu com a es-trutura de entrepostos difundida pelo país, suca-teada e alienada de qualquer significado como instrumento de política pública, afora os sabi-dos problemas de corrupção que enfrentou. nos últimos anos, os entrepostos se tornaram imobi-liárias, agências de aluguel de stands a permis-sionários, sem funções relevantes em termos de uma política de abastecimento alimentar, aliás, inexistente. É possível reconstruí-la, e a Compa-nhia nacional de abastecimento (Conab) tem programa nessa área. então, nós temos um marco político-institucional, equipamentos e investimentos realizados que permitem retomar o papel regulador e mesmo indutor do estado brasileiro, claro, na direção de um modelo justo e sustentável, e não como fez no passado.

infelizmente, isso não é verdade para todos os pa-íses, particularmente para aqueles que mal par-ticiparam da festa anterior e agora estão tendo que se defrontar com uma conjuntura em que a disponibilidade de instrumentos de intervenção é fundamental. Se alguma cooperação interna-cional é fundamental nos dias de hoje, é uma cooperação que contribui para criar capacida-des de formulação de políticas públicas, com participação social. o Brasil tem atuado nessa direção, felizmente, em alguns programas nos quais adquirimos alguma competência, sobre-tudo no campo alimentar e nutricional.

antes de entrar na parte dos desafios, quero abordar, brevemente, a questão da seguran-ça alimentar e nutricional no Brasil. Um ponto que considero importante é termos um enfoque brasileiro de segurança alimentar construído

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Insegurança alimentar no contexto brasileiro

nos últimos vinte e poucos anos, o que não tem qualquer sentido xenófobo, já que se alimentou do debate mundial. essa especificação signifi-ca apenas que há particularidades em relação a outros enfoques, a começar pela denominação alimentar e nutricional.

essa construção tem duas referências principais. Primeiro, a segurança alimentar e nutricional é entendida como objetivo de política pública orientado por dois princípios: o direito humano à alimentação adequada e a soberania alimen-tar. essas referências estão inscritas na lei orgâ-nica que, felizmente, conseguimos aprovar. não é óbvio ter esse tipo de definição inscrita em lei, ainda que isso nem sempre assegure muita coisa. a ideia é que o objetivo da San seja per-seguido com políticas orientadas por uma visão de direito na sua concepção e na maneira de implementação e que reflita o direito dos povos decidirem, soberanamente, o que querem fazer neste campo: como querem e o que querem produzir como alimentos, como querem consu-mi-los e que hábitos desejam valorizar.

a segunda característica do enfoque é a interse-torialidade das ações e programas junto à par-ticipação social na sua formulação, implemen-tação e monitoramento. Partimos da premissa de que a condição alimentar e nutricional de in-divíduos e de famílias tem múltiplas dimensões e deve ser tratada dessa forma, atacando-se, sempre que possível de maneira coordenada e simultânea, essas múltiplas dimensões. e isso requer ações integradas, que implicam o difícil exercício da intersetorialidade. Qualquer pessoa que já lidou com o governo sabe como é difícil a construção da intersetorialidade. Para ser justo, essa dificuldade não é exclusividade dos gover-nos. Qualquer de nós, da universidade, sabe o que é praticar a interdisciplinaridade. É um de-safio muito parecido. em ambos os casos, aliás, envolvendo compartilhar recursos de poder.

além do caráter intersetorial, nossa construção do enfoque de San requer, sobretudo, participação social na formulação das políticas públicas. essa perspectiva de participação expressa uma ten-dência que se difundiu no campo das políticas públicas, terreno no qual o Brasil tem avançado bastante, acompanhando o que ocorre em várias partes do mundo.

Falou-se da escala Brasileira de insegurança alimentar (ebia), que é uma adaptação para o Brasil do conhecido método desenvolvido na Universidade de Cornell e utilizada pelo Depar-tamento de agricultura dos estados Unidos. a

primeira e, até o momento, única pesquisa na-cional com essa referência foi feita pela Pesqui-sa nacional por amostra de Domicílio (Pnad) de 2004, e tem esses números: 65,2% de domicílios são considerados em segurança alimentar; 16% têm insegurança alimentar leve, quando a qua-lidade da alimentação começa a se ver compro-metida; em insegurança alimentar moderada temos 12%, quando há restrições quantitativas; e em insegurança alimentar grave estão 18%, significando que alguém da família vivenciou experiência de fome no período considerado pela pesquisa.

esse é um indicador muito interessante por vá-rias razões. Fazendo uso de uma análise feita pelas colegas ana Segall e letícia marin leon, da Unicamp, é possível estabelecer uma com-paração, considerando a mesma amostra, entre a Pnad-2004 e a Pnad-2006, que pesquisou os domicílios com mulheres em idade fértil. essa comparação revela um movimento de melhoria gradativa na direção de condições mais amenas de insegurança alimentar. assim, a insegurança alimentar leve nessas famílias cresceu em fun-ção da redução da insegurança alimentar mo-derada e grave. no tocante, especificamente, às famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família, fica absolutamente evidente a melhoria, com a insegurança alimentar grave caindo em 25,3% nos dois anos que separam as duas pesquisas.

ao lado do papel central das políticas sociais, quero acrescentar o apoio da agricultura fami-liar. Parte da atenuação do impacto da inflação internacional no Brasil se deveu ao papel cum-prido pela agricultura de base familiar no abas-tecimento alimentar do país.

esclareça-se que a política social não se resume ao Programa Bolsa Família. integram as políti-cas sociais a recuperação do poder de compra do salário mínimo, cujo impacto foi reforçado pela recuperação do emprego, a Previdência Social e os Benefícios de Prestação Continuada, além de outros. aliás, esse conjunto represen-ta várias vezes o volume dos recursos transfe-ridos pelo Bolsa Família. Por isso, é preciso ter o cuidado de considerar o conjunto das políti-cas sociais. ressalte-se que a existência de um programa como o Bolsa Família é uma questão de promover direitos (à alimentação e à cidada-nia), mas não se deve subestimar o papel das demais políticas mencionadas que, a propósito, são uma expressão de direitos institucionaliza-dos. Portanto, estão mais protegidas frente às mudanças de prioridades dos governos.

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Insegurança alimentar

no contexto brasileiro

o marco institucional que temos trabalhado está definido na lei orgânica da San (losan) que prevê a construção de um Sistema nacional de San. esse sistema se baseia na realização pe-riódica de conferências (nacionais, estaduais e municipais), um momento fundamental de con-sulta social, onde as grandes diretrizes são apro-vadas. integram-no os Conseas nas três esferas, com o papel de transformar essas diretrizes em propostas de governo. a Câmara interministe-rial de San, na esfera federal, constitui a princi-pal novidade da lei por criar um órgão até então inexistente, cujo papel é transformar essas pro-posições em programas públicos. De fato, pode transformá-los ou não em programas de gover-no, já que o Consea é um conselho consultivo. espera-se a criação de órgãos intersecretariais análogos, nas esferas estadual e municipal.

Costumo dizer que a natureza consultiva do Consea é o preço da intersetorialidade. o Con-selho reúne 19 ministérios e 38 representantes da sociedade civil, e é presidido por um desses representantes da sociedade. não haveria como um Conselho como este impor as suas delibe-rações sobre outros sistemas de política públi-ca como, por exemplo, o sistema de saúde, que possui suas próprias instâncias deliberativas com participação social.

esperamos e estamos neste momento trabalhan-do na direção da construção dessa mesma es-trutura nos estados e municípios. Sem sistemas estaduais e municipais não existirá um sistema nacional num país com as características do Brasil.

Para finalizar, abordarei alguns desafios. Dizer que se trata de uma crise sistêmica, do siste-ma alimentar global, pode ser entendido como um diagnóstico do tipo: “o mundo vai virar de pernas para o ar”. ainda que não se trate disso, também não podemos simplificar a discussão como se fosse um mero desajuste da oferta e da demanda requerendo mais produção, tendo países como o Brasil e a argentina – que estão entre os grandes beneficiários dessa conjuntura – pensando em fazer mais do mesmo: pisar no acelerador da produção com mais tecnologia, mais monocultura, mais agroquímicos, mais mecanização, mais produtividade por área a qualquer custo.

está em questão a organização do sistema global de alimentação atual integrando os países do mundo. nada contra a integração e o diálogo entre culturas e países, porém, não é interes-sante uma integração com significado apenas

econômico, assentada na falsa premissa da li-beralização comercial. De fato, ela coloca a pro-dução, a distribuição e o consumo de alimentos no mundo sob controle da regulação privada de reduzido número de grandes corporações e tam-bém das políticas dos principais atores globais. este é o momento de rediscutir a organização do sistema alimentar global.

está em discussão também e, principalmente, o modelo de agricultura que está na base desse sistema. as razões ambientais invocadas no questionamento do modelo agrícola nem ca-recem de muita explicação. Destaque-se a va-lorização da diversidade e a forma de ocupar o espaço que remetem, de fato, à própria organi-zação da sociedade. Temos defendido que em lugar de mais do mesmo precisamos implemen-tar ações, estratégias e políticas que fortaleçam movimentos em direção contrária. entre elas, chamo a atenção para a perspectiva de rea-proximar a produção e o consumo por meio da valorização de circuitos regionais de produção, distribuição e consumo fundados em pequenos e médios empreendimentos.

o Consea constituiu um grupo de trabalho para analisar a questão do acesso à água que, para nós, deve ser entendida como alimento. Para minha surpresa, constatamos que mais de 50% do consumo de água no Brasil é de responsabi-lidade da atividade agrícola. Considerando que caminhamos na direção de escassez ou de res-trição do acesso à água, não é pouca coisa o que esse dado revela sobre a contradição entre o modelo agrícola e as perspectivas futuras do planeta.

o segundo desafio diz respeito ao despreparo político-institucional dos governos. o Brasil está tentando construir um Sistema nacional de San, construção que não está pré-determi-nada em lugar algum. isto é, há uma lei à qual os governos e os agentes sociais podem ou não querer dar consequência prática. Como já disse, está no plano político-institucional um dos prin-cipais desafios. Penso, sobretudo, nos países da áfrica e em alguns países da américa latina que estão sob risco de ficar de fora, novamente, do jogo internacional, jogo que volta a contar com o fortalecimento de instrumentos de regulação nacionais.

não nego que fiquei satisfeito com a não-conclu-são da rodada Doha da organização mundial do Comércio (omC), porque nunca achei que os termos em que ela está sendo conduzida repre-sentassem solução para as questões mais rele-

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Insegurança alimentar no contexto brasileiro

vantes do momento atual. Parece-me ter ficado evidente que as negociações da omC terão que ser recontextualizadas, pois o problema não se limita à suposta intransigência desse ou daquele país sobre pontos do acordo, como anunciado. Tome-se a última tentativa de acordo. a recusa da Índia, em discordância direta com os esta-dos Unidos, em aceitar a fixação de um elevado percentual de aumento das importações antes de poder acionar mecanismos de salvaguarda, significa que ela não abre mão dos instrumen-tos de proteção da sua agricultura. e isso é o que todos os países estão fazendo.

o terceiro desafio deriva da acelerada urbaniza-ção gerando crescente demanda de alimentos, com duas implicações: uma no campo da dieta alimentar e outra na pressão sobre o meio am-biente. o atual modelo de produzir e consumir alimentos está em questão, também, por essas razões. Quanto a produção, distribuição e con-sumo, mencionei antes as cadeias e circuitos regionais e os modelos agrícolas de base fami-liar. esta contraposição não pretende reproduzir a antiga dicotomia atrasado x moderno, mas diz respeito à maneira de produzir e de se relacio-nar com a natureza, com os recursos naturais e com a biodiversidade.

estamos celebrando, em 2008, o centenário do nascimento de Josué de Castro, esse grande brasileiro. Para ele, o alimento é o principal elo do ser humano com o quadro regional em que vive. Josué dizia, em 1946, que os alimentos são a principal porta de entrada do estudo da eco-logia. relembrei Josué de Castro por causa da discussão sobre biodiversidade, tema crucial. a propósito, estudos têm estabelecido interes-sante correlação entre perfil nutricional, dieta e biodiversidade para mostrar como o comprome-timento da biodiversidade interfere na diversida-de da dieta e no perfil nutricional.

não poderia deixar de mencionar a questão das mudanças climáticas, inclusive em relação ao ponto anterior extraído de Josué de Castro. Um dos impactos já esperados das alterações cli-máticas é uma redistribuição espacial e territo-rial da produção. isso me leva a perguntar como fica a relação do ser humano com o ambiente em que vive num contexto de mutação dessa grandeza.

Cabe uma observação específica sobre as famílias mais pobres da população, em relação às quais seguem se colocando questões de acesso aos alimentos e de hábitos alimentares. acho que temos avanços a comemorar, dados os bons re-

sultados que vêm sendo obtidos na ampliação do acesso aos alimentos no Brasil. Porém, todos nós sabemos que vivemos numa sociedade que é uma infernal máquina de geração de desigual-dades. e o Brasil sempre foi exemplar na capaci-dade de gerar desigualdades. então, valorizar o que vem sendo conseguido não significa desco-nhecer o papel central de dispor de políticas pú-blicas permanentes, orientadas pelo enfoque de assegurar direitos, fator crucial para garantir o acesso à alimentação. Tais políticas devem, pre-ferencialmente, ser acompanhadas de outras ações que tratem não apenas da emancipação das famílias em relação à sua dependência da transferência de renda, mas dos hábitos alimen-tares. Como revelou a pesquisa recém concluí-da pelo instituto Brasileiro de análises Sociais e econômicas (ibase) relacionando o Bolsa Fa-mília com o acesso à alimentação, quando as famílias mais pobres passam a ter acesso à ren-da elas tendem a reproduzir o mesmo padrão alimentar daqueles que dispõem de renda que, como sabemos, está repleto de problemas.

ao final de minha apresentação no Seminário, recebi uma pergunta sobre quais seriam as al-ternativas ou as diretrizes de uma reconstrução regulatória, cuja resposta, por achar pertinente, reproduzo aqui. o contexto atual dificulta ofere-cer respostas precisas e envolve alguma especu-lação. Começo pelo plano internacional. Disse que as negociações na omC têm que ser recon-textualizadas, o que significa supor que a omC continua sendo um fórum capaz de ordenar os fluxos internacionais. isso também não está as-segurado. o mundo do pós-guerra passou por um primeiro momento, nos anos 1940-70, que alguns estudiosos chamaram de regime alimen-tar do excedente, construído sobre a regulação nacional e o forte peso das políticas adotadas pelos estados Unidos e a atual União europeia. Guardadas as proporções, o Brasil também im-plementou políticas nacionais ativas de crédito, envolvendo subsídios e proteção de mercado. a regulação internacional tinha por base a regu-lação nacional, de modo que o máximo que se conseguia era um acordo de tarifas como o Gatt (acordo geral sobre pautas aduaneiras e comér-cio), um acordo e não uma organização.

esperava-se que a omC representasse uma etapa superior das relações comerciais internacionais, conformando o espaço multilateral necessário para normatizar as relações comerciais, orienta-do pela perspectiva de crescente liberalização. então, foram definidas três referências, no entor-

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Insegurança alimentar

no contexto brasileiro

no das quais se dão as negociações de acordos multilaterais na omC: medidas de apoio domés-tico, subsídios à exportação e proteção de mer-cado. É fato que importantes participantes do comércio internacional, como o próprio Brasil, têm um perfil de comércio multilateral. ocorre, porém, que as relações internacionais não são assim, elas têm um importante componente bi-lateral, têm mão e contramão e se constroem por acordos que envolvem reciprocidade. então, como estabelecer regras multilaterais para rela-ções que não são apenas multilaterais, mesmo que os países tenham destinos múltiplos para suas exportações?

além disso, o sistema alimentar mundial tem seus principais componentes sob controle de não mais do que meia dúzia de grandes corpo-rações que controlam os agroquímicos todos, ou a exportação de grãos, a produção indus-trial de alimentos ou ainda o varejo. Veja-se o que aconteceu com a distribuição e o varejo no mundo, o Brasil incluído, controlado por um re-duzido número de grandes redes. esse sistema, sob forte regulação privada, determina o abaste-cimento alimentar. note-se que está ocorrendo com os alimentos o que já é uma característica típica das relações industriais, a saber, elevado percentual de transações intrafirmas no plano internacional, outro elemento que nega o ca-ráter supostamente livre e aberto do comércio internacional.

Portanto, embora a omC não seja uma experiência esgotada, ao contrário, ainda envolve elementos de construção, é claro que ela enfrenta muitas dificuldades para acordar regras num sistema com as características apontadas, ao que se soma a reconstrução de padrões nacionais. Se é para manter uma instância multilateral, como é a omC, alguns de seus fundamentos devem ser revistos, sobretudo agora que os atores globais estão no centro de uma profunda crise interna-cional. a maioria dos países deve caminhar na direção de reconstruir instrumentos nacionais, embora não seja uma reconstrução do padrão de proteção do pós-guerra.

isso coloca a necessidade de se retomar a dis-cussão sobre abastecimento alimentar, e será muita irresponsabilidade se o Brasil não recons-truir uma política nacional de abastecimento. o Consea já propôs isso várias vezes, com a pers-pectiva de promover o acesso à alimentação adequada e saudável simultaneamente à pro-moção de formas de agricultura familiar. a re-ceita mais do mesmo tem fôlego curto.

Há também a questão da integração regional, já que muitas políticas públicas, bem como as estratégias dos atores relevantes, é regional. a integração cumpre papel inclusive no tema do abastecimento alimentar, porém, até agora pou-co avançamos nesse campo. Considero que de-vemos nos perguntar qual deve ser o papel dos blocos regionais, em particular o mercosul, nes-se reordenamento global.

Chegando, por fim, à implantação do Sistema nacional de San no Brasil, ela enfrenta alguns obstáculos. a começar pelo fato de a referência de segurança alimentar e nutricional no Brasil ainda estar em construção. Todo e qualquer objetivo de política pública é passível de várias acepções, dependendo de quem o está utilizan-do. nossa construção de San não é unânime na sociedade, sendo preciso consolidar essa visão que fala de direito humano, de soberania alimentar, que privilegia os mais pobres, os pe-quenos empreendimentos, as produções alter-nativas, os circuitos regionais etc. ela está na contramão das proposições dominantes ou he-gemônicas.

o segundo desafio, ao lado de criar essa refe-rência, diz respeito à sensibilização dos gover-nantes. não está escrito em lugar algum, com poder mandatório, que é preciso promover a San. nós ainda não conseguimos introduzir no artigo 6º da Constituição Brasileira o direito à alimentação junto aos demais direitos de todos os brasileiros e brasileiras. nossa lei, chama-da de lei orgânica da Segurança alimentar, de fato é uma lei ordinária no sentido legislativo do termo, podendo ser modificada ou mesmo suplantada por outra lei. esperamos que o Con-gresso nacional vote uma emenda constitucio-nal com este objetivo, que está tramitando há uns dez anos ou mais. isso acontecendo, nossa lei da San passará a regulamentar um princí-pio constitucional, como ocorre, por exemplo, com a educação e a saúde. Quer dizer, pode-se investir mais ou menos em educação e saúde, pode-se atuar de um modo ou de outro, mas não se pode deixar de cumprir com o que está na Constituição.

Veja-se o Consea. ele existiu por dois anos, em 1993 e 1994, e no início do governo de Fernan-do Henrique Cardoso a experiência foi abortada dando lugar a outra coisa que foi o Comunidade Solidária. isso pode acontecer de novo. aliás, o próprio Presidente da república manifestou essa preocupação em plenária do Consea. essa característica revela uma fragilidade institucio-

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Insegurança alimentar no contexto brasileiro

nal que precisaria avançar na definição consti-tucional e, a partir dela, criar não uma certeza de irreversibilidade, sempre difícil, mas ao me-nos melhores condições de continuidade.

o terceiro desafio é o convencimento dos gover-nadores estaduais. nós estamos neste momen-to investindo forte nos governos estaduais, co-meçando por despartidarizar a questão da San. no início dizia-se que era “coisa do lula, do PT”. acho que já avançamos muito na direção de su-perar isso. É preciso que todos compreendam que trata-se de uma questão da sociedade. mais do que isso, queremos que seja não uma ques-tão de governo, mas sim uma questão de esta-do, com o mesmo estatuto que outras têm.

Por fim, temos que dar concretude a algumas des-sas definições. Por bons e maus motivos, esta-mos assistindo a uma saída da fome do primeiro plano do debate nacional. os bons motivos se devem aos êxitos das políticas; os maus moti-vos dizem respeito ao reingresso, pelas portas dos fundos, do economicismo dos anos 1960-70: crescimento econômico é o que interessa, o res-to é o resto. Hoje escutamos falar de Programa de aceleração do Crescimento (PaC) para qual-quer coisa. Um economicismo insuportável vol-ta a ganhar espaço. Temos o desafio não só de impedir que as questões da fome e da desigual-dade saiam de cena, como também acrescen-tar outras questões. noto que quase um terço da população norte-americana, país mais rico do mundo, depende de um programa de ajuda para ter acesso aos alimentos, o Food Stamp Pro-gram. Portanto, não se pode deixar sair de cena a fome. além disso, temos que trabalhar as refe-rências da alimentação saudável e do alimento limpo, que permitem dar à segurança alimentar e nutricional uma tradução mais concreta.

no caso do direito humano à alimentação, há que se traduzir para a população essa ideia e o Sis-

tema nacional de San pode ajudar nisso. nin-guém diria que é contrário ao direito humano à alimentação, o que nos leva a pensar que se tra-ta de um consenso absoluto. no entanto, quan-do se discute o que quer dizer, concretamente, materializar esse direito, o dissenso começa a se estabelecer. esse é outro caminho que o sis-tema deveria tomar, propondo instrumentos de exigibilidade do direito à alimentação.

no que diz respeito ao vasto campo das políti-cas públicas, temos tido conquistas impor-tantes. Várias proposições do Consea têm se materializado em programas notáveis, como são os casos do Programa de aquisição de ali-mentos da agricultura Familiar e dos avanços esperados com o Projeto de lei do Programa nacional de alimentação escolar, que aguar-da aprovação pelo Congresso nacional. Temos conseguido construir boas referências, sen-do necessário agora dar perenidade às ações e programas.

nosso irmão mais velho, o Sistema Único de Saúde (SUS), levou quase vinte anos para ser construído e, em muitos aspectos, ainda se-gue em construção. nós não chegamos a ter, propriamente, um partido da San – como se dizia haver um partido dos sanitaristas – mas já há alguma competência estabelecida no país, nos governos e nos movimentos sociais: a pesquisa nas universidades aumentou, o iBGe colocou a San entre seus indicadores etc. a atual conjuntura internacional também está contribuindo, infelizmente, por maus mo-tivos. ninguém mais brinca com a questão dos alimentos e da alimentação. Talvez estejamos, mesmo, conseguindo construir um campo que não se reverta. resta ver se a construção do sistema chegará lá.

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Algumas notas sobre segurança alimentar e comércio internacional1 marta dos reis castilho*

* Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em economia

(PPGe) e professora adjunta da Faculdade de economia da Universida-

de Federal Fluminense, com mestrado em economia pela Universida-

de Federal do rio de Janeiro e doutorado em economia internacional

pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Foi professora

convidada nas Universidades de Paris-Dauphine, Paris-nord e escola

de Ciências Políticas de Paris (Sciences Po). Trabalhou como consul-

tora para diversos organismos nacionais e internacionais, como ipea,

Cepal, iTC (omC/Unctad).

1 este trabalho contou com o apoio do bolsista de iniciação científica Bruno Poses.

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o comércio internacional ocupa um papel cen-tral na questão da segurança alimentar devido a diversos aspectos. o mais importante é, sem dúvida, sua relação com as quantidades de ali-mentos ofertados domesticamente. Diretamen-te, o mercado internacional pode complementar a oferta doméstica de alimentos, por meio das importações, ou auxiliar no escoamento de ex-cedentes de produção via exportações. indireta-mente, a quantidade será afetada pelos preços dos alimentos, que são, em grande parte, deter-minados no mercado internacional.

os preços dos alimentos no mercado doméstico – que são negociados como commodities no mer-cado internacional – refletem em grande medi-da os preços internacionais, convertidos pela taxa de câmbio e acrescidos de tarifas e outras taxas incidentes sobre os fluxos de importação (no caso das exportações, os impostos têm um efeito redutor sobre o preço doméstico).

Daí, percebe-se que, pelo lado das importações, a quantidade adquirida do exterior dependerá não somente do preço do produto no mercado internacional, mas também da taxa de câmbio e da política comercial do país em questão. a taxa de câmbio, cujo valor depende de outros tantos fatores que fogem à presente análise e também à esfera da produção de bens, pode imprimir uma certa volatilidade e incerteza aos preços dos alimentos, o que é extremamente relevante do ponto de vista de segurança ali-mentar. Já a política comercial pode, através de tarifas aduaneiras e tantas outras chama-das barreiras não-tarifárias (tais como normas sanitárias, restrições quantitativas ou medidas administrativas), encarecer o produto estran-geiro, protegendo, por um lado, o produtor

doméstico mas, por outro, afetando as possi-bilidades de compra dos consumidores. Vere-mos adiante como determinadas medidas são usadas em casos específicos e suas diversas motivações.

Vale ressaltar que a especulação nos mercados internacionais de bens e finanças intervém na formação dos preços internacionais dos alimen-tos e na taxa de câmbio, agravando o grau de incerteza e volatilidade mencionados acima. a especulação tem sido, inclusive, um dos fatores apontados para explicar a atual crise internacio-nal de alimentos, como veremos adiante.

Pelo lado das exportações, os preços internacio-nais determinam qual a parte da produção que será dirigida para os mercados externos. logi-camente, o produtor preferirá vender sua produ-ção no mercado onde sua remuneração é maior. Se ele tem, então, a possibilidade de vender sua produção no mercado externo, somente ofertará no mercado doméstico se puder obter preço se-melhante àquele vigente no mercado internacio-nal. ou seja, em face de um aumento de preços internacionais, ou ele passa a privilegiar as ex-portações ou ele repassa o aumento de preços para o mercado doméstico.

em suma, esses diversos canais de transmissão entre os mercados doméstico e internacional fa-zem do comércio exterior um tema central para a questão da segurança alimentar, que é mui-tas vezes apresentado como um dilema devido principalmente às flutuações de preços e aos riscos de desabastecimento. Porém, o comércio exterior não deve ser visto necessariamente em oposição ao mercado doméstico do ponto de vista da segurança alimentar: depende de como o comércio internacional é visto e regulado. as

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Algumas notas sobre segurança

alimentar e comércio

internacional

próximas seções tratam de experiências inter-nacionais que mostram como os instrumentos de política comercial podem auxiliar na garantia da oferta doméstica de alimentos.

políticas comerciais e segurança alimentaros instrumentos comerciais são usados fre-

quentemente com objetivos que pouco tem a ver com a regulação dos fluxos de comércio e mesmo com objetivos de política externa. São mecanismos que podem servir notadamente a políticas produtivas – industriais e agrícolas – e macroeconômicas, mas podem ainda servir acessoriamente à implementação de políticas sociais, ambientais etc. na realidade, em vários casos, não é muito claro o objetivo da adoção de determinados instrumentos comerciais. na discussão sobre comércio e meio ambiente, por exemplo, é comum a troca de acusações entre aqueles que querem usar esses instrumentos de modo a melhorar a conduta ambiental dos países e aqueles que são contra, argumentando que seu uso tem motivação majoritariamente comercial e de cunho protecionista. isso se deve à capacidade dos instrumentos comerciais de aumentar ou diminuir a disponibilidade de bens e serviços em um país. neste sentido, a políti-ca comercial pode ter um papel importante em uma estratégia de segurança alimentar.

Uma experiência clássica em termos de utiliza-ção de instrumentos de política comercial com objetivos de segurança alimentar é a Política agrícola europeia (PaC). estabelecida em 1962, cinco anos depois do Tratado de roma, funda-dor da Comunidade econômica europeia, esta política foi um dos pilares de sua construção. os objetivos de estabilizar a oferta doméstica de alimentos e garantir o rendimento dos agricul-tores europeus estavam fortemente motivados pelo trauma da fome associado às duas guerras mundiais que assolaram o continente. assim, houve um entendimento entre os países euro-peus sobre a mobilização de uma quantidade significativa de recursos para estimular a pro-dução regional, de modo a evitar que os países europeus passassem novamente pelas restri-ções de oferta alimentar que tinham passado anteriormente.

Diversos autores são unânimes em ressaltar a im-portância da PaC como fator de coesão dos paí-ses europeus durante diversas décadas. Bureau

(2002) afirma que esta coesão foi garantida pe-los três princípios da PaC: a) unicidade do mer-cado, responsável pela unificação das políticas de comércio exterior garantindo a livre circula-ção interna dos bens agrícolas; b) solidariedade financeira, que garantia que todos os países de-veriam contribuir para o orçamento comunitá-rio; e c) preferência comunitária que valorizava a produção local relativamente às importações.

atualmente, essa política está sendo questionada por causa das disparidades entre seus custos e seus benefícios e também pela incompatibilida-de com a liberalização do comércio mundial. De fato, a PaC absorve cerca de 50% do orçamento europeu e os efeitos econômicos e sociais a ela ligados não justificam obrigatoriamente essas despesas. ademais, o alargamento da Ue para o leste aumentou significativamente o número de países que são potenciais demandantes por recursos.

a PaC combinou, desde sua criação, medidas co-merciais para proteção da produção doméstica e de incentivo à produção. as medidas aplica-das às importações combinam restrições quan-titativas, tarifárias, calendários de importação ou cláusulas sanitárias. o apoio à produção e à exportação é dado por meio das ajudas dire-tas e das subvenções associadas às políticas de preço mínimo e às quotas de produção. atual-mente, as medidas de incentivo às exportações encontram-se restringidas pelos acordos no âmbito da organização mundial do Comércio (omC). Vale assinalar que o número e a varieda-de de instrumentos utilizados é grande e torna esta política bastante complexa.

os resultados da PaC foram largamente atingi-dos e manifestaram-se na taxa de penetração no mercado europeu e no peso da europa nos mercados mundiais. De fato, a PaC não somen-te conseguiu eliminar a concorrência exterior no mercado doméstico, como também criou excedentes que passaram a ser escoados para o mercado mundial (muitas vezes, com preços subvencionados). as exportações de alguns produtos agrícolas europeus cresceram mais de 9.000% desde 1962.

Com o passar do tempo e o aumento significati-vo da produção agrícola europeia, o objetivo de segurança alimentar foi perpassado por outros objetivos e, atualmente, a manutenção da PaC está mais ligada à manutenção da renda dos produtores e outras razões de cunho político do que à ameaça de falta de alimentos.

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Algumas notas sobre segurança alimentar e comércio internacional

Se o exemplo europeu ilustra sobretudo o uso de instrumentos de política de importação para garantir os objetivos de segurança alimentar, um caso mais recente e próximo ao Brasil é um bom exemplo de intervenção governamen-tal do lado das exportações a fim de garantir a oferta doméstica de alimentos. Trata-se da imposição de impostos sobre as exportações proposta pelo gover-no argentino em 2008.

o crescimento recente dos preços internacionais das commodities tem indu-zido a um forte aumento das exportações de diversos países exportadores desses produtos. a argentina, que é um importante exportador de determi-nadas commodities – sobretudo, cereais, oleaginosas e carnes – teve um aumento de 116% em suas exportações entre 2002 e 2007. o governo ar-gentino viu neste aumento uma fonte de aceleração da inflação – por meio do repasse dos fortes aumentos de preços para o mercado doméstico, e de desabastecimento desse mercado – o que, além do problema de seguran-ça alimentar, reforça a circular inflacionária. assim, o governo argentino propôs a imposição de impostos de 35% a 40% sobre as exportações de soja e de 32 a 39% sobre as exportações de girassol. ao reduzir os preços percebidos pelos exportadores, o governo pretendia atacar os dois proble-mas mencionados anteriormente (inflação e desabastecimento do mercado doméstico) e, adicionalmente, tentar reverter o processo de “sojificação” – ou seja, da expansão da monocultura da soja – no campo argentino. Vale assinalar que o cultivo da soja representa atualmente mais de 75% da área cultivada na argentina (dados de 2007), em contraposição a um percentual de 38% em 2000 e 9,5% em 1980. o processo de expansão do cultivo da soja, além dos problemas ambientais e sociais dele decorrentes, torna a econo-mia argentina bastante dependente das exportações de um único produto e reforça os dois outros problemas apontados.

a recepção dos agricultores às propostas governamentais foi péssima e levou ao bloqueio de estradas, de manifestações na cidade e de boicote no forne-cimento de alimentos.

A crise internacional de alimentos e a situação brasileiraos instrumentos de política comercial podem, como visto, ser utilizados de

forma a minimizar as flutuações da oferta doméstica de alimentos face às flutuações de preços internacionais. esse tema tem sido debatido de forma mais intensa no último ano devido à recente alta dos preços dos produtos agrícolas e de outras commodities no mercado mundial. esta alta vem sen-do chamada – não de forma consensual – de crise internacional de alimen-tos. Segundo a organização das nações Unidas para agricultura e alimen-tação (Fao), esta alta caracteriza não somente uma crise, como também esta crise se mostra mais duradoura, volátil e abrangente (em termos de produtos) do que outros movimentos de alta dos preços de alimentos ob-servados no passado.

Como se pode ver a partir do Gráfico 1, os preços internacionais de determina-dos produtos agrícolas apresentaram a partir de 2006 um crescimento acen-tuado e, no caso do açúcar, fortes flutuações. esse crescimento tem graves consequências para os países que são importadores de alimentos e tem le-vado diversas agências internacionais, notadamente a Fao, a classificar a situação como calamitosa para uma série de países pobres. em seu relatório World Food Situation, de 2007, a Fao alerta que cerca de 37 países correm risco de passar fome nos próximos anos.

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Algumas notas sobre segurança

alimentar e comércio

internacional

Gráfico 1 - Evolução dos preços internacionais de alimentos

as causas apontadas para esta alta dos preços são múltiplas. em primeiro lu-gar, o crescimento econômico dos países emergentes tem feito com que sua população coma mais e melhor. o fato de comer mais implica em uma maior demanda por alimentos. o fato de comer melhor significa um maior consu-mo de proteína animal – somente na China, segundo artigo do Banco inter-nacional de Desenvolvimento (BiD), de 12/8/2008, o consumo per capita de carne bovina subiu 40% – o que aumenta ainda mais a demanda por cereais utilizados na produção de carne.

em segundo lugar – e este assunto tem sido bastante polêmico – encontra-se o crescimento da produção de biocombustíveis. em alguns países, como os eUa, o crescimento do preço do etanol e a concessão de subsídios gover-namentais à produção de biocombustíveis têm incentivado a expansão da produção do milho (em substituição a outras culturas) e sua maior utilização na produção de etanol (com prejuízo para o seu uso para consumo humano ou animal). Se fenômeno similar tem sido observado com a colza na europa, ele, no entanto, não diz respeito a todos os países e, em particular, ao Brasil, visto que a produção brasileira de cana voltada para a produção de etanol não parece ter afetado negativamente a oferta de alimentos.

em terceiro lugar, as mudanças climáticas têm afetado, segundo alguns espe-cialistas, o rendimento da agricultura. o advento de catástrofes naturais, com evidentes efeitos sobre os preços dos alimentos, tem sido mais frequente. os preços do trigo e do arroz, por exemplo, sofreram impacto direto das secas na austrália e na China e de passagem de ciclone em Bangladesh.

Uma quarta causa apontada é o aumento do preço do petróleo, que acaba por encarecer os fertilizantes e elevar os custos de transporte. adicionalmente, torna a produção dos biocombustíveis mais atrativa.

em quinto lugar, diante das restrições e problemas enfrentados no que se refere à oferta de alimentos, alguns países têm adotado restrições às exportações, contribuindo ainda mais para a diminuição da oferta internacional e para o aumento dos preços.

em sexto lugar, aparecem os movimentos especulativos e financeiros. De fato, parece haver nesta escalada de preços dos alimentos um componente espe-

502000 2000 2000 2000 2000 2000 2000 2000 2000

100

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350

Alimentos (média) Carne Leite e derivados

Cereais Óleos e gorduras Açúcar

(Índice base: média 1998/2000 =100)

Fonte: FAO, database. Elaboração própria.

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Algumas notas sobre segurança alimentar e comércio internacional

culativo importante: os investidores estariam, diante da valorização do dólar norte-americano e do aprofundamento da crise financeira norte-americana, buscando rentabilidade em ativos reais como alimentos e metais. além disso, atualmente o comércio internacional está profundamente ligado ao mercado financeiro – alguns autores dizem existir uma “financeirização” do comércio de mercadorias e, por consequência, dos alimentos –, o que torna o comércio de alimentos mais sujeito a ataques especulativos.

a ênfase dada a cada um desses fatores difere segundo os autores, e o agrava-mento da crise financeira internacional no segundo semestre de 2008 não só inverteu a tendência altista dos preços das commodities, como também inva-lidou ou reduziu a importância de alguns fatores aqui explicitados. o que fica evidente, no entanto, é que alguns fatores são de longo prazo e, mesmo que sua influência esteja por ora minimizada, devem ser considerados em uma análise de maior fôlego. esse é o caso do crescimento do setor de biocom-bustíveis, das mudanças climáticas e das relações entre mercado financeiro e formação dos preços dos alimentos.

a crise alimentar tem afetado os países de forma bastante díspar, sendo os países pobres importadores de alimentos os mais vulneráveis. os países de-senvolvidos são aqueles que menos devem sentir os efeitos das altas dos preços, embora alguns deles (Ue) tenham reagido muito rapidamente à alta de determinados produtos liberalizando as importações.

Dentre os países em desenvolvimento, existem dois grupos com percepções diferentes da escalada de preços dos alimentos. De um lado figuram os mais pobres, que são em sua maioria importadores de alimentos e exportadores de bens primários. Sua receita exportadora, resultante da venda de bens de baixo valor agregado (mesmo na cadeia alimentar), nem sempre aumenta no mesmo ritmo que suas despesas com alimentos, cujos preços têm crescido significativamente.

o outro grupo é formado pelos países de renda média – Brasil inclusive – que, por sua vez, são grandes exportadores de alimentos. estes países, ao longo do tempo, têm aumentado a produtividade da sua produção e avançado no senti-do de incrementar o grau de elaboração dos produtos. a produção de produtos agrícolas com características de maior durabilidade ou melhor gosto – ou seja, um produto diferenciado – permite também auferir maiores ganhos.

o impacto da crise alimentar é tão maior quanto mais pobre for o país, ou o gru-po de pessoas pobres dentro de um país. os países mais vulneráveis estão localizados na áfrica. Seu déficit comercial de produtos alimentares, aliás, aumentou desde o início dos anos 90: alguns países passaram de exportado-res a importadores de alimentos. na américa latina, os mais afetados são os países da américa Central e Caribe. a posição dos países latino-americanos é, como assinala Fao (2008b), mais confortável do que no passado, porém alguns países apresentam um déficit comercial alimentar ou enfrentam uma forte aceleração dos preços de alimentos afetando as camadas mais pobres da população. o artigo do BiD citado anteriormente mostra que o aumento do número de pobres resultante do aumento dos preços dos alimentos é maior no Haiti, Honduras e Bolívia. no Haiti, o primeiro ministro caiu por conta dos protestos populares motivados pelo aumento dos preços dos alimentos bási-cos no primeiro trimestre de 2008.

Como afirmam Silva e Carvalho (2008), “o Brasil tem até se beneficiado dessa escalada de preços por ser um grande exportador de alimentos, mas isso não significa que goze de uma situação de segurança e menos ainda de so-berania alimentar” (p. 4). o Brasil é um exportador líquido de alimentos e o aumento dos preços tem tido um impacto positivo sobre a balança comercial

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serviço social do Comércio |

Algumas notas sobre segurança

alimentar e comércio

internacional

brasileira, conforme o Gráfico 2. Do ponto de vista do balanço de alimentos, a situação brasileira é relativamente confortável.

Gráfico 2 - Evolução da balança comercial brasileira de alimentos

Para apenas um produto o Brasil tem forte dependência das importações: o trigo, cuja produção doméstica se reduziu drasticamente em virtude dos acordos do mercosul em prol das importações provenientes da argentina. Hoje, esse país responde por mais de 70% da oferta de trigo brasileira. recen-temente, no bojo dos problemas mencionados acima, a argentina reduziu fortemente suas exportações de trigo. Diante dessa situação, o governo bra-sileiro facilitou, através da concessão de quotas de importação com isenção tarifária, a importação de trigo proveniente de outros países.

Do ponto de vista da inflação, observou-se no primeiro semestre de 2008 o con-tágio da alta de preços internacionais na inflação doméstica. o impacto des-te aumento de preços foi maior para a população de baixa renda, que gasta proporcionalmente mais com alimentos. Porém, a situação brasileira ainda é, relativamente aos demais países da américa latina, confortável. Países como a nicarágua ou a Colômbia viram seus preços crescerem a taxas três ou quatro vezes maiores que no caso do Brasil, e com disparidades muito grandes entre os impactos para as classes mais abastadas e aquelas menos favorecidas (para maiores detalhes, ver Fao, 2008b).

ou seja, o Brasil parece não se deparar com problemas relacionados à ofer-ta alimentar do ponto de vista quantitativo: sua produção de alimentos é capaz de suprir a demanda doméstica. Porém, isto não garante que todos os brasileiros tenham acesso à alimentação: como afirmam Silva, Belik e Takagi (sem data), “o problema da fome, hoje, não é de falta de produção de alimentos, mas da falta de renda para adquiri-los em quantidade perma-nente e qualidade adequada” (p. 2). em um país caracterizado por fortes desigualdades de renda, o problema de segurança alimentar existe em fun-ção da impossibilidade de parte significativa dos consumidores ter acesso aos alimentos.

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

5.000

10.000

15.000

20.000

25.000

30.000

35.000

40.000

45.000

50.000

em U

S$

mil

hõe

s

Importações Exportações

nota: os produtos alimentares são aqueles classificados nos capítulos compreendidos entre 02 e 23 da nCm. Fonte: WiTS. elaboração própria.

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Algumas notas sobre segurança alimentar e comércio internacional

omc e segurança alimentaralém das questões relacionadas aos fluxos de comércio de alimentos, discutidas

neste texto, persistem também outras questões relacionadas à regulação dos mercados internacionais. o comércio internacional de produtos alimentares é regido pelas normas da omC que, devido aos princípios liberais que a norteiam, se opõem às intervenções dos governos nacionais com objetivos de garantir a segurança alimentar. Como argumentam maluf, menezes e marques (2001), não existe contraposição entre as estratégias de autossuficiência e aquelas que fazem uso do comércio internacional de alimentos para suprimento dos mer-cados nacionais (estratégias conhecidas como de autocapacidade alimentar). Porém, para que se garantam os objetivos de segurança alimentar (e também de segurança dos alimentos), é necessário que se reconheçam as limitações do mercado e dos objetivos puramente econômicos de eficiência produtiva no que se refere às questões de abastecimento e de acesso aos alimentos. isso implica em reconhecer a relevância das instituições e políticas nacionais e supranacio-nais capazes de implementar estratégias que valorizem a segurança alimentar dos países.

referências

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serviço social do Comércio |

* Professor titular do Departamento de economia da Fea/USP, coordenador

do núcleo de economia Socioambiental (nesa) e pesquisador do CnPq. Foi pro-

fessor na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e conselheiro

científico do Centre international de recherches sur le Développement (Cirad).

É um dos organizadores do Grupo de Sociologia econômica da associação

nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (anpocs).

Avanços recentes e ameaças à segurança alimentar mundial ricardo Abramovay*

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existem falhas de longo prazo no funcionamen-to do sistema alimentar mundial. a afirmação é de Joachim Von Braun (2008), diretor do in-ternational Food and Policy research institute (iFPri) de Washington, uma das mais importan-tes e prestigiosas organizações voltadas ao es-tudo do tema. Von Braun insiste na necessidade de coordenação internacional e defende o apro-fundamento do livre comércio para enfrentar o problema.

este texto procura chamar a atenção para dois elementos centrais daquilo que hoje não mais se hesita em caracterizar como crise alimentar mundial. o primeiro deles refere-se ao desman-telamento das formas de intervenção estatal que caracterizaram a maior parte do século XX e que foram inauguradas com o new Deal nos eUa nos anos 1930 e aprofundadas com a consolidação da Política agrícola Comum euro-peia, a partir dos anos 1960. o segundo é ainda mais importante: são claros os sinais de esgo-tamento das bases técnicas sobre as quais se apoiou o imenso sucesso da revolução Verde, que responde por parcela muito significativa da redução da fome no mundo nos últimos anos. a energia barata que permitiu a ampliação sem precedentes das safras está em claro processo de esgotamento. no entanto, mudar os padrões produtivos e caminhar em direção a uma “re-volução duplamente verde” (SWaminaTHan, 2006; ConWaY, 1997) ou à intensificação eco-lógica da produção agropecuária (CiraD, 2008) – conselhos cada vez mais presentes nas orga-nizações internacionais de desenvolvimento – nem de longe constitui orientação clara quanto à reorganização do próprio modelo de expansão da agropecuária no mundo no século XXi.

os pés de barro das vitórias recentesem 1970, a subalimentação crônica atingia nada

menos que 37% da população mundial (Sheeran, 2008). Hoje, esse total não chega a 15%, embora represente magnitude absoluta superior a 900 milhões de indivíduos. este número deve estar crescendo em função da explosão nos preços alimentares nos últimos meses (SilVa, 2008).

Desde os anos 1970 do século passado, os avan-ços foram notáveis e não apenas na China e na Índia, como mostram as informações do Global Hunger Índex (WieSmann, 2007). a Ta-bela 1 apresenta a evolução, entre 1990 e 2007, de um índice que reúne três informações: a) a proporção de subalimentados na população total, calculada sobre a base da ingestão in-suficiente de calorias na dieta diária; b) a por-centagem de crianças de menos de cinco anos com deficiência de peso e altura; e c) a taxa de mortalidade dos que têm menos de cinco anos. a junção desses três parâmetros é bastante re-veladora não apenas das condições alimenta-res – às quais se voltam habitualmente os do-cumentos da organização das nações Unidas para agricultura e alimentação (Fao) –, mas também da saúde em que vive uma população. o índice varia de zero (condições alimentares ideais) a um hipotético 100 (em que toda a po-pulação estaria em péssima situação alimentar e de saúde). o relatório considera que um índi-ce de 10 é sério, 20 é alarmante e 30 é extrema-mente alarmante. a tabela expõe dados de 97 países em desenvolvimento e 21 em transição. Seus resultados em 2007 estão sintetizados no mapa 1.

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Avanços recentes e ameaças

à segurança alimentar

mundial

Tabela 1 Comparação entre todos os países

Índice Global da Fome

em 118 países

Fonte: wiesmann, 2007:9.

Ranking igf país Índice global

da fomeRanking

igf país Índice global da fome

1990 2007 1990 2007

1 líbia 2.70 0.87 60 lesoto 14.93 13.20

2 argentina 2.03 1.10 61 Nicarágua 16.333 13.47

3 lituânia 1.63 62 uzbequistão 13.60

4 Romênia 3.96 1.73 63 suazilândia 11.27 14.97

5 Chile 4.03 1.83 64 gana 25.43 15.10

6 letônia 1.83 65 Mongólia 19.03 15.30

7 ucrânia 1.90 66 Myanmar 19.77 15.80

8 estônia 2.03 67 filipinas 21.90 16.23

9 Cuba 5.90 2.20 68 guatemala 16.40 16.47

10 uruguai 5.50 2.23 69 sri lanka 24.40 16.90

11 Rússia 2.33 70 Djibuti 30.73 17.07

12 tunísia 5.23 2.50 71 Benin 20.67 17.37

13 Republica eslovaca 2.63 72 Costa do Marfim 15.33 17.40

14 fiji 7.47 2.93 73 Vietnã 27.10 17.70

15 Kuwait 10.20 3.07 74 Namíbia 22.93 17.77

16 Croácia 3.23 75 senegal 20.03 18.00

17 líbano 4.87 3.50 76 Botsuana 18.53 18.03

18 ilhas Maurício 8.43 3.83 77 Mauritânia 25.30 18.10

19 síria 7.30 4.17 78 uganda 21.00 18.57

20 turquia 6.90 4.20 79 gâmbia 1817 18.80

21 egito 8.27 4.27 80 Nigéria 23.77 19.13

22 Macedônia 4.33 81 Camarões 20.67 19.33

23 sérvia e Montenegro 4.47 82 Congo 30.83 19.73

24 Brasil 8.33 4.60 83 Coréia do Norte 16.37 20.00

25 México 7.93 4.67 84 togo 24.20 20.43

26 Jordânia 4.80 4.70 85 timor leste 20.60

27 irã 9.37 4.73 86 Quênia 22.03 20.97

28 Bósnia Herzegovina 4.87 87 guiné 29.00 21.77

29 Jamaica 7.30 5.20 88 paquistão 25.73 22.70

30 África do sul 7.17 5.25 89 laos 26.43 23.23

31 Cazaquistão 5.87 90 Nepal 28.33 24.30

32 Moldávia 6.03 91 Malawi 33.90 24.50

33 trinidad e tobago 8.43 6.30 92 Burkina faso 23.03 24.63

34 paraguai 8.60 6.40 93 zimbábue 21.33 24.83

35 algéria 7.03 6.47 94 Índia 33.73 25.03

36 Malásia 10.07 6.50 95 sudão 25.57 25.60

37 equador 9.93 6.53 96 tanzânia 27.33 26.13

38 Marrocos 8.13 6.83 97 Ruanda 29.90 26.27

39 arábia saudita 7.00 6.90 98 Haiti 35.20 26.97

40 albânia 9.84 7.17 99 guiné Bissau 23.73 27.43

41 geórgia 7.20 100 Camboja 30.73 27.57

42 Quirquistão 7.33 101 Mali 25.20 27.70

43 peru 20.23 7.50 102 Moçambique 45.43 27.97

44 Colômbia 10.23 7.70 103 Bangladesh 36.97 28.40

45 el salvador 11.07 7.90 104 África Central 32.90 29.53

46 Venezuela 7.13 8.10 105 Chade 36.30 29.90

47 China 12.77 8.37 106 tajiquistão 29.93

48 azerbajão 8.57 107 Madagascar 30.90 30.73

49 gabão 11.43 8.67 108 zâmbia 29.43 31.10

50 suriname 12.17 9.03 109 Comoros 26.03 31.47

51 guiana 15.93 9.67 110 angola 39.77 31.50

52 turcomenistão 10.10 111 iêmen 26.07 31.53

53 panamá 11.80 11.07 112 Níger 38.53 32.67

54 indonésia 18.53 11.57 113 libéria 25.87 33.00

55 República Dominicana 14.60 11.83 114 etiópia 45.98 33.67

56 tailândia 18.77 12.03 115 serra leoa 34.97 35.17

57 armênia 12.07 116 eritreia 40.27

58 Bolívia 17.20 12.43 117 Congo 28.23 41.17

59 Honduras 15.63 12.50 118 Burundi 32.03 42.37

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Avanços recentes e ameaças à segurança alimentar mundial

a Tabela 1 mostra que houve avanço muito significativo na luta contra a fome global de 1990 para cá. no entanto, a grande maioria dos países onde a fome era séria, muito séria ou alarmante continua com níveis preocupantes. Um dos mais espetaculares casos de avanço social foi o do Peru, cujo índice caiu de 20,2 para 7,5. o avanço da China já vem dos anos 1980 e o progresso entre 1990 e 2007 foi também expressivo. o Brasil, cuja situação em 1990 já o deixa-va fora dos países seriamente atingidos pela fome, tem melhoria expressiva, passando de 8,33 para 4,60, o que é inteiramente corroborado pelos trabalhos recentes de Carlos augusto monteiro (2003, 2008).

É nítida a concentração da fome na áfrica Subsaariana, na Índia e em Bangla-desh. São regiões que ainda não atingiram sua transição demográfica. a taxa de fertilidade total dos países menos desenvolvidos do mundo (boa parte dos quais encontra-se na áfrica Subsaariana) é de 4,6, contra 1,6 nos países ri-cos. Como mostra Jeffrey Sachs (2008: 206), quando a taxa de fertilidade total excede 5, a população praticamente dobra a cada geração. É verdade que a fertilidade nos países pobres vai cair, mas as previsões atuais são de que ape-nas em 2050 ela chegará a 2,05. a população africana, que hoje corresponde a 12% do total mundial, chegará a 20% em 2050 e a 24% em 2070, caso se mantenham as tendências atuais (SaCHS, 2008: 209).

não há dúvida, como mostra artigo recente de Jared Diamond (2008), que o consumo dos países ricos é muitas vezes superior ao dos países pobres: a taxa média de consumo de petróleo e metais bem como a de produção de lixo, como plástico e gases de efeito estufa, é 32 vezes maior na américa do norte, na europa ocidental, no Japão e na austrália do que no mundo em desenvolvimento, por seus cálculos. no entanto, o aumento da renda e do consumo dos países pobres exerce enorme pressão sobre os recursos neces-sários à produção. o consumo per capita chinês é onze vezes inferior ao norte-americano: se atingisse o nível dos eUa (e supondo que a posição relativa do restante dos países se mantivesse intacta), isso significaria um aumento no consumo de petróleo de 106% e no de metais de 94%. Se o conjunto do mun-do em desenvolvimento atingisse hoje o padrão de consumo norte-americano a pressão sobre os recursos aumentaria onze vezes: seria como se a humani-dade se ampliasse para 72 bilhões de habitantes.

em suma, apesar da redução muito significativa da fome no mundo contemporâ-neo, duas questões centrais permanecem. em primeiro lugar, ainda é imensa a

Mapa 1Verde:

10% ou menos (problemático)

Cinza claro: entre 10 e 19,9%

(sério)Cinza-escuro:

entre 20 e 29,9% (muito sério)

preto: acima de 30%

(alarmante)Verde médio:

dados não disponíveis Verde claro:

GHi não calculado

Fonte: wiesmann, 2007:10.

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Avanços recentes e ameaças

à segurança alimentar

mundial

quantidade dos que se encontram em condições muito aquém do mínimo ne-cessário para uma vida digna. Situam-se fundamentalmente na áfrica Sub-saariana, na Índia e em Bangladesh. Dada a magnitude dessas populações e seu atual ritmo de crescimento, é imenso o risco de que a curva de progresso que marcou as últimas décadas seja revertida. a segunda questão é que tan-to a organização dos mercados agrícolas e alimentares quanto, sobretudo, seus padrões produtivos encontram-se fortemente em cheque. antes de en-trar nestas questões, é importante um rápido apanhado a respeito do que é a crise alimentar mundial hoje e quais são suas principais causas.

As principais manifestações da criseQuatro elementos básicos caracterizam a situação de crise:

•Explosão e volatilidade dos preços: entre 1974 e 2005 o índice de preçosagrícolas da Fao caiu 75%. De 2005 para cá essa queda foi inteiramente re-cuperada. Só em 2007, o índice de preços alimentares subiu 40% (BraUn, 2008). Desde 2000 os preços do trigo, da manteiga e do leite triplicaram e os do milho dobraram. o arroz atingiu níveis sem precedentes. Também au-mentaram carne, frango e mandioca. os estoques mundiais de trigo estão em seu nível mais baixo desde 1978. ao final da safra 2008/2009, as reser-vas de milho devem ficar aquém do que eram em 1996. nos últimos oito anos, houve sete em que o consumo de grãos superou a produção. Josette Sheeran, diretora do Programa alimentar mundial, mostra que de 2002 a 2007 os custos de aquisição do programa aumentaram 50%. De 2007 para cá subiram mais 50% (SHeeran, 2008: 11). mais grave até que a explosão é a volatilidade dos preços. existe um forte risco de que, no momento de comercializar suas safras, os agricultores enfrentem preços deprimidos, e o declínio nas cotações no segundo semestre de 2008 parece apontar exa-tamente nesta direção.

•Quedanosestoquesglobais:osestoquesglobaisdetrigoestãoemseuní-vel mais baixo, desde 1978. o ministério da agricultura dos estados Unidos (Usda) prevê que, no final do ano agrícola 2008/2009, os estoques de milho reduzam-se como nunca antes de 1996. os estoques de soja declinaram 22% em 2007, relativamente ao ano anterior (BraUn, 2008: 7).

•Revoltaspopulares:dejaneirode2007ajunhode2008,houveprotestoscon-tra aumentos de preços alimentares em 50 países (BraUn, 2008: 4).

•Restriçõesàsexportações:Argentina,Índia,Kazaquistão,Ucrânia,VietnãeChina reduziram suas exportações alimentares. não há qualquer mecanismo de coordenação entre os grandes países produtores agrícolas para enfrentar a situação atual de crise.

esta situação deriva da ocorrência conjunta de vários fatores:

•Aumentonoscustosdosinsumosagropecuários:esteécertamenteofatormais importante e com efeitos de longo prazo mais duradouros. Tudo indica que foram extintas as condições que permitiram o fornecimento da energia barata que marcou a expansão das safras no século XX. os preços internacio-nais médios de fertilizantes fosfatados subiram de U$ 250 em 2007 para U$ 1.230 em julho de 2008. os adubos à base de potássio aumentaram de U$ 172 para U$ 500 a tonelada no mesmo período. e a tonelada dos nitrogenados foi de U$ 277 a U$ 450. mesmo que as cotações do petróleo tenham despencado do pico a que chegaram no final do primeiro semestre de 2008, há uma forte alta nas matérias-primas, que atinge de maneira especial fertilizantes, agrotó-xicos e os custos dos transportes.

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Avanços recentes e ameaças à segurança alimentar mundial

•Produçãodebiocombustíveisapartirdemilho:o InternationalFoodPolicyresearch institute (iFPri) estima que 30% do aumento nos preços agrícolas desde o início de 2007 até meados de 2008 originam-se nos biocombustíveis. Hoje, nada menos que 30% da produção de milho norte-americano destina-se a etanol.

•Aumentonademandaporalimentos:aelevaçãonarendadaChinaedaÍndiae seu consumo crescente de proteína de origem animal são poderosos veto-res para o aumento dos preços. a China, por exemplo, consumiu 2,5 vezes mais carne em 2005 do que em 1990, três vezes mais leite, 2,3 vezes mais pei-xe, 3,5 vezes mais frutas e 2,9 vezes mais vegetais frescos (SilVa, 2008). entre 1970 e 2000 o aumento no consumo alimentar mundial era de 1,5% ao ano. atualmente subiu para 2% ao ano e evans (2008, 3) trabalha com o horizonte de 2,6% ao ano a partir de 2015. até 2030, a produção agrícola mundial terá que aumentar 50% e a de carne nada menos que 85%.

•Exposiçãodascommodities agrícolas às flutuações dos mercados financei-ros: José Graziano da Silva (2008) mostra que os mercados financeiros são frequentemente usados para proteger posições de investidores de risco, o que acaba trazendo consequências para matérias-primas que não guardam relação direta com a situação de sua oferta real.

•Problemasclimáticos:aindaécedoparasaberseosproblemasclimáticosque provocaram redução nas safras de importantes produtores como a aus-trália e a Ucrânia refletem impactos do aquecimento global na agricultura. De qualquer maneira, eles acabaram por potencializar a atual crise.

dois elementos de longo prazonestas condições, a ideia de que liberalizar os mercados (e melhorar as tecno-

logias atualmente predominantes) é o caminho para tornar apenas episódi-ca a atual crise parece extremamente arriscada. na verdade, os elementos de crise expostos rapidamente acima e os vetores que a provocam apontam para dois questionamentos importantes na própria maneira como o sistema alimentar mundial está hoje organizado.

o primeiro refere-se ao papel do mercado, das organizações privadas e do estado na construção da segurança alimentar. no início dos anos 1980 a organização para a Cooperação e Desenvolvimento econômico (oCDe) pre-via rápida ampliação das capacidades produtivas e apostava que, em pouco tempo, mais de 30 países abasteceriam o mercado mundial. Hoje as nações exportadoras não chegam a 10. as reformas das políticas agrícolas dos paí-ses desenvolvidos reduziram drasticamente seus estoques.

É verdade que esses estoques contribuíam para desestabilizar os mercados mundiais. Prejudicavam países mais pobres e representavam altos custos para os contribuintes. o que a atual crise mostra, no entanto, é que os meca-nismos de mercado são nitidamente insuficientes para garantir estabilidade na oferta. Jean-marc Boussard (1996), ex-presidente da Sociedade Francesa de economia rural, tem uma hipótese ousada para explicar o fenômeno. Dian-te de uma demanda rígida e de uma oferta pulverizada, os preços agrícolas, ao sabor dos mercados, apresentam comportamento necessariamente caótico. Sem regulação estabilizadora é o próprio abastecimento da sociedade que se encontra sob risco. não se trata de preconizar a volta aos mecanismos que marcaram as políticas agrícolas do século XX (preços de garantia, formação de imensos estoques governamentais, exportações subsidiadas etc.). mas nada indica que a liberalização dos mercados agrícolas coloque a população ao abrigo da instabilidade caótica nos preços. namanga ngongi (2008, 20),

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Avanços recentes e ameaças

à segurança alimentar

mundial

presidente da aliança para uma revolução Verde na áfrica, mesmo reconhe-cendo os sérios problemas das organizações de intervenção estatal, manifes-ta sua indignação diante da atitude da cooperação internacional, desde os anos 1980:

os programas de ajustamento estrutural desman telaram várias instituições estabeleci-das desde a inde pen dência. É verdade que muitas instituições paraestatais eram inefi-cientes e corruptas; as reservas de segurança alimentar eram usadas para a patronagem política; a extensão falhava na oferta de serviços e as cooperativas eram politizadas. mas em vez de melhorar o funcionamento dessas instituições essenciais os doadores e os países africanos seguiram soluções de mercado que as dizimaram.

o documento de martin khor (2008), diretor da Third World network information Service on Sustainable agriculture, apresentado na reunião sobre Segurança alimentar e Biocombustíveis em roma, em junho de 2008, segue o mesmo pensamento. ele mostra que desde o final dos anos 1970 o Fundo monetário internacional e o Banco mundial incentivaram os países mais pobres (sobre-tudo na áfrica) a eliminar os sistemas de sustentação de preços, os subsídios a fertilizantes e à mecanização e a reduzir as tarifas alfandegárias sobre as importações alimentares. ele cita o caso de Gana, que viu sua dependência alimentar em produtos como arroz e tomate ampliar-se e teve devastado seu setor avícola sob o peso das importações vindas da europa.

o segundo elemento de longo prazo na crise atual é ainda mais importante: mesmo os mais ardorosos defensores da revolução Verde não hesitam em reconhecer os limites que ela está atingindo em virtude de sua forte depen-dência de insumos de origem fóssil, de água, de terras férteis e de formas de exploração do solo que tendem a reduzir severamente a biodiversidade e a integridade dos ecossistemas locais. nos estados Unidos, o sistema alimentar usa mais energia fóssil que qualquer outro setor da economia, à exceção da indústria automobilística (PollanD, 2008). em 1940, o siste-ma alimentar norte-americano produzia 2,3 calorias alimentares para cada unidade de energia fóssil empregada. Hoje são necessárias 10 unidades de energia fóssil para produzir uma unidade de energia alimentar no sistema atual (PollanD, 2008). este é um dos fatores que explicam como o custo de um hambúrguer, um saco de batatas fritas e um refrigerante custem, nos estados Unidos, o correspondente a menos de uma hora do que ga-nha um trabalhador pago a um salário mínimo mensal. essa é a base que permite o consumo médio de 300 gramas de carne por dia no país, como mostra michael Polland (2008). o mencionado aumento nos preços dos fer-tilizantes e agrotóxicos é possivelmente um sinal de alarme avisando que as condições para que este modelo produtivo se generalize vão ficando cada vez mais distantes.

É sabido que 70% da água no mundo é utilizada para a irrigação. a constatação de Jeffrey Sachs (2008), um dos mais entusiastas defensores da revolução Verde, é uma forma de advertência para enfrentar o problema da pobreza:

a tecnologia da revolução Verde permitiu que a Índia escapasse dos ciclos aparentemente intermináveis de fome e da armadilha da pobreza. Todavia, agora, uma crise hídrica está se combinando à crescente população do país. as vinte milhões ou mais de perfurações que hoje bombeiam a água de irrigação para as terras agricultáveis da Índia (em 1960 eram dez mil) estão exaurindo os aquíferos subterrâneos, apresentando reduções dos lençóis d’água de 100 a 150 metros em alguns locais.

em abril de 2008 foi realizado o international assessment of agricultural knowledge, Science and Technology for Development (iaakSTD). Do encon-tro resultou um documento baseado em ampla consulta, envolvendo 400 es-pecialistas, com relatórios submetidos a rigoroso sistema de avaliação pelos

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Avanços recentes e ameaças à segurança alimentar mundial

pares (peer review), patrocinado por entidades como Fao, Banco mundial, Unesco, Pnud e omS, entre outros e assinado por 60 governos.

os inegáveis progressos da produtividade agrícola que marcaram o século XX, diz o iaakSTD, beneficiaram de maneira desigual o conjunto da população do planeta. além disso, esse aumento de produtividade teve um custo am-biental – em termos de solo, água, biodiversidade e mudança climática – incompatível com o crescimento populacional previsto até 2050. até lá, as necessidades alimentares vão praticamente dobrar, sobretudo nos países em desenvolvimento.

a principal proposta para enfrentar esse desafio crucial está no termo intensi-ficação ecológica. o aumento dos rendimentos terá que ser compatível com a preservação dos ecossistemas. mais que isso: não poderá apoiar-se na ener-gia fóssil e no consumo de água em larga escala, que acompanhou o uso de sementes de alta potencialidade durante a revolução Verde. interromper imediatamente a perda de biodiversidade a que conduziu o crescimento agrí-cola até aqui é indispensável.

a maneira de levar isso adiante, na prática, não poderia ser mais polêmica. De um lado estão os que enxergam no uso de sementes transgênicas a única for-ma consistente de elevar os rendimentos do solo, sobretudo quando se trata de fazê-lo em ambientes ecologicamente frágeis. Daniel nahom, no recém-lançado L’épuisement de la terre, l’enjeu du XXIème Siècle (2008), defende esse ponto de vista, cujos adeptos enfrentam dois problemas centrais. o primeiro é a imensa oposição internacional ao uso de organismos geneticamente mo-dificados na agricultura. essa oposição se explica tanto em virtude dos riscos a que se associam os transgênicos em termos de redução da diversidade genética da produção agropecuária, como ao controle que sobre eles exer-cem grandes corporações, que passam a deter um poder ainda maior sobre o destino da alimentação mundial com a generalização de seu uso. o segundo problema é que os transgênicos, embora possam representar economia no uso de agrotóxicos e mesmo de água, não dispensam quantidades enormes de fertilizantes. Um trabalho recente do Crédit Suisse (2008) mostra que “a capacidade atualmente anunciada de aumento na produção de nitrogênio e fósforo será insuficiente para atender à demanda”. ora, prossegue o do-cumento “é nítido que as sementes transgênicas demandam mais nutrien-tes do solo que as não transgênicas, portanto, mais transgênico, isso pode significar maior demanda de fertilizantes”, mesmo que a produtividade dos transgênicos e, portanto, sua capacidade potencial em atender à demanda global, seja superior às sementes convencionais.

Por outro lado, há os que acreditam que a intensificação ecológica passa pela diversificação dos sistemas produtivos e pelo esforço crescente de melhorar a produção por meio da capacidade de imitar o que faz a própria natureza. os exemplos nessa direção começam a se tornar significativos e, como bem mostra michael Polland, não se limitam à produção em pequena escala. no estado de São Paulo, por exemplo, a Fazenda São Francisco produz cana-de-açúcar certificada como orgânica numa superfície de 14 mil hectares dota-da de corredores ecológicos e com um nível crescente de preservação da biodiversidade. o problema é que nos ambientes ecologicamente frágeis e, sobretudo, em países onde a fome atinge parte considerável das populações rurais, não há qualquer indício de um horizonte concreto de massificação dessas modalidades produtivas.

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Avanços recentes e ameaças

à segurança alimentar

mundial

apesar do imenso progresso no combate à fome nos últimos quarenta anos, o sistema alimentar mundial apresenta falhas de longo prazo que se exprimem não apenas na explosão recente dos preços agrícolas, mas no risco de sua volatilidade. a convicção de que mecanismos de mercado seriam capazes de contrabalançá-la está fortemente colocada em dúvida. além disso, os pa-drões técnicos que dominaram a revolução Verde parecem ter atingido seu ponto de exaustão. a satisfação das necessidades alimentares de uma po-pulação que deve crescer ainda à razão de 70 milhões de habitantes por ano (até 2050) terá que se apoiar num uso muito mais eficiente de energia e água, quando comparada com as técnicas adotadas na segunda metade do século XX. os caminhos para essa intensificação ecológica da produção agropecu-ária não estão claros e será crescente o debate entre os que enxergam neles o principal meio para o aumento das safras, em oposição aos que procuram na diversificação da agropecuária e na descentralização dos conhecimentos técnicos associados a seu progresso os rumos para compatibilizar a preser-vação dos ecossistemas com a elevação das safras.

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* Formou-se em estatística pela escola nacional de Ciências estatísticas (ence).

Doutor em Saúde Pública na escola nacional de Saúde Pública da Fundação oswaldo

Cruz (ensp). Trabalha há mais de 35 anos no iBGe, principalmente com métodos

de pesquisa e técnicas de análise estatística. Consultor da Food and agriculture

organization of the United nations (Fao). Desde 2003, trabalha no Programa de Pós-

Graduação da ence / iBGe. É bolsista de produtividade em pesquisa do CnPq desde

março de 2004.

Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal? mauricio teixeira leite de vasconcellos*

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o desperdício de alimentos pode ser definido como as quantidades de alimentos que pode-riam ser produzidas somadas às quantidades de alimentos produzidos que não chegam ao seu destino final, seja ele a exportação, o con-sumo intermediário (por indústrias e serviços de alimentação) ou a ingestão alimentar. neste sentido, o desperdício alimentar ocorre em todo o processo produtivo e durante o consumo pela população.

a quantificação do volume de desperdício na cadeia produtiva é um elemento importante para as políticas de abastecimento e para a avaliação nutricional embutida nas pesquisas mundiais de alimentos, que são feitas pela Food and agriculture organization of the Uni-ted nations (Fao – organização das nações Unidas para agricultura e alimentação) com base nas Folhas de Balanço alimentar (Food Balance Sheets).

o conhecimento do volume de desperdício duran-te o consumo (em residências e em serviços de alimentação) permite estimar a quantidade de energia e nutrientes não ingeridos, aperfeiçoan-do as estimativas sobre o estado nutricional da população.

além desses usos, a quantificação do volume de desperdício de alimentos na cadeia produtiva e de comercialização é muito importante para o Programa mesa Brasil SeSC (PmB), porque, na prática, esse volume representa o limite de saturação do Programa. ou seja, a coleta e distribuição pelo Programa mesa Brasil SeSC dos alimentos que seriam desperdiçados pode crescer até o limite do desperdício total de ali-mentos produzidos, desde que o Programa seja

capaz de apropriar-se de todos esses alimentos, evitando que se transformem em desperdício. assim, o conhecimento desse limite permitiria avaliar a eficácia do programa e planejar metas para seu crescimento.

na literatura científica, os desperdícios de ali-mentos, observados no processo produtivo, são chamados de perdas. estas, por sua vez, são divididas em perdas que existem até a colheita (alimentos que poderiam ser produzidos, mas não o foram) e perdas pós-colheita (relativas a alimentos produzidos que não chegam ao seu destino final).

na realidade, a literatura trata mais especifica-mente das perdas pós-colheita, limitando-as às perdas de transporte e armazenamento, em função da necessidade de estimar a disponibi-lidade interna de alimentos e fornecer os dados para as Folhas de Balanço alimentar.

Diante da quase total escassez de dados sobre desperdícios (ou perdas), decorrente de vários problemas de métodos e da ausência de pesqui-sas ou outras fontes regulares de informação, não existe uma estimativa precisa do volume de desperdícios que ocorre no processo produtivo e durante o consumo alimentar.

além disso, os poucos esforços existentes refe-rem-se basicamente a produtos agrícolas e não cobririam o interesse do programa, que se tem beneficiado do desperdício industrial, além do existente na cadeia de comercialização.

nesse sentido, este texto forçosamente concen-tra-se nos aspectos relacionados aos métodos de estimação dos desperdícios e à avaliação nutricional, apresentando alguns poucos dados disponíveis.

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Desperdício de alimentos: de

que se trata, afinal?

As perdas pré-colheitaas perdas pré-colheita não são as mais impor-

tantes para o Programa, porque elas ocorrem entre o momento da semeadura e aquele que antecede o início da colheita. São provocadas por adversidades abióticas (principalmente as de ordem climática), bióticas (relacionadas à incidência de doenças e pragas nas lavouras), e por questões de ordem econômica e técnica, que incluem: (1) baixos preços no momento da colheita; (2) falta de orientação técnica na seme-adura; (3) preparo inadequado do solo; (4) seme-adura fora do tempo; e (5) uso de sementes de baixa qualidade.

Basicamente, essas perdas pré-colheita podem ser estimadas por meio da perda de área planta-da, comparando-se a área plantada com a área colhida, somada à perda decorrente do declínio de rendimento (ou produtividade, como alguns usam).

o iBGe publicou um livro sobre indicadores agro-pecuários que ilustra bastante bem esses mé-todos e apresenta dados, para alguns produtos, das perdas pré e pós-colheita para o período de 1996 a 2003 (iBGe, 2004a).

no entanto, como para o PmB essas perdas não são aproveitáveis, não cabe aprofundar este ponto.

As perdas na colheitaas perdas na colheita são consideradas como as

mais importantes em termos quantitativos (Jar-Dine, 2002). Devem-se: “(1) à falta de manuten-ção das colheitadeiras; (2) à falta de regulagem ou de ajuste fino das máquinas, que devem ser feitos no momento da colheita, levando-se em conta o grau de umidade e o estágio de matu-ração dos grãos; (3) à idade ou obsolescência da frota; (4) ao número ainda reduzido de ope-radores de colheitadeiras devidamente capa-citados; e (5) a não observância da velocidade ideal de operação das máquinas e dos elemen-tos mecânicos mais diretamente responsáveis por uma proficiente colheita (molinete, barra de corte, caracol etc.), se bem que, em determina-das situações de anormalidades climáticas, po-dem ser até justificáveis para se evitar prejuízos maiores” (iBGe, 2004a: 3).

essas perdas dificilmente poderiam ser usadas pelo Programa. no entanto, sabemos, desde 1975, quando o iBGe concluiu o estudo nacio-

nal da Despesa Familiar (endef) – uma pesquisa de consumo alimentar e orçamentos familia-res –, que muitas famílias vivem recolhendo o que sobra das colhedeiras e sobrevivem dessa maneira. não temos dados mais recentes para saber qual foi o impacto das alterações fundi-árias ocorridas, sobretudo com o aumento da produção voltada para a exportação, sobre essa estratégia de sobrevivência.

As perdas pós-colheitaDefinem-se as perdas pós-colheita como todas as

perdas que ocorrem depois da colheita e até o fim da cadeia de comercialização. no entanto, a literatura limita-se às perdas no transporte e na armazenagem, como já mencionado.

estas perdas são o ponto de maior dificuldade para a construção de tabelas de suprimento e utilização (ou Folhas de Balanço alimentar, como a Fao denomina), em parte pela dimensão territorial do Brasil, que dificulta a realização de levantamentos em nível nacional. De fato, Getú-lio Pernambuco, da Confederação nacional de agricultura (Cna), afirma que não existem es-tatísticas precisas sobre perdas porque não há levantamentos sistemáticos (JarDine, 2002).

nos estudos de balanço e disponibilidade, 1982-86 e 1986-90, realizados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), foram utilizados índices de perdas pós-colheita para grãos que, provavelmente, ne-cessitam hoje de revisão (FGV, 1988; FGV, 1991). a própria associação Brasileira de Pós-Colheita (abrapos) reconhece a escassez de dados so-bre perdas pós-colheita e indica que o último trabalho mais abrangente foi o relatório produ-zido pela Comissão Técnica para redução das Perdas na agropecuária, do ministério da agri-cultura, do abastecimento e da reforma agrária (CTrPa, 1993). no entanto, o citado relatório é incompleto pois não são consideradas as per-das durante o transporte (iBGe, 2004a).

É consenso no Brasil que há perdas sérias de soja durante o transporte e armazenamento deste produto, bem como de outros grãos (marTinS & FariaS, 2002). Segundo levantamento da Cna, o prejuízo com o derrame de grãos, de uma forma geral, durante o transporte rodoviá-rio, chega a r$ 2,7 bilhões a cada safra, o que representa 10 milhões de toneladas perdidas (JarDine, 2002). e o motivo deste problema é que os caminhões transportam mais carga do que as carretas comportam, sendo maiores as

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Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal?

perdas ocorridas durante o transporte a longa distância, que variam entre 5% e 10%, conforme o produto (JarDine, 2002).

estima-se que cerca de 60% das cargas do agro-negócio brasileiro são transportadas por rodo-vias (Ballan, 2004) e as perdas aumentam por-que cerca de 80% das estradas brasileiras estão em condições inadequadas (REvISTA UPDATE, 2004).

no transporte, “as maiores perdas são as que ocorrem durante o transporte de longa distân-cia, na maioria das vezes, entre a empresa e o exportador” (JarDine, 2002: 16). Segundo o iBGe (2004a), isto ocorre porque cerca de 67% das cargas brasileiras são transportadas por rodovias, apesar de não ser o modo de trans-porte mais vantajoso para longas distâncias, visto que estudo de viabilidade econômica aponta o transporte rodoviário como mais ade-quado para distâncias de até 300 km, o ferro-viário para distâncias entre 300 e 500 km, e o fluvial para distâncias maiores que 500 km.

as perdas de armazenamento, de modo geral, são devidas à inadequação e falta de manutenção na rede de armazenagem, além de problemas de qualificação de mão de obra e, também, de equipamento:

as perdas na armazenagem decorrem, em geral, da insuficiência estrutural ou inadequação da rede de armazenagem, bem como do baixo nível de qualificação da mão de obra que opera os secadores, as câmaras de expurgo, os aeradores e outros equipamentos de recepção, movimentação e conservação dos produtos nas unidades armazenadoras. no armazenamento da produção podem ocorrer perdas físicas e perdas na qualidade do produto. as perdas físicas expressam-se pela redução do peso dos estoques, principalmente em razão do ataque de insetos, e pela perda da umidade dos grãos. Tanto as perdas físicas como as de qualidade dos grãos estão associadas ao tempo de existência dos estoques e às condições de armazenamento dos mesmos (iBGe, 2004a: 3).

lorini (2000) estima que os prejuízos por ataques de pragas a grãos armazenados chegam a 10%. as perdas de armazenagem e transporte são estimadas por alguns índices, calculados com base em uma “disponibilidade” definida como a produção, mais o saldo de importação e ex-portação e o saldo de estoque (estoque no ano anterior ou inicial de um ano e estoque final), ou seja:

1. Perda = Disponibilidade x Índice de perda;

2. Disponibilidade = Produção + (importa-ção - exportação) + (estoque final - estoque inicial).

na realidade, não existe um estudo baseado em amostra nacional, para estimar, de forma mais robusta, esses índices de perda. assim, na refe-rida publicação do iBGe, são usados índices de perdas estabelecidos pela Fao por produto. o índice de perda da Fao para o arroz (em casca) é de 10% da disponibilidade; para o trigo (em grão) é de 5% da disponibilidade; para o milho (em grão) é de 10% da disponibilidade; e para o feijão (em grão) é de 3% da disponibilidade. no entanto, a Fao não calcula perdas para soja e a publicação do iBGe utiliza um trabalho da FGV que estima as perdas em 10% (FGV, 1991).

Deve-se registrar que outras fontes de perda são esquecidas na literatura citada, porque o ob-jetivo é calcular a disponibilidade interna (Di), entendida como a quantidade de alimentos com base na qual estimam-se as quantidades de energia, proteínas etc. que estão disponíveis para uso do país. É, portanto, uma estatística importante para que se possa pensar em políti-cas de abastecimento e de segurança alimentar e nutricional, mas insuficiente para orientar o PmB.

De fato, o que interessa ao PmB são as perdas observadas depois do cálculo da Di, ou seja, as perdas na comercialização, nos serviços de ali-mentação e no processo industrial, pois essas são perdas que podem ser aproveitadas pelo Programa.

as perdas na cadeia de comercialização, decor-rentes da proximidade do vencimento de vali-dade e de alguma perda de qualidade, não são captadas pelas pesquisas de comércio do iBGe. estas pesquisas são basicamente econômicas e não levantam, por exemplo, quantidades com-pradas, vendidas e mantidas em estoque por produto. ou seja, não visam ao controle do es-toque dos estabelecimentos comerciais, nem à estimação de suas perdas.

outro tipo de perda não incluída nos levantamen-tos do sistema estatístico brasileiro é a observa-da nos serviços de alimentação, que cresceram extraordinariamente a partir dos anos 90. Trata-se das sobras de alimentos preparados que não podem ser posteriormente aproveitadas.

o processo industrial também tem perdas e não há dados no iBGe.

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Desperdício de alimentos: de

que se trata, afinal?

disponibilidade internaa disponibilidade interna (Di) é definida como: o estoque inicial de um ano,

mais a produção, mais a importação, menos a exportação, menos as perdas pós-colheitas (as de armazenagem e transporte), menos a parcela que se retira para a semeadura, e menos o estoque final no ano (Quadro 1). ou seja, a disponibilidade interna corresponde à quantidade que ficou disponível, ao longo do ano, para a população. mas não exclusivamente para a população humana. Ficou disponível no país para todos os usos: uso industrial, alimen-tação animal, alimentação humana etc.

os estoques inicial e final de um ano podem ser obtidos a partir dos dados da Pesquisa de estoques, realizada semestralmente pelo iBGe e disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/estoque/default.shtm.

a produção pode ser estimada pelo Censo agropecuário, pelo levantamento Sistemático da Produção agrícola e pelas pesquisas de produção pecuária, disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agrope-cuaria/producaoagropecuaria/default.shtm.

os dados de importação e exportação são disponíveis no Sistema alice da Se-cretaria de Comércio exterior, do ministério do Desenvolvimento, indústria e Comércio exterior, em http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br/.

no Quadro 1, observa-se que o país tinha um estoque inicial de 2.107.997 tone-ladas de arroz em casca, em 2002. o Brasil produziu, nesse ano, mais de 10 milhões de toneladas, importou e exportou poucas toneladas, teve perdas de 1,25 milhões de toneladas (correspondente a 10% da disponibilidade), reser-vou 240 mil toneladas para semeadura e obteve uma Di de quase 11 milhões de toneladas. o estoque final de 2002 é o estoque inicial no balanço de 2003, e as contas seguem o mesmo método. ainda no Quadro 1, ao dividir a Di pela população brasileira, obtém-se a disponibilidade interna per capita, no caso expressa em quilogramas.

Paralelamente, a Pesquisa de orçamentos Familiares 2002-3 (iBGe, 2004b) es-timou a compra anual de arroz per capita em 25,55 kg. a diferença entre a Di per capita e o consumo domiciliar per capita anual, obtido na PoF, pode ser explicada pelo beneficiamento (reduz o peso pela retirada da casca e poli-mento) e pelos outros destinos do arroz (serviços de alimentação, indústria, dentre outros).

Quadro 1 - Exemplo de cálculo da disponibilidade interna (DI) brasileira para arroz e feijão nos anos de 2002 e 2003

arroz em casca (t) feijão em grão (t)

2002 2003 2002 2003

estoque inicial 2 107 997 916 671 38 089 35 059

(+) Produção 10 471 800 10 319 925 3 050 204 3 309 900

(+) importação 836 135 1 596 642 82 428 103 342

(-) exportação 44 032 28 580 16 307 3 249

(-) Perdas pós-colheita 1 245 523 1 197 912 93 581 102 063

(-) Semeadura 240 820 280 999 170 726 171 271

(-) estoque final 916 671 825 535 35 059 42 957

(=) Disponibilidade interna 10 966 271 10 500 212 2 854 945 3 128 761

Di per capita (kg) 42,70 40,37 16,35 17,69

PoF 2002-2003: Comprasper capita anual (kg)

25,55 12,39

Fontes: IBGE, 2004a e IBGE, 2004b.

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Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal?

assim, o dado de Di per capita, em princípio, é bem coerente e não tem maiores problemas para uso em políticas de abastecimento. Só que é feito produto por produto e para alguns produtos.

Para uso na avaliação nutricional, a questão é mais complicada porque a estimativa necessá-ria é a da ingestão e a estimativa da disponibi-lidade interna ignora as perdas posteriores que reduzem a quantidade ingerida. Dentre essas perdas destacam-se:

1. perdas de comercialização por vencimen-to da validade ou perda de qualidade, para as quais não há dados no iBGe;

2. perdas nos serviços de alimentação, tais como as sobras não reaproveitáveis e as so-bras nos pratos dos clientes;

3. perdas do processo industrial, para as quais não há dados no iBGe;

4. perdas nos estoques domiciliares por ven-cimento da validade ou perda de qualidade;

5. perdas na preparação e consumo de ali-mentos no domicílio, para as quais só há da-dos de 1975, obtidos no endef.

assim, a Di apresenta diversos questionamentos que praticamente invalidam seu uso para fins de avaliação nutricional.

o mesmo aplica-se à aquisição de alimentos obtida pela PoF do iBGe. no entanto, essas informações continuam a ser usadas para fins nutricionais com o argumento de que não existe outra infor-mação para avaliação nutricional da população.

Avaliação do estado nutricionalo principal indicador de estado nutricional é a

taxa de adequação, que corresponde à razão entre a ingestão (expressa em energia, proteína ou outro elemento nutriente) e o requerimento nutricional correspondente.

a taxa de adequação pode ser calculada para uma pessoa (ingestão da pessoa / requerimento da pessoa). Para uma família, a taxa de adequação corresponde à razão entre a ingestão familiar e o requerimento familiar. nesse caso, esta razão não se altera se requerimento e ingestão forem expressos por pessoa (per capita na família) ou por adulto-dia. Por extensão, a taxa de adequação da população de um país corresponde à razão entre a ingestão per capita e o requerimento per capita.

Se a taxa de adequação for menor que um, o re-querimento é maior do que a ingestão e, portan-to, tem-se uma situação de restrição alimentar

ou subnutrição. Se for maior ou igual a um, en-tão não há subnutrição.

Para a maioria dos nutrientes, a ingestão maior do que o requerimento não representa proble-ma porque o organismo elimina o excesso. no entanto, para a energia isto não acontece: o or-ganismo armazena a energia excedente na for-ma de gordura corporal conduzindo, se mantida ao longo do tempo, a uma ingestão energética superior ao requerimento energético, ao sobre-peso e à obesidade.

a discussão dos métodos de avaliação nutricio-nal é feita separadamente para o caso das pes-quisas mundiais de alimentos e para pesquisas domiciliares.

Avaliação nutricional em nível de paíso uso da Di para avaliação nutricional foi consa-

grado nas pesquisas mundiais de alimentos re-alizadas pela Fao (Fao, 1946; Fao, 1952; Fao, 1963; Fao, 1977; Fao, 1987; Fao, 1996).

Para tanto, a Di de cada alimento é transforma-da em energia (kcal) e proteínas, por meio das tabelas de composição editadas pela Fao, para obter o total de calorias e proteínas disponíveis em um país. este total é dividido pela população do país para calcular a disponibilidade interna per capita de energia e proteínas do país. a po-pulação usada é obtida nas projeções popula-cionais do escritório de estatística das nações Unidas (United nations Statistical office).

Como toda medida per capita, o valor obtido dife-re de habitante a habitante do país e deve ser entendido como um valor médio. assim, este cálculo conduz à média de consumo do país e demanda um tratamento estatístico para poder ser estimada a prevalência de subnutrição.

Como a distribuição de ingestão em energia da população pertence à família da distribuição normal, é preciso especificar o segundo parâ-metro (o desvio padrão) para definir a distribui-ção normal aplicável ao país. na ausência desta estatística para a maioria dos países, a Divisão de estatística da Fao estima o coeficiente de variação (CV) da distribuição de renda ou da dis-tribuição de despesas, uma informação conhe-cida para a maioria dos países por meio de suas pesquisas domiciliares (amostrais ou o censo demográfico).

Como CV é uma medida adimensional definida pela razão entre o desvio padrão e a média de uma variável, o método usado pressupõe que o

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desvio padrão (DP) da ingestão de energia é igual ao CV da renda (ou da despesa) multiplicado pela média de consumo (expressa pela Di per capita). Dessa forma, pode-se especificar completamente a distribuição normal cor-respondente ao país (Figura 1).

Com os mesmos dados populacionais, a Fao calcula os requerimentos de ener-gia usando as recomendações internacionais para os requerimentos huma-nos de energia. a média populacional dos requerimentos fornece o valor do requerimento mínimo (rm) para adequação energética, apresentado na Figu-ra 1. a área sobre a curva à esquerda do requerimento mínimo corresponde à proporção de pessoas cuja ingestão não seria suficiente para atender a seus requerimentos. esta proporção é a prevalência de subnutrição, que multipli-cada pela população do país estima o número de subnutridos do país.

Figura 1 - Representação gráfica da curva de ingestão 'per capita' de um país e da prevalência de subnutrição

Para a sexta Pesquisa mundial de alimentos (Fao, 1996) a Fao utilizou as recomendações internacionais de 1985, publicadas pela organização mun-dial de Saúde (Fao/WHo/UnU, 1985). as recomendações atuais foram pu-blicadas pela Fao em 2004 (Fao/WHo/UnU, 2004) e deverão ser usadas na próxima pesquisa.

o método usado nas pesquisas mundiais de alimentos foi definido por Sukhatme, um dos pais da amostragem probabilística (SUkHaTme, 1954), quando chefiou a Divisão de estatística da Fao. esse método não se propõe a fazer uma avaliação nutricional acurada, mas tão somente dar uma ideia da tendência da subnutrição nos países.

além dos problemas derivados do uso da Di per capita como proxy da inges-tão, existem três outros tipos de problemas: (1) o cálculo do requerimento mínimo não é acurado porque não se conhece o nível de atividade física e medidas antropométricas da população; (2) a qualidade da informação que os países encaminham à Fao afeta diretamente a estimativa da Di; (3) os sistemas de crítica da Fao, que são concebidos para a assegurar qualidade dos dados recebidos, impedem alterações acentuadas na produção.

De fato, os dados usados nas Folhas de Balanço alimentar são fornecidos à Fao por meio de questionários preenchidos pelo(s) órgão(s) de estatística dos países. no início eram questionários impressos e atualmente são ques-tionários on line. no caso brasileiro, o iBGe preenche esses questionários, mas temos observado que informações constantes das Folhas de Balanço

-4DP -3DP -2DP RM -1DP D +1DP +2DP +3DP +4DP

Disponibilidade interna per capita (DI) e desvio padrão (DP)

Distribuição Normal

Prevalência de subnutrição

nota: esta distribuição é arbitrária e serve, apenas, para ilustrar o método usado. Para cada país, a distribuição real tem o valor da Di como média e o CV de renda (ou despesas) determina sua dispersão. Dessa forma pode ser calculada a proporção de casos abaixo do rm (prevalência de subnutrição).

Distribuição normal

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alimentar não necessariamente são as que foram fornecidas pelo iBGe. a explicação recebida é a de que o sistema desenvolvido tem muitas críticas e faz correções que alteram algum dado. o fato é que quando o rendimento agrícola brasileiro aumentou de forma acelerada, o sistema da Fao não cap-tou o salto de produção de um ano para outro.

Avaliação nutricional das famíliasa única avaliação nutricional das famílias brasileiras com base em de dados

de ingestão de alimentos foi realizada no endef. nessa pesquisa, cerca de 53 mil famílias foram pesquisadas ao longo de sete dias consecutivos, por mais de 1.200 entrevistadores. em seu método, cada “entrevistador, em princípio, faz tantas visitas quantas sejam as refeições principais da família para: pesar os alimentos que serão consumidos na refeição seguinte; pesar os alimentos comprados no dia, exceto os industrializados que já têm peso líquido na emba-lagem; e obter o peso dos resíduos, sobras ou desperdícios” (VaSConCelloS & anJoS, 2001: 582).

nesse artigo, os autores documentam a forma de cálculo da ingestão (em ener-gia ou nutriente) e dos requerimentos, incluindo as escalas para corrigir as diferenças de ritmo alimentar e presença às refeições (escala de ponderação das refeições) e para corrigir as diferenças de composição por sexo e idade (escala de adulto-equivalente).

Para estimar a ingestão alimentar, diversos passos são necessários: (1) calcular o peso da parte comestível dos alimentos consumidos e desperdiçados, que corresponde ao peso do alimento tal como é comprado menos o peso dos resíduos não-comestíveis (cascas, ossos, caroços etc.); (2) transformar os pesos das partes comestíveis em energia e nutrientes, por meio de tabelas de composição química de alimentos; (3) converter as preparações culinárias em peso da parte comestível dos ingredientes básicos, por meio de receitas médias, derivadas das receitas utilizadas pelas famílias e levantadas ao longo do trabalho de coleta; (4) transformar os pesos de partes comestíveis dos ingredientes básicos em energia e nutrientes, usando tabelas de composição; (5) agregar os dados de energia e nutrientes consumidos e desperdiçados no nível familiar, para estimar a ingestão de energia e nutrientes pela diferença entre consumo e desperdício dos alimentos (VaSConCelloS & anJoS, 2001: 583).

Para exemplificar o cálculo da ingestão e apresentar estimativas do desperdício alimentar nas famílias, foi elaborado o Quadro 2. Seus dados mostram que a quantidade de energia (kcal) dos alimentos desperdiçados representava uma parcela pequena (2,3%) do total de energia dos alimentos consumidos e que a maior parte do desperdício observado nas famílias brasileiras em 1975 destinou-se à alimentação de animais.

Quadro 2 - Estimativas do total de energia por adulto-dia, segundo algumas variáveis

Variáveisenergia por adulto-dia

(kcal)porcentagens

Compras 1 702,93

Consumo 2 816,44 100,0

Desperdício 65,33 2,3 100,0

Dado a animal 32,33 1,1 49,5

Jogado no lixo 25,51 0,9 39,0

Doação para outra família 7,49 0,3 11,5

ingestão 2 751,11 97,7

Fontes: IBGE, 2004a e IBGE, 2004b.

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Voltando à avaliação nutricional, observa-se que o total de energia comprada foi inferior ao total de energia ingerida, indicando que o endef captou um momento em que as famílias consumiram mais de seu estoque de alimentos do que compraram para sua reposição. nada assegura, no entanto, que a situação inversa não poderia ser captada em outro momento.

isso mostra que o uso de dados de compras, como os obtidos em uma pesqui-sa de orçamentos familiares, pode conduzir a uma avaliação equivocada da situação nutricional das famílias. De fato, para obter a ingestão familiar em uma pesquisa de orçamentos seria necessário levantar o estoque de alimen-tos da família, as obtenções (que são os alimentos obtidos por fluxos não monetários de produção própria, troca, doações e recebimentos em bens) e usar uma equação de balanço do tipo (que pode ser expressa em energia ou algum nutriente):

ingestão = estoque inicial + compras + obtenções – desperdícios – estoque final.

Se as compras e obtenções incluírem a alimentação em casa e fora desta, será necessário apenas controlar a presença de convidados às refeições (eles representam alimentos comprados e que não foram consumidos pelos mem-bros da família) para poder relacionar a ingestão familiar com os requerimen-tos dos que participaram das refeições.

Usar apenas a obtenção de alimentos (compras + obtenções) como proxy da ingestão significa pressupor que estoque inicial menos estoque final menos desperdício é igual a zero. Trata-se, portanto, de uma hipótese muito forte que tem sido justificada pela falta de dados de ingestão.

Como a pesquisa endef foi uma pesquisa de orçamentos familiares e consumo alimentar, seus dados permitem construir os estimadores de ingestão e de compras e desenhar os histogramas de frequências (Figura 2).

a Figura 2, cujos histogramas correspondem a classes de 200 kcal, com o pon-to médio de uma a cada duas classes indicado, mostra que o estimador de compras tem uma distribuição concentrada até 3.000 kcal/adulto/dia (85% das famílias), mas com frequências não ignoráveis acima de 7.000 kcal/adul-to/dia e uma forma que lembra mais uma distribuição log-normal do que a forma normal da distribuição de ingestão por adulto-dia, que concentra cerca de 70% das famílias entre 1.800 e 3.400 kcal/adulto/dia.

Figura 2 - Histogramas de frequências populacionais dos estimadores de ingestão e compra (1000 (1000 familias) familias)

Fonte: Vasconcellos (2001:167).

Ingestão de energia por adulto-dia (100 kcal) Energia comprada total por adulto-dia (100 kcal)

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ao relacionar esse dois estimadores com os requerimentos energéticos, para estimar a taxa de adequação em energia (Tae), os erros observados no nume-rador (em função da hipótese de nulidade do restante da equação de balanço) afetam de forma irremediável as estimativas da prevalência de subnutrição.

Para exemplificar esse ponto, foi usado o requerimento energético de manutenção, que corresponde a 1,4 vezes a taxa metabólica basal (gasto energético diário para manutenção das funções vitais do organismo) e é adequado para indivíduos se-dentários ou com níveis de atividade física muito baixos, permitindo considerar apenas atividades como vestir-se, lavar-se e três horas de atividades em pé (Ja-meS & SCHoFielD, 1990). esse requerimento de manutenção foi relacionado aos dois estimadores de consumo (ingestão de energia) e obtenção (compras + obtenções) de energia, para cálculo da Tae (Quadro 3).

Quadro 3 - Prevalência de subnutrição energética (TAE < 1), por décimos de despesa real corrente anual 'per capita', segundo o estimador usado no cálculo da taxa de adequação de energia

estimador usado no cálculoda taxa de adequação de energia

Décimos de despesa real corrente per capita anual

1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º

ingestão de energia 47,5 36,0 31,3 29,4 26,9 23,3 21,2 17,6 14,7 15,2

obtenção de energia 51,6 48,5 48,0 47,3 49,9 52,4 51,9 53,8 51,2 45,9

os dados do Quadro 3 indicam que à medida que cresce o nível de renda, cai a prevalência de subnutrição calculada com o estimador de ingestão. Há uma pequena inflexão no décimo de renda, decorrente de problemas no método do endef, que não captava de forma acurada a ingestão de famílias com nú-mero elevado de refeições feitas fora de casa.

no caso do estimador de obtenção, a prevalência é sempre maior, não apresen-ta uma tendência marcada e é pouco provável que tivéssemos uma variação tão pequena na prevalência de subnutrição entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres do país, o que mostra de forma contundente o erro da hipótese de nulidade das variáveis desconhecidas (estoque inicial – estoque final – desperdícios = 0).

conclusõesDo exposto, pode-se concluir que a disponibilidade interna é uma informação

importante para planejar o abastecimento humano, mas não é adequada para avaliação nutricional, sobretudo porque não se tem informação sobre os desperdícios que ocorrem na comercialização, na indústria e nos serviços de alimentação.

os dados econômicos obtidos em uma pesquisa de orçamentos familiares, como as que o iBGe realiza, apesar de poderem ser expressos em quantida-des físicas, não são suficientes para estimar a ingestão nutricional. É preciso conhecer a variação do estoque familiar de alimentos antes e depois do perí-odo de pesquisa na família.

É fato que a existência de dados sobre o desperdício de alimentos e sobre a presença de convidados, além das informações sobre antropometria e atividades físicas das pessoas, aprimorariam substancialmente o cálculo da ingestão e dos requerimentos e, portanto, tornariam a prevalência de

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subnutrição mais acurada. no entanto, isto implica fazer uma pesquisa muito mais complexa, incluindo pesquisa de estoques e de uso do tempo (para atividades físicas).

montar um sistema de informações que permita estimar o desperdício de ali-mentos de forma acurada implica grandes transformações e adições às pes-quisas agropecuárias, de indústria, de comércio e de serviços que o iBGe realiza e, portanto, pressupõe fontes regulares de financiamento ao iBGe.

Voltando à pergunta do título deste trabalho, conclui-se que desperdício trata-se de algo que não se tem como medir com acurácia, por falta de dados.

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* Presidente da Comissão nacional de População e

Desenvolvimento (CnPD), professor titular do Departamento

de Demografia e pesquisador do Centro de Desenvolvimento

e Planejamento regional (Cedeplar) da UFmG. Doutor em

Demografia pela Universidade da Califórnia-Berkeley e

pós-doutor pela Universidade do Texas-austin. É membro do

Conselho de Desenvolvimento econômico e Social de minas

Gerais, vinculado à Secretaria de Planejamento e Gestão do

estado de minas Gerais (Seplar).

A dimensão nutricional do Bolsa Família eduardo rios-neto*

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a avaliação de impacto do Bolsa Família (aiBF), principal instrumento de avaliação desse progra-ma – encomendada pela Secretaria de avaliação e Gestão da informação do ministério do Desen-volvimento Social e Combate à Fome –, foi reali-zada em 2005 pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento regional de minas Gerais (Cede-plar), por meio da Fundação de Desenvolvimento e Pesquisa (Fundep). e a pesquisa de linha de base do aiBF, que foi utilizada para a estimação dos resultados aqui apresentados, representa uma primeira fase da avaliação, que futuramen-te deverá ser analisada de forma longitudinal. a pesquisa de avaliação de impacto foi feita, nacio-nalmente, em novembro de 2005. Similar a esta, abrangendo itens relacionados ao Bolsa Família, é a Pesquisa nacional de Demografia e Saúde da Criança e da mulher (PnDS), do ministério da Saúde, realizada em 2006.

o objetivo desta apresentação é expor alguns re-sultados da aiBF que tenham conexão com a di-mensão nutricional. Utiliza-se também a Pesqui-sa nacional de Demografia e Saúde da Criança e da mulher (PnDS), do ministério da Saúde, para contextualizar um ano a mais de resulta-dos e, assim, alimentar o debate. essa pesquisa contribui na medida em que possui informações sobre a escala Brasileira de Segurança alimen-tar (ebia). os paradoxos encontrados em alguns resultados podem ser efeitos do denominado “viés de linha de base”, ou da ótima focalização do Programa Bolsa Família, por isso é preciso muita cautela na análise e interpretação dos da-dos aqui apresentados.

a apresentação está dividida em quatro seções. a primeira aborda alguns conceitos relativos à ava-liação de impacto. a segunda apresenta a metodo-

logia de avaliação de impacto utilizada com a aiBF e alguns resultados sobre variáveis nutricionais, como gastos com alimentação e desnutrição. a terceira mostra os resultados obtidos por meio da PnDS; e a quarta propõe uma conclusão.

Avaliação de impacto: alguns conceitosos beneficiários de um programa sofrem uma in-

tervenção que afeta uma variável de resultado. esta variável pode ser a educação, a qualidade de vida e, no presente caso, o estado nutricio-nal de um indivíduo. Para estimarmos o impacto desta intervenção seria ideal que pudéssemos ter um contrafactual, isto é, que pudéssemos sa-ber o que seria do indivíduo caso ele não tivesse recebido o benefício. Como é impossível saber o contrafactual, o mais importante da avaliação de impacto é que haja um grupo de controle. o impacto da intervenção é a diferença na variável de interesse entre o grupo de tratamento (que sofreu a intervenção) e um grupo de controle. Quando esse grupo de controle é bem feito, gera o chamado contrafactual.

Por exemplo, na área de mercado de trabalho, ava-liávamos um programa de formação profissio-nal, com o acompanhamento do egresso antes e depois do treinamento, mas não existia grupo de controle. Se a economia ia bem, o salário do egresso aumentava e pensávamos que o progra-ma tinha impacto. mas, se havia uma recessão, o salário do egresso diminuía e a interpretação natural seria a de que o programa não tinha tido impacto, e não era isso.

a principal vantagem da avaliação de impacto é ge-rar um resultado direto, dado pela diferença entre

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

o resultado para o grupo de tratamento e o resultado para o grupo de controle. mas, na realidade, isso só ocorreria se você tivesse um clone verdadeiro e a úni-ca diferença fosse o treinamento. aí sim teríamos o impacto verdadeiro. Como não podemos clonar os beneficiários, para que seus clones não sofram a in-tervenção de política pública e se tornem um grupo de controle, temos que ver quais metodologias científicas são desenvolvidas para resolver este problema, que é gerar um grupo de controle ou contrafactual. eis aqui alguns métodos:

•OmétododaAleatorizaçãoemumExperimento;

•OmétododoEscoredePropensãopareadocombaseemvariáveisobserváveis;

•OmétododaDiferençanasDiferençasaplicadoaumExperimentoNatural;

•OmétododaDiferençanasDiferençasaplicadoaumaRegressãodeDescon-tinuidade.

na avaliação existe um conceito muito importante, o da heterogeneidade não observada. Por exemplo, observa-se uma pessoa que possui determinada ca-racterística, se a pessoa possui esta característica desde a infância (t-1) e a conserva até idade mais avançada (t), se fizermos o diferencial da caracte-rística no tempo t, menos a características no tempo t-1, ela será controlada, e, portanto, descartada. Daí a necessidade de dois pontos no tempo para a avaliação de impacto, conforme veremos adiante. o fato da aiBF ter sido rea-lizada apenas em um ponto no tempo (2005) dificulta a identificação do que é impacto e o que é diferencial entre o grupo de tratamento e o de controle.

Avaliação de impacto do Bolsa família

metodologiaComo a implementação do Programa Bolsa Família não foi realizada de forma

aleatória entre as famílias elegíveis, de modo que o desenho do Programa não é experimental, a opção foi pelo uso de um método quase experimental. a técnica escolhida na aiBF foi de Pareamento com escore de Propensão – Propensity Score Matching (PSm) –, que compara resultados de famílias simi-lares do grupo de tratamento com as dos grupos de comparação. o objetivo do pareamento é encontrar um grupo de comparação ideal em relação ao grupo de tratamento, sendo a relação de proximidade entre os grupos medida em termos das características observadas.

o grupo de comparação é então emparelhado ao grupo de tratamento por meio do escore de propensão, que representa a probabilidade predita da família receber o benefício. em seguida estimam-se os efeitos do tratamento (efeito do programa) por meio da diferença entre os resultados médios dos grupos emparelhados de tratamento e controle.

os pressupostos desta técnica são: em primeiro lugar, a condição de equilíbrio, que implica que se a distribuição do escore de propensão (ou seja, da proba-bilidade de receber o benefício) é a mesma entre as amostras de tratamen-to e controle, a distribuição de características que determinam esse escore (essa probabilidade) também é a mesma nas duas amostras. Dessa forma, as amostras de tratados e controle estão equilibradas, ou balanceadas. o segundo pressuposto é o do suporte comum, que requer que existam unida-des de ambos os grupos, tratamento e controle, para cada característica que se deseja comparar. isto assegura que para cada família tratada exista outra família não tratada.

esta técnica é limitada porque estamos assumindo que o grupo de tratamento só é clone pelas variáveis que conseguimos medir. e, mais ainda, com um

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

ponto só no tempo, o que é um problema sério. É importante dizer que a pesquisa foi chamada de pesquisa de linha de base, porque ela teria que ter tido um follow-up, uma pesquisa longitudinal. no entanto, já se passaram três anos e ela ainda não aconteceu, e não sei qual a possibilidade de esse acompanhamento ser feito agora, após esse tempo.

o problema de se trabalhar com um ponto no tempo é que se está medindo um diferencial que pode ser indicativo de um impacto, mas pode ser um indicati-vo do que é chamado na literatura de viés de linha de base, ou seja, um dife-rencial provocado por características não observáveis. Dois pontos no tempo corrigiriam esse viés. ressalto esse problema porque existem resultados pa-radoxais que devem ser interpretados com muita cautela. o que se chama de impactos pode, em grande medida, ser mais diferenciais do que impactos.

na avaliação foram feitos dois grupos de controle: C1, composto por benefi-ciários de programas que em 2005 concorreram com o Bolsa Família e não tinham migrado para o Bolsa Família; e C2, composto por famílias que não receberam benefícios do Bolsa Família e que nunca receberam qualquer ou-tro benefício de programas federais prévios ao Bolsa Família. o grupo de tra-tamento é composto pelos beneficiários do Bolsa Família.

dimensão nutricional da AIBfa seguir são apresentados alguns resultados do aiBF em relação à dimensão

nutricional. em primeiro lugar temos o impacto sobre os gastos com alimen-tos em particular. Depois, apresentam-se resultados antropométricos.

diferenciais sobre os gastos com alimentaçãoa parte de dispêndios da pesquisa teve uma mensuração de vários gastos, e aqui

se enfatizam as despesas com alimentos, dividida entre alimentos básicos e não-básicos. a grande diferença entre eles é que os básicos seriam grãos, cereais, farinhas, legumes, laticínios, verduras e tubérculos; e os não-básicos seriam carnes, aves, peixes, ovos, açúcares. Vejamos as tabelas com os dife-renciais nos valores médios para as variáveis de gasto por faixa de renda.

Tabela 1 - Valores médios para as variáveis de gastos por critério de renda

Renda R$ 50,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

Despesa total 5.975,47 6.466,54 8.860,52 8.681,25

alimentação 2.486,81 2.545,02 2.644,21 2.581,49

Renda R$ 100,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

Despesa total 6.548,92 7.258,47 9.288,67 8.114,10

alimentação 2.705,74 2.788,02 2.718,53 2.728,36

Renda R$ 200,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

Despesa total 7.302,21 7.829,44 10.039,23 9.047,15

alimentação 2.891,19 2.952,43 3.054,09 2.581,49

Fonte: elaboração própria com

base na AIBF, 2005.

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

Tabela 2 - Valores médios para as variáveis de gastos de alimentação desagregados, por critério de renda

Renda R$ 50,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

alimentos básicos

1.135,90 1.247,25 1.197,88 1.188,83

alimentos não-básicos

1.088,95 1.088,00 1.088,33 1.088,45

Renda R$ 100,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

alimentos básicos

1.251,40 1.290,37 1.262,94 1.264,97

alimentos não-básicos

1.198,26 1.275,41 1.154,49 1.190,41

Renda R$ 200,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

alimentos básicos

1.336,68 1.376,44 1.447,08 1.410,20

alimentos não-básicos

1.290,77 1.333,61 1.331,08 1.322,42

a seguir, a Figura 1 apresenta os diferenciais entre o grupo de tratamento e os grupos de comparação para os gastos domiciliares anuais em 2005, Brasil e regiões, comparando o beneficiário do Bolsa Família com o não-beneficiário de qualquer programa. o interessante é que há impactos substanciais no Brasil na despesa com alimentos e o impacto é maior nos beneficiários de renda mais baixa. Se tomarmos como exemplo o gasto anual de r$ 388, 22 para uma renda per capita familiar de r$ 50 – de extrema pobreza –, e divi-dirmos esse valor por 10, é um impacto de r$ 38 para uma renda per capita familiar de r$ 50. É um diferencial de gasto substancial, mas, novamente, isso pode ser diferencial, ou pode ser impacto.

Figura 1 - Diferenciais entre grupos de comparações sobre gastos domiciliares: Brasil e regiões, 2005

grupos tratamento e Comparação 1 tratamento e Comparação 2

Corte de elegibilidade até R$ 200,00 R$ 100,00 R$ 50,00 R$ 200,00 R$ 100,00 R$ 50,00

Despesas totais

Brasil -317,41 -81,05 -291,81 -273,44 132,16 458,65

Nordeste -710,06 -521,14 -414,92 81,51 470,15 14,19

Norte/Centro-Oeste 133,18 526,41 468,32 -363,85 329,50 1.296,87

sudeste /sul -203,64 -200,75 -1.051,39 -703,85 -601,60 -628,94

alimentos

Brasil -111,25 -11,65 -60,84 146,19 278,12 388,22

Nordeste -216,61 -96,31 -107,84 142,44 322,12 159,55

Norte / Centro-Oeste 118,95 218,11 8,87 38,86 263,32 588,01

sudeste / sul -203,64 5,08 -245,71 70,37 143,7 450,51

a Figura 2 mostra os diferenciais entre os grupos para gastos de alimentação desagregados. Quando separamos entre alimentos básicos e não-básicos, o re-sultado é robusto tanto para os alimentos básicos, quanto para os não-básicos.

Fonte: elaboração própria com base na AIBF, 2005.

Fonte: elaboração própria com base na AIBF, 2005.

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

Figura 2 - Diferenciais entre grupos de comparações sobre gastos de alimentação desagregados: Brasil e regiões, 2005

grupos tratamento e Comparação 1 tratamento e Comparação 2

Corte de elegibilidade até R$ 200,00 R$ 100,00 R$ 50,00 R$ 200,00 R$ 100,00 R$ 50,00

alimentos básicos

Brasil -13,05 28,70 -18,62 64,31 106,80 140,62

Nordeste -51,37 -16,68 -94,94 40,88 134,67 54,92

Norte / Centro-Oeste 1.89 68,74 -33,10 36,86 51,90 180,67

sudeste /sul -25,01 77,28 -15,17 30,37 105,87 254,09

alimentos

Brasil -68,24 -46,21 -22,95 64,09 129,52 186,78

Nordeste -81,06 -59,46 -23,69 64,01 146,21 53,03

Norte / Centro-Oeste 73,72 68,16 37,40 40,82 118,25 310,03

sudeste / sul -168,96 -20,44 -158,87 52,72 69,75 236,36

a Figura 3 mostra um ponto interessante, já problematizando a questão da metodologia. nela podemos ver os valores médios para proporções de gastos por renda. o coeficiente de engel – que é a proporção de gastos com ali-mentos na renda ou na despesa total – é um indicador de pobreza. e quando comparamos o gasto com alimentação, tanto nos grupos em situação de ex-trema pobreza, como nos grupos em situação de pobreza e abaixo de r$ 200, sempre a porcentagem de gasto alimentar no grupo de tratamento é maior do que qualquer um dos dois grupos de controle, usando o mesmo critério de corte de renda.

Figura 3 - Valores médios para as variáveis de proporções de gastos por renda: Brasil, 2005

Renda R$ 50,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

alimentação 0,47 0,44 0,34 0,40

Renda R$ 100,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

alimentação 0,46 0,43 0,38 0,41

Renda R$ 200,00

Variáveis tratamento Comparação 1 Comparação 2 total

alimentação 0,45 0,42 0,37 0,40

isso faz com que se levante a dúvida sobre o que é impacto e o que é dife-rencial. Deixa-se como pano de fundo que, a despeito de toda a polêmica na imprensa em relação a dados comparativos mundiais, o Programa Bolsa Família é um programa extremamente bem focalizado. Sem dois pontos no tempo é muito difícil dizer qualquer coisa sobre impacto, porque é possível que esse diferencial seja o resultado da boa focalização. nesse caso, ele seria mais um diferencial de focalização do que o impacto.

essa questão se repete em todos os resultados mostrados aqui, exatamente por-que só temos um ponto no tempo e não temos clones do grupo de tratamento.

Fonte: elaboração própria com base na AIBF, 2005.

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

diferenciais sobre variáveis antropométricasa parte antropométrica mostrou pouco diferencial. Por isso, foi feito um seminá-

rio com vários especialistas na área de nutrição. a Figura 4 apresenta os des-critivos de altura-idade (valor-z de altura por idade). Vemos que o valor-z é mais baixo nos beneficiários do Bolsa Família do que nos grupos de controle. esse resultado traz de volta a discussão se este é um resultado do impacto do Bolsa Família, ou o resultado do Bolsa Família está extremamente bem focalizado.

Por questão de espaço, não tratamos da focalização neste texto, mas sabe-se que a focalização do Bolsa Família é maior na extrema pobreza. os gestores do Bolsa Família notaram, em vários seminários realizados, que é muito mais fácil se iden-tificar uma família que é extremamente pobre, do que uma família que é pobre.

Figura 4 - Descritivos para dados antropométricos entre os grupos de comparação

Brasil

altura por idade T C1 C2

r$ 200,00

n 2305 1100 2273

valor-z -0,619 -0,450 -0,355

intervalo de confiança -0,82 a -0,41 -0,68 a -0,21 -0,58 a -0,13

ep 0,104 0,118 0,115

r$ 100,00

n 1948 858 1599

valor-z -0,677 -0,533 -0,564

intevalo de confiança -0,91 a -0,44 - -0,87 a -0,26

ep 0,119 - 0,156

a Figura 5 apresenta a porcentagem de desnutrição. aqui estamos avaliando famílias com renda per capita abaixo de r$ 100 e de r$ 200, e como veremos adiante, são maiores do que os valores observados na PnDS. É como se re-vertêssemos uma década, nas estatísticas atuais de desnutrição.

Figura 5 - Percentuais de graus de desnutrição entre os grupos de comparação

Brasil

altura por idade T C1 C2

r$ 200,00

n 2263 1077 2218

% desnutrição 13,86 15,50 13,52

intervalo de confiança 9,94 a 17,79 9,55 a 21,44 10,20 a 16,85

ep % 1,00 2,10 1,70

% extrema desnutrição 5,33 7,04 7,51

intervalo de confiança 3,37 a 7,29 2,99 a 11,08 4,11 a 10,91

ep 1,00 2,10 1,70

Fonte: elaboração própria com base na AIBF, 2005.

Fonte: elaboração própria com base na AIBF, 2005.

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

Brasil

altura por idade T C1 C2

r$ 100,00

n 1909 8,41 1563

% desnutrição 14,49 16,71 16,85

intervalo de confiança 10,23 a 18,75 - 12,14 a 21,56

ep % 2,20 - 2,40

% extrema desnutrição 5,67 7,33 8,62

intervalo de confiança 3,54 a 7,80 - 4,13 a 13,12

ep% 1,10 - 2,30

o escore de Propensão teve o resultado, aparentemente paradoxal, de que os beneficiários do Bolsa Família possuem um escore z menor do que o grupo de controle. Se interpretarmos, ingenuamente, ao pé da letra, a conclusão seria a de que o impacto do Bolsa Família foi negativo na antropometria. Como não temos dois pontos no tempo, não podemos fazer essa diferença na diferença. e, mais ainda, não temos a medida do viés de linha de base. então, o impacto negativo no aiBF pode ser uma limitação dessa pesquisa. Para enriquecer o debate, apresento a seguir alguns resultados obtidos com a PnDS da Crian-ça e da mulher, realizada em 2006 pelo ministério da Saúde.

resultados da pndsa PnDS foi realizada em 2006 pelo ministério da Saúde. no questionário, há

uma pergunta sobre o pertencimento ou não do domicílio ao Bolsa Famí-lia e, também, uma seção de antropometria e outra de segurança alimentar. Tentou-se aplicar o escore de Propensão para famílias com renda per capita abaixo de r$ 200, e testaram-se os diferenciais. aplicou-se o método do vizi-nho mais próximo. o notável é que se chegou a um diferencial, entre o grupo de tratamento e o de controle, para as crianças de 6 a 50 meses, idêntico ao valor que obtivemos no aiBF: menos 0,185 de diferença no escore z. Tirei os outliers, de acordo com a literatura da PnDS, e fiz o teste.

estes resultados são ainda preliminares, mas mostram alguma robustez. nota-se que apesar do valor da diferença ser igual, ela não é estatisticamente signi-ficante. ou seja, em 2006, o beneficiário do Bolsa Família e o não-beneficiário não seriam estatisticamente diferentes pelo teste.

Uma segunda pergunta que é feita na PnDS, que não poderia ser feita na pes-quisa aiBF, refere-se à segurança alimentar. a segurança alimentar foi medi-da na PnDS por domicílio. Foi feito o pareamento dos domicílios de tratamen-to e controle. Há um capítulo no relatório da PnDS sobre a escala brasileira de insegurança alimentar, escrito por Corrêa Segall e leon marin. o Quadro 1 apresenta uma Síntese da escala Brasileira de medida da insegurança ali-mentar. as frases têm que somar 15 e, quem obtiver este número, está no nível mais alto de insegurança alimentar, quem tiver zero está no nível mais alto de segurança alimentar.

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

Quadro 1 - Síntese da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar

peRguNtas

moradores tiveram preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida ?

alimentos acabaram antes que os moradores tivessem dinheiro para comprar mais comida ?

moradores ficaram sem dinheiro para ter uma alimentacão saudável e variada ?

moradores comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou ?

algum morador de 18 anos ou mais de idade diminuiu alguma vez a quantidade de alimentos nas refeições ou deixou de fazer alguma refeição porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador de 18 anos ou mais de idade alguma vez comeu menos porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador de 18 anos ou mais de idade alguma vez sentiu fome mas não comeu porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador de 18 anos ou mais de idade perdeu peso porque não comeu quantidade suficiente de comida devido à falta de dinheiro para comprar comida ?

algum morador de 18 anos ou mais de idade alguma vez fez apenas uma refeição ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez deixou de ter uma alimentação saudável e variada porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez não comeu quantidade suficiente de comida porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador com menos de 18 anos de idade diminuiu a quantidade de alimentos nas refeições porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez deixou de fazer uma refeição porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez sentiu fome mas não comeu porque não havia dinheiro para comprar comida ?

algum morador com menos de 18 anos de idade alguma vez ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida ?

Foi feito o teste e verificou-se que as famílias do Bolsa Família apresentam um nível mais alto de insegurança alimentar do que o do grupo de controle, e essa diferença é estatisticamente significante. mais uma vez, isso tem a ver com a boa focalização do Bolsa Família. o mesmo teste foi feito para a insegurança grave. novamente têm-se três pontos percentuais a mais de insegurança grave nos beneficiários do Bolsa Família vis-à-vis os não-beneficiários.

Como se tem apenas um ponto no tempo, se pegarmos um programa muito bem focalizado, em que a insegurança alimentar está caracterizada nesse foco, não se captará a dinâmica dessa política.

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A dimensão nutricional do Bolsa Família

conclusãoa título de conclusão, ressalta-se que o pareamento somente controla nos

atributos observáveis e, sem dois pontos no tempo, não se corrige o viés de linha de base. Tendo em mente essa limitação, temos duas possibi-lidades: primeiro, o Bolsa Família não tem aumentado a segurança ali-mentar, o que é paradoxal com os resultados apresentados pelo professor monteiro.

a segunda possibilidade é a de que o Programa Bolsa Família é bem focaliza-do – e há evidência sobre isso, e, sem uma perspectiva longitudinal, nada pode ser dito. Fica a dúvida sobre se esse diferencial negativo é a ausência de impacto, ou é a mera caracterização de um programa extremamente bem focalizado.

Costumo pensar no Bolsa Família como uma plataforma em que prefeitos ou governos estaduais deveriam acoplar as suas políticas específicas. mas há uma grande ausência relacionada à saúde e à educação nas condicionali-dades dos programas e nessa integração. a primeira infância talvez seja a questão mais central para se mostrar que saúde e educação são capital hu-mano, e que a atenção nesta etapa da vida é a única forma de reverter, defi-nitivamente, a pobreza intergeracional. Toda evidência internacional aponta que a combinação do estímulo intelectual com a nutrição adequada impacta a anomia e a violência do jovem aos 17 anos, ou seja, 15 anos depois. aqui no Brasil isso é literalmente ignorado.

É uma agenda que está colocada, não se pode culpar o Bolsa Família por isso, mas é claramente integrável, e a primeira infância é a bandeira ausente na política pública brasileira. Uma ausência lamentavelmente pouco enfatizada pela política no Brasil, e até mesmo pela mídia, visto que o foco está nos jo-vens. Talvez porque o jovem vote, a partir dos 16 anos. no entanto, a primeira infância é a condição sine qua non para qualquer desenvolvimento em capital humano e mesmo em termos nutricionais.

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serviço social do Comércio |

* Diretor de logística e gestão empresarial da Companhia nacional de abastecimen-

to (Conab). É agrônomo pela Universidade Federal de Pelotas. Foi diretor-presidente

das centrais de abastecimento do rio Grande do Sul, diretor nas áreas de produção e

abastecimento dos municípios de Belo Horizonte e de Betim/mG e assessor técnico na

equipe de abastecimento de Porto alegre. atuou como consultor na área de segurança

alimentar no Programa das nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no campo produtivo e social silvio Isopo porto*

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o Programa de aquisição de alimentos (Paa) foi criado por meio da lei nº 10.696, sancionada em 2 de julho de 2003, uma lei que tratava predo-minantemente de dívidas agrícolas. o Paa foi instituído em seu artigo 19, com a finalidade de incentivar a agricultura familiar com ações vin-culadas à aquisição de produtos agropecuários para a formação de estoques públicos e/ou sua distribuição para pessoas em situação de inse-gurança alimentar.

nasceu, portanto, com foco centrado não apenas na comercialização da produção da agricultura familiar, mas também com o enfoque nas pes-soas, no social, na segurança alimentar das parcelas mais carentes da sociedade, com uma concepção que integra política agrícola, política de abastecimento e política de assistência ali-mentar.

a aprovação do Paa representou um grande avan-ço. até então, as aquisições de produtos agríco-las por parte do governo federal eram focadas apenas no produto, sem distinguir sua origem quanto ao público ou estrato social rural. Pela primeira vez se instituía um programa público de comercialização agrícola direcionado espe-cificamente para o público do Programa nacio-nal de Fortalecimento da agricultura Familiar (Pronaf), ou seja, agricultores e agricultoras fa-miliares, assentados da reforma agrária, todos os povos e comunidades tradicionais: quilom-bolas, indígenas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, entre outros.

o marco legal e político que o Paa representa pro-piciou ao governo federal, além da destinação de recursos do orçamento Geral da União para realizar a aquisição de alimentos dos agriculto-

res familiares, que estas se fizessem sem lici-tação pública. ou seja, abrindo um precedente de excepcionalidade na lei que permitiu dar tra-tamento diferenciado a um público que – ape-sar de ser responsável pela produção da maior parte dos alimentos consumidos no país – não conseguia participar das licitações públicas. o Paa é a expressão, como política pública de co-mercialização agrícola, da máxima segundo a qual “a igualdade consiste em tratar de forma desigual os desiguais”.

este avanço só foi possível porque, em fevereiro de 2003, o Presidente lula reinstituiu o Conselho nacional de Segurança alimentar (Consea). em sua primeira reunião, com a presença do Pre-sidente da república e de diversos ministros, o Consea apresentou ao governo federal uma pau-ta que destacava a necessidade de se instituir um plano de safra específico para a agricultura familiar. o contexto político em 2003 era muito propício: o Presidente lula vinha de um proces-so de vitória eleitoral avassaladora nas urnas; no governo, havia a disposição de implementar e aprofundar mudanças bastante fortes. Coube ao Consea ser o articulador e porta-voz de am-plo processo de negociação e discussão com os movimentos sociais para a construção de políti-cas públicas voltadas para a segurança alimen-tar e nutricional, e uma dessas se configurou no Paa.

no contexto desse plano de safra estavam três ideias que não eram novas, mas que – com a onda liberalizante dos anos 1990 – haviam sido deixadas de lado: o apoio à produção (crédito e assistência técnica), o seguro agrícola e a co-mercialização.

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serviço social do Comércio |

Impactos do Programa

de Aquisição de Alimentos no campo produtivo

e social

o Programa nacional de agricultura Familiar (Pronaf), que surgiu entre 1995 e 97, foi fruto de muita mobilização social, mas ainda era muito tímido em seus números, não alcançando o amplo espectro de segmentos que compõem a agricultura familiar brasileira. o sistema de assistência técnica tinha sido desestruturado por meio da estadualização e/ou municipalização que redun-dou, em muitos casos, em sua extinção ou incapacidade operacional. o se-guro agrícola era algo também já em desuso, e a comercialização se reduzia à política de garantia de preços mínimos (existente há mais de cinquenta anos, mas direcionada às commodities, ao agronegócio, à balança comer-cial brasileira). ou seja, não havia, efetivamente, uma política específica para trabalhar com esse público que hoje se encontra enquadrado nos critérios estabelecidos no Pronaf.

Graças à pauta proposta pelo Consea, cada um desses componentes de po-lítica agrícola foi rearticulado e ganhou força. o Pronaf teve progressivo e forte incremento em seus valores, o ministério do Desenvolvimento agrário (mDa) estabeleceu uma política nacional de assistência Técnica e extensão rural (ater), o seguro agrícola retomou importância. o Paa integrou-se neste cenário como o fato novo: um programa de comercialização pensado especi-ficamente para a agricultura familiar.

a partir do Pronaf, o agricultor ou agricultora, os assentados da reforma agrá-ria, o indígena, o quilombola, entre outros, passaram a ter acesso à Declara-ção de aptidão a esse Programa (DaP), que atesta o enquadramento de perfil socioeconômico do seu portador, permitindo que este possa se inserir neste conjunto de programas e políticas.

fontesatualmente o Paa conta com três fontes: recursos do ministério do Desenvol-

vimento Social e Combate à Fome (mDS), oriundos do Fundo de Combate e erradicação da Pobreza, do mDa e do Programa nacional de alimentação escolar (Pnae/ministério da educação).

os recursos do mDS são repassados em parte para a Conab que, por sua vez, transfere para as Superintendências regionais que coordenam as ações em nível de estado, e estas promovem a relação “na ponta” com as organizações sociais. outra parte dos recursos é repassada diretamente pelo mDS para estados e municípios. os recursos do mDa são repassados diretamente à Conab.

Com recursos do Pnae, os governos estaduais e municipais podem comprar da agricultura familiar, sem licitação, os gêneros alimentícios que compõem a alimentação escolar. esta modalidade é muito importante por abrir mais um espaço de comercialização, permitindo a valorização dos agricultores familiares no contexto local. as compras por meio de licitações, mesmo que de forma descentralizada, em geral, foram pouco eficazes para articular, efetivamente, a produção local no fornecimento da alimentação escolar.

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Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no campo produtivo e social

gestão, instrumentos e resultadoso Paa conta, desde sua criação, com um grupo gestor coordenado pelo mDS,

com a participação dos ministérios do Desenvolvimento agrário, da Fazen-da, do Planejamento, de orçamento e Gestão e da agricultura, Pecuária e abastecimento, que nós, da Conab, representamos. o ministério da educa-ção passou a integrar o grupo gestor somente a partir do Decreto nº 6.447, de 7 de maio de 2008, desde que foi instituída a modalidade de aquisição de alimentos para atendimento da alimentação escolar.

o Paa opera por meio de cinco instrumentos. Dois destes (Compra Direta lo-cal e Paa-leite) são operados por prefeituras municipais e governos estadu-ais a partir de convênios com o mDS, conforme o esquema:

outros três instrumentos (Compra Direta, CPr-estoque e CPr-Doação) são operados pela Conab, mediante os repasses efetuados pelo mDS e pelo mDa. a CPr-Doação é operada exclusivamente com recursos do mDS, enquanto os demais instrumentos operam com as duas fontes:

os alimentos adquiridos por meio da CPr-Doação são destinados integralmen-te para as famílias em insegurança alimentar, ou para os programas sociais como o mesa Brasil SeSC, que também tem a finalidade de combate à fome e insegurança alimentar. Já aqueles adquiridos por meio da Compra Direta e da CPr-estoque compõem estoques públicos para doação posterior. Quando a aquisição se faz por meio da CPr-estoque e com recursos do mDa, a doa-ção só pode se dar parcialmente, mediante aprovação prévia deste ministério.

governos estaduais

prefeituras

MDsagricultores

familiares

Conab

MDs

MDa

agricultores familiares

organizados

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serviço social do Comércio |

Impactos do Programa

de Aquisição de Alimentos no campo produtivo

e social

a aquisição de alimentos para atendimento da alimentação escolar (recursos Pnae/meC) ainda está em fase de regulamentação, com expectativa de ope-racionalização ainda em 2009.

os quadros a seguir registram a aplicação de recursos por tipo de instrumento/região do país, no período de 2003 a 2007:

ano fonte / Recursos (R$) famílias fornecedoras

2003 mDS 81.541.207,29 41.341

2004 mDS 107.185.826,34 49.792

2005 mDS 112.791.660,38 51.975

2006

mDS 126.882.800,00 59.660

mDa 74.198.900,00 26.883

Total 201.071.700,00 86.543

2007

mDS 172.449.709,35 78.675

mDa 76.545.378,97 22.682

Total 248.995.088,32 101.357

total

mDS 600.841.203,36mDa 150.744.278,97

281.443 49.565

Total 751.585.482,33 331.008

Cerca de 15 milhões de pessoas em insegurança alimentar ou nutricional foram beneficiadas via CPR- Doação.

CPR - Doação - Comparativo 2003 / 2007

180.000

150.000

120.000

90.000

60.000

30.000

0

Mil R$

2003

2004

2005

2006

2007

2003

2004

2005

2006

2007

5.582,3

8.692,7

6.278,0

9.543,8

6.364,1

Norte

3.654,6

6.294,8

8.263,3

45.050,1

21.035,8

Nordeste

53,3

3.764,5

10.991,0

37.651,6

27.214,2

Sudeste

9.300,9

22.746,8

21.500,2

44.543,6

23.622,3

Sul

0,0

64,8

1.370,7

6.735,2

3.953,7

Centro-Oeste

18.591,0

41.563,6

48.403,2

143.515,3

82.190,2

Total

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Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no campo produtivo e social

Impactoso Paa representa uma estratégia de fortalecimento da agricultura familiar.

Trata-se de efetiva inclusão social, uma vez que, por meio de um mercado ins-titucional, é assegurada renda a essas famílias provedoras de alimentos no limite de até r$ 3.500 por família e por ano. a ampliação desse teto, uma das reivindicações apresentadas no ii Seminário de avaliação do Paa, ocorrido em junho de 2008, em Brasília, foi objeto de deliberação na reunião realizada pelo grupo gestor, em dezembro de 2008, passando a vigorar a partir de 2009.

o caráter estruturante do Programa é outra de suas marcas, sendo o primeiro Programa com tal característica no contexto do Fome Zero. nasceu com a finalidade de promover a articulação entre a produção e o consumo, favo-recendo a criação e a organização de mercados locais pela aproximação de dois públicos: o da agricultura familiar e o das famílias que necessitavam, ou necessitam até hoje, receber assistência alimentar.

Favorece também a integração entre programas, ações e projetos públicos ou privados, estabelecendo a alimentação como mote ou veículo para articula-ção de processos sociais mais amplos que conjuguem aspectos de educação alimentar, saúde, saneamento etc., atuando como um vetor para a dinamiza-ção das economias locais.

CPR - Estoque

50.000

40.000

30.000

20.000

10.000

0

Mil R$

2003

2004

2005

2006

2007

2003

2004

2005

2006

2007

4.887,1

4.292,1

5.530,0

5.167,2

5.151,7

Norte

600,0

13.669,0

7.380,0

8.217,5

13.131,3

Nordeste

0,0

0,0

864,4

3.592,7

2.089,9

Sudeste

0,0

13.669,0

12.321,8

27.476,5

29.265,6

Sul

0,0

0,0

15,0

242,7

313,8

C. Oeste

5.487,1

31.630,1

26.111,3

44.696,6

49.952,2

Total

Compra Direta

80.000

60.000

40.000

20.000

0

Mil R$

2003

2004

2005

2006

2007

2003

2004

2005

2006

2007

32,3

12.518,5

4.341,3

4.088,9

6.296,7

Norte

2.258,5

12.133,5

19.102,6

2.848,7

20.690,6

Nordeste

79,4

1.947,4

2.021,3

836,7

3.136,6

Sudeste

830,0

1.029,5

8.659,4

30.634,2

32.622,6

Sul

1.845,1

2.919,3

4.152,6

1.729,1

5.778,4

C. Oeste

5.045,2

30.548,2

38.277,2

40.137,6

68.524,9

Total

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Impactos do Programa

de Aquisição de Alimentos no campo produtivo

e social

o empoderamento e o fortalecimento das organizações que representam a agricultura familiar (ou da reforma agrária, ou de povos e comunidades tra-dicionais) é outro impacto do Paa. os recursos que operacionalizamos são repassados diretamente a uma associação ou a uma cooperativa, e é ela que apresenta o projeto, que faz a gestão dos recursos, que se relaciona com o público que recebe os produtos na ponta e com os demais atores envolvidos (associações de consumidores, governos municipais, mesa Brasil SeSC, ban-cos de alimentos, restaurantes populares etc.). enfim, são as associações de agricultores e agricultoras que, de diferentes e múltiplas formas, fazem com que os alimentos cheguem até a ponta. essa cadeia de responsabilidades provoca nas organizações um processo de aprimoramento de seus mecanis-mos de gestão interna e de relacionamento com os mercados para além do Paa.

esta é uma característica extremamente relevante, pois propicia que essa repre-sentação se qualifique e se estabeleça de forma efetiva, com maior e melhor capacidade de intervenção política por parte das organizações da agricultura familiar. À guisa de exemplo, a reforma agrária tem um deputado federal, enquanto os antirreformistas/bancada ruralista têm mais de cem. esta é só uma referência, para mostrar a diferenciação do grau de representação polí-tica que temos na sociedade.

nesse âmbito, alguns grupos se destacaram em termos de construção da auto-nomia. entre eles podemos citar o das mulheres e dos povos e comunidades tradicionais, que conseguiram inserção no contexto produtivo e econômico e de acesso à renda, participando de feiras locais e de outras formas de comer-cialização a partir das primeiras experiências de venda para o Paa.

Destacamos também como relevante a afirmação da capacidade de produção e abastecimento local da agricultura familiar, constantemente questionada por alguns segmentos da sociedade. o Paa deu oportunidade para que orga-nizações de agricultores, distribuídas por todas as regiões do país, demons-trassem sua capacidade de produção, gestão e cumprimento de responsa-bilidades contratuais como fornecedores de mercadorias para formação de estoques públicos ou para o atendimento de populações em situação de in-segurança alimentar.

outro fator importante refere-se à adaptabilidade dos instrumentos, desenha-dos de modo a atender às distintas realidades dos agricultores familiares, dialogando com seus sistemas produtivos. as diferentes modalidades podem atuar com qualquer público, em qualquer região. o Programa pode apoiar tanto projetos de r$ 5 mil ou r$ 8 mil quanto outros bem superiores a isso. ou seja, qualquer produção, por menor que ela seja e observadas as exigên-cias normativas, pode ser entregue ao Programa. Pode ser um pé de laranja que alguém tenha no fundo da casa, podem ser algumas dúzias de ovos das galinhas que estão lá soltas no terreiro, são produtos que podem ser adquiri-dos pelo Programa.

essa capacidade de adaptação permite que consigamos chegar a todas as regi-ões e biomas do país, permitindo ao Paa reconhecer e valorizar os produtos regionais, provocando um processo de reorganização produtiva que leva à diversificação tanto da produção quanto das linhas comerciais, permitindo a colocação no mercado de produtos que de outra forma não chegariam à ca-deia comercial. além disso, estimula os grupos envolvidos à busca de novos canais de comercialização que não exclusivamente o Paa ou outros progra-mas públicos.

a valorização dos produtos regionais remete ao resgate de características lo-cais relacionadas a hábitos alimentares ou culturais que proporcionam aces-

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Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no campo produtivo e social

so à alimentação diversificada por parte de uma população em insegurança alimentar e nutricional.

a biodiversidade agrícola é afetada positivamente pelo programa. atualmente, mais de 200 tipos de produtos diferentes são adquiridos e distribuídos pelo Paa, o que inclui desde sementes crioulas, até o baru no Cerrado, produtos da amazônia, o pescado em diferentes regiões, o leite ou a carne de cabra, o mel, as castanhas.

esse conjunto de características determina o aumento da autoestima tanto de fornecedores quanto de consumidores envolvidos, o que é outro aspecto fundamental proporcionado pelo Paa. em algumas regiões e comunidades, ainda observamos certo desmerecimento da atividade agrícola. as pessoas têm vergonha de se assumirem como agricultoras ou agricultores, são mui-tas vezes tratados de forma pejorativa: o jeca, o cara da roça. o fato de o Paa valorizar a produção dessa gente contribui para o resgate de sua cidadania; permite revelar essa atividade como uma das mais importantes em qualquer sociedade, porque quem produz alimentos tem a prerrogativa de nos manter vivos. São exatamente essas as pessoas que nos abastecem.

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serviço social do Comércio |

Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento porfírio silva de Almeida*

* Gerente do ambiente do Pronaf e Programas de

Crédito Fundiário, ligado à área de agricultura Familiar,

microfinanças rurais e Crédito Fundiário do Banco

do nordeste do Brasil. Bacharel em administração de

empresas pela Universidade estadual do Ceará (Uece)

e em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

especialista em administração Financeira pela

Unifor-BnB-Bolsa de Valores.

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

o nordeste brasileiro é a região que, em nú-meros absolutos, tem o maior número de po-bres do país. É por onde se estende a região do Semiárido brasileiro – área de atuação do Banco do nordeste – junto com o norte de mi-nas Gerais e do espírito Santo. a agricultura familiar no nordeste abrange 2 milhões e 50 mil estabelecimentos familiares, praticamente a metade (49,7%) do total de 4 milhões e 100 mil estabelecimentos familiares no Brasil. re-presenta 88,3% dos estabelecimentos rurais nordestinos e 82,9% da ocupação de mão de obra no campo. Segundo dados da organiza-ção das nações Unidas para a agricultura e alimentação (Fao), 43% do valor bruto total da produção agropecuária do nordeste advém da agricultura familiar. nacionalmente, a agricul-tura familiar é responsável pela produção dos principais alimentos consumidos pela popula-ção: 84% da mandioca; 67% do feijão; 54% do leite; 49% do milho; 40% das aves e ovos e 58% da carne suína.

Vimos ao longo de todo o Seminário um contexto mostrando que o mundo não tem conseguido melhorar, em termos de performance, o com-bate à pobreza e o combate à fome, enquanto o Brasil tem se diferenciado nesse contexto e, certamente, isso é fruto de um conjunto de ações desenvolvidas pelos governos, principal-mente pelo atual governo lula, que tem como foco exatamente o combate à pobreza e à fome. Uma dessas ações é o desenvolvimento de pro-gramas voltados para a agricultura familiar, em que se destaca o Programa nacional de Forta-

lecimento da agricultura Familiar (Pronaf). em sua área de atuação, o Pronaf é operacionaliza-do principalmente pelo Banco do nordeste, que tem um papel importante no desenvolvimento da agricultura familiar na região nordeste.

Faremos uma abordagem em três fases distintas, sendo a primeira com enfoque nas principais políticas de apoio à agricultura familiar adota-das pelo Banco do nordeste em sua área de atuação. a segunda retrata as ações implemen-tadas pelo Banco e seus instrumentos diferen-ciados. a terceira aborda o Programa agroami-go, desenvolvido pelo Banco do nordeste, que tem como pano de fundo trabalhar o crédito de forma acompanhada e orientada.

políticas do Banco do nordeste para a agricultura familiaras políticas do Banco do nordeste para a agricul-

tura familiar buscam a melhoria da qualidade de vida do homem do campo, o incremento da geração de emprego e renda, o incentivo às ati-vidades não-agrícolas no meio rural e a inclusão social. apesar de atender aos diversos setores da economia, com financiamentos aos setores produtivos, seja na área industrial, comercial e de serviços, além de apoio à infraestrutura, o BnB é mais reconhecido pela sua atuação no setor rural. nesse setor, desenvolve uma política de atendimento nos próprios municípios, com base no que denominou de agência itinerante, em que, de forma sistemática e regular, desloca

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serviço social do Comércio |

Agricultura familiar: novas

estratégias de financiamento

grupos de colaboradores das unidades para prestar atendimento nas sedes dos municípios onde não há agência bancária.

outra ação diferenciada adotada pelo Banco é o fortalecimento das parcerias com as empresas estaduais de assistências Técnicas (emater), bem como com as Secretarias municipais de agricultura, com os Sindicatos de Traba-lhadores rurais, além de oscips e onGs, o que propicia aumento de sua capilaridade e presença local. o objetivo principal dessas parcerias é prestar o melhor atendimento ao agente produtivo e, ainda, oferecer melhores condi-ções de acessibilidade ao crédito.

no âmbito da agricultura familiar, e com apoio dos parceiros, as principais ati-vidades desenvolvidas pelo Banco do nordeste são:

1. apoiar a estruturação das cadeias produtivas: com destaque para o importante papel da Conab, principalmente em relação à viabilização da comercialização. ademais, o Banco tem um grupo de funcionários denominados agentes de Desenvolvimento que se especializam nesse trabalho;

2. estimular atividades não-agrícolas no meio rural;

3. estimular atividades de maior valor agregado dentro do contexto de agri-cultura familiar;

4. incentivar a utilização de tecnologia de convivência com a seca e com-bate à desertificação;

5. implementar o microcrédito produtivo e orientado.

Dentro dessas atividades, destacam-se principalmente o Pronaf, e o agroami-go, que é um programa de implementação de microcrédito produtivo e orien-tado.

programa nacional de fortalecimento da Agricultura familiar (pronaf )o Pronaf é um programa de âmbito nacional. no nordeste é operacionalizado

principalmente pelo Banco do nordeste. Como gestor do Fundo Constitu-cional de Financiamento do nordeste, o BnB utiliza os recursos do referido fundo como principal funding para atendimento desse público.

os principais programas do Pronaf são: o Pronaf a, voltado para os assenta-dos da reforma agrária; o Pronaf B, que atende agricultores familiares com renda anual de até r$ 5 mil1; o Pronaf a/C, voltado para o custeio do públi-co do Pronaf a; o Pronaf Comum, que, a partir do Plano Safra 2008/2009, encampou os Pronaf C, D e e e é destinado às famílias de agricultores com renda bruta anual oriunda predominantemente da agricultura familiar que varia de r$ 5 mil/ano a r$ 110 mil/ ano; o Pronaf Semiárido, o Pronaf mulher, o Pronaf Jovem, o Pronaf Floresta, o Pronaf agroindústria, o Pronaf agrinf e o Pronaf ecologia. não são programas exclusivos do Banco, são programas operacionalizados por todos os bancos oficiais existentes no país. Para a operacionalização do Pronaf, o Banco utiliza alguns instrumen-tos diferenciados, que serão apresentados a seguir.

1 Se considerar que 40% dessa renda se transformam em renda real e líquida, isso deve gerar em torno de r$ 2 mil de renda por ano, pouco mais de r$ 100 de renda líquida mensal.

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| seminário Nacional Mesa Brasil sesC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

Instrumentos diferenciados para operacionalização do pronafDestaca-se entre os instrumentos diferenciados a criação de uma área espe-

cífica de gerenciamento do Pronaf na direção geral. em cada estado há um coordenador estadual do Pronaf. Cada agência tem um gerente de suporte a negócios do Pronaf. o Banco tem 220 agentes de Desenvolvimento que atuam em todas as suas agências, através do Projeto de Desenvolvimento Territorial, nas atividades específicas das vocações locais. existe um trabalho muito forte de ação local realizado pelos agentes de Desenvolvimento.

existe também um trabalho chamado agências itinerantes, terminologia do Banco. o Banco do nordeste tem uma rede de 184 agências, 161 das quais operacionalizam o Pronaf em todo o nordeste, norte de minas Gerais e no Vale do Jequitinhonha. É uma rede de agências muito pequena. as agências itinerantes existem para viabilizarmos crédito e evitar que o agente produtivo se desloque de lugares mais longínquos para a agência do Banco, superlo-tando-a. Vamos às comunidades, aos municípios realizando esse modelo de agência itinerante. nas agências itinerantes se realiza no município todo tipo de atendimento: cadastro, proposta de cliente, contratos, exceto libera-ção de dinheiro propriamente dito.

mas o grande diferencial tem sido o agroamigo, programa de microcrédito ru-ral orientado e acompanhado, desenvolvido em parceria com o ministério do Desenvolvimento agrário (mDa), a organização da Sociedade Civil de inte-resse Público (oscip) e com o instituto nordeste Cidadania (inec), que tem propiciado atendimento às classes menos favorecidas do meio rural notada-mente o público do Pronaf B.

resultados alcançadoso Gráfico 1 apresenta a participação do Banco do nordeste na região nordes-

te. embora tenha uma pequena rede de agências, o Banco tem participação de 78% da quantidade de operações rurais realizadas e 62% do volume de crédito aplicado na região nordeste. o Banco tem r$ 4,5 bilhões aplicados no âmbito do Pronaf. os demais bancos que atuam na região têm em torno de r$ 2,2 bilhões apenas, aplicados com crédito rural. isso mostra a impor-tância do papel do Banco, principalmente voltado para a agricultura familiar na região nordeste.

Gráfico 1 - Participação do Banco do Nordeste na Região Nordeste: operações

2003 2004 2005 2006 2007

Qtde Valor

49,9%

78,0%

62,1%65,1%

75,0%

62,2%

67,2%

61,5%

63,4%

46,0%

Ministério do Desenvolvimento Agrário

agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

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serviço social do Comércio |

Agricultura familiar: novas

estratégias de financiamento

o Quadro 1 apresenta a carteira ativa do Pronaf separada por Programa, com 4,5 milhões de aplicações. o Banco tem 1 milhão e 420 mil clientes bene-ficiados com crédito. É uma parcela bastante significativa de operações. o crédito é bastante pulverizado, são em torno de r$ 3 mil a r$ 4 mil por operação. e há uma grande quantidade de clientes, quase 900 mil, com operações do Pronaf B, que hoje é abrangido pelo Programa agroamigo.

Quadro 1 - Carteira ativa do Pronaf: Banco do Nordeste, agosto de 2008

grupo/ linha Qtde. saldo R$ Mil

Pronaf a 125.463 1.106.588

Pronaf a/C 16.360 50.320

Pronaf B 894.027 1.095.288

Pronaf C 220.963 1.071.788

Pronaf D 115.431 1.019.549

Pronaf e 686 16.186

agroindustria 208 2.020

Floresta 995 3.580

Jovem 799 4.203

mulher 16.850 90.543

Semiárido 23.170 100.880

outros 4.548 26.271

total 1.419.500 4.587.216,50

o Gráfico 2 mostra a evolução das operações. em 2002, o Banco do nordes-te contratou apenas r$ 207 milhões do Pronaf; a partir de 2003, houve um incremento significativo, de tal forma que chegamos a um pico em 2006, aplicando num único ano no Pronaf r$ 1,5 bilhões; em 2007, r$ 1,2 bilhões, e a nossa meta é aplicar em 2008 r$ 1,3 bilhões. atualmente, até agosto, aplicamos r$ 476 milhões.

Gráfico 2 - Evolução dos valores contratados 2002-8 (em R$ milhões)

Banco do Nordeste

2003 2004 2005 2006 2007

319,4

1.330,0

476,6

1.183,5

1.479,1

695,8

1.051,1

207,2

2008(jan-ago)

2002

Banco do Nordeste

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Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

a meta para o Banco é passar de r$ 1 bilhão em financiamentos em 2008, po-rém temos enfrentado dificuldades para o cumprimento da meta em função de entraves na formalização de negócios do Pronaf a, cujo processo se inicia fora do Banco, seja no incra ou nas Unidades Técnicas estaduais (UTes), que não têm conseguido dar encaminhamento às demandas para o Banco do nordeste.

programa Agroamigoo Programa agroamigo foi criado em 2005 e está ainda em fase de expansão. É

um Programa operacionalizado pelo instituto nordeste de Cidadania2 por in-termédio do Banco do nordeste e em parceria com o ministério do Desenvol-vimento agrário. o Programa consiste na operacionalização do microcrédito rural produtivo e orientado, e é destinado aos agricultores familiares de renda mais baixa. o Programa agroamigo tem como público-alvo agricultores(as) que se enquadram no Pronaf B, com renda bruta anual de até r$ 5 mil. Dentre os principais objetivos do agroamigo, está a melhoria da qualidade de vida dos(as) agricultores(as) por meio da autossustentabilidade, ou seja, proporciona-se ao agente produtivo que está em situação de pobreza abso-luta condições para que possa gerar emprego para ele e para a sua família e, dessa forma, gerar renda. além disso, busca-se a inclusão social e a ma-nutenção do homem no campo, evitando a migração para as periferias das grandes cidades e até para a marginalidade.

metodologiaa metodologia é de crédito orientado e acompanhado. esta metodologia con-

siste em atender ao cliente na própria comunidade por meio de assessores de Crédito. o cliente não é atendido na agência do Banco, nem na sede do município, mas na localidade onde reside. os assessores de Crédito são to-dos técnicos agrícolas com formação de segundo grau e por isso têm co-nhecimento técnico da atividade rural, acompanham e orientam o crédito. o papel do assessor é atuar como agente local de microcrédito rural; realizar levantamento de dados cadastrais dos clientes; elaborar propostas simplifi-cadas de crédito e orientar e acompanhar os empreendimentos financiados. Cada assessor de Crédito deve realizar ao longo de dois anos a meta de 1.200 operações de crédito e, após esse período, fica responsável apenas pela re-novação do crédito com os clientes. o valor máximo de cada operação é de r$ 1.500; a média dessas operações é de r$ 1.300 a r$ 1.400.

o Programa é desenvolvido em parceria com o ministério do Desenvolvimento agrário (que tem feito a aquisição de motocicletas para os assessores pode-rem se deslocar) e com as emater em cada estado, essencialmente para a viabilização de assistência técnica aos projetos, não só no âmbito do Pronaf B, mas também no âmbito de todo o Pronaf.

2 Foi fundado em 1993 durante a Campanha nacional de Combate à Fome, à miséria e pela Vida, por iniciativa de funcionários do Banco do nordeste, os quais, de forma voluntária, contribuem financeiramente e participam das suas atividades. Surgiu em um contexto em que se fazia necessário dar resposta às graves questões socioeconômicas pelas quais passavam significativos contingentes da população de baixa renda do estado do Ceará. Foi oficializado em 27/02/1996 e, em 29/09/2003 obteve o Certificado de organização da Sociedade Civil de interesse Público (oscip). (Fonte: http://www.nordestecidadania.org.br)

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agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

resultadoso Quadro 2 mostra a estrutura do Programa. atuamos com o agroamigo em

161 agências, com 523 assessores de Crédito que atendem hoje a 1.132 mu-nicípios. a unidade da federação com maior atuação é a Bahia, com 30 agên-cias, 89 assessores e 181 municípios. a meta é ao final de 2009 ter 800 asses-sores de Crédito e atuar nos 1.985 municípios da área de ação do Banco.

Quadro 2 - Estrutura do Programa Agroamigo

uf agências asseessores Municípios

al 9 32 62

Ba 30 89 181

Ce 24 72 149

eS 1 2 6

ma 14 58 109

mG 11 44 65

PB 14 41 121

Pe 16 54 121

Pi 16 56 140

rn 12 37 102

Se 14 38 76

161 523 1.132

o Gráfico 3 mostra as operações por setor. Há uma predominância no nordeste: uma vocação natural para a pecuária, 74% do crédito; 11% da agricultura; 13% de serviços; 2% para extrativismo.

Banco do Nordeste

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Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

Gráfico 3 - Distribuição das operações por setor, agosto 2008

o Gráfico 4 apresenta as operações por gênero: 56% do crédito são destinados aos homens e 46% às mulheres, mostrando a importância do papel da mu-lher propiciando complementação de renda para a atividade.

Gráfico 4 - Distribuição das operações por gênero, agosto 2008

os Gráficos 5 e 6 apresentam, respectivamente, a evolução do valor das opera-ções e contratações acumuladas por ano, de 2005 a 2008. Começamos con-tratando, no ano de 2005, 18 mil operações e hoje estamos com 440 mil ope-rações contratadas, do Programa agroamigo. as contratações acumuladas, em termos de volume, estão em r$ 573 milhões, já aplicados no Programa.

Pecuária74%

Extrativismo2%

Agricultura11%

Serviços13%

Homem56%

Mulher44%

Banco do Nordeste

Banco do Nordeste

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Agricultura familiar: novas

estratégias de financiamento

Gráfico 5 - Evolução das operações acumuladas por ano (em R$ mil), agosto 2008

Gráfico 6 - Evolução das contratações acumuladas por ano (em R$ mil), agosto 2008

.

conclusãoa apresentação teve como principal objetivo descrever as políticas de desenvol-

vimento e financiamento da agricultura familiar operacionalizadas pelo Ban-co do nordeste, com foco no Pronaf e no Programa agroamigo.

Vimos ao longo do Seminário, em todas as apresentações, o papel e a impor-tância da agricultura familiar no Brasil para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. isto é, na redução dos níveis de pobreza, na inclusão social, na redução da fome no Brasil. esse processo não é fruto de uma política social, mas de um conjunto de ações de políticas de natureza social desenvolvidas pelo governo, inclusive de natureza creditícia. Cabe citar as ações do Pronaf, o Programa de Bolsa renda, o Programa de Seguro Safra, Garantia Safra, o Seguro Defeso e as ações desenvolvidas pela Conab. Como Programa local, cito o Fecop, no Ceará, e o Programa de Combate à Pobreza rural. Portanto, o conjunto dessas ações desenvolvidas pela ação governamental tem propi-

2005 2006 2007

553.522

168.004

427.518

17.453

2008

2005 2006 2007

440.657

156.530

349.266

18.008

2008

Banco do Nordeste

Banco do Nordeste

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Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento

ciado ao Brasil resultados diferenciados, em relação à maioria dos países de grande contingente de pobres.

a região nordeste é aquela com maior número de estabelecimentos de agri-cultura familiar. nesse contexto, o Banco do nordeste procura exercer um trabalho para a promoção do desenvolvimento da região e da integração de toda a cadeia produtiva, via acesso ao crédito e financiamento bancário. o trabalho desenvolvido tem foco social voltado para o desenvolvimento da ci-dadania e da autossustentabilidade. as famílias beneficiárias do Pronaf, es-pecialmente do grupo B, geralmente vivem em situação de pobreza extrema e são atendidas pelo Banco, principalmente pelo Programa agroamigo. nosso sonho é que esta medologia de trabalho, o agroamigo, seja estendida em futuro próximo a todos os demais grupos do Pronaf.

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O papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro Jorio dauster*

* Presidente do Conselho de administração da Brasil ecodiesel, graduado

em Política internacional pelo Curso de Preparação da Carreira Diplomática –

instituto rio Branco. além de ocupar diversos cargos na diplomacia brasileira

a partir de 1961, foi Presidente do instituto Brasileiro do Café de 1987 a 1990,

embaixador extraordinário para a negociação da dívida externa de 1990 a

1991 e embaixador do Brasil junto à União europeia de 1991 a 1998. exerceu

também o cargo de Presidente executivo da Companhia Vale do rio Doce de

1999 a 2001.

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o trinômio segurança energética, meio ambiente e desenvolvimento social expressa a essência do Programa de Biodiesel no Brasil. a rigor, po-rém, os dois primeiros, segurança energética e meio ambiente, se aplicam a todos os biocom-bustíveis, aí incluído o etanol.

Para deixar claro, o etanol ou álcool é aquilo que substitui a gasolina; e o biodiesel, o que subs-titui o diesel. no conjunto, eles representam todos os combustíveis líquidos absolutamente essenciais para que o planeta possa girar. infe-lizmente somos hoje uma civilização viciada em combustíveis fósseis e sabemos todos que os combustíveis fósseis são, por definição, finitos. Haverá um momento, não se sabe se daqui a trinta, quarenta ou cinquenta anos, em que as reservas de petróleo e de gás estarão extintas. as de carvão, outro grande combustível fóssil, durarão por mais tempo, mas um dia também acabarão. e, apesar disso, o consumo mundial aumentava rapidamente antes de entrarmos nesta recessão recentíssima como se não fosse urgente encarar a necessidade de substituição desses combustíveis fósseis por outras formas de energia.

evidentemente, as formas mais valiosas são aque-las renováveis, como a energia solar e a energia eólica, mas é evidente, por exemplo, que a ener-gia eólica não pode ser transformada em com-bustível líquido para fazer circular os bilhões de automóveis, ônibus, trens, aviões que temos por aí. a própria indústria, para poder renovar essa imensa frota, levará várias décadas.

Portanto, estamos condenados a viver por muito tempo com motores a diesel e a gasolina. não há dúvida de que já existem baterias solares,

mas sua eficiência ainda é pequena e, por isso, são utilizadas somente para demonstrar seu potencial tecnológico, não sendo provável sua aplicação corriqueira no futuro previsível. ou-tra expectativa é o hidrogênio, mas, nesse caso, também não há esperança de que possa ser aproveitado para fins de uso em automóveis nos próximos vinte ou trinta anos.

nessas condições, impôs-se a necessidade de se encontrarem combustíveis líquidos renováveis que pudessem substituir a gasolina e o diesel, não totalmente porque seriam exigidos volumes astronômicos, mas, pelo menos, começando a reduzir a dependência absoluta que hoje existe com respeito a esses materiais finitos.

Tal necessidade é reforçada pelo fato bem conhe-cido de que muitas das fontes atuais de com-bustíveis fósseis são politicamente instáveis, o que termina por se refletir na elevação dos pre-ços do petróleo e do gás. Por sorte, o Brasil já havia mostrado o caminho com a experiência extraordinária do álcool que, iniciada há trinta anos, comprovava a possibilidade de implemen-tar tal substituição de forma significativa.

no caso do biodiesel, a prioridade coube à alema-nha, que há cerca de dez anos passou a aprovei-tar para fins energéticos os excedentes da colza (canola) que costumava ser utilizada apenas para fins alimentícios. mas vale lembrar que o primeiro motor a diesel (que é o sobrenome de seu inventor, o engenheiro alemão rudolf Diesel) foi mostrado em Paris, numa exposição interna-cional de 1900, utilizando o óleo de amendoim.

Portanto, em matéria de segurança energética, é evidente que se impõe a substituição dos com-bustíveis fósseis e que o etanol e o biodiesel são

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O papel do biodiesel no

desenvolvimento brasileiro

hoje as únicas alternativas “limpas” economica-mente viáveis.

o outro imperativo planetário reside na neces-sidade de que se reduzam os gases que estão conduzindo ao aquecimento global. Conquanto se possa discutir qual o impacto preciso dos ga-ses liberados pelos combustíveis fósseis usados nos motores, não há a menor dúvida de que o dióxido de carbono e outras emissões são pro-fundamente prejudiciais à saúde de todos e têm efeitos macroclimáticos que já são sentidos em todo o mundo.

Se essas duas razões são mais do que suficien-tes para justificar a produção crescente de bio-diesel, no caso do Brasil há um terceiro fator: o desenvolvimento social, do qual cuidarei mais adiante.

Como o biodiesel ainda não é tão conhecido quan-to o álcool, talvez seja interessante lembrar que ele deriva de uma reação química em que, na temperatura adequada, o óleo vegetal, ou a gor-dura animal, é misturado com o etanol ou com o metanol na presença de um catalisador. Trata-se de uma operação relativamente simples do pon-to de vista tecnológico cujo produto final tem a vantagem adicional de ser biodegradável.

o biodiesel pode ser produzido a partir de qualquer óleo vegetal, tal como soja, girassol, algodão, colza, mamona, pinhão manso etc. enquanto que, no caso do etanol, o número de matérias-primas atualmente é muito reduzido, limitando-se em essência à cana-de-açúcar, beterraba e milho.

o biodiesel apresenta várias características mui-to positivas. em primeiro lugar, é um perfeito substituto para o diesel mineral, pois não exige adaptação dos motores (ao contrário do que ocorre no caso do álcool, o que levou à bela in-venção do motor flexfuel). além disso, reduz as emissões de gases que causam o efeito estufa de forma muito sensível. em matéria de dióxido de carbono há uma redução de cerca de 80%, e não contém enxofre algum.

no Brasil, o Programa de Biodiesel foi instituído pela lei n° 11.097, de 2005. É, portanto, um Pro-grama muito recente, que nasceu em 2002 nos gabinetes da ministra Dilma roussef, quando ela era ministra de minas e energia. o marco regulatório brasileiro teve caráter pioneiro no mundo ao estabelecer a mistura obrigatória de biodiesel ao diesel mineral, medida crescente-mente copiada por outros países. este foi um passo da maior relevância por fazer com que

o uso do biodiesel deixasse de corresponder a uma escolha das distribuidoras ou dos consu-midores, passando a ser uma exigência legal.

os 2% obrigatórios entraram em vigor em janeiro de 2008 e, como já havia uma capacidade pro-dutiva instalada muito grande, o governo ele-vou para 3% a mistura a partir de julho do ano em curso. esses 3% continuarão vigorando até 2013, quando passarão para 5%, a menos que o governo antecipe a utilização deste percentual, como a lei faculta. Temos assim, já agora, uma demanda obrigatória de cerca de 1,3 bilhões de litros por ano, volume significativo que tende a crescer rapidamente juntamente com a econo-mia brasileira.

examinemos agora a questão dos biocombustíveis e o possível conflito energia versus alimento.

Quem quiser produzir biodiesel no mundo, hoje, tem poucas alternativas. Se estiver na ásia, usa o óleo de palma (ou dendê); se estiver na euro-pa, usa a colza; se estiver nos estados Unidos ou aqui no Brasil, usa o óleo de soja. isso por-que são esses os óleos que já contam com uma cadeia perfeitamente estruturada, há décadas, que comercializam volumes enormes e têm to-das as características das commodities, dispon-do inclusive de mercados de futuros.

mas será que o óleo de soja é a melhor opção para quem quer fazer biodiesel? Claramente, não, pois seu grão só contém cerca de 18% de óleo. Desse modo, para cada tonelada de óleo, o produtor precisará vender quatro toneladas de farelo, que constitui de fato a razão de ser da soja pois é nele que está presente a proteína. e a proteína é absolutamente essencial para as ra-ções animais. Quando comemos carne, a rigor, estamos comendo soja empacotada. Quer dizer, a soja foi transformada em farelo, que, ao ser misturado com milho, gerou as rações que por fim alimentaram o gado, os porcos e os frangos. obviamente, existe também o consumo direto de soja, porém em volume ínfimo quando com-parado ao que é dirigido à produção de todos os tipos de carne.

Com o girassol, a proporção é melhor, já existem 40, 45% de óleo no grão. Portanto, para quem está pensando no óleo, essa relação é mais favorável, sem dizer que o farelo do girassol é também uma excelente fonte de proteína. mas, afinal de contas, não há dúvida de que, ao se fazer biodiesel usando óleo dessas duas plan-tas, cria-se uma competição com seu uso para fins alimentícios. isso só pode ser resolvido pelo

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O papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro

aumento da produção ou dos preços e, como a produção não pode dar saltos, o emprego de produtos agrícolas para produzir biocombustí-veis gerou nos últimos anos algum impacto nos preços.

este efeito foi mais sensível no caso do milho, uti-lizado nos estados Unidos para produzir etanol, mas também pôde ser observado no caso da soja, da palma e da colza usadas para fabricar biodiesel. no entanto, para a elevação no preço dos alimentos contribuíram muitos outros fa-tores – tais como a disparada das cotações de petróleo, o encarecimento dos fertilizantes, a es-peculação financeira nos mercados de futuros, fenômenos climáticos desfavoráveis etc. – que frequentemente não recebiam a atenção neces-sária dos analistas.

Há, portanto, grandes distorções nesse debate, inclusive devido à atuação de onGs bem in-tencionadas que na realidade estão sendo ma-nipuladas por grandes lobbies. Quando se vai ver de perto, quem monta as campanhas con-tra o etanol e o biodiesel são grandes petrolei-ras e as principais multinacionais do setor de alimentos, as quais conseguem até fazer com que altas autoridades da onU cometam a tolice de advogar a cessação da produção de biocom-bustíveis. existe aqui um jogo pesado e o Brasil deve se preparar para lutar para defender seus interesses nos foros internacionais, embora se-jam muito vultosos os recursos de que dispõem nossos adversários.

Seja como for, no caso do biodiesel existe uma saída não conflitiva para o embate energia x alimento, a qual é dada pela mamona e pelo pinhão manso. a mamona, bem conhecida de todos os brasileiros, tem uma alta porcentagem de óleo, 45 a 50%, e o pinhão manso de cerca de 40%, mas o mais importante é que ambas são plantas tóxicas, não podendo ser consumidas pelos seres humanos e pelos animais.

o pinhão manso é um arbusto grande ou uma ár-vore pequena, como queiram, que leva quatro anos para atingir a maturidade e depois produz durante trinta, quarenta anos. Já houve tempo em que lisboa era iluminada com óleo de pi-nhão manso, mas, com a chegada da eletrici-dade, sua produção em larga escala foi aban-donada e, hoje, o pinhão manso precisa ser redomesticado. não há experiência de grandes plantações e, entre as maiores que estão em evolução, incluem-se as pertencentes à empre-sa cujo Conselho de administração eu presido. ainda temos de confirmar seu potencial efetivo,

porém é importante ter em mente que existem alternativas para a competição entre energia e alimentos.

no caso da mamona e do pinhão manso há um elemento adicional de grande relevância: am-bas são plantas rústicas que convivem com so-los pobres e com um regime pluviométrico irre-gular, razão pela qual se adaptam perfeitamente ao Semiagreste brasileiro, onde vivem milhões e milhões de pessoas que só agora estão obten-do uma pequena melhoria de vida, graças em particular ao Bolsa Família. Porém, como esse é um Programa de distribuição direta de renda, precisamos encontrar uma saída digna para to-dos esses brasileiros em termos de emprego, de trabalho produtivo. e é óbvio que a produção de mamona e de pinhão manso, em áreas que não permitem plantações das culturas intensivas, pode representar a redenção econômica dessa importante parcela de nossa população.

este, portanto, é o terceiro elemento do trinômio mostrado no início da apresentação, qual seja, a inclusão social que o biodiesel pode proporcio-nar no Brasil.

Voltando à questão do meio ambiente, aqui se pode observar o balanço energético das principais matérias-primas utilizadas na produção de bio-combustíveis, entendido como a relação entre a energia renovável obtida e o quanto se gasta de combustível fóssil no processo produtivo.

no que tange ao etanol, a cada dia fica mais claro que o uso do milho nos estados Unidos é um ab-surdo do ponto de vista econômico e ambiental porque, sendo o milho essencial na alimentação humana e na fabricação de rações animais, se obtém apenas 1,3 unidades de etanol para cada unidade de fóssil usada na sua produção. Uma relação assim tão pífia só se sustenta mediante o emprego de imensos subsídios. Já a cana-de-açúcar no Brasil é totalmente diferente. Com uma unidade de combustível fóssil se consegue de oito a nove unidades de etanol, o que justifica sua pro-dução em termos ambientais e econômicos.

no caso do biodiesel, a soja nos estados Unidos também revela uma relação muito baixa, assim como a colza e o girassol.

a Brasil ecodiesel encomendou um estudo a uma empresa que tem sede em londres, a fim de calcular o balanço energético do biodiesel fabri-cado a partir da mamona produzida pela agri-cultura familiar na região de iraquara, na Bahia. Verificou-se um valor notável, de 10,5 superior ao do próprio etanol de cana-de-açúcar.

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O papel do biodiesel no

desenvolvimento brasileiro

no preparo do biodiesel, a Brasil ecodiesel hoje usa o metanol (que provém do gás e, portanto, tem origem fóssil), que tecnicamente pode ser substituído pelo etanol derivado da cana-de-açúcar. Se fosse feita tal substituição, o ba-lanço energético daquele biodiesel seria realmente extraordinário: para cada unidade de combustível fóssil, teríamos então quarenta unidades de combus-tível renovável a partir da mamona plantada no semiárido brasileiro.

repetindo, a produção de biodiesel no Brasil tem um enorme potencial de in-clusão social, com a vantagem adicional de que os pequenos agricultores podem plantar oleaginosas que, por não serem comestíveis, estão imunes à competição de preços com as plantas de uso alimentar.

infelizmente, foi aí que o Programa de Biodiesel até agora ficou a dever pois o governo não prestou o apoio necessário para a implantação em larga escala das novas cadeias de produção. a própria embrapa só recentemente passou a estudar essas oleaginosas sob o novo prisma do biocombustível. existem algumas palmeiras brasileiras que, aparentemente, têm um potencial excep-cional para produzir óleo, mas até agora não há estudos sérios sobre elas. a mamona tinha sido abandonada, não se registra nenhum esforço significati-vo para criar sementes de alta produtividade. no tocante ao pinhão manso o atraso é ainda maior.

além disso, a maior parte dos agricultores familiares no nordeste não se or-ganizou sob a forma de cooperativas e não tem acesso aos programas do Pronaf, carecendo assim de capital e de assistência técnica. no entanto, den-tro do governo há muita gente consciente dessas deficiências e por isso tenho a esperança de que em breve serão adotadas as medidas corretivas para que o biodiesel se firme, no Brasil e no mundo, como um produto que substitui os combustíveis fósseis: é bom para o meio ambiente, não compete necessaria-mente com os alimentos e, acima de tudo, conduz à inclusão social.

Chamei atenção para o fato de que a minha preocupação maior era com o plan-tio de mamona e de pinhão manso nas áreas do Semiagreste brasileiro. ali o que existe, de fato, é uma produção de subsistência. esse tipo de produção, que vem sendo feita há muitos e muitos anos, é altamente prejudicial ao solo. o que faz o pequeno produtor em certas regiões do nordeste? ele planta um pouquinho de feijão, um pouquinho de milho, às vezes tem uma vaca, umas cabrinhas, e depois de dois anos ali, inclusive porque o terreno é pisoteado pelos animais, tem de ir para outro cantinho de sua pequena propriedade de poucos hectares. Com isso vai se deteriorando ainda mais o que já era pobre.

Trata-se, portanto, de uma situação dramática. São minipropriedades e não existe a cultura da cooperativa. mas nada impede que o pequeno agricultor plante alguma mamona e alguns pés de pinhão manso sem por isso abando-nar a produção do alimento de que necessita. nas áreas onde a agricultura familiar já é mais desenvolvida, no rio Grande do Sul, em Santa Catarina, aí são decisões que o pequeno agricultor toma a partir de um cálculo econômi-co que aquele agricultor do nordeste não consegue ainda fazer.

Portanto, não vejo esse risco. Pode ser diferente quando se utilizam grandes áreas para plantio, por exemplo, de eucalipto. Pode-se reduzir a disponibili-dade de terra para a agricultura, mas, muitas vezes, nem é o caso porque as terras onde se vai plantar o eucalipto só seriam apropriadas para a agricul-tura caso se fizesse um investimento muito pesado. eu acho que o risco é a generalidade desse tipo de afirmação, de que a produção de alimentos no Brasil está ameaçada por todos os lados. É necessário estudar a questão em cada região, com relação a cada cultura.

É preciso entender, inicialmente, que a produção do biodiesel a partir de qual-quer óleo vegetal gera subprodutos muito valiosos: a glicerina e os ácidos

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O papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro

graxos. Há mercado para eles, pode-se até exportar. no caso dos óleos de soja e de girassol, por exemplo, o farelo é usado para alimentação de gado ou alimentação humana por ser muito rico em proteína. no caso do pinhão manso e da mamona, por se tratarem de plantas tóxicas, o que resta após a extração do óleo não serve para a alimentação, mas pode ser usado no prepa-ro do solo. o ex-ministro da agricultura, roberto rodrigues, um grande plan-tador de café, usa a mamona nas suas terras, inclusive porque ela age como defensivo agrícola. Quando não há mercado próximo para esse material, ele é usado na própria fábrica de biodiesel para substituir o óleo combustível, ten-do assim um efeito ambiental muito positivo ao substituir produtos fósseis.

nós nunca vamos poder aumentar substancialmente a produção de alimentos ou de biodiesel se não ocuparmos mais terra, mesmo que tenhamos todo o ganho de produtividade que nos foi tão bem apresentado pelo representante da embrapa.

o objetivo é sempre aumentar a produtividade para que, naquele mesmo espa-ço de terra, se possa ter mais do produto. no entanto, o Brasil possui ainda áreas enormes que estão semiabandonadas, que são ineficientemente usa-das como pastagens. Quem passa por áreas que já foram plantações de café, por exemplo, em todo o Vale da Paraíba, entre rio e São Paulo, não vê nada plantado ali. Como essas, há áreas imensas pelo Brasil afora onde se pode e se deve plantar alimentos e energia na forma de biocombustíveis.

então, essa ideia de que já chegamos aos limites e que tudo tem que ser fei-to na base de uma “escolha de Sofia” não me parece correta. o Brasil, ao contrário de quase todos os outros países do mundo, tem um potencial ex-traordinário de terras mal utilizadas ou não utilizadas, sem necessidade de desmatar a amazônia.

o problema do dendê, para uma empresa privada de biodiesel, é sobretudo econômico. a palmeira leva sete anos para atingir a maturidade e produzir na escala desejável. Talvez por isso só exista uma grande produtora moderna, que está no Pará, a agropalma, mas o óleo é destinado à alimentação por atrair bons preços. apenas uma pequena sobra da produção, que não se prestava para consumo humano, é aproveitada para fabricar biodiesel.

assim, é uma questão econômica. existem áreas degradadas na amazônia que, sem provocar nenhum desmatamento, poderiam perfeitamente ser uti-lizadas para o plantio da palma pois ali as condições climáticas são adequa-das. Quem sabe a Petrobras, com seus grandes recursos financeiros, poderia assumir a liderança no plantio de palma para a produção de biodiesel.

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serviço social do Comércio |

A dimensão da segurança alimentar nos programas de redução da pobreza Wanda engel*

* Superintendente executiva do instituto Unibanco. Doutora em

educação pela PUC-rJ. mestre em educação pela UFrJ. especia-

lista em Pedagogia e Civilização pelo Centre international D’Études

Pedagogiques, Sévres, França. Foi chefe da Divisão Social do Banco

interamericano de Desenvolvimento e ministra de estado de assistên-

cia Social no Brasil.

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a proposta deste trabalho é realizar uma análise do papel de projetos de segurança alimentar em programas de redução da pobreza. Partindo da premissa de que estes projetos constituem-se em esforços no campo da proteção social, para os grupos mais vulneráveis, vamos defender a ideia de que seu impacto, no processo de pro-moção destes grupos, depende da integração de suas ações com programas de desenvolvi-mento humano, social e econômico, e que esse conjunto de esforços deve estar articulado e integrado em função das mesmas famílias ou comunidades.

Parte-se também da assertiva de que a proteção social é o ponto de partida necessário das polí-ticas de redução da pobreza, porque as pesso-as extremamente vulneráveis não possuem as condições básicas para iniciarem um processo de desenvolvimento, cabendo às políticas assis-tenciais garantir este patamar básico.

longe de pensar que existe uma dicotomia entre dar o peixe ou ensinar a pescar, para as pessoas que vivem na extrema pobreza não há dúvidas de que é preciso dar o peixe, ensinando a pescar. É absolutamente importante oferecer programas de proteção social. esses programas não podem ser desqualificados sob o título de assistencia-lismo, uma vez que, sem eles, torna-se muitas vezes impossível começar qualquer processo de desenvolvimento humano, social e econômico. Tais políticas podem ser classificadas como as-sistencialistas, caso se transformem num fim em si próprias e não no ponto de partida de um processo de desenvolvimento.

políticas integradas de redução da pobrezaos programas de distribuição de alimentos ou de

recursos podem ser o primeiro passo de um pro-cesso de promoção ou saída da pobreza, desde que sejam conjugados, em primeiro lugar, com ações de desenvolvimento humano. Geralmen-te isso é feito por meio de condicionalidades: a concessão de um benefício é condicionada a alguma contrapartida na área da educação ou da saúde.

Por outro lado, não podemos pensar a pobreza em termos de indivíduos. a unidade básica da pobreza é a família. neste sentido, não basta uma ação focada no desenvolvimento humano, sendo necessária uma intervenção no grupo a que pertence este indivíduo, fortalecendo suas redes de relação. ninguém sai sozinho da si-tuação de pobreza. É fundamental promover o fortalecimento da família e das organizações comunitárias, com ações de desenvolvimento social.

assim, é possível desenvolver as capacidades humanas ou organizacionais necessárias para um último estágio de promoção: o patamar do desenvolvimento econômico. enfim, os progra-mas de proteção social devem desembocar em programas de desenvolvimento econômico das pessoas, das famílias, das comunidades.

Quando se atingem níveis razoáveis de desenvol-vimento econômico, aumentam as oportunida-des, inclusive de desenvolver novas capacidades.

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A dimensão da segurança

alimentar nos programas de

redução da pobreza

novas capacidades proporcionam novas oportunidades econômicas, forman-do um ciclo virtuoso de desenvolvimento.

Figura 1 - Políticas integradas de redução da pobreza

cinco gerações de programas de redução da pobrezaos programas de redução da pobreza na américa latina têm etapas históricas

que vão, gradativamente, incorporando diferentes componentes, em busca da multidimensionalidade e integração das ações. neste sentido, podem ser identificadas cinco gerações de programas de redução da pobreza.

a primeira geração caracteriza-se pela simples distribuição de alimentos, com foco no indivíduo. o objetivo é a segurança alimentar, caracterizando-se como uma ação típica de proteção social, incorporando algum componen-te de desenvolvimento humano, já que favorece a melhoria das condições de saúde das pessoas atendidas. não se observa nenhuma dimensão de desenvolvimento econômico ou social, e sua implantação depende de uma estrutura logística, que muitas vezes é mais cara que o próprio alimento distribuído.

Tivemos historicamente muitas ações desse tipo no Brasil. a primeira etapa do Comunidade ativa, por exemplo, baseou-se na distribuição de alimen-tos, principalmente do estoque regulador da Conab, com base no chamado “mapa da fome”. Uma das conclusões a que se chegou foi a de que se com-prava farinha em São Paulo e, ao distribuí-la em áreas produtoras do norte e nordeste, acabava-se por inibir a produção local.

a segunda geração, caracterizada pela distribuição de renda, representa um grande avanço em relação à anterior, uma vez que passamos a levar recur-sos monetários para áreas extremamente deprimidas, criando um mercado consumidor, que ativa a produção local de bens e serviços. ou seja, essa iniciativa tem um impacto na economia regional, gerando algum nível de de-senvolvimento econômico.

o foco ainda é o indivíduo, e o objetivo é garantir uma renda mínima, ou seja, representa também uma modalidade de proteção social. Seu funcionamento depende da instalação de agências ou agentes bancários nos territórios onde se concentram os pobres, o que também eleva o nível de desenvolvimento econômico das áreas atendidas. Programas deste tipo se iniciaram no Brasil com a chamada aposentadoria rural, que a rigor se trata de um benefício assistencial, uma vez que não depende de contribuição previdenciária, e com o benefício de Prestação Continuada, destinado a idosos e pessoas com deficiência.

Qualificação

Desenvolvimento Econômico

Desenvolvimento Humano Desenvolvimento Social

Condicionalidade Fortalecimento

Proteção Social Condição

Capacidades

Oportunidades

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A dimensão da segurança alimentar nos programas de redução da pobreza

Fazem parte da terceira geração os programas de transferência condiciona-da de renda, que associam proteção social a desenvolvimento humano, vi-sando não só minimizar os efeitos da pobreza a curto prazo, mas contribuir para erradicá-la em longo prazo, através do aumento do capital humano das novas gerações, por meio de condicionalidades ligadas à educação e à saúde.

Com melhores condições de saúde e educação, as novas gerações poderão ter melhores oportunidades que as anteriores, sendo capazes de sair da situa-ção de pobreza.

esse sistema distributivo também precisa de agências ou agentes bancários, além de um sistema integrado de informações sobre os beneficiários, para acompanhamento das condicionalidades. Programas desta geração foram implantados no Brasil sob a forma de uma rede de Proteção Social, formada por um conjunto fragmentado de ações (Bolsa alimentação, Bolsa escola, Programa de erradicação do Trabalho infantil, agente Jovem de Desenvol-vimento Social e auxílio Gás), o que gerou a necessidade da criação do Ca-dastro Único de Famílias Pobres. este cadastro permitiu a integração dos programas, dando origem ao Bolsa Família.

Programas de quarta geração tentam oferecer oportunidades de saída da si-tuação de pobreza em prazos menores que os da geração anterior. Partindo do pressuposto de que a família e não o indivíduo é a unidade básica do fenômeno da pobreza, surgem os programas integrais de desenvolvimento familiar associados à transferência condicionada de recurso. assim, além de saúde e educação para as crianças e jovens, procura-se garantir aos outros membros da família acesso prioritário a oportunidades de educação, saúde e geração de renda.

na américa latina, a experiência do Chile Solidário parece ser o exemplo mais completo de programas desta geração. as famílias em situação de extrema pobreza são alvo de um programa integrado de promoção familiar, têm aces-so prioritário a programas de saúde, educação e desenvolvimento econômi-co, como microcrédito, geração de renda e capacitação.

o recurso é centralizado no ministério do Planejamento, que o distribui para os demais com a condição de atenderem a essas famílias. as famílias partici-pantes fazem um Plano de Desenvolvimento Familiar e assinam um Contrato de Promoção com metas e prazos definidos: todos documentados, jovens e crianças na escola; jovens e adultos em programas de capacitação ou ge-ração de renda. existe até mesmo um processo de graduação para sair do programa em algum momento.

além de agências bancárias e cadastro dos beneficiários, é preciso ter um sis-tema integrado de informações sobre os programas e serviços existentes, a fim de fazer o casamento entre oferta e demanda e identificar lacunas de cobertura ou tipo de serviço. a ideia é fazer uma ponte entre as necessidades identificadas da família e o encaminhamento para programas.

nessa geração, é preciso contar também a figura do Promotor Familiar, que acompanha o processo de promoção da família. no Chile, esse acompanha-mento é por família. no Brasil, tivemos uma experiência com os núcleos de apoio à Família, com grupos de famílias.

no Chile, chegou-se à conclusão de que, além de promover a família, seria necessário desenvolver a comunidade em que ela está inserida. assim, as-sistimos ao surgimento de uma quinta geração de programas de redução da pobreza, em que se agrega, a todas as iniciativas previstas nas gerações anteriores, um processo de desenvolvimento comunitário.

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A dimensão da segurança

alimentar nos programas de

redução da pobreza

esses programas de desenvolvimento comunitário incluem, por exemplo, proje-tos produtivos locais e de desenvolvimento em infraestrutura para garantir a evolução da comunidade. ou seja, vão além de desenvolver a família e incluem o fortalecimento das organizações locais. Para colocá-los em prática, faz-se necessária a contribuição de agentes de Desenvolvimento Comunitário.

Quadro 1 - Cinco gerações de programas de redução da pobreza

Quando faz sentido um programa de primeira geração?Diante da evolução dos programas sociais voltados ao combate à pobreza, sur-

ge uma pergunta: ainda faz sentido manter programas de distribuição de alimentos, que caracterizam a primeira geração?

a resposta é que, em algumas situações, ainda fazem sentido programas deste tipo em determinados contextos, mas seu impacto depende de uma amplia-ção de seu escopo, incorporando componentes de desenvolvimento humano, social ou econômico.

assim, algumas características contextuais de oferta, demanda ou capacidade distributiva de alimentos deveriam estar presentes:

a) oferta – esses programas se tornam viáveis quando há, por exemplo, excedentes agrícolas, estoques reguladores, pessoas dispostas a doar ali-mentos, ou se deseja incentivar a agricultura familiar.

b) Demanda – Justificam-se ações deste tipo para atender a demandas geradas por situações de crise estrutural ou desastre natural ou em fun-ção do alto grau de vulnerabilidade da população atendida. Por outro lado, a distribuição de alimentos pode ser uma forma de contribuir para a qua-lificação de serviços de proteção social em creches ou abrigos. ao rece-ber alimentos, essas instituições podem usar o dinheiro disponível para outras finalidades, melhorando a qualidade dos serviços oferecidos. Uma terceira função seria a de contribuir para melhorar o gerenciamento do

foco proteção social

Desenvolvimento Humano

Desenvolvimento econômico

Desenvolvimento social

Demandas específicas

Distribuição de alimentos

indivíduoSegurança alimentar

Saúde Sistema distributivo

Transferências não condicionadas

indivíduo renda mínima mercado consumidoragências bancárias (aB)

Transferências condicionadas

Família renda mínimaSaúde e educação como condicionalidades

mercado consumidor

- aB - Sistema integrado de informação de Beneficiários (SiiB)

Programas integrais de desenvolvimento familiar com transferência condicionada

Família

- renda mínima - acesso prioritário a programas assistenciais

- Saúde e educação como condicionalidades - acesso prioritário a programas de educação, saúde e habitação

acesso prioritário a programas de capacitação, geração de renda, inserção no trabalho e crédito

Fortalecimento da família

- aB - SiiB - Sistema integrado de informação sobre Programas e Serviços (SiiPS) - Promotor de famílias

Programas integrais de desenvolvimento familiar e comunitário com transferência condicionada

Família e território

- renda mínima - acesso prioritário a programas assistenciais

- Saúde e educação como condicionalidades - acesso prioritário a programas de educação, saúde e habitação

- acesso prioritário a programas - Projetos produtivos locais e infraestrutura

- Fortalecimento da família

- Fortalecimento das organizações de base: Plano de Desenvolvimento local

- aB - SiiB - SiiPS - Promotor de famílias - agente de desenvolvimento comunitário

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A dimensão da segurança alimentar nos programas de redução da pobreza

tempo da mulher: os restaurantes populares, por exemplo, podem facilitar a vida das mulheres que têm dupla ou até tripla jornada de trabalho.

c) Distribuição – Programas deste tipo exigem, além de sistemas distribu-tivos de baixo custo, mecanismos de monitoramento contra corrupção e instituições mediadoras com alto grau de confiabilidade.

Quadro 2 - Quando faz sentido um programa de primeira geração?

OfeRta

DeMaNDa

excedentes agrícolasSistemas distributivos de baixo custo

Situacão de crise estrutural ou desastre natural

estoque reguladorSistemas de monitoramento contra corrupção

Situação de alta vulnerabilidade

Fomento à agricultura familiar

instituições mediadoras confiáveis

Qualificação de serviços de proteção social (creches, abrigos)

Doadores de alimentosnecessidade de melhorar o gerenciamento do tempo da mulher

como ir além da segurança alimentar? a distribuição de alimentos não pode ser um fim em si próprio. a associação

com outros componentes incorporados às diferentes gerações dos progra-mas de combate à pobreza pode potencializar sua contribuição no processo de superação da pobreza. É possível incrementar a segurança alimentar com ações do tipo:

a) Proteção social com foco em desenvolvimento familiar

os programas de segurança alimentar deveriam, neste caso, desenvolver com as famílias um plano pactuado de promoção familiar, identificar ne-cessidades específicas e intermediar o acesso a serviços que atendessem a esta demanda, além de desenvolver um programa de ação socioeducativa.

b) Desenvolvimento humano

Tendo em vista esta perspectiva, os programas deveriam incluir ações de educação alimentar associadas à distribuição de comida que ensinem as famílias a se alimentar melhor, além de controle peso-altura das crianças e encaminhamento prioritário daqueles que apresentassem distúrbios ali-mentares a serviços de saúde.

c) Desenvolvimento econômico

a distribuição de alimentos por si só já reduz os gastos da família com alimentação, possibilitando maximizar o uso do orçamento familiar. Caso visem aumentar sua contribuição para o desenvolvimento econômico de grupos vulneráveis, recomenda-se dar prioridade para a compra da pro-dução local de alimentos, fomentando a agricultura familiar. além disso,

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A dimensão da segurança

alimentar nos programas de

redução da pobreza

poderiam incluir o encaminhamento de beneficiários para programas de capacitação, crédito e inserção no mercado de trabalho.

d) Desenvolvimento social

Programas de segurança alimentar poderiam contribuir para o incre-mento do capital social dos grupos mais pobres caso incluíssem ações de fortalecimento da família, qualificação de instituições intermediárias (prestadoras de serviços sociais) e fortalecimento das organizações de base local. Por outro lado, poderiam promover um aumento da coesão so-cial entre grupos de diferentes contextos socioeconômicos se previssem ações de fomento à responsabilidade social, como doação de alimentos e trabalho voluntário.

sistema de monitoramento e avaliaçãoem todos os programas, o grande desafio é criar um sistema de monitoramen-

to e avaliação para acompanhar e medir resultados e impactos. o primeiro passo é definir objetivos e metas que vão gerar indicadores de processos e de resultados.

a partir desses indicadores é essencial realizar um bom diagnóstico, que per-mita a construção de uma linha de base, fundamental para o acompanha-mento e avaliação de resultados.

a partir daí, é necessário o acompanhamento dos indicadores de processos e de resultados, contando com um sistema de supervisão periódica, de prefe-rência presencial, de forma a possibilitar eventuais correções e aperfeiçoa-mentos.

Temos de contar com informações confiáveis e precisas para comparar os re-sultados obtidos com a linha de base e, se possível, avaliar os impactos, por meio da existência de um grupo de controle.

Quadro 3 - Principal desafio: Sistema de monitoramento e avaliação

Diagnóstico processo Resultado impacto

Cadastro de beneficiários

acompanhamento dos indicadores

linha de base X

resultados finais

Grupo de intervenção X

Grupo de controle

Coleta de dados sobre indicadores

Sistemas informatizados de controle físico e financeiro

linha de base Supervisão presidencial periódica

Correção aperfeiçoamento

AVALIAçãO EXTERNA

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A dimensão da segurança alimentar nos programas de redução da pobreza

conclusãoProgramas de distribuição de alimentos representam estratégias tradicionais

para mitigar um dos efeitos da situação de extrema pobreza: a fome. Pode-mos verificar uma tendência atual de busca de caminhos que possam ir além da mitigação dos efeitos e oferecer portas de saída, a longo, médio ou curto prazo para esta situação. Programas com esta perspectiva vêm articulando ações de segurança alimentar a outras iniciativas no campo da proteção so-cial, do desenvolvimento humano e do desenvolvimento social, de forma que se criem as condições e habilidades necessárias para o alcance de opor-tunidades no âmbito do desenvolvimento econômico. no processo de evo-lução histórica destes programas podem ser identificadas cinco gerações, que incorporam gradativamente os diferentes âmbitos da multidimensio-nalidade do caminho de promoção e inclusão dos grupos mais vulneráveis. existem, entretanto, contextos referentes à demanda, à oferta ou à existência de mecanismos de distribuição de alimentos que justificam a existência de programas de segurança alimentar. Para não se restringir tais programas a uma ação de assistência, com fim em si própria, eles deveriam incluir ou se articular com propostas de desenvolvimento humano, social e econômico, de forma a contribuir para um dos maiores desafios de nossa sociedade: ofere-cer efetivas oportunidades de saída da situação de pobreza para o inaceitável contingente de famílias brasileiras afetadas por seus efeitos.

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O fortalecimento da segurança alimentar nas políticas sociais crispim moreira*

* Diretor de Promoção de Sistemas Descentralizados da Secre-

taria nacional de Segurança alimentar e nutricional do ministério

do Desenvolvimento e Combate à Fome. engenheiro agrícola pela

Universidade Federal de Viçosa e doutor em Geografia Humana pela

Universidade Federal de minas Gerais.

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A estratégia política do fome Zero e as políticas públicas de segurança alimentaro ministério do Desenvolvimento Social e Com-

bate à Fome (mDS), por força da lei Federal nº 14.000, de 25 de setembro de 2006, que criou o Sistema nacional de Segurança alimentar e nutricional (Sisan), preside a Câmara intermi-nisterial composta por 18 ministérios, respon-sável pela elaboração e coordenação da política nacional de Segurança alimentar e nutricional (San). Criado em janeiro de 2004, a partir da fu-são do ministério extraordinário de San e Com-bate à Fome, do ministério de assistência Social e da Secretaria especial de renda da Cidadania, desde então o mDS tem acompanhado e coor-denado as ações do governo articuladas pela estratégia política do Fome Zero.

o Fome Zero teve como estratégia política organi-zar em quatro grandes eixos de atuação diver-sos programas prioritários para a promoção da San e do Combate à Fome. assim, programas como o Programa de Transferência de renda com Condicionalidades (PBF), o Programa de alimentação escolar (Pnae), os programas de implementação de equipamentos públicos de alimentação e nutrição – restaurantes popula-res, banco de alimentos e cozinhas comunitá-rias, por exemplo – compõem o conjunto das políticas públicas reunidas no eixo estratégico da promoção do acesso à alimentação adequa-da. Um segundo eixo da estratégia Fome Zero concentra-se na promoção da agricultura fami-liar e compõe-se dos programas Pronaf, Seguro Safra e do Programa de aquisição de alimentos

da agricultura Familiar (Paa). o terceiro eixo, no campo da articulação e mobilização Social, cui-da da implementação de instrumentos de parti-cipação e controle social das políticas de San, como é o caso do apoio à implementação de Conselhos de San/ Conseas, e demais instân-cias previstas no Sisan, como as Conferências (estaduais e municipais), lócus político de apro-vação das estratégias, diretrizes e prioridades políticas. É com essa perspectiva que o governo federal está fortalecendo as ações de segurança alimentar no campo das políticas públicas.

importante considerar que o conceito de Segu-rança alimentar e nutricional, com o qual traba-lhamos no governo federal, está definido na lei orgânica de Segurança alimentar e nutricional (losan), uma conquista da sociedade brasileira e que foi sancionada pelo Presidente lula em setembro de 2006. É um conceito construído, acordado, concertado entre governo e socieda-de e nisso reside sua importância e, sobretudo, sua força transformadora. não buscamos nos dicionários técnicos a sua definição porque acreditamos – seguindo os ensinamentos de Jo-sué de Castro – que ele devesse ser um conceito socialmente e politicamente construído.

Da mesma maneira, é importante também es-clarecer a concepção de políticas sociais que norteia nossa ação no governo. o governo do Presidente lula estabeleceu um novo patamar de políticas sociais, no campo das políticas pú-blicas, no campo dos direitos e, assim, essas políticas são tratadas como políticas promoto-ras de desenvolvimento. e, estrategicamente, fizemos uma opção para o desenvolvimento so-cioterritorial, como se reflete no forte binômio com o qual trabalhamos no mDS: território e

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O fortalecimento da segurança

alimentar nas políticas sociais

família. entendemos que vamos afastar a fome dos territórios, das famílias que estão em territórios pobres, com políticas de desenvolvimento social. e as políticas de desenvolvimento social que estamos implementando são promotoras do desenvolvimento econômico, das economias locais, rurais, socioterritoriais, das regiões metropolitanas, das populações tradicionais, do Semiárido brasileiro.

principais ações de produção e distribuição de alimentos para a promoção da sAnUma das estratégias que o governo adotou para combater a fome e a inseguran-

ça alimentar foi organizar um conjunto de programas governamentais mul-tissetoriais na saúde, na educação, na reforma agrária, no desenvolvimento agrário, na agricultura, e os articular de tal forma para produzir, garantir e defender o direito de acesso à alimentação. É nesse contexto que podemos compreender, por exemplo, o papel do Bolsa Família (PBF) e do Programa de alimentação escolar (Pnae), dentre outros, como programas que não exis-tem isolados, mas se integram numa ampla rede de proteção e promoção social estruturada a partir da garantia do acesso à alimentação. Trata-se de um conjunto de ações que compunham o Fome Zero e se confirmaram na iii Conferência nacional de Segurança alimentar – que estabeleceu diretrizes para o governo implementar as políticas da área.

nessa perspectiva, a defesa e promoção do acesso à alimentação saudável combinada com a produção de alimentos baseada na agricultura familiar têm se destacado como estratégias políticas adotadas pelo governo federal que, de fato, têm transformado a vida de milhões de famílias em situação de insegurança alimentar no Brasil. Programas massivos como o PBF, o Pnae e o Pronaf, são exemplos de ações que compõem as políticas de San que, por meio da transferência de renda monetária, de alimentação nutri-cionalmente preparada para as crianças e adolescentes e do apoio para o desenvolvimento da agricultura familiar têm alcançado mais de 11 milhões de famílias brasileiras – cerca de 45 milhões de brasileiros do campo e das cidades.

a diversa e desigual realidade brasileira tem merecido também atenção estra-tégica do mDS para a promoção do desenvolvimento social e do combate à fome. no nordeste brasileiro, onde 43,6% dos domicílios registram situações de insegurança alimentar, o mDS atua de forma vigorosa com políticas públi-cas de promoção do direito à água para o consumo humano e a produção de alimentos. É o caso do Programa Um milhão de Cisternas (P1mC), que já be-neficiou desde 2003 mais de 200 mil famílias com a construção de cisternas domiciliares em todos os municípios do Semiárido brasileiro.

notável é o papel do Programa de aquisição de alimentos (Paa), um progra-ma síntese da estratégia Fome Zero, nesta dupla e combinada tarefa política de, ao mesmo tempo, promover para as famílias em situação de inseguran-ça alimentar e nutricional acesso ao alimento saudável e apoiar a produção de alimentos pelos agricultores familiares e tradicionais pobres. o Paa já beneficiou milhares de agricultores familiares e cerca de 70 mil entidades que compõem a rede de proteção social dos sistemas públicos de San e de assistência social, isto é, do Sisan e do Sistema Único de assistência Social (Suas).

É importante ressaltar a estratégia do planejamento territorial adotada pelo go-verno, como o Programa Território Cidadania, coordenado pela Casa Civil e

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O fortalecimento da segurança alimentar nas políticas sociais

pelo ministério do Desenvolvimento agrário, e também o Consórcio de Segu-rança alimentar e Desenvolvimento local (Consad), implementado pelo mDS para enfrentar a fome e a pobreza nas realidades socioterritoriais rurais dos pequenos e médios municípios.

o combate à fome vivida nas cidades de grande porte, sobretudo naqueles municípios situados nas grandes regiões metropolitanas, exige estratégias próprias e singulares. Por exemplo, os Bancos de alimentos e os restau-rantes Populares estão mais vocacionados para desterritorializar a fome nos espaços urbanos e periurbanos destas cidades. naquelas de pequeno porte, como é o caso dos municípios em territórios rurais, o governo atua com ou-tro conjunto de programas federais, como é o caso do Território Cidadania, anteriormente citado.

Todavia, para produzir uma nova ordem no sistema local e regional agroali-mentar, isto é, garantir a universalização do Direito Humano à alimentação adequada (DHaa) e a soberania alimentar, há de se criarem mecanismos, por exemplo, de redução do custo da alimentação no orçamento total das famílias com baixo rendimento monetário. São bons exemplos os mercados populares volantes e os cestões populares criados e gerenciados pelas pre-feituras, como em Belo Horizonte e Curitiba. neste caso, a prefeitura vende alimentos e gêneros de primeira necessidade para as famílias pobres mora-doras nos bairros mais carentes da cidade.

outra iniciativa, bastante animadora e ao mesmo tempo desafiadora, é a im-plantação de uma política nacional de agricultura Urbana e Periurbana (aUP), que o mDS vem desenvolvendo em 14 regiões metropolitanas brasilei-ras. o tema da aUP apareceu como uma diretriz política na ii Conferência de San em olinda, em 2004, e na iii Conferência nacional de San em Fortaleza, em 2007. Desde sua criação em 2004, o mDS já investiu mais de r$ 60 mi-lhões na estruturação de um sistema público que deverá oferecer assistên-cia técnica, formação e meios de produção para os milhares de agricultores periurbanos dessas regiões. Josué de Castro já incluía, dentre as dez ações que propunha para combater a fome no Brasil: “estimular a produção de ali-mentos na circunvizinhança das grandes cidades com a produção de frutas, verduras e legumes”.

sistemas descentralizados de sAn: um desafioem nossa tarefa de combater a fome e a pobreza, nos confrontamos com o de-

safio de pensar o sistema agroalimentar brasileiro frente ao sistema alimentar mundial. essa é uma das questões postas pelo Conselho nacional de Seguran-ça alimentar e nutricional (Consea). estamos, assim, desafiados a construir um outro sistema agroalimentar no Brasil, mais justo e capaz de realizar o direito à alimentação para toda a população.

Desse modo, temos de atuar no que poderíamos chamar de sistema alimentar real, o sistema no qual os atores sociais produzem alimentos, comercializam alimentos, consomem alimentos. nessa perspectiva, ressalte-se a importân-cia dos projetos que o ministério do Desenvolvimento Social, em parceria com os demais entes da federação, está implantando para criar uma rede de equipamentos públicos prestadores de bens e serviços de segurança alimen-tar e nutricional para a cidadania. os Bancos de alimento são um exemplo desse trabalho. implantá-los nos municípios é uma forma de intervir no sis-tema agroalimentar real. É a partir daí – intervenções concretas nos territó-rios – que devemos refletir sobre o desafio político de territorializar a política de segurança alimentar para as populações, em especial, no nosso caso, o

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O fortalecimento da segurança

alimentar nas políticas sociais

abastecimento alimentar da rede de proteção e promoção social às quais nos dedicamos.

Desta forma, a decisão estratégica do governo, operada pelo mDS, de implan-tar políticas públicas de San que atuam na produção, na distribuição e no consumo de alimentos saudáveis tornou possível a implementação de uma rede pública de serviços de alimentação e nutrição qualificada e permanente em centenas de equipamentos públicos financiados pelo mDS e gerenciados pelos estados e municípios.

Parceiros do mDS implantam em seus territórios lavouras e hortas comunitá-rias, banco de alimentos, restaurantes e cozinhas populares, sinalizando para uma ordem nova na lógica da produção-distribuição-consumo de alimentos, na perspectiva da promoção do direito da cidadania e da soberania alimentar das suas populações.

De fato, estamos diante de um considerável avanço das políticas públicas para o enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional das famílias brasi-leiras. Centenas de municípios brasileiros, assim como o governo federal, elegeram o fenômeno da fome como problema político para ser enfrentado de forma prioritária.

ricardo Paes de Barros estabelece como proposta para reflexão uma rede de solidariedade. acrescente-se a essa proposta o sistema de equipamento pú-blico, com financiamento público, com controle social. Temos a tarefa de pensar e estruturar a regulação pública, de modo a dar eficiência e eficácia ao sistema, às redes. mas é importante que, além de regular e reformar es-tatutos normativos legais, também se proponha intervir, atuar, estabelecer parâmetros para implantação de equipamentos públicos de San nos municí-pios, de modo a fazer justiça com a distribuição de alimentos.

Avanços e desafiosÉ importante a observação feita por renato maluf quando recorda os dois mo-

delos de agricultura que coexistem no Brasil: aquele que produz commodities e o que produz alimento para o consumo interno. a estratégia adotada pelo Brasil para combater a fome fez opção forte para a produção de alimentos para consumo interno, que é um modo diferenciado porque engloba e pro-tege a família, a diversidade, a solidariedade, a cooperação, a vizinhança, a ética e os valores agroecológicos. o ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, por sua vez, em seus editais de seleção pública, seleciona propostas que incluem a produção agroecológica e a economia solidária. É uma opção estratégica para a promoção de soberania e segurança alimentar e nutricional da população, por meio da produção e estruturação de sistemas agroalimentares justos.

nos sites do Consea ou do mDS é possível localizar as seis diretrizes do rela-tório da iii Conferência nacional de Segurança alimentar e nutricional, que estabelecem critérios para estruturação desses sistemas. o Programa mesa Brasil SeSC, por exemplo, é uma operação que está contida na diretriz 2: a necessidade de reestruturar a produção, a distribuição e o consumo de ali-mentos, sob o marco legal do direito humano à alimentação e da soberania alimentar.

ao investir nesses sistemas agroalimentares e na articulação dos eixos estra-tégicos do Fome Zero, estamos criando condições, reformando as estruturas que mal produzem, mal distribuem e mal processam para a população ex-cluída do mercado, e estamos fazendo isso produzindo alimentos e acesso

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O fortalecimento da segurança alimentar nas políticas sociais

à alimentação, ao abastecer o restaurante popular, a cozinha comunitária, a creche etc.

nosso caminho ainda é extenso, mas já temos algumas conquistas importan-tes a contabilizar depois de seis anos de um governo que, pela primeira vez na história do Brasil, estabelece critérios objetivos para a elaboração de uma Política nacional de Segurança alimentar. Foi promulgada a losan; realizou-se a iii Conferência nacional de San; e criou-se a Câmara interministerial – uma instância do sistema nacional, presidida pelo ministro Patrus ananias, contendo 17 ministérios, cuja tarefa é fazer baixar, operar, executar as dire-trizes da iii Conferência, organizadas no Conselho nacional de Segurança alimentar. mas não podemos perder de vista que estamos em um processo novo e precisamos saber como criar estímulo para que os estados da federa-ção também o façam e estabeleçam as adequadas parcerias com o governo federal e também com os atores sociais envolvidos.

Por fim, considero muito oportuna uma intervenção do presidente do SeSC quando da abertura desse Seminário nacional, que rememorou os ensina-mentos de Darcy ribeiro e disse que o Brasil é um “arquipélago” de reali-dades regionais. Devemos, creio, saber refletir os brasis que temos: o Brasil caboclo da amazônia, sertanejo do nordeste, caipira do Sudeste e gaúcho do Sul. Temos, desse modo, a tarefa de refletir sobre a diversidade das desi-gualdades regionais e apresentar as soluções adequadas a cada território, a cada problema. nosso papel no mDS tem sido, nesse sentido, dar outro ordenamento aos sistemas públicos locais, nos diversos e desiguais territó-rios locais. Com o financiamento público selecionamos estados e municípios para criarem equipamentos públicos como: restaurantes populares, bancos de alimentos, cozinhas comunitárias, feiras e mercados populares, centros de agricultura urbana e periurbana. Com isso, estamos procurando promo-ver desenvolvimento com justiça social e também empreender uma nova or-ganização para a circulação e o processamento do alimento, para que nós possamos modificar e aperfeiçoar a dieta alimentar das famílias que estão excluídas do direito humano à alimentação. essa é uma das traduções do compromisso ético posto por esse governo de assegurar que todos os cida-dãos tenham garantidas, diariamente, ao menos três refeições em quantida-de, regularidade e qualidade necessárias, respeitados os hábitos e culturas regionais brasileiros.

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Serviço Social do Comércio |

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada Ricardo Manuel dos Santos Henriques*

* Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal

Fluminense (UFF) e Assessor do Presidente do Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Foi Secretário Na-

cional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad)

do Ministério da Educação entre 2004 e 2007, Secretário Executivo

do Ministério de Assistência e Promoção Social entre 2003 e 2004 e

Coordenador de Desenvolvimento Humano do Governo do Estado do

Rio de Janeiro em 2002. É membro do Conselho de Administração do

Instituto Internacional de Planejamento da Educação (Iipe) da Unesco.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

A reflexão sobre a política social no Brasil, con-siderando, entre outras, as áreas de segurança alimentar, educação, assistência social, saúde, saneamento, meio ambiente e transporte, deve remeter inicialmente às alternativas sobre o modelo de desenvolvimento do país. Além dis-so, discutir a qualidade da formulação e da im-plementação das políticas de cada área e, em particular, os caminhos para a integração entre essas políticas. E essa reflexão deve se estabele-cer a partir da consideração das possibilidades de constituição de um espaço público não ex-clusivamente estatal que permita a articulação entre as agendas dos governos, da sociedade civil e do setor empresarial.

Desenvolvimento, crescimento e desigualdade O Brasil, ao longo de sua história, produziu dis-

tintos modos de desenvolvimento que, apesar de suas singularidades, podem ser entendidos com base em um fio condutor hegemônico que podemos denominar desenvolvimento como ex-clusão. A ideia do desenvolvimento estrutura-do a partir dos parâmetros da exclusão, con-siderando suas dimensões social, econômica e política, se define em oposição ao conceito de desenvolvimento como liberdade, elaborado pelo Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen (1999). À medida que esse processo histórico, organizado com base em uma relação funcio-nal com a exclusão, produziu uma sociedade

com estáveis e abissais patamares de desigual-dade, o desafio de reposicionar os parâmetros de desenvolvimento pela ruptura com a matriz hegemônica da exclusão implica assegurar, si-multaneamente, o crescimento da economia e a redução da desigualdade. Nesse sentido, o modelo de desenvolvimento necessita definir uma agenda que, para além da implementação de programas sólidos de combate à pobreza, qualifique as opções de sustentabilidade para orientar o crescimento da economia e traga a redução da desigualdade para o centro da po-lítica pública.

A tradição da condução das políticas econômica e social no Brasil reforça, de forma recorrente, o crescimento econômico, auxiliado de forma lateral por programas compensatórios, como o principal caminho para a redução da pobre-za. O cenário vislumbrado é de crescimento da economia com queda circunstancial da pobreza sem dispor de elementos para uma redução du-radoura ou permanente da desigualdade. Feliz-mente, observa-se, pela primeira vez na história recente do país, que entre 2003 e 2008 há uma combinação virtuosa entre crescimento econô-mico e redução da desigualdade. Essa estraté-gia que podemos denominar de crescimentismo econômico é alavancada a partir de uma relação funcional com os padrões de exclusão social do país, desconsiderando o papel das desigualda-des socioeconômicas na geração da pobreza e consolidando a concentração de renda (e de riquezas, e de poder) como dimensão organiza-dora do arranjo social.

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Serviço Social do Comércio |

Políticas sociais e desenvolvimento:

desafios de uma agenda integrada

Do ponto de vista da estruturação e implementação de políticas públicas, a de-sigualdade não é reconhecida como uma categoria analítica relevante e fica oculta atrás do duplo anteparo das políticas de crescimento da economia e de combate à pobreza. Na medida em que a busca do crescimento pelo cres-cimento se impõe como estratégia racional, consistente e hegemônica, de redução da pobreza, a política social assume um papel estritamente secun-dário no universo das políticas públicas. Assim, a política social se estrutura com base em uma relação de subalternidade frente à política econômica e, como em uma profecia autorrealizadora, consolida sua suposta vocação re-sidual em um cenário em que a redução da desigualdade não é relevante. O senso comum, de forma coerente, se coloca indiferente à possibilidade de uma agenda vigorosa de redução da desigualdade, e a percepção acerca da política social oscila entre os extremos da tolerância ingênua com sua inefi-ciência (que se supõe incontornável) e da indignação com a irrelevância de suas ações.

No entanto, uma sociedade tão desigual como a brasileira deveria ser capaz de reconhecer a complexidade dos determinantes de nossos padrões de exclu-são social e caminhar na direção de estabelecer uma agenda de políticas pú-blicas ancorada em uma relação de equivalência entre a política econômica e a política social. Aqui, os princípios de competitividade e eficiência seriam equivalentes ao princípio de equidade, de forma a estabelecer um ambiente institucional em que o econômico e o social se tornem parceiros efetivos no estabelecimento de prioridades e de estratégias para a política pública.

A enorme desigualdade de renda no Brasil, com seus correlatos níveis de pobreza, reflete e deriva, simultaneamente, das desigualdades no acesso a serviços de qualidade nas áreas de educação, saúde, crédito, habitação, transporte, água, esgotamento básico, coleta de lixo, mercado de trabalho, segurança, entre outros. As implicações no campo dos direitos civis, econô-micos, culturais, ambientais e humanos são evidentes e conhecidas. Além disso, a exclusão assume contornos nítidos quando consideramos que a dimensão territorial, em particular a elevada desigualdade entre regiões do país, é de intensidade semelhante às desigualdades intraestados e intramu-nicípios, sobretudo nas grandes cidades.

Diante disso, as bases de um projeto de desenvolvimento dinâmico e sustentá-vel em termos econômicos, sociais, ambientais, políticos e territoriais requer a qualificação do crescimento econômico tendo em vista parâmetros subs-tantivos (e não somente adjetivos) do conceito de sustentabilidade. Desenvol-vimento sustentável que promova o crescimento qualificado da economia1 e a redução ativa da desigualdade e da pobreza.

Política social e superação de gargalos estruturaisA condução da política pública no Brasil, para além de evidentes avanços nos

períodos recentes, apresenta gargalos estruturais que tradicionalmente re-duzem a qualidade dos processos de implementação e a intensidade dos impactos sobre a qualidade de vida. Destacam-se, entre outras, as caracterís-ticas de fragmentação, isolacionismo setorial e sobreposição.

1 Uma agenda de desenvolvimento que forja estratégias de crescimento econômico orientadas pela garantia da qualidade do processo de crescimento passa, por exemplo, pela definição de parâmetros de uma economia de baixo carbono, com suas implicações sobre o sistema tributário e a pesquisa tecnológica. Ou ainda pela incorporação explícita dos princípios de geração de trabalho decente e de não precarização das relações de trabalho.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada

Fragmentação A fragmentação da política social se expressa em distintas esferas de gestão

na implementação de programas e ações governamentais. As evidências empíricas e as percepções acerca da fragmentação são recorrentes e, em geral, associadas a ineficiências no desenho ou na implementação das in-tervenções sociais. Com frequência observamos a dispersão de programas em vários órgãos da mesma esfera governamental, dificultando o estabele-cimento de uma lógica comum tanto na conceituação como, sobretudo, na regulamentação e implementação da política. Na verdade a fragmentação entre esferas de governos termina por descaracterizar uma política para um determinado setor e, em geral, transforma-se em uma justaposição de ações que nem sempre forma um todo coerente.

No entanto, para além da dispersão entre organismos e das eventuais falhas ou dificuldades de gestão, a fragmentação pode ser entendida no contexto mais amplo de uma racionalidade perversa das políticas públicas. Nesse contexto, a fragmentação apresenta funcionalidade para a condução de vários tipos de políticas. O fragmento é a unidade ótima do assistencialismo.

Os traços assistencialistas da política brasileira encontram na execução de agendas fragmentadas um ambiente fértil e estimulante. Aqui se consolida a alegoria do político (ou gestor) clientelista tradicional, que constrói sua estru-tura de poder com base na dominação de clientela ou da tutela do público-alvo de programas específicos. Nesse contexto nada melhor do que fragmen-tar, pois se transforma o espaço público no reino de práticas organizadas a partir da assimetria de informações.

O gestor público, que deveria prover, em um território específico, o benefício social de forma semelhante para todos potenciais beneficiários, termina por negociar o mesmo benefício utilizando-se de regras e valores distintos para cada beneficiário. Assim, sob a égide da prática fragmentada, se constituem, sem explicitar contradições, relações que se querem equivalentes a partir de regras distintas. O beneficiário de programas sociais deixa de ser um sujeito de direito e passa a estar submetido a uma rede de favores e exceções.

A assimetria de informações que pauta os procedimentos fragmentados pro-duz desconhecimentos e ruídos de interpretação que permitem deslocar a provisão dos bens e serviços sociais do campo do exercício dos direitos para o campo da negociação e da subalternidade. Esse processo de negociação, que deveria ser extemporâneo ao espaço público, responde a pressões, cri-térios e oportunidades políticas que permitem ao agente público maximizar as possibilidades de exploração, controle e submissão de parte da população que necessita acessar os programas sociais. A fragmentação concede sus-tentação lógica e empírica a esse processo e, nesse sentido, o fragmento é um instrumento essencial para as práticas assistencialistas.

Isolacionismo setorialA complexidade do fenômeno social e a sofisticação dos conhecimentos técni-

cos e científicos justificam os processos contínuos de especialização no que se refere à formulação e à implantação das estratégias de política pública em cada área social. A setorialização e a especialização são evidentemente ne-cessárias e refletem a alta densidade das práticas cotidianas de gestão das políticas e dos procedimentos de geração do conhecimento.

É evidente que o conhecimento e as práticas na área da saúde, por exem-plo, possuem enormes especificidades que, por sua vez, se decompõem

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Serviço Social do Comércio |

Políticas sociais e desenvolvimento:

desafios de uma agenda integrada

em diferenças relevantes, como entre as agendas de atenção básica e as de média e alta complexidade. As possibilidades de decomposição se es-tendem por todas as dimensões da área de saúde, sendo que o mesmo raciocínio pode ser corretamente extrapolado para as áreas de educação, assistência social, segurança alimentar, cultura, saneamento básico, entre tantas outras.

No entanto, a setorialização excessiva que se faz surda às demandas e aos desafios intersetoriais reflete uma opção limitada e limitante das políticas públicas. Mais do que isso, termina por incentivar desnecessárias segmen-tações intrassetoriais, produzindo ações e programas isolados no interior de cada área social.

O isolacionismo setorial se nutre, ao menos, de dois mecanismos básicos: a disputa, em geral intensa, pela distribuição do orçamento público e a com-pulsão de criação que motiva diversos gestores e políticos pela busca do re-gistro de maternidade (ou paternidade) de uma ação, programa ou política. Além disso, o conhecimento e a sensibilidade adquiridos pelo exercício es-pecializado conduzem, por vezes, à produção de uma hipótese arbitrária de sequencialidade setorial do ponto de vista do bem-estar social. Ou seja, o especialista da área de saúde supõe que a resolução dos dilemas da saú-de precede os demais. Ocorre que o mesmo raciocínio é reproduzido pelo especialista da área de educação, ou ainda de segurança alimentar. Não se observa a convergência de ações frente ao objetivo de melhoria da qualidade de vida das pessoas. O isolacionismo setorial, portanto, tende a reduzir a qua-lidade das intervenções setoriais e a dificultar a coordenação e integração das políticas públicas.

SobreposiçãoA sobreposição entre programas e políticas sociais deriva da precária coorde-

nação entre as esferas de governo. Essa dificuldade de coordenação entre esferas de governo reduz a potencialidade de impacto dos programas sociais, na medida em que os governos não compartilham diagnósticos e aprendiza-dos para melhorias na concepção e no desenho dos programas. Além disso, são produzidos inúmeros ruídos de informação que reduzem a amplitude da cobertura e a qualidade da focalização na implementação de cada programa. E essas falhas de coordenação afetam tanto programas de natureza similar como programas de natureza complementar existentes em vários organis-mos governamentais.

Assim, no que se refere a programas de natureza similar, a baixa coordenação aumenta a ineficiência da alocação de recursos públicos quando, por um lado, há desperdício derivado da falta de troca sobre o aprendizado acerca dos acertos e dos erros de cada experiência e, por outro, um mesmo conjun-to de pessoas ou famílias pode receber mais de um programa e outros não estariam recebendo benefícios de nenhum programa. Considerando que os programas são semelhantes, e que a troca de experiências permitiria um pro-cesso contínuo de aperfeiçoamento no desenho dos programas, vemos que algumas pessoas estariam recebendo de forma desnecessária e excessiva mais de um programa. E, por conseguinte, outras pessoas que são público beneficiário potencial do programa não o estariam acessando, mesmo exis-tindo naquele território disponibilidade concreta de oferta.

No que se refere a programas complementares, o precário diálogo implica, por um lado, a redução da probabilidade de definição das especificidades per-tinentes a cada esfera de governo que permitiriam aperfeiçoar a relação de

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada

complementaridade dos programas. Por outro lado, as ineficiências, no que se refere à definição do escopo e da focalização, fazem com que as pessoas ou famílias não acessem o conjunto de programas que aumentariam a pro-babilidade de redução sustentável de sua condição de fragilidade econômica e social. Novamente não se trata aqui de problemas de escassez de oferta, mas sim do fato de que diante da oferta disponível a distribuição entre os potenciais demandantes é inferior ao que seria desejado.

A zona de sombra que se estabelece entre os governos se reflete, portanto, em desperdício orçamentário e redução da efetividade da política social, tendo em vista que diante dos recursos alocados para esses programas a melhor coordenação entre as esferas de governo permitiria aumentar o conjunto de pessoas beneficiadas e a qualidade dos serviços sociais prestados.

Além disso, quando consideramos o rebatimento da falta de coordenação so-bre a organização da demanda dos indivíduos, vemos que podem se esta-belecer incentivos perversos para os critérios de seletividade no acesso aos programas. Redes de socialização pretéritas a qualquer variável relevante para a seleção de beneficiários e a implementação do programa organizam o universo de sua distribuição estabelecendo, em cada território específico, uma arbitrária homogeneidade do perfil das pessoas que acessam os pro-gramas públicos. Em várias experiências constatamos que redes religiosas, sindicais, partidárias ou de segmentos sociais específicos, entre outras, são eleitas como representantes da capilaridade social e a partir delas são defini-dos os procedimentos de identificação dos beneficiários do programa. Não é fortuito, por exemplo, que em espaços populares urbanos de elevada den-sidade demográfica ocorra, com relativa frequência, que ao longo da mesma rua algumas famílias tenham acesso a vários programas e outras famílias não tenham acesso a qualquer programa. Assim, mesmo sem considerar qualquer desvio de recursos ou inoperância de gestão, a falta de transparên-cia e de coordenação permite eleger dentro de um universo de beneficiários potenciais um subconjunto específico de pessoas (em detrimento de outro subconjunto no mesmo território) como privilegiado no acesso aos progra-mas das várias esferas governamentais.

Integração de políticas sociais: potencialidades para a sustentabilidadeNo que se refere à formulação e à gestão das políticas sociais, vivemos um

processo evolutivo nos últimos vinte anos (após a Constituição de 1988), ace-lerado nos últimos dez anos, com relevantes aprendizados tanto no Brasil como na América Latina.

Nesses países, sucessivas gerações da política social têm demonstrado a ne-cessidade de a formulação e o desenho das políticas estarem ancorados em rigorosos e contextualizados diagnósticos. Além disso, a eficiência e a eficá-cia das políticas sociais estão relacionadas, no mínimo, a três dimensões de intervenção: (1) desenho consistente que especifique: os critérios de identi-ficação e seleção dos beneficiários; os sistemas de incentivos (condiciona-lidades, contrapartidas, prêmios etc.); as condições de restrições (pessoal, orçamentária, institucional, legal etc.); as atribuições de responsabilidades e de qualificação dos gestores; as possibilidades de flexibilidade para adap-tação aos segmentos e territórios prioritários; os parâmetros de participação e controle social; e o sistema de gestão e implementação; (2) processo de monitoramento contínuo e supervisão das ações, com retorno sobre os flu-xos de gerenciamento; (3) sistema de avaliação, com base em indicadores

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Políticas sociais e desenvolvimento:

desafios de uma agenda integrada

quantitativos e qualitativos, capaz de dimensionar os avanços no processo de implementação e os resultados e impactos obtidos.

Nesse sentido, a melhoria da qualidade de vida das pessoas, de suas famí-lias e de sua comunidade depende, por um lado, da qualidade tanto do desenho como dos sistemas de implementação, monitoramento e avalia-ção e, por outro, da capacidade de construir, em cada território específico, condições de possibilidade para a integração entre as diversas políticas sociais.

A integração das políticas sociais apresenta-se, portanto, como condição cen-tral para a efetividade de seus impactos sobre a qualidade de vida e a redução das desigualdades. A integração permite uma abordagem ampla dos desa-fios e fragilidades dos indivíduos e de suas famílias e aumenta a probabilida-de de que possam sair, de forma estável e sustentável, da condição de pobre-za. Sabemos que programas compensatórios de alívio da pobreza atenuam, de forma consistente, as condições prementes de exclusão. No entanto, a política social, para ser sustentável e enfrentar as desigualdades, além de atenuar a pobreza, deve transcender o universo das políticas compensatórias e estabelecer processos de emancipação das condições de exclusão indivi-dual ou coletiva.

O espaço público e as possibilidades de coordenação Quando nos referimos à esfera pública estatal, o desafio de articulação entre

programas e entre políticas das diversas áreas sociais remete diretamente à coordenação intra esferas de governo e à coordenação entre as esferas de governo (municipal, estadual e federal).

Os desafios de articulação intra e entre esferas de governo são de significativa complexidade, uma vez que para cada área social observamos enorme he-terogeneidade na estrutura institucional e organizacional dessas esferas de governo. Faz-se necessário coordenar distintas áreas sociais em cada esfera de governo e distintas esferas de governo em cada área social.

Essa complexidade remete evidentemente à qualidade dessas interações, mas também, de forma simples e direta, à quantidade das interações. Se, por hipótese, o nosso universo de políticas sociais fosse restrito a apenas três dimensões – digamos, as clássicas áreas de educação, saúde e assistência social – estaríamos tratando, potencialmente, de 27 interações a serem co-ordenadas.

Quando consideramos a área da educação observamos que a política educa-cional federal deve estar coerente e coordenada no interior do Ministério da Educação, considerando suas várias secretarias, órgãos, atores e respon-sabilidades. E, de forma semelhante, o mesmo deve ocorrer nas esferas do governo estadual e do governo municipal com suas respectivas Secretarias de Educação. Até aqui, três coordenações no interior (intra) das instâncias executivas de cada nível de governo. Além disso, para a boa condução da po-lítica educacional, de acordo com o regime de colaboração2 entre as esferas governamentais, é importante que a política federal esteja coordenada com a política estadual e com a política municipal e esta, por sua vez, coordenada com a política estadual. Aqui se fazem necessários mais três processos de coordenação. A mesma lógica deve se repetir para a área de saúde, implican-do em novas seis interações, e o mesmo para a área de assistência social.

2 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) consolidou o regime de colaboração, definindo estados e municípios como entes federados responsáveis pela oferta do ensino fundamental.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada

Até agora totalizamos 18 processos de coordenação com interações intra e entre esferas de governo.

Ocorre que para aumentar a probabilidade do impacto positivo efetivo sobre a qualidade de vida das pessoas é importante que as agendas da educa-ção, da saúde e da assistência social estejam coordenadas entre si. Assim, quando consideramos a esfera federal vemos que é desejado que a política educacional esteja coordenada com a política de saúde e com a política de assistência social. Além disso, que a política de assistência social este-ja coordenada com a política de saúde. Desse modo estamos tratando de mais três interações que se expressam na esfera federal. O mesmo deve ocorrer na esfera estadual e, por conseguinte, na esfera municipal. Essas interações entre áreas, para cada nível da esfera executiva, perfazem nove interações.

Assim, concluímos que, quando restringimos, na experiência brasileira, o uni-verso da política social às áreas da educação, da saúde e da assistência so-cial, a boa condução da política pública implica, ao menos, a construção de 27 complexos processos de coordenação. Se, a título de exemplo, o univer-so da política social considerasse também a área de segurança alimentar e nutricional e, portanto, fosse necessário integrar quatro áreas sociais, seria necessário estabelecer 42 processos de coordenação. Com ainda mais uma área, por exemplo a de trabalho e emprego, a tarefa remeteria a 60 processos de coordenação.

Em termos genéricos sabemos que a efetividade da política social é definida a partir da melhoria da qualidade de vida da população em condição de maior fragilidade econômica e social e depende da qualidade do diagnóstico, do desenho, da implementação, do monitoramento e da avaliação. Além disso, como destacamos, a efetividade é função direta dos processos de coorde-nação intra e entre esferas de governo e, em uma perspectiva ampliada do espaço público, da coordenação com as agendas do setor privado e da so-ciedade civil.

Nesse sentido, a condução das políticas sociais requer a produção de um ambiente institucional que permita não só a coordenação das políticas públicas governamentais, mas também a participação ativa da sociedade civil organizada e do setor empresarial. Reduzir o espaço público a seu continente estatal representa uma significativa e desnecessária restrição das potencialidades de mobilização dos diversos atores e estruturas orga-nizacionais que podem estar a serviço do interesse público e do bem-estar da sociedade.

O espaço público não deve ser entendido como estritamente estatal. Ao con-trário, sociedade civil, responsabilidade social das empresas, sindicatos e movimentos sociais necessariamente compõem, com as três esferas de go-verno, o espaço público relevante para a arquitetura das políticas sociais. O tamanho do desafio social brasileiro solicita a coordenação entre as esferas governamentais e não-governamentais, de modo a estabelecer um ambiente institucional e regulatório que acolha um modelo de desenvolvimento orien-tado pela dinamização da economia com base na sustentabilidade e na jus-tiça social.

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Políticas sociais e desenvolvimento:

desafios de uma agenda integrada

Bolsa Família e Cadastro Único: precondições para integração de políticas sociais A integração de programas e políticas sociais requer a explicitação da escolha

estratégica por essa opção e a construção de um ambiente institucional que acolha as possibilidades de articulação e integração. Nesse sentido, ao me-nos duas ações antecedem a implementação de processos que viabilizem a integração: por um lado, a existência de um único programa de transferência de renda e, por outro, a constituição de uma base de dados consistente e centralizada com as informações cadastrais dos prováveis beneficiados dos referidos programas.

Na realidade brasileira recente o Programa Bolsa Família representa uma su-peração frente às opções de pulverização de programas de transferência de renda e cumpre o papel de criar as bases para um ambiente institucional adequado e viável de coordenação da política social.

A unificação dos programas setoriais de transferência de renda em um único programa, como ocorreu em 2003 com a criação do Bolsa Família, apresenta-se como condição necessária para estabelecer um padrão de referência co-mum para a interação com os demais programas sociais. A hipótese básica é a de que não se faz política social integrada com vários programas de trans-ferência de renda. Incentivar a concorrência entre gestores de programas de transferência de renda, como no caso da coexistência dos Programas Bolsa Escola e Bolsa Alimentação, não só produz ineficiências acumuladas e detur-pações de procedimentos, como inviabiliza, no território, a coordenação com outros programas sociais.

O Cadastro Único (CadÚnico)3, ao assegurar uma sistematização detalhada e atualizada das informações cadastrais do público-alvo potencial dos benefici-ários do programa, permite não só uma focalização eficiente da transferência de renda como, também, a constituição de uma plataforma estratégica de informações sobre indivíduos e suas famílias, que serve de precondição para a articulação entre a oferta e a demanda de programas sociais no país.

Nesse sentido, a unificação dos programas de transferência de renda setoriais (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás, Cartão Alimentação) em um úni-co Programa não representou apenas uma evolução administrativa e de ges-tão. Mais do que aumento da eficiência de gestão e aumento dos recursos monetários disponíveis para cada família, o Bolsa Família se apresenta como elemento central para o salto necessário em direção à uma nova geração de programas sociais no país. Portanto, só uma leitura aligeirada ou uma in-terpretação ingênua podem sugerir que conceitualmente o Programa Bolsa Família seja assistencialista.

O Programa Bolsa Família é um programa de transferência de renda com con-dicionalidades em educação e em saúde. O programa traz para si responsa-bilidades referidas aos horizontes de curto e de longo prazo. No curto prazo garante, a partir de uma gestão tecnicamente rigorosa e de aperfeiçoamento contínuo das informações, a focalização no acesso das famílias mais pobres a uma renda mínima garantida. No longo prazo, à medida que condiciona o acesso à renda ao cumprimento de metas de acesso à educação e à saúde, cria condições de mobilidade social ascendente para as gerações futuras.

3 É um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda. O cadastro atribui a cada pessoa da família um Número de Identificação Social (NIS) de caráter único, pessoal e intransferível.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada

No horizonte de médio prazo, a identificação das famílias mais pobres a par-tir de um único cadastro atualizado e dinâmico (CadÚnico) e a distribuição de uma renda mínima condicionada se apresentam como precondições da definição de uma institucionalidade em que essas famílias possam acessar de forma coordenada, por exemplo, programas de crédito, de regularização fundiária, de formalização de serviços públicos e de qualificação profissional. Diversos outros programas podem compor a cesta de programas a serem coordenados, mas a qualidade das informações cadastrais atualizadas do CadÚnico se apresenta como o principal elemento para mapear o perfil de fragilidades de cada família e endereçar a demanda pelos programas sociais adequados.

Nestes termos, o Programa Bolsa Família, apesar de não tratar diretamente do horizonte de médio prazo, dispõe das precondições para estabelecer, de forma complementar, as possibilidades de articulação entre os demais pro-gramas sociais. Especificamente, a gestão rigorosa e técnica do CadÚnico representa um instrumento central para assentar uma plataforma sobre a qual é possível estabelecer processos de coordenação entre os programas sociais que conduzam à implementação de oportunidades concretas de de-senvolvimento familiar e comunitário.

Segurança alimentar e Mesa Brasil SESC: elementos de coordenação com a política socialA agenda de segurança alimentar e nutricional, considerando as dimensões de

enfrentamento da fome e da obesidade, se vincula diretamente ao objetivo estratégico de combate à pobreza e de redução da desigualdade. Nesse sen-tido, a agenda de segurança alimentar e nutricional deveria estar no cerne de um modelo de desenvolvimento sustentável.

Para se constituir como política pública difundida no território nacional, com flexibilidade para alcançar distintos e heterogêneos segmentos sociais, a po-lítica de segurança alimentar solicita, como anteriormente sugerido para ou-tras políticas sociais, um significativo esforço de coordenação das políticas governamentais e destas com as ações da sociedade civil.

O Programa Mesa Brasil SESC, com base institucional na mobilização dos de-partamentos regionais do SESC, se apresenta como ator relevante na agenda de segurança alimentar. De forma consistente o programa parte do princípio de que a alimentação é um direito social básico e organiza suas ações a par-tir do objetivo de reduzir o desperdício de alimentos e combater a fome. Do ponto de vista do funcionamento do Programa, os indicadores de cobertura e os relatos de gestão indicam desempenho importante.

Entre os anos de 2003 e 2008, por exemplo, o Mesa Brasil SESC estabeleceu uma rede de assistência que atende a 5,1 mil entidades em 290 municípios e distribui cerca de um milhão de refeições por dia.

Os resultados impressionam. Os indicadores secundários de qualidade tam-bém são amplamente satisfatórios. Ajustes sempre serão necessários, mas o Programa é uma realidade e não mais uma promessa. A definição de um sistema de monitoramento e de avaliação, com a perspectiva de retorno con-tínuo sobre o desenho e a gestão do programa, se faz necessária para asse-gurar maior qualidade e estabilidade.

No entanto, colocado em perspectiva histórica, o Mesa Brasil SESC deve pensar sua expansão em um cenário de médio e longo prazos. Há que se questionar qual a principal meta a ser perseguida. A disjuntiva inicial parece ser entre

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Políticas sociais e desenvolvimento:

desafios de uma agenda integrada

priorizar o aumento da escala e da cobertura do Programa ou consolidar o desenho institucional que conceda maior autonomia e sustentabilidade para os objetivos do Programa.

A discussão, presente neste artigo, sobre a integração das políticas sociais e a constituição do espaço público sinaliza que, em potência, o Mesa Brasil SESC dispõe de uma importante base institucional e territorial que pode contribuir para alavancar uma agenda integrada de segurança alimentar e nutricional.

Nestes termos, os resultados já alcançados pelo programa e o acúmulo da ex-periência de mobilização e de organização dos interlocutores institucionais indicam que o desafio da escala não deveria orientar os esforços do Progra-ma em sua nova fase. O Mesa Brasil SESC apresenta um diferencial positivo frente ao desafio estratégico de aprofundar a articulação entre os múltiplos atores governamentais e não-governamentais que estão, e poderão vir a ser, envolvidos numa política de segurança alimentar mais ampla.

O cenário de intervenção no médio prazo deveria, portanto, estar orientado para aproveitar a tecnologia social de sensibilização e mobilização desenvolvida pelo programa e a importante cobertura territorial das redes instaladas em 290 municípios, como base de uma maior integração com outros programas nesta área. O principal desafio seria, portanto, reorientar essa tecnologia so-cial no sentido de contribuir para uma maior coordenação entre distintos pro-gramas, atores e instituições envolvidos na pauta de segurança alimentar.

O passo inicial da nova metodologia de trabalho seria identificar os graus de autonomia de cada uma das redes frente à manutenção da agenda de segu-rança alimentar. A primeira pergunta a ser respondida em cada município específico seria: a rede do Mesa Brasil SESC seria capaz de manter e con-solidar a estratégia de segurança alimentar caso o SESC redefinisse suas prioridades e não concentrasse mais esforços significativos no Programa? Ou seja, caso o SESC se retire do Programa, a agenda ou esforço coletivo dos atores envolvidos em garantir a segurança alimentar daquele município é sustentável no médio prazo ou tenderia a se esvaziar gradativamente?

A partir desse questionamento é possível definir uma tipologia que classifique as 290 redes e os mais de 5 mil parceiros de acordo com o grau de autonomia frente à perspectiva de sustentabilidade do Projeto. As redes de baixa autono-mia necessitariam de fortalecimento institucional e as de elevada autonomia fariam parte de uma nova geração do programa, orientada pelo incentivo à coordenação entre os organismos e esferas de atuação e à integração dos programas sociais, com a intenção de elevar a efetividade da política de se-gurança alimentar.

A metodologia de trabalho do Mesa Brasil SESC promoveu a articulação, em distintas intensidades, entre suas mais de 5 mil entidades parceiras, com foco no objetivo central de assegurar comida de qualidade na mesa das pessoas e das famílias. No entanto, para além dos evidentes méritos dos resultados obtidos, a tecnologia social desenvolvida pelo Programa dispõe de vantagens comparativas para se adaptar às especificidades de cada território e identi-ficar as potencialidades de seus parceiros diante do desafio de organizar as redes sociais, com o objetivo de incentivar arranjos locais emancipatórios frente às situações de pobreza.

Nesse sentido, o Mesa Brasil SESC pode se nutrir da experiência vitoriosa de fortalecimento e, por vezes, de produção de institucionalidades orientadas para a coleta e distribuição de alimentos e mudar o patamar de sua interven-ção no sentido de estabelecer redes que produzam, no espaço público, novas institucionalidades, que contribuam para uma política emancipatória frente aos padrões consolidados de exclusão social.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Políticas sociais e desenvolvimento: desafios de uma agenda integrada

A capilaridade do programa permite mapear as redes pessoais e as redes so-ciais existentes em cada território específico e investir no entendimento da dinâmica dos processos de emancipação frente à pobreza. Além disso, de forma articulada com os governos locais, levantar, a partir do Cadastro Único, o perfil e a localização do público-alvo do programa. E, ainda mais, identificar a natureza dos vínculos entre os componentes de cada rede e as práticas de participação comunitária e controle social de cada território.

O arranjo institucional em cada território específico remete tanto aos modos de articulação e integração entre esferas de governo, sociedade civil e setor empresarial, como aos instrumentos de transparência e controle social pro-jetados sobre a gestão do espaço público.

O Mesa Brasil SESC pode, portanto, realinhar sua estratégia em direção a uma nova geração da agenda de segurança alimentar, priorizando a contribuição para a articulação e a integração das políticas sociais, nas esferas governa-mentais e não-governamentais, de forma a atingir um estágio mais avançado de desenvolvimento humano, familiar e comunitário.

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Serviço Social do Comércio |

A dimensão social da segurança alimentar Paul Singer*

* Nascido em Viena (Áustria), vive no Brasil desde 1940. Formado em

Economia e doutor em Sociologia pela USP, foi professor da Faculdade

de Economia e livre docente do Departamento de Estatística da

Faculdade de Higiene e Saúde Pública. Foi um dos fundadores do Centro

Brasileiro de Planejamento. Desde 1996 se dedica à Economia Solidária,

tendo escrito três livros sobre este tema. Foi Secretário de Planejamento

do município de São Paulo (1989-92) e é o atual Secretário Nacional de

Economia Solidária do Ministério do Trabalho.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Ter segurança alimentar significa não só que to-das as pessoas de uma população tenham o que comer, sejam razoavelmente nutridas, mas também que o sistema de produção e de con-sumo de alimentos esteja à prova de guerras, catástrofes naturais e assim por diante.

Essencialmente, para ter segurança alimentar existem duas condições essenciais que tanto no Brasil como no resto do mundo são precá-rias. A primeira condição é ter uma produção de alimentos suficientemente grande para que a população mundial tenha uma nutrição acei-tável. O que hoje está seriamente em perigo. A segunda condição é que os pobres, sobretudo os indigentes que, por definição, são tão pobres que não conseguem sequer satisfazer suas ne-cessidades básicas – das quais a alimentação é uma das mais importantes – tenham acesso a transferências de renda que lhes permitam satisfazer ao menos suas necessidades nutri-cionais.

No Brasil, de acordo com a Constituição, o Estado tem o dever de garantir aos mais pobres, inclu-sive aos indigentes, um padrão de vida mínimo aceitável, incluindo assistência à saúde, alimen-tação, escola, habitação e saneamento básico. Este dever foi uma importante conquista da Constituição brasileira, e em vinte anos já mos-trou que pode ter efeitos.

A princípio não pretendo discutir formas de elimi-nar a pobreza, pois inicialmente o que podemos fazer é, através de assistência social, ajudar os pobres a não sofrerem tanto as consequências da sua pobreza. Hoje temos o Bolsa Família e outros programas, como a assistência continu-ada, as aposentadorias rurais, o salário mínimo

etc., mas mesmo assim os pobres continuam pobres. O ideal a ser alcançado seria um dia não ser mais necessária a ajuda desse tipo de programa. E um dia ainda alcançaremos este ideal.

Tratando-se de fome e pobreza, é importante lem-brar das ações da sociedade civil que, ao lado dos programas governamentais, ocupa um es-paço de grande alcance. Apesar da força do Fome Zero e outros programas anteriores, a ação da sociedade civil é tão importante quanto as ações do governo, porque as estruturas do Estado são extremamente pesadas. Há uma quase paralisação de uma enorme quantidade de políticas sociais, educacionais, científicas etc., que acabam dependendo das parcerias vi-tais com a sociedade civil.

Um exemplo é a situação da Pastoral da Criança. Ela é uma das iniciativas sociais mais impor-tantes do país. Teve apoio público, mas não é uma ação de Estado. A Pastoral da Criança está presente nos 3.500 municípios mais pobres do Brasil e é a responsável principal por uma que-da vertical da mortalidade infantil. Ela tem gran-de facilidade em perceber para onde caminhar e como mobilizar e organizar as atividades das mães das crianças e de voluntárias, que o Esta-do não tem e nem pode ter. Isso acontece pois o Estado para poder agir tem que ter leis apro-vadas no Congresso, reguladas por portarias e precisa prestar contas a um exército de órgãos de controle para evitar desvios e corrupção. Na prática, o cumprimento de todas essas forma-lidades absorve uma enorme parcela de recur-sos públicos que poderiam ser destinados, por exemplo, à segurança alimentar, ao combate à pobreza e assim por diante.

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Serviço Social do Comércio |

A dimensão social da

segurança alimentar

A Pastoral da Criança, assim como a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), com o seu pro-grama de cisternas, são importantes programas de segurança alimentar. Com a cisterna, as fa-mílias do Semiárido conseguem garantir e me-lhorar sua nutrição e de suas crianças. Iniciati-vas como estas são numerosas no Brasil, mas muitas dependem da transferência de recursos públicos e todas correm o risco de parar se o travamento dessas transferências não for alivia-do logo.

No Brasil temos como cultura execrar a corrup-ção, o que na prática não tem efeito algum, por-que a corrupção é epidêmica e endêmica neste país e em todos os outros no mundo. Não há país que não tenha, em alguma medida, algum tipo de corrupção nas compras e contratações do setor público. Tentar acabar com a corrup-ção é uma ação digna, mas não é possível aca-bar com a corrupção acabando com as ações públicas que exigem compras, contratações ou convênios.

O importante é que temos grandes movimentos sociais conseguindo transformar políticas de Estado em ações emancipatórias e assim pra-ticando a economia solidária. Tanto a Pastoral da Criança como a ASA são, hoje, membros do Conselho Nacional de Economia Solidária, assim como o GT Amazônico e outros grandes movimentos sociais que conseguem transfor-mar políticas assistenciais em ações emanci-patórias. É preciso canalizar recursos que deem aos pobres não só dignidade e esperança, mas também a capacidade para saírem da situação de pobreza. Esse deve ser o objetivo a ser bus-cado.

Talvez o trabalho essencial a ser feito para o com-bate e a eliminação da pobreza seja o do resgate humano. Os pobres estão acostumados à sua condição, sobretudo os pobres hereditários. No Brasil, entre a grande maioria dos pobres, o pai, o avô e o bisavô já eram pobres, o que cria uma cultura de aceitação, de resignação e até de in-ferioridade, pois não foram à escola e por isso não têm conhecimentos. Essa é uma ideia falsa, mas está presente como senso comum. Então, dar a essas pessoas a oportunidade de acredita-rem em si é absolutamente essencial.

Nós estamos passando por um processo de re-volução social neste país, que não começou no governo Lula, mas provavelmente na época da Constituinte, nos últimos vinte anos, tendo uma forte aceleração neste governo porque há uma série de políticas que estão não só fomentando,

apoiando os movimentos de transformação so-cial, mas também realizando políticas concretas que visam outro desenvolvimento.

Nesse sentido, é preciso pensar a sociedade como um todo. Não é possível redimir da pobreza, ou garantir segurança alimentar para cada indiví-duo. Quase ninguém vive só, a maioria vive em família. Quando a família se dissolve – e hoje há uma crise familiar no mundo inteiro, não só no Brasil – as grandes vítimas são as crianças. É preciso tentar fortalecer os laços afetivos no seio das famílias, fazer com que a revolução femini-na – uma das grandes revoluções da nossa épo-ca – contribua para o fortalecimento da família, porque, aparentemente, a está enfraquecendo, à medida que as mulheres ganharam autono-mia e papéis que eram antes só dos homens.

É ótimo que isso tenha acontecido, mas a auto-nomia e os novos papéis que as mulheres con-quistaram produzem frequentemente crises nas relações entre os gêneros. Provavelmente, são os homens que estão agora perplexos, sem sa-ber como tratar as mães de seus filhos, que são tão diferentes das mães que os criaram. Mulhe-res e homens têm de se adaptar à nova situação e aprender com ela, porque as crianças preci-sam de pai e mãe não só para serem geradas, mas para poderem crescer e aprender com eles como viver e amadurecer.

A Economia Solidária é a próxima etapa natural dessa sequência. Pois não é possível só fortale-cer a família, sem fortalecer ao mesmo tempo a comunidade de que ela é parte. Esta é a ideia fundamental. A Secretaria Nacional de Econo-mia Solidária (Senaes) tem um programa de desenvolvimento de comunidades pobres cha-mado Brasil Local, que atua por intermédio de Agentes de Desenvolvimento Solidário. Hoje, existem 510 Agentes atuando em todos os es-tados do Brasil, escolhidos pelas comunidades, mas pagos pelo Programa para, em tempo in-tegral, mobilizar a sua comunidade e ajudá-la a se autorredimir. É um programa de endodesen-volvimento, como dizem os venezuelanos. Um desenvolvimento de dentro para fora e não de fora para dentro. Os Agentes de Desenvolvimen-to têm que fazer a articulação dessas comuni-dades com o resto do país, o que significa não só o governo federal, mas também os governos estaduais e municipais.

Cada comunidade escolhe uma liderança própria para se tornar seu Agente de Desenvolvimento, que age em rede com outros Agentes em seu estado, com um coordenador e uma equipe

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A dimensão social da segurança alimentar

da Senaes que ajuda a comunidade a ganhar acesso a finanças, a tecnologia e a mercados. É dessa maneira que o Programa Brasil Local vem funcionando.

Há uma profusão de programas de apoio ao de-senvolvimento que não são usados porque os mais pobres geralmente vivem isolados, priva-dos de comunicação e de informação. Assim, por exemplo, mediante um acordo com o Mi-nistério de Minas e Energia, a Senaes ajuda a formar Agentes de Desenvolvimento para as famílias e as comunidades beneficiadas pelo Programa Luz para Todos. Este Programa do governo federal conseguiu colocar dois milhões de brasileiros no século XXI. Privados de energia elétrica, eles estavam, praticamente, no século XVIII. A grande maioria dessas comunidades está na Região Norte do país, na Amazônia. Elas viviam em economia de subsistência. A ausên-cia de energia, obviamente, cria uma situação de isolamento muito forte.

A Senaes está fazendo um esforço concreto. Hoje existem mais de setenta incubadoras de coope-rativas populares. São projetos de extensão de universidades do Brasil inteiro. As incubadoras são compostas por estudantes e alguns profes-sores que estão sendo mobilizados para apoiar cooperativas e, ultimamente, também comuni-dades. Os estudantes têm uma vontade enorme de militar e lutar para que este país seja diferen-te. E esse entusiasmo juvenil tem uma capaci-dade de resgate e transformação extremamente importante.

Voltando especificamente à questão alimentar, durante muito tempo acreditávamos que a fome no mundo não era resultado de uma deficiência de oferta. Havia alimento para todos. O que não havia era dinheiro para que todos pudessem comprar alimentos. Logo, o que tinha de ser feito era lutar para que a renda e a terra fossem redis-tribuídas, tendo em vista acabar com a fome.

Hoje, sabemos que a situação mudou, e já es-tava previsto que iria mudar. Não há recursos naturais suficientes para sustentar toda a po-pulação. Esse era um problema que há alguns anos parecia ser distante e se acreditava que o avanço tecnológico encontraria para ele algu-ma solução. Mas, subitamente, agora, o futuro chegou. Os alimentos estão ficando escassos, seu preço aumentou, o número de pessoas que estão em situação de fome no mundo aumen-tou em 100 milhões, alcançando agora 950 mi-lhões (dados da FAO) e isso não é brincadeira, principalmente, na África. Isso tem a ver com

o uso predatório da água, da terra e do ar por uma agricultura insustentável no mundo inteiro. Essa agricultura industrializada não tem futuro. Ou então a humanidade não terá futuro se per-sistir nesse rumo.

Então, hoje, além da preocupação distributiva, que nunca vamos deixar de ter, vamos ter que fazer, efetivamente, uma revolução agrícola, que é muito original porque se trata de voltar ao passado. A agricultura industrial limita-se prin-cipalmente ao setor capitalista, ao agronegócio. Na agricultura familiar, apenas alguns conse-guem acesso a esta tecnologia. Os demais não. Os que não conseguem têm de se conformar com a tecnologia pré-industrial, que não devas-ta os recursos naturais. Uma grande parte dos camponeses jamais pôde entrar na agricultura industrial por falta de dinheiro para comprar os equipamentos e os produtos químicos, semen-tes etc. Dessa maneira, os camponeses pobres preservaram o que hoje é a base da tecnologia de amanhã.

São os camponeses em todo mundo que sabem como produzir alimentos sem usar produtos quí-micos que poluem a atmosfera, a água e a terra. E hoje há uma luta no mundo inteiro para combi-nar esses conhecimentos tradicionais, que não podem ser generalizados, não são conhecimen-tos passíveis de caber em um manual, pois são ecologicamente condicionados a microclimas e a condições ambientais muito específicas. Mas estão se criando redes em que os agricultores são os cientistas da prática, à medida que eles experimentam, aprendem e assim conseguem criar uma agricultura sustentável.

Agora, para generalizar a agroecologia é preciso fazer a reforma agrária. Enquanto houver a con-centração fundiária que temos, haverá sempre latifundiários mais interessados em ganhar di-nheiro logo; e esse logo pode significar o sacrifí-cio do futuro de todos nós.

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Serviço Social do Comércio |

Fome, ética e assistência Danilo Santos de Miranda*

* Especialista em Ação Cultural, tem formação em

Filosofia, Ciências Sociais e Administração. É Diretor do

SESC de São Paulo desde 1984. É Conselheiro do Museu

de Arte Moderna de São Paulo (MAM), da Fundação

Cultural Itaú e do Masp. Entre suas obras, destacam-se

Ética e cultura (2001), O parque e a arquitetura (2004).

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Os princípios éticos que nos movem na iniciati-va pela segurança alimentar no Brasil são mais amplos do que a assistência fundamental que tem sido praticada pelo poder público e todos os agentes envolvidos em programas como o Mesa Brasil SESC.

Nesse sentido, minha reflexão, que gostaria de compartilhar, segue o caminho das necessida-des mais atuais de articulação de algumas no-vas interpretações para que todas as medidas transformadas em práticas de assistência multi-pliquem-se, incessantemente, para a compreen-são mais absoluta dos direitos humanos e da in-clusão social na esfera da segurança alimentar.

Nós, que somos agentes e membros praticantes da segurança alimentar, hoje no Brasil, pode-mos avaliar o quanto as mudanças já obtidas têm nos levado a perceber como a questão da garantia alimentar tem transformado a vida de milhares e milhares de brasileiros e como, ven-cidos velhos desafios, a assistência tem nos co-locado outras e novas perspectivas.

A análise mais contemporânea da ética da assis-tência à fome no Brasil pode parecer, à primeira vista, independente das questões que perpas-sam o direito, especificamente o conjunto dos direitos humanos. Mas, de acordo com o con-texto e com a realidade brasileira, está relativa-mente ligada a ele.

Ao pensarmos na ética enquanto forma de conduta institucional, ela parecerá, a princípio, bem mais ampla e com objetivos às vezes pouco práticos, se comparados aos princípios dos direitos humanos próprios à assistência como intervenção para a coexistência cidadã. Agora, se encararmos que toda forma de conduta é também uma forma de

coexistência institucional e pessoal, podemos perceber como a ética converge para a adoção de princípios, até simples, mas defensáveis.

Partindo de algumas acepções sobre a ética em Kant, Habermas, dentre outros, percebemos que o que há de comum é a suposição de que a avaliação ética se fundamenta em princípios que são universais, isto é, devem ser aplicados a todos e, imparcialmente, devem ser baseados no preceito de que os indivíduos devem receber respeito idêntico.

Com base na igualdade mais elementar do direito à vida, a ética do combate à fome e da assis-tência, como princípios de inclusão social, tem norteado tanto as iniciativas do governo federal, quanto, desde os anos 1980, as origens do Pro-grama Mesa Brasil SESC. Mas a própria relação ética sobre a assistência à fome no país tem sido transformada.

Lançados na urgência de aplacarmos as desi-gualdades que mais injustamente se vinham mantendo, partimos em mutirão para minimi-zarmos o que era, primeiramente, o maior dos desrespeitos à vida. Ao fazermos um balanço, podemos avaliar que os resultados, nesse senti-do, são muito significativos. Afora as mudanças culturais já conseguidas, poderíamos inferir que há diferentes percursos a serem percorridos e grandes esforços para a inclusão social que de-manda a assistência à fome em nosso país. Afi-nal, não é só de alimento que tratamos. Há fome de dignidade, fome de cidadania, que devemos observar para efetivarmos o alcance de nossas ações.

Para entendermos a extensão da inclusão como questão social, devemos considerar que as

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Serviço Social do Comércio |

Fome, ética e assistência

origens da exclusão são históricas e foram assumidas pelas relações so-ciais, culturais e econômicas. Segundo o sociólogo Robert Castel, essas relações são marcadas pela concentração de poder e de riquezas de clas-ses e setores dominantes e pela pobreza generalizada de outros segmen-tos sociais, que constituem as maiorias populacionais e cujos impactos alcançam todas as dimensões da vida social, do cotidiano às determina-ções estruturais.

No contexto latino-americano, a questão social, nesta perspectiva, vem ad-quirindo novas modalidades, nos últimos tempos, por força das mudanças profundas que estão acontecendo nas relações entre capital e trabalho, nos processos produtivos, na gestão do Estado, nas políticas sociais, e pelo cha-mado princípio de exclusão, que se concretiza tanto da parte dos excluídos do processo produtivo, do trabalho assalariado, quanto da parte dos excluí-dos pelas relações de gênero ou pela identidade cultural. Esses aspectos se tornam efetivamente questões sociais quando percebidos e assumidos por um setor da sociedade, que tenta solucioná-las, transformá-las em demanda política e, por consequência, em justiça social.

Pensando nas características do que são as questões sociais, hoje, no Brasil e na América Latina, das quais a fome como consequência da pobreza se des-taca, poderíamos afirmar que, embora os processos excludentes originados pelo capitalismo avançado sejam grandes colaboradores, não podem bastar-se como justificativas éticas para um panorama que não está previamente dado. Como afirmou o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em artigo pu-blicado em O Estado de São Paulo em 6/7/1996:

A globalização não é somente o novo dogma dos economistas, mas é principalmente a nova racionalidade das instituições internacionais e multilaterais e dos estados nacionais; assim, tudo acontece ou deve acontecer de uma determinada forma em função e como consequência inexorável da globalização.

Com isso, procuro chamar a atenção para o fato de que, contrariando todas as previsões, nossas políticas democráticas aliadas aos planos de atenção so-cial têm permitido mudanças reais na sociedade, apesar de todas as tendên-cias negativas quanto à economia mundial e quanto aos prognósticos que limitam práticas e oferecem poucas ou nenhuma alternativa. Como pondera Celso Furtado em sua proposta para o Projeto Nacional de Desenvolvimento Social:

A globalização não pode ser vista como um imperativo histórico resultante de exigências inescapáveis do avanço tecnológico. Ela traduz decisões políticas tomadas em função de interesses de grupos e países que ocupam posições dominantes na esfera internacional.

Meu empenho pessoal na construção de técnicas e metodologias para uma atividade regular adaptada à realidade brasileira tem nos levado a diversifi-car nossa atuação, uma vez que a assistência transformada em logística de colheita urbana já foi multiplicada em todo o estado pelo SESC São Paulo. Nesse processo, formulávamos um programa que não se limitava a trazer o alimento, o que seria imediatismo, mas transmitir conhecimentos e criar espaço para a ação solidária educativa.

Com essa dimensão sociocultural, as transformações passaram a acontecer com os envolvidos e percebíamos nossos primeiros resultados. Transforma-ções culturais e educativas porque cada um dos parceiros não partilhava ape-nas dos procedimentos técnicos, seletivos ou higiênicos para a distribuição, mas valores, sentimentos de solidariedade, de respeito ao outro e de vitória contra o desperdício. Esse conjunto de valores criados e partilhados coleti-vamente ajudou-nos a tecer as redes e a cultura que se renova e consolida.

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Fome, ética e assistência

O programa Mesa Brasil SESC teve condições de se estabelecer porque se tor-nou também um espaço para a formação de pessoas e de aperfeiçoamen-to real da ideia de solidariedade. Evitamos o paternalismo e as relações de dependência marcadas pelo assistencialismo, pois buscávamos modelos e alternativas possíveis no enfrentamento da fome e do desperdício, que pudes-sem ser multiplicados e adaptados às diversas realidades tanto das empre-sas doadoras, quanto das instituições mediadoras e receptoras.

Nesse balanço, podemos dizer que o sucesso de nossas ações também decorre da maneira objetiva com que empregamos os pressupostos educativos.

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Serviço Social do Comércio |

Programação do Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

SEMINÁRIO NACIONAL MESA BRASIL SESC

SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E ESTRATÉGIAS

8 de outubro de 2008Brasília/DFEdifício da Confederação Nacional do ComércioSetor Bancário Norte - Quadra 1 - Bloco B - 1º subsolo

8:00 Credenciamento

9:00

Abertura: Antonio Oliveira Santos (Presidente do Conselho Nacional do SESC)Ministro Patrus Ananias (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome)Maron Emile Abi-Abib (Diretor Geral do Departamento Nacional do SESC)

9:30 1ª parte

Cenário da pobreza e da fomeConferencistas: Ricardo Paes de Barros (Ipea) e Carlos Monteiro (USP)Moderador: Fernando Dantas (Jornal O Estado de São Paulo)

11:00 INTERVALO

11:15 2ª parte

Dimensão nutricional do Bolsa Família - Eduardo Rios-Neto (Cedeplar) Experiência internacional na avaliação de programas de transferência de renda e desnutrição - Pedro Olinto (Banco Mundial) Há uma crise de segurança alimentar no Brasil? – Walter Belik (IE/Unicamp)Moderador: Fernando Dantas (Jornal O Estado de São Paulo)

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Serviço Social do Comércio |

Programação do Seminário

Nacional Mesa Brasil

SESC

12:45 ALMOÇO

14:15 1ª parte

Insegurança alimentar no contexto brasileiroConferencistas: Renato Maluf (Consea Nacional) e Ricardo Abramovay (FEA/USP)Moderador: Mauricio Blanco Cossio (Iets)

15:45 INTERVALO

16:00 2ª parte

O fortalecimento da segurança alimentar nas políticas sociais – Crispim Moreira (Sesan/MDS)Impactos do Programa de Aquisição de Alimentos no campo produtivo e social – Silvio Isopo Porto (Conab) Agricultura familiar: novas estratégias de financiamento – Porfírio Silva de Almeida (Banco do Nordeste do Brasil S.A.) Moderador: Mauricio Blanco Cossio (Iets)

17:30 ENCERRAMENTO

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| Seminário Nacional Mesa Brasil SESC Segurança alimentar e nutricional: desafios e estratégias

Programação do Seminário Nacional Mesa Brasil SESC

9 de outubro de 2008Brasília/DFEdifício da Confederação Nacional do ComércioSetor Bancário Norte - Quadra 1 - Bloco B - 1º subsolo

9:00 1ª parte

A expansão da oferta e melhoria da distribuição de alimentosConferencistas: Luis Carlos Guedes Pinto (Banco do Brasil) e Eliseu Roberto de Andrade Alves (Embrapa)Moderador: Álvaro Salmito (Departamento Nacional do SESC)

10:30 INTERVALO

10:45 2ª parte

O papel do biodiesel no desenvolvimento brasileiro – Jorio Dauster Magalhães e Silva (Brasil Ecodiesel)A oferta de alimentos e o comércio internacional – Marta Castilho (Faculdade de Economia/UFF)Desperdício de alimentos: de que se trata, afinal? – Mauricio Vasconcellos (IBGE/Ence)Moderador: Álvaro Salmito (Departamento Nacional do SESC)

12:15 ALMOÇO

13:45 1ª parte

A dimensão social da segurança alimentarConferencistas: Wanda Engel (Instituto Unibanco), Paul Singer (Senaes/ MTE), Ricardo Manuel dos Santos Henriques (BNDES)Moderador: Manuel Thedim (Iets)

15:45 INTERVALO

16:00 2ª parteFome, ética e políticas assistenciaisConferencistas: Frei Beto e Danilo Santos de Miranda (SESC São Paulo)

17:30 ENCERRAMENTO

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Publicação do Seminário Nacional Mesa Brasil SESC, realizado pelo Departamento Nacional do SESC.

Impresso em papel reciclato 120g (miolo) e duodesign 300g (capa) pela Gráfica Flama Ramos.

Com texto em Gothic 720 BT e Garamond Premier Pro. Tiragem limitada de 5.000 exemplares.

Fevereiro de 2010.

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