Anais parte i_revistaemerj_206
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206 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”
Os Contratos de Transporte de Pessoa e de
Seguro no Novo Código Civil
SSSSSERGIOERGIOERGIOERGIOERGIO C C C C CAVALIERIAVALIERIAVALIERIAVALIERIAVALIERI F F F F FILHOILHOILHOILHOILHO
Desembargador TJ/RJ. Diretor-Geral da EMERJ
ça, as locomotivas a vapor, que foram osprimeiros meios de transporte coletivo.Dizem que as primeiras locomotivas de-senvolviam a espantosa velocidade de6km/h. De 6km/h, passou-se para12km/h, 20km/h, 60km/h, 120km/h atéchegar aos trens-bala, que ainda nãochegaram ao Brasil, aos aviões e atémesmo aos supersônicos.
Enquanto o Projeto de ClóvisBeviláqua dormitava no Congresso porquase trinta anos, o transporte coletivonão parou; ao contrário, as rodas gira-vam e cada vez mais rapidamente. Tan-to é que foi necessário editar uma leiespecial para disciplinar o transporte co-letivo, antes mesmo de entrar em vigoro Código Civil. Refiro-me ao Decreto n°2.681, de 1912, que se tornou conheci-do como a Lei das Estradas de Ferro.Tenho para mim que o Código Civil nãofez referência ao contrato de transporteporque o legislador dele se esqueceu,preocupado com as questões do Congres-so, olvidando-se que o mundo aqui foranão havia parado; antes pelo contrário,as rodas estavam rodando e cada vezmais rápido. É isso que ocorre quandohá um distanciamento entre a lei e ofato, ou melhor dizendo, quando o legis-lador está alheio ao fato. Pode tambémter ocorrido que o legislador imaginouque a Lei das Estradas de Ferro já teriasuficientemente disciplinado a questão,sem prever que outros meios de trans-porte haveriam de surgir e, por isso, dei-xou o contrato de transporte apenas coma disciplina que recebera da Lei das Es-tradas de Ferro.
O certo é, porém, que as rodas con-tinuaram rodando e outros meios detransporte foram surgindo. Por isso, tor-
Vamos hoje tratar de dois contra-tos da maior relevância social, política eeconômica. Talvez não existam outrosque possam competir com eles.
Quanto à importância do contratode transporte, bastaria lembrar que, noBrasil, diariamente, são transportadoscerca de quarenta milhões de passagei-ros de casa para o trabalho e do traba-lho para a casa, através de ônibus, trens,metrôs etc. Isso evidencia que o trans-porte coletivo é, realmente, um instru-mento fundamental para o Estado mo-derno cumprir suas missões sociais eeconômicas. Uma greve nesse setor, li-teralmente, paralisaria o país. Lembra-mos que tempos atrás, uma simples gre-ve de caminhoneiros chegou a abalar,de certa maneira, o governo.
Quanto ao transporte aéreo, todossabemos que é um grande aproximadorde países, dos povos, das pessoas, dascidades e um extraordinário fomentadorde negócios, circulador de riquezas. Se-gundo as estatísticas, no ano de 1999cerca de dois milhões e meio de pesso-as entraram no Brasil via aérea e ou-tras tantas saíram.
Não obstante essa relevância eco-nômica, social e jurídica, o contrato detransporte não mereceu sequer umareferência no Código de 1916. Por queisso? Já se ressaltou que o Projeto doCódigo de 1916 foi elaborado por ClóvisBeviláqua na última década de 1800, em1890, quando o transporte coletivo eraainda incipiente, sequer existente. Ahistória do transporte coletivo começouliteralmente no tempo da Maria Fuma-
Palestra proferida no Seminário realizado em10.05.2002.
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nou-se necessário aplicar, por analogia,a Lei das Estradas de Ferro aos demaismeios de transporte à medida em queforam surgindo: bonde, ônibus etc. Des-sa forma, essa lei, que reputo uma dasmais antigas ainda em vigor, conseguiusobreviver por quase um século. A dou-trina e a jurisprudência fizeram com aLei das Estradas de Ferro aquilo queBourlanger denominava de �poder derejuvenecimento da lei�, poder que con-siste em fazê-las viver segundo ou aten-dendo às exigências do tempo presente.Na realidade, se quisermos ter uma idéiado poder criativo da doutrina e da juris-prudência basta estudar o desenvolvi-mento da interpretação e da aplicaçãoque foi dada à Lei das Estradas de Ferro.
Entrando em vigor o novo Código Ci-vil, pelo menos dois efeitos curiosos iráproduzir em relação ao contrato de trans-porte. Em primeiro lugar, irá revogaruma das mais antigas leis em vigor, queé a lei das Estradas de Ferro. Tal leisobreviveu à Constituição de 1988 e aopróprio Código de Defesa do Consumi-dor, dado o avanço da disciplina que elaestabeleceu. Em segundo lugar, o Códi-go irá disciplinar e incluir no seu textoum contrato que não é novo; ao contrá-rio, é mais antigo do que o próprio Códi-go que irá revogar. Por isso, na realida-de, não encontraremos inovações na dis-ciplina do novo Código com relação aocontrato de transporte. O Código está,tão-somente, positivando, estabelecen-do na lei, aquilo que foi sendo criado,desenvolvido e cristalizado pela doutri-na e jurisprudência ao longo de quaseum século. O novo Código está em per-feita sintonia com a doutrina e a juris-prudência que nesse período se firma-ram.
Destacaria, inicialmente, o artigo730 do novo Código Civil que, ao discipli-nar o contrato de transporte, ressaltouum dos seus elementos, que seria atédesnecessário, mas que passou a ter re-levância por aquilo que vamos enfatizar.�Pelo contrato de transporte alguém seobriga, mediante retribuição, a transpor-tar de um lugar para o outro, pessoas ou
coisas�. Todos sabem que o contrato detransporte, além de bilateral, é onero-so, ou seja, exige uma contraprestação.Contudo, surgiu ao longo desse períodoa discussão acerca da responsabilidadedo transportador no caso do chamadocontrato gracioso, ou transporte gratui-to. Foi uma longa discussão, que acabougerando jurisprudência do Superior Tri-bunal de Justiça, consagrada na Súmula145. Pois agora o entendimento cristali-zado na doutrina e na jurisprudênciapassou a ser disposição expressa do ar-tigo 736, que diz respeito ao contrato gra-tuito: �Não se subordina às normas docontrato de transporte o feito gratuita-mente por amizade ou cortesia�. Foi ne-cessário repetir isso aqui porque houveum tempo em que se queria enquadrar,aquele que transportava gratuitamente,nas mesmas regras de responsabilida-de do transportador que tem como ele-mento do contrato o recebimento dacontraprestação.
O parágrafo único do artigo 736nada mais faz do que repetir a distinçãoque a doutrina e a jurisprudência já es-tabeleceram entre o contrato puramen-te gratuito e o aparentemente gratuito.O parágrafo único dispõe: �não se consi-dera gratuito o transporte quando, em-bora feito sem remuneração, o transpor-tador auferir vantagem indireta�. Bas-tará qualquer tipo de vantagem, como,por exemplo, no caso de o empregadorque transporta o empregado, o idoso ouo estudante que têm passe gratuito. Nes-sas hipóteses alguém está pagando aconta, não sendo esse contrato essenci-almente gratuito, só podendo ser assimconsiderado aquele que, segundo o Có-digo, é feito por amizade ou cortesia.
Um ponto que me pareceu impor-tante é o artigo 731 do novo Código Civil.Quando entrou em vigor o Código do Con-sumidor, surgiu uma questão bastanteinteressante. O CDC estabelece inde-nização ilimitada. Contudo, o Código Bra-sileiro da Aeronáutica e a Convenção deVarsóvia estabelecem indenizaçãotarifada, limitada, para o transporte aé-reo. A questão que se colocou foi esta: o
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transportador aéreo, sem dúvida, é umprestador de serviços e, no caso de res-ponsabilidade, estaria ele sujeito a pa-gar uma indenização ilimitada, como pre-visto no CDC, ou uma indenização limi-tada, como previsto na Convenção deVarsóvia e no Código Brasileiro da Aero-náutica? Desde o primeiro momentosustentei, com base no entendimento doSupremo Tribunal Federal, que os tra-tados e convenções, no nosso país, nãosão supraleis, não são leis constitucionais,não estão acima das leis ordinárias masno mesmo plano delas. Essa foi uma ques-tão longamente debatida no STF, que aca-bou entendendo dessa maneira, haven-do, hoje, disposição expressa na Consti-tuição (art. 105, III, a). Quando qualquerdecisão contrariar tratado ou convençãointernacional o recurso cabível não é oextraordinário, mas sim o especial. Se tra-tado fosse lei constitucional, o recursodeveria ser o extraordinário, e não o es-pecial. Hoje, portanto, por expressa dispo-sição constitucional, não há dúvidas deque o tratado está no mesmo plano da leiordinária. Sendo assim, evidentemente,deveria prevalecer o Código de Defesa doConsumidor por ser a lei mais nova. Essaquestão foi muito discutida no SuperiorTribunal de Justiça que, inicialmente, seinclinou pela prevalência da Convençãode Varsóvia e do Código Brasileiro da Ae-ronáutica. Entretanto, o STJ mudou o seuentendimento, e nas ultimas decisões, dealguns anos para cá, tem decidido que oCódigo do Consumidor prevalece em rela-ção à Convenção de Varsóvia.
Esse entendimento estará consa-grado no artigo art. 732 do novo CódigoCivil: �Aos contratos de transporte, emgeral, são aplicáveis, quando couber,desde que não contrariem as disposições
deste Código, os preceitos constantes dalegislação especial e de tratados e con-venções internacionais�. Lendo esse dis-positivo na ordem direta, teríamos: aoscontratos de transporte em geral, sãoaplicáveis, quando couberem, os trata-dos e convenções internacionais, desde
que não contrariem esse Código. Equivaledizer que se houver alguma contrarie-
dade entre as disposições do Código equalquer disposição de tratados ou con-venção internacional, deverão prevaleceras disposições do Código Civil, o que meparece estar em perfeita harmonia coma nossa Constituição e com o entendi-mento jurisprudencial, não só do STFcomo também do STJ. De sorte que, con-forme as novas disposições do Código Ci-vil, essa questão estará, no meu enten-der, superada.
O artigo 733 do novo Código Civiltrata do transporte cumulativo, ou seja,aquele em que mais de um transporta-dor se encarrega de fazer o transporteem percursos diferentes. Por exemplo:um transporta até Portugal e outro pelorestante da Europa. Nesses contratoscumulativos, o Código estabeleceu umaregra em relação à responsabilidade ci-vil que não é a da solidariedade. Diz que�nos contratos de transporte cumulati-vo, cada transportador se obriga a cum-prir o contrato relativamente ao respec-tivo percurso, respondendo pelos danosnele causados a pessoas e coisas. Con-seqüentemente, não haverá responsa-bilidade solidária. No entanto, e aí nãoentendi bem o porquê, no artigo 756 donovo Código Civil, quando tratou dotransporte cumulativo de mercadorias,o legislador estabeleceu a responsabili-dade solidária. No caso de transporte cu-mulativo, todos os transportadores res-pondem solidariamente. A diferença dedisciplina talvez tenha por causa não serpossível determinar-se com precisão emque percurso ocorreu o dano, o que nãose verifica no transporte de pessoas.Certo é que o legislador fez essa distin-ção entre o transporte cumulativo demercadoria e transporte cumulativo depessoas, atribuindo a responsabilidadesolidária àquela modalidade, e não aatribuindo quando se tratar de transportecumulativo de pessoas.
O artigo 734 do novo Código Civildisciplina a responsabilidade civil dotransportador. Essa matéria passou porvárias fases. A Lei das Estradas de Fer-ro estabelecia responsabilidade civil ob-jetiva para o transportador em relação
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ao passageiro. Em relação ao pedestre,àquele que não era passageiro, a res-ponsabilidade era subjetiva (art. 159 doCC). Com a Constituição de 1988, queestabeleceu responsabilidade objetivatambém para o prestador de serviço pú-blico, o transportador passou a ter res-ponsabilidade objetiva também em rela-ção a terceiro. Veio o Código de Defesado Consumidor e estabeleceu responsa-bilidade objetiva para o prestador de ser-viço, quer com relação ao contratado,quer com relação ao consumidor diretocomo em relação ao consumidor indire-to. Só aí passamos a ter uma responsa-bilidade unificada do transportador comrelação não só ao passageiro como tam-bém em relação ao terceiro.
O novo Código Civil, no seu artigo734, praticamente consolidou esse en-tendimento jurisprudencial, estabele-cendo a seguinte regra: �O transporta-dor responde pelos danos causados àspessoas transportadas (evidentementesomente em relação ao passageiro) esuas bagagens, salvo motivo de forçamaior, sendo nula qualquer cláusulaexcludente da responsabilidade�.
Nesse dispositivo temos váriasquestões importantes. Em primeiro lu-gar, trata-se, inquestionavelmente, deresponsabilidade objetiva em relação aopassageiro e aqui está a cláusula deincolumidade enquadrada pelos juristasfranceses quando procuraram construiruma nova responsabilidade para o trans-portador. No meu entender, o que te-mos aqui é a cláusula de segurança, ex-pressa no Código de Defesa do Consu-midor. Quem se dispõe a prestar servi-ços que causam riscos ao passageiro oua terceiros, fica obrigado a prestá-lo comsegurança, tendo que garantir aincolumidade de quem quer que seja. OCódigo consagrou o que já estava esta-belecido desde a Lei das Estradas deFerro.
Destacamos em segundo lugar queo dispositivo em exame estabelece cla-ramente a nulidade de qualquer cláu-sula excludente de responsabilidade.Isso foi uma criação da doutrina, depois
da jurisprudência e, finalmente, essavedação está expressa no Código de De-fesa do Consumidor. Qualquer cláusulaque reduza a responsabilidade é plena-mente nula. Essa disposição estará, ago-ra, no novo Código Civil.
Temos também aqui o princípio daindenização ilimitada, que embora nãoescrito no caput, o depreendemos do pa-rágrafo único, que diz: �É lícito ao trans-portador exigir a declaração do valor dabagagem a fim de fixar o limite da inde-nização�. Como se vê, o Código somenteadmitiu fixar limite da indenização noque diz respeito à bagagem. A contrario
sensu, não há limite indenizatório emrelação ao passageiro. Como não pode-ria deixar de ser, haverá harmonia en-tre o novo Código Civil e o do Consumi-dor. Seria muito ruim se o Código Civilpermitisse uma limitação tendo o Códi-go do Consumidor estabelecido comoprincípio, como direito fundamental doconsumidor, a plena indenização ou areposição ilimitada. Mesmo em se tra-tando de bagagem, a limitação terá queser feita com base numa declaração dovalor da própria bagagem.
O artigo 734, ao primeiro exame,permite concluir que a responsabilida-de do transportador somente seria ex-cluída pela força maior. Alguns diasatrás, conversando com uma ilustrecivilista, ela me disse que o Código Civilestaria à frente do Código de Defesa doConsumidor porque somente excluiria aresponsabilidade do transportador nocaso de força maior. É o que está dis-posto no artigo 734 do Código Civil. To-davia, o Código disciplinou a responsa-bilidade do transportador em mais de umartigo e não apenas em um único dispo-sitivo.
A seguir temos o artigo 735 que tra-ta do fato de terceiro. E aqui o Códigonada mais fez que positivar aantiguíssima súmula 187 do STF: �A res-ponsabilidade contratual do transporta-dor, pelo acidente com passageiro, nãoé elidida por culpa de terceiro, contra oqual tem ação regressiva.� Isto não énovidade, repetimos, porque a Súmula
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187 já dispunha assim. Todavia, o códi-go fala em culpa de terceiros. Fatoculposo de terceiro não exclui. Mas aquestão é: e o fato doloso de terceiro?Não podemos, evidentemente, equiparardolo e culpa. O fato culposo de terceiropode ser, perfeitamente, incluído naqui-lo que muitos autores chamam de for-
tuito interno. Faz parte do risco do negó-cio do transportador. Mas quanto ao fatodoloso de terceiro (como, por exemplo, oassalto e, agora, verdadeiros ataques aônibus, que são feitos quando a políciamata alguém no morro e os bandidos des-cem para queimar os ônibus), pode-seimputar ao transportador o dever de in-denizar se alguém ficar ferido em umamanifestação dessa natureza? Então aítemos o fato doloso de terceiro. Parece-me que continuaremos com a mesma dou-trina, com a mesma jurisprudência e coma mesma controvérsia que até aqui se tra-vou. Há aqueles que entendem, como eu,que o fato doloso de terceiro exclui a res-ponsabilidade do transportador, porque elenão é questão de imprevisibilidade, massim de inevitabilidade. E há outros que en-tendem que não excluiria a responsabili-dade. O Superior Tribunal de Justiça játem decidido dos dois modos, embora es-teja se inclinando, nas últimas decisões,pela não-exoneração da responsabilidadedo transportador no caso de fato dolosode terceiro, como o assalto a ônibus.
Temos a seguir a questão do fatoexclusivo da vítima ou da culpa exclusi-va da vítima, que é, normalmente, ou-tra causa de exclusão de responsabili-dade. A culpa exclusiva da vítima ex-cluiria a responsabilidade do transpor-tador? O código tratou dessa questão noartigo 738. Esse artigo dispõe: �A pes-soa transportada deve sujeitar-se àsnormas estabelecidas pelo transporta-dor constantes no bilhete ou afixadas àvista dos usuários, (...)�. Em outras pa-lavras, está dizendo que o passageirodeva ter um comportamento adequado,de acordo com as regras. Dispõe o pará-grafo único, que nos interessa: �Se o pre-juízo sofrido pela pessoa transportada foratribuível à transgressão de normas e
instruções regulamentares, o juiz redu-zirá eqüitativamente a indenização, namedida em que a vítima houver concor-rido para a ocorrência do dano.� Eis aquia culpa concorrente. E aí então a minhaconclusão: Ora, se o código permite re-duzir a responsabilidade do transporta-dor em razão da culpa concorrente dopassageiro, por mais forte razão teremosque admitir a exclusão da responsabili-dade do transportador se o dano decor-rer da exclusiva atuação da própria víti-ma. Então, mais uma vez os surfistasrodoviários, no meu entender, continu-arão sem a cobertura da indenização dotransportador, se o dano decorrer de fatoexclusivo da própria vítima.
O artigo 741 também é consagra-ção de entendimento doutrinário ejurisprudencial. Ele trata do interrom-pimento da viagem. Todos nós, juízes, jádecidimos hipóteses de interrupção deviagem como overbooking ou, melhorainda, casos em que o avião ou, então,ônibus sofre alguma pane e tem que pa-rar em algum lugar. Nesse caso, temosmandado pagar as despesas de hospe-dagem, alimentação etc. e arrumar logoum meio de transporte para levar o pas-sageiro são e salvo ao seu destino. É issoque está no artigo 741: �Interrompendo-
se a viagem por qualquer motivo alheio à von-
tade do transportador, ainda que em conse-
qüência de evento imprevisível (eis aqui ofortuito interno que não exclui a respon-sabilidade do transportador), fica ele obri-
gado a concluir o transporte contratado em
outro veículo da mesma categoria (....).�
E ainda temos um artigo importan-te que não existia em nenhum disposi-tivo legal com relação ao transporte, oartigo 742. É o direito de retenção, quefoi agora outorgado legalmente ao trans-portador. �O transportador, uma vez exe-
cutado o transporte, tem direito de retenção
sobre a bagagem do passageiro e outros ob-
jetos pessoais deste, para garantir-se do pa-
gamento do valor da passagem que não tiver
sido feito no início ou durante o percurso�.Esse direito de retenção, que já estavaprevisto no Código de 1916 para os ca-sos de depósito e hospedagem, e agora
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estendido pelo novo Código também aotransportador. Muitos entendem queesse direito de retenção seria arbitrá-rio, algo contrário à liberdade etc. desorte que a controvérsia prosseguirá,mormente em face do Código do Consu-midor.
Observo uma omissão no código noque diz respeito ao transporte de passa-geiro. Omissão esta que poderia ter sidosuprida, porque o código teve o cuidadode não cometer essa omissão no que dizrespeito ao transporte de coisas. Há umaquestão que muitas vezes chega ao Tri-bunal e que diz respeito ao momento emque começa e em que termina a res-ponsabilidade do transportador. Essa éuma questão importante porque umacoisa é a celebração do contrato e outraé a sua execução. Nem sempre a res-ponsabilidade do transportador começano momento em que se celebra o con-trato. Compro uma passagem de avião,por exemplo, mas só vou viajar daqui aum mês. Se alguém, que vai viajar deavião, sofrer um acidente quando estáse dirigindo para o aeroporto, a compa-nhia aérea não tem nada a ver com isso.Mesmo que a pessoa argumente que jáhavia comprado a passagem, que ia via-jar e que o contrato estava fechado, nãoimporta, pois ainda não se havia inicia-do a execução do contrato. Uma coisa éo contrato e outra coisa é a sua execu-ção.
Sendo assim, seria muito impor-tante que o código estabelecesse o mo-mento do início da execução do contra-to de transporte e o momento em quetermina essa obrigação. A jurisprudên-cia vem fazendo isto com bastante cui-dado. No artigo 750, o código tratou daquestão com relação ao transporte demercadoria, mas se esqueceu ou nãoquis tratar disso no que diz respeito aotransporte de pessoas.
O artigo 750 dispõe: �A responsa-
bilidade do transportador (e aqui já estána parte que trata do transporte de coi-sas, que começa no artigo 743), limita-
da ao valor constante de conhecimento, co-
meça no momento em que ele, ou seus
prepostos, recebem a coisa; termina quan-
do é entregue ao destinatário, ou deposita-
da em juízo, se aquele não for encontrado�.
Quer dizer, estabeleceu-se quando co-meça e quando termina o transporte decoisas, mas nada tratou com relação aotransporte de pessoas.
Há outras questões relevantes comrelação ao contrato de transporte, mascomo prometi não ultrapassar o tempo,vamos tratar de Contrato de Seguro.Esse contrato é também extraordináriono que diz respeito à sua relevância ju-rídica, econômica e política. Grandesempreendimentos se tornariam inviáveisse não fosse a segurança do seguro. E épor isso que o seguro obteve um desen-volvimento fantástico nas últimas déca-das. Ele circula bilhões de dólares anu-almente. Imaginem o que seria daPetrobrás, se não fosse o seguro, quan-do uma de suas maiores plataformas pe-gou fogo e afundou. Um custo de bilhõesde dólares, o que abalaria a economia atémesmo de uma grande empresa. Imagi-nem o que seria se não houvesse uma redede seguros e resseguros mundial. No casoda destruição das duas torres gêmeas emNova York, não fosse o seguro esse funes-to acontecimento abalaria a economia atéde muitos países. É esta a importância quetem o seguro. No Brasil, de acordo com asestatísticas, somos mais de sessenta mi-lhões de segurados nos vários seguros.Qualquer pessoa de classe média terá, pelomenos, um tipo de seguro, por exemplo, deautomóvel, de saúde etc.
Então, o que vem a ser seguro? Por-que ele tem esta importância, esta enor-me relevância? Costumo contar um fatoreal que nos ajudará a compreender. Nadécada de trinta, quando estavam cons-truindo a grande ponte sobre a Baía deSão Francisco, nos Estados Unidos, osconstrutores se viram envolvidos com umgrave problema: a segurança dos traba-lhadores. Quem ainda hoje sobe ao cimode uma das torres daquela ponte, comcerca de duzentos e vinte metros de al-tura, e olha lá de cima as águas da Baía,a centenas de metros abaixo, não deixade ter um arrepio na espinha. Como se-
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ria possível trabalhar naquelas alturassem o pavor de se precipitar no abismoa qualquer momento? A ponte estava or-çada em trinta e cinco milhões de dóla-res e os operários sabiam que, para cadamilhão a ser gasto, havia a perspectivade que um deles poderia perder a suavida. Importava, então, em dizer que atéa conclusão da ponte cerca de trinta ecinco trabalhadores poderiam morrer. Eisto, a toda evidência, gerou pânico. To-dos trabalhavam com a idéia fixa de quea qualquer momento poderia se transfor-mar em uma daquelas trinta e cinco víti-mas. Por isso a obra caminhava lentamen-te, causando enormes prejuízos, até quealguém teve a idéia de estender, sobretoda extensão da ponte, uma gigantescarede de cordas. De sorte que, se algumoperário caísse, haveria de ser apanhadopela rede. A rede custou oitenta mil dóla-res, mas revelou-se, desde logo, um ex-celente investimento. Tão logo ela foi es-tendida, os operários readquiriram a con-fiança, voltaram a trabalhar novamente,a obra readquiriu o andamento desejado,a ponte foi concluída no prazo previsto e,melhor do que tudo, sem o sacrifício deuma vida sequer. É que agora os operári-os tinham uma resposta tranqüilizadorapara aquela inquietante indagação: e seeu cair da ponte?
Parece-me que esse fato revela quesegurança e proteção são necessidadesbásicas do ser humano, principalmentea partir de uma determinada classe so-cial. A todo instante, estamos nos inda-gando: �e se eu cair da ponte? e se eu mor-
rer? e se eu ficar doente? e se minha casa
pegar fogo? e se roubarem o meu automó-
vel?�. E é exatamente aí que entra a idéiado seguro. Em uma linguagem figurada,poderíamos dizer que o seguro é umaespécie de rede jurídico-econômica quenos protege contra os riscos aos quaistodos nós estamos expostos na vida emsociedade. Todos nós sabemos que o se-guro é fundado, é alicerçado em três ele-mentos essenciais: o risco, a mutualidade
e a boa-fé. Costumo dizer que esses trêselementos são o tripé do seguro, umaespécie de santíssima trindade, uma
trilogia do seguro. Não haverá seguroonde não houver risco, onde não houvermutualidade e onde não houver boa-fé.
O risco é o elemento básico, o ele-mento material do seguro. As pessoassó fazem seguro porque estão expostasa risco. Se você não sentir risco de nada,não vai fazer seguro. E risco é exata-mente perigo, é probabilidade de dano.Nós fazemos seguro quando sentimosprobabilidade de dano, qualquer que sejaa sua natureza.
Mutualidade é o elemento econô-mico do seguro. É uma operação coleti-va de poupança, que é feita por todasaquelas pessoas que integram um mes-mo grupo de risco. Sabendo que possosofrer um sinistro, sofrer um dano emrazão do risco a que estou exposto, pro-curo me precaver estabelecendo algo queme possa reparar o dano se eventual-mente ele ocorrer. E assim, com muitaspessoas, forma-se um fundo capaz debancar os danos decorrentes dos riscosa que pessoas estão expostas. E, a todaevidência, terá que haver (aí está umponto importante) o equilíbrio entre ris-co e prêmio. Prêmio não é aquilo querecebo de indenização, mas aquilo quepago como segurado. Terá que haver umequilíbrio, uma necessária proporciona-lidade entre o prêmio pago e os riscos aque estou exposto, para formar o patri-mônio adequado e necessário para ban-car esses riscos. E isto é calculado atra-vés de dados estatísticos, cálculos atu-ariais, a lei dos grandes números e combastante precisão. É dessa maneira queo seguro se estrutura.
Uma boa definição de seguro, calca-da no princípio da mutualidade, foi aque-la que nos deixou a Rainha Elizabeth I, daInglaterra, há mais de três séculos: �como seguro, o dano é um fardo que pesa le-vemente sobre um grande número de pes-soas em vez de insuportavelmente sobreum pequeno número�. Mutualidade é isso,é divisão dos riscos, de tal maneira quese torne suportável por muitos aquilo queseria insuportável por poucos.
Agora, vem o terceiro elemento - aboa-fé. A boa-fé é o elemento jurídico do
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seguro. Boa-fé é o elemento que ligamutualidade e risco. Mutualidade e ris-co jamais andarão juntos se não houverboa-fé. É a boa-fé que permite entre osegurado e o segurador uma convivên-cia tal, que um contribua para formarum fundo, e o outro, por sua vez, tenhacondições de reparar o dano, o prejuízose, eventualmente, o risco a que estáexposto o segurado vier a se materiali-zar no sinistro. É por isso que os auto-res costumam dizer que a boa-fé é aalma, é a razão de ser do seguro. Ondenão houver a boa-fé, haverá fraude, má-fé. Por essa razão se costuma dizer quea fraude é a maior inimiga do seguro,porque ela desestrutura o equilíbrio quetem que haver entre mutualidade e oprêmio que deve ser pago.
O Código anterior praticamente sófalava na boa-fé no seguro. Costumava-se dizer que a boa-fé era um elementodo seguro, porque só no contrato de se-guro ela era expressamente menciona-da. Aqui, no seguro, não só temos a boa-fé subjetiva, a boa intenção das partes,mas também a boa-fé objetiva, porque,mais do que em qualquer outro contra-to, esta é indispensável no seguro, queé sempre um contrato de trato sucessi-vo. Fazemos seguro por um período, umano por exemplo. Então o contrato vaise prolongar e, embora as partes pos-sam ter boas intenções no momento dacelebração do contrato de seguro, se nocurso do contrato, uma delas passar ater má-fé, procurar aumentar os riscos,por exemplo, ou procurar criar obstácu-los para a execução do seguro, ele setorna inviável. Então, tudo aquilo quefoi dito com relação à boa-fé e que hojeestá sendo cantada e decantada, poispassará a ser um princípio geral do novoCódigo, já era um dos elementos do con-trato em geral.
Feitas essas observações, diriaapenas que o novo Código vai dar ao con-trato de seguro uma disciplina maisenxuta, mais racional. Há no Código de1916 muitas disposições repetitivas eque, com o decorrer do tempo, se mostra-ram inócuas, desnecessárias. O novo Có-
digo fez uma limpeza, deixando apenas ascláusulas e regras que são realmente re-levantes e importantes. E, como não po-deria deixar de ser, os três elementos:risco, mutualidade e boa-fé não só persis-tem, mas foram ainda mais prestigiadose destacados, porque se esses elementosnão forem prestigiados o seguro passaráa ser absolutamente inviável.
Entretanto, o que me parece me-recer destaque é o novo conceito que oCódigo deu ao seguro. O conceito ante-rior ensejava cada definição que, data
venia, era de chorar. Costumava-se di-zer que o seguro transfere o risco do se-gurado para o segurador. Isso é um ab-surdo do ponto de vista jurídico e fático.Com ou sem seguro, quem continua emrisco é o assegurado, é o seu carro, é ooperário que está pendurado em algumlugar. O seguro não transfere o risco.Também não é absolutamente corretodizer que o carro foi segurado, que a pes-soa foi segurada, é uma maneira de sedizer, mas não é isto que foi segurado.Então, qual é realmente o objeto do se-guro? O que é o segurador?
Temos, no novo Código, uma defi-nição que me parece muito bem coloca-da; está no artigo 757, que dispõe: �Pelo
contrato de seguro, o segurador se obriga,
mediante o pagamento do prêmio, a garantir
interesse legítimo do segurado, relativo a
pessoa ou a coisa, contra riscos predetermi-
nados�. Aqui, fico realmente em dúvida,pois quem irá pagar o prêmio? Quempaga o prêmio é o segurado, por isso eucolocaria �mediante o recebimento do prê-mio�, mas, como assim está disposto,vamos entender que onde se diz paga-
mento, leia-se recebimento; quem paga éo segurado e quem recebe é o segura-dor. Depois diz: �garantir interesse legíti-
mo do segurado, relativo a pessoa , con-tra riscos predeterminados�. Primeiroponto que o conceito destaca é: o segu-rador é um garante, por isso digo queele é um prestador de serviço.
Os senhores vejam que, sabiamen-te, o Código do Consumidor, sabendo quehaveria muita reação, colocou expres-samente no conceito de serviço a ativi-
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dade bancária, securitária etc. Inicial-mente, os seguradores quiseram sus-tentar que não eram prestadores de ser-viço porque afinal de contas não presta-vam serviço algum. Mas, na realidade,eles prestam serviço, eles são garantes.Mas o segurador garante o quê? Ele nãogarante a vida do segurado, pois com ousem seguro, o segurado pode falecer; elenão garante que o carro estará semprecom o segurado. O que ele garante é ointeresse legítimo que o segurado tem emrelação a coisas e em relação a pessoas.Normalmente será um interessepatrimonial. O que eu quero quando façoum seguro? Quero, se o meu carro forroubado, ter o patrimônio necessário paracomprar outro, para repor o meu prejuízo.É um interesse econômico. A mesma coi-sa ocorre com o seguro de vida. O que sequer quando se celebra um seguro devida? A pessoa não quer morrer, ela querviver o máximo possível, mas com a ga-rantia, a certeza de que, se morrer, aque-les que dependem dela não ficarão aoabandono, é um interesse econômico.Quando a pessoa faz um seguro de saú-de, não pretende passar dias internadona UTI, ninguém quer isso, ninguém estáinteressado em obter a indenização doseguro, pelo contrário, o que se quer égarantia, segurança, tranqüilidade. É issoque devemos entender por interesse le-gítimo.
Agora, então, o Código estabeleceque o que é segurado, o que é garantidoé o interesse, mas há que ser um inte-resse legítimo. Logo, qualquer interes-se ilícito, ilegítimo, ainda que celebra-do com o seguro, contraria o princípioda boa-fé, contraria a própria razão deser do seguro. Esse conceito está per-feito no meu entender. E mais ainda,destaca aqui que o interesse legítimo égarantido contra os riscos predetermi-nados. Há uma tendência nossa, inclu-sive dos magistrados, de fazer do segu-ro o segurador universal � �Há seguro,então paga tudo, cobre tudo�. Isso violao princípio da mutualidade. O contratofoi celebrado tendo em vista determina-dos riscos, o prêmio calculado é sobre
esses riscos específicos. Aqui está oequilíbrio. A partir do momento em quese começa a incluir, no outro lado, ris-cos que não foram levados em conside-ração no momento da celebração do con-trato, se está quebrando o princípio damutualidade. Pois agora o Código, ape-sar de já o fazer o anterior, diz que os
riscos devem ser predeterminados, que sãoaqueles que foram previstos no contra-to, na apólice. Essa mesma regra éenfatizada no artigo 760, que dispõe: �Aapólice ou o bilhete de seguro serãonominativos, à ordem ou ao portador, emencionarão os riscos assumidos, o inícioe o fim de sua validade, o limite da ga-rantia e o prêmio devido, e, quando for ocaso, o nome do segurado e o dobeneficiário�. Mencionar os riscos assu-midos é vital para se manter amutualidade, o equilíbrio. Quanto ao iní-
cio e o fim de sua validade, há uma dis-cussão muito grande, em certos segu-ros, sobre em que momento começa ounão a obrigação do segurador; se é nomomento em que celebrou a apólice, seé no momento em que se fez o primeiropagamento ou se é depois. Essa é umaquestão bastante controvertida e que nostraz muita dificuldade na vida prática,quase sempre nos inclinamos em favordo segurado, segundo uma tendência na-tural.
O novo Código diz expressamenteque vai valer aquilo que está escrito naapólice. É claro que se aquilo que estáescrito violar o princípio da boa-fé, sefor uma cláusula abusiva, vamos enten-der que isso não vale nada, é como senão existisse. Mas, se for uma cláusularazoável, como, por exemplo, que o se-guro vai valer a partir de 24 horas ouapós o primeiro pagamento, coisas des-se tipo, nós juízes e profissionais de di-reito devemos respeitar porque é issoque está escrito aqui na lei. Se não hou-ver colidência com um princípio maior,como a boa-fé, deve prevalecer aquilo quefoi estabelecido na apólice para o inícioe fim da validade do contrato.
Temos, no artigo 763, uma cláusu-la que colide de frente com a jurispru-
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dência do Superior Tribunal de Justiça.Ainda não é uma jurisprudência pacífi-ca, mas pelo menos um acórdão já vique me deixou até bastante preocupa-do. O caso dizia respeito a um seguradoque estava em mora, até inadimplenteporque estava sem pagar o prêmio hávários meses e precisou do seguro. Osegurador negou-se a pagar a indeniza-ção, levando o segurado a ingressar naJustiça, na qual teve ganho de causa. OSuperior Tribunal de Justiça entendeuque, mesmo estando o segurado atrasa-do, se pagou o prêmio terá direito à in-denização. É isso que preocupa, poisonde fica a boa-fé? Então, faço um se-guro de automóvel e espero; se rouba-rem o meu automóvel, vou lá e pago oque devo, apesar de já ter ocorrido o si-nistro?! Isso viola o princípio da boa-fé,isso é má-fé pura. Não vejo nenhum bri-lhantismo nesse entendimento, contra-ria a estrutura do seguro.
O artigo 763, agora habemus legis
expressa, dispõe o seguinte: �Não terádireito a indenização o segurado queestiver em mora no pagamento do prê-mio, se ocorrer o sinistro antes de suapurgação�. Se essa norma não viola umprincípio de boa-fé, um princípio maior,creio que ela deverá ser respeitada, e,no meu entender, é uma norma atémoralizadora porque impedirá em mui-tos casos exatamente esta posição: doindivíduo aguardar se e quando ocorrero sinistro para só então fazer o paga-mento do prêmio. Aí ele não quer, evi-dentemente, um seguro, pois o contratode seguro é aleatório, ele quer uma in-denização mediante um pagamento in-significante porque a indenização é mui-to maior do que aquilo que ele pagou.
O artigo 765 é a repetição daquiloque está no Código atual: �O segurado e osegurador são obrigados a guardar naconclusão e na execução do contrato, amais estrita boa-fé e veracidade, tanto arespeito do objeto como das circunstânci-as e declarações a ele concernentes�. János referimos a isso quando dissemos quea boa-fé é alma do seguro, o seu elemen-to jurídico, mas é também uma via de
mão dupla porque tanto tem que haverboa-fé do segurador como do segurado.
O parágrafo único do artigo 766 éque me preocupa porque a jurisprudên-cia é tranqüila no sentido de que o se-gurado só perderá o direito à indeniza-ção se de má-fé, intencionalmente, fi-zer afirmações que não correspondem àrealidade, omitir informações que deve-riam ser prestadas, informações que te-riam relevância na formação do contra-to. Vamos ao exemplo do seguro de saú-de: faço um seguro de vida ou de saúdee não informo que sofro de uma deter-minada doença, ou seja, uma doençapreexistente. Então, tem-se entendidoque isso é uma afirmação falsa, fraudu-lenta e conseqüentemente violaria oprincípio da boa-fé. Mas, se eu não sou-ber que tenho uma doença, se eu nãosouber que tenho um problema ante-rior? Aí, nesse caso, não estaria de má-fé e, por isso, a jurisprudência consa-grou o entendimento de que a afirma-ção que não corresponde à verdade sótira o direito à indenização se ela forfeita de má-fé, ou seja, se o segurado,conhecendo o problema de saúde, conhe-cendo a doença, não a informa. Então, aboa-fé é presumida e caberá à segura-dora provar a má-fé do segurado para sóassim não pagar indenização. Agora o pa-rágrafo único do artigo 766 dispõe: �Se ainexatidão ou omissão nas declaraçõesnão resultar de má-fé do segurado (poisse resultar de má-fé ele não terá direi-to a nada), o segurador terá o direito deresolver o contrato, ou a cobrar, mesmoapós o sinistro, a diferença do prêmio�.Aqui, em outra palavras, está dizendoque se o segurado estava de má-fé per-derá tudo, se estiver de boa-fé, mas fi-zer uma afirmação, por exemplo, queestava sadio e, depois, constatou-se queele tinha uma doença, o segurador podedizer que não quer mais o contrato, queeste está rompido, que não pagará a inde-nização e ainda irá cobrar do segurado oprêmio que este devia. Quer dizer, trata-se de uma cláusula feroz, violenta contrao segurado. Já devemos ir pensando nainterpretação que lhe vamos dar.
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Aqui, me parece, houve um retro-cesso, mas a doutrina e a jurisprudên-cia saberão dar o trato adequado à ques-tão a fim de que não haja maiores pre-juízos em matéria de tal importância.O Código disciplinou melhor a questãodo agravamento do risco. Esse é outroponto importante: se quando celebra-mos o contrato de seguro, estabelece-mos um equilíbrio entre risco e prêmio,isso é mutualidade e este contrato detrato sucessivo irá perdurar, será ne-cessário que as partes, na medida dopossível, mantenham o status quo. Osegurado não deve agravar os seus ris-cos, não deve aumentá-los sob pena de,eventualmente, causar um desequilíbriono contrato. O Código de 1916 fala noagravamento do risco e a doutrina e ju-risprudência consagraram o entendi-mento de que esse agravamento só ex-clui a indenização do segurado se forde má-fé, intencional. Por exemplo, moroem uma cidade pacata do interior, etenha o meu carro segurado lá. De re-pente mudei-me para o Rio de Janeiro,onde o roubo e furto de automóveis sãomuito grandes. Aumentei o risco, mas,por qualquer razão, esqueci-me e nãocomuniquei à Seguradora e, de repen-te, o meu carro é roubado. A Segurado-ra vai alegar que se me mudei para oRio de Janeiro e não comuniquei estefato, perdi o direito por ter agravado orisco. Há entendimento jurisprudencialno sentido de só admitir a perda da in-denização quando o agravamento do ris-co for intencional. O certo será imedia-tamente comunicar o agravamento dorisco, mas este só excluirá a indeniza-ção se houver intencionalidade.
Agora o artigo 768 é claro:: �Osegurado perderá o direito à garantia seagravar intencionalmente o risco objetodo contrato�. Não havendo agravamen-to intencional, evidentemente não ha-verá que se falar em perda da inde-nização.
Uma outra norma importante, eque de certa maneira bate de frentecom a jurisprudência do Superior Tri-bunal de Justiça, é a do artigo 781. Ossenhores se lembram da questão con-
trovertida com relação a seguro de auto-móvel: se a indenização deveria ser pelopreço de mercado ou se pelo valor da apó-lice. Essa questão foi muito discutida ehá razões para os dois lados. A alegaçãoprincipal é esta: a indenização não podeser maior do que o valor da coisa. Quan-do foi feito o seguro do automóvel o seuvalor era cinqüenta mil � esse é o valorda apólice � mas quando ocorreu o sinis-tro só valia quarenta mil. Qual deve sero valor da indenização? Cinqüenta ouquarenta mil? Para a seguradora quaren-ta porque este é o valor atual do bem.Mas o segurado pagou o prêmio sobre cin-qüenta. Isso chegou ao Superior Tribu-nal de Justiça, que, inicialmente, enten-deu que era o valor do mercado e depoisdeu uma guinada em embargos de diver-gência em um acórdão em que havia es-tabelecido o valor do mercado. O relatorfoi o nosso estimado Ministro WaldemarZveiter. A partir desse momento, o Supe-rior Tribunal de Justiça passou a enten-der que deverá ser o valor da apólice.
Agora, temos aqui o artigo 781 queme parece ser um obstáculo a esse en-tendimento. O artigo 781 dispõe: �A inde-nização não pode ultrapassar o valor do inte-resse segurado no momento do sinistro, e,em hipótese alguma, o limite máximo da ga-rantia fixado na apólice, salvo em caso demora do segurador�. Em caso de mora dosegurador, manda-se pagar juros e cor-reção monetária. Ao que tudo indica, adiscussão será reiniciada no sentido desaber se essa posição do Superior, a par-tir do Código novo, está em vigor ou não.
Temos outra norma importante noartigo 785 e que também consagrou oentendimento predominante. A tem o seuautomóvel segurado, vende-o para B,transferindo-lhe o seguro. Depois que oautomóvel já está em poder de B, é rou-bado ou furtado. Aí o B vem pedir o segu-ro mas a seguradora alega que tinha se-guro com A, e que este ao transferir oautomóvel sem nada avisar, agravou o ris-co, razão pela qual não pagará a indeni-zação. Há no Código de 1916, uma certadúvida se era ou não possível essa trans-ferência do seguro. Hoje, o artigo 785 con-sagra o entendimento que prevaleceu na
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doutrina e jurisprudência: �salvo disposi-ção em contrário, admite-se a transferên-cia do contrato a terceiro com a aliena-ção ou cessão do interesse segurado�.
Outra questão que foi construçãoda doutrina e da jurisprudência estáconsagrada no artigo 786: a sub-roga-ção. Quando ingressei na magistratu-ra, uma das questões tormentosas erase o segurador tinha ou não o direito desub-rogar-se nos direitos do seguradodepois de pagar a indenização. Haviateses para todos os lados. Finalmente ajurisprudência do STF, cristalizada naSúmula nº 188 consagrou o entendimen-to de que o segurador sub-roga-se nodireito do segurado. Essa súmula estáhoje positivada no artigo 786 que dis-põe: �Paga a indenização, o seguradorsub-roga-se, nos limites do valor respec-tivo, nos direitos e ações que competi-rem ao segurado contra o autor do dano�.O parágrafo primeiro tem uma certa ex-ceção que não nos interessa no momen-to. Os artigos 787 e 788 trataram de duasquestões tormentosas: no seguro de res-ponsabilidade civil, há uma corrente quehá muito tempo vinha defendendo a ad-missibilidade da ação direta do terceirocontra o segurador. Uma pessoa temseguro de responsabilidade civil, comrelação ao seu automóvel, bate em al-guém e, de repente, esse que causou oacidente não tem condições de repararo dano, mas o segurador tem. Então, aquestão é essa: se a vítima, se o tercei-ro que sofreu o prejuízo poderia moveração indenizatória diretamente contrao segurador. Há muito tempo que essaidéia vem sendo trabalhada no sentidode que pode. O Código do Consumidordeu um passo avançado; embora nãopermita a denunciação da lide ao segu-rador, porque senão ele vem para com-plicar o processo, permite, todavia, ochamamento ao processo. E se ele échamado, a execução pode ser feita di-retamente contra o segurador. Era aoportunidade de se dar um passo e de seestabelecer a ação direta contra o se-gurador no caso de responsabilidade ci-vil. O artigo 787 não o fez, dispondo o
seguinte: �No seguro de responsabilidadecivil, o segurador garante o pagamento deperdas e danos devidos pelo segurado aterceiro�. Nos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4ºestabelece uma série de exigências paraque o segurado não perca esse direito.
No artigo 788, entretanto, admitiua ação direta, no caso de seguro obriga-tório, mas não no caso do seguro de res-ponsabilidade civil. �Nos seguros de res-ponsabilidade legalmente obrigatórios, aindenização por sinistros será paga pelosegurador diretamente ao terceiro pre-judicado�. E essa é a norma que me pa-rece deveria estar lá no artigo 787 tam-bém. Seria um avanço, eliminaria umacarrada de ações que ainda hoje acon-tecem, o que de certa maneira, na prá-tica, muitas seguradoras já fazem.Quando ocorre o acidente o veículo éencaminhado para uma oficina autori-zada e ali consertado diretamente.
Com relação ao seguro de pessoas,gostaria de destacar apenas dois dispo-sitivos: o primeiro deles é o artigo 793,que também é uma consagração na leidaquilo que foi construído pela jurispru-dência. Quando entrei na magistratu-ra, se alguém fizesse um seguro de vidapara a sua concubina (que era um pala-vrão), não teria validade. Construiu-se,debateu-se, discutiu-se e a jurisprudên-cia praticamente só não admite comobeneficiária do seguro a amante. Masno caso de companheira, de convivên-cia, admite-se tranqüilamente o seguroem seu favor. O artigo 793 agora consa-gra essa regra: �É válida a instituiçãodo companheiro como beneficiário se, aotempo do contrato, o segurado era sepa-rado judicialmente ou já se encontravaseparado de fato�. Não precisa nem sera união estável. Se houver separação defato, será válida a instituição, vai desa-parecer do novo Código Civil, portanto, oartigo 1.474 do Código de 1916 que dis-põe: �não se pode instituir beneficiáriopessoa que for legalmente inibida e re-ceber a doação do segurado�.
Por último, gostaria de destacar oartigo 798, muito curioso pois agora va-
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mos ter suicídio com prazo de carência.Os senhores sabem que, com relação aosuicídio, a jurisprudência, tanto do Su-premo como do Superior Tribunal de Jus-tiça entendeu que só não é devida a in-denização, se se tratar de suicídio pre-meditado. É raríssimo o caso de suicídiopremeditado. Quase sempre é fruto dedepressão e por isso a indenização ésempre devida, até porque provar a pre-meditação não é fácil. Essa prova cabe-ria ao segurador. O artigo 798 dispõe oseguinte: �O beneficiário não tem direi-to ao capital estipulado quando o segu-rado se suicida nos primeiros dois anosde vigência inicial do contrato, ou da suarecondução depois de suspenso, obser-vado o disposto no parágrafo único doartigo antecedente�. Se a finalidade aquiera afastar a premeditação, acabou-seestabelecendo apenas um prazo maiorde premeditação. Agora, será preciso pla-nejar um suicídio com no mínimo doisanos de antecedência. Se é curioso ounão, é o que está escrito aqui. O legisla-dor entendeu que ninguém vai preme-ditar um suicídio com dois anos de an-tecedência, de sorte que se o suicídioocorrer dois anos após o seguro, presu-me-se que não foi premeditado. Mas seocorrer antes, ainda que seja um infe-liz, com profunda depressão, em um es-tado de alucinação etc, mesmo assim,se aplicarmos a lei , como está escrito,não haverá indenização. É claro que aquitambém vamos ter que fazer distinção,cada caso é um caso. Se evidenciado queo suicídio decorreu de uma situação deangústia, de aflição, de perturbação, dedepressão devida será a indenização.Talvez será caso de se inverter o ônusda prova. Durante esses dois anos, teráque se provar que o suicídio não foi pre-meditado. Depois de dois anos, haveráuma presunção absoluta de que o suicí-
dio não foi premeditado. A interpretaçãoque faço, desde agora, é que nesse perí-odo de dois anos será preciso provar queo suicídio não foi premeditado. Depoisdos dois anos haverá presunção absolu-ta de que não houve premeditação.
Encerro, relatando a história de ummenino, que morava no interior de Mi-nas Gerais, e que um dia veio passearno Rio de Janeiro, com a sua mãe, ondeteve a oportunidade de conhecer o mar.Foi um deslumbramento. Brincou napraia, catou conchinhas, pulou ondas equando retornou a sua cidadezinha na-tal, relatou empolgado ao seu avô a suanova aventura. E terminou o seu relatofazendo uma pergunta: vovô, você tam-bém conhece o mar? Ele que era um ve-lho marujo, com mais de trinta anos denavegação, ao se relembrar, em um ins-tante, das suas profundas experiênciascom o oceano, respondeu com certa in-segurança que também conhecia o mar.
Um novo Código Civil é um oceano,pois aqui está toda a estrutura da ordemjurídica brasileira. Estou querendo dizerque esse oceano que está aqui diante detodos nós pode ser conhecido de duasmaneiras: pode ser conhecido como poraquele menino que brincou na praia eimaginou que conhecia o mar, e pode serconhecido como por aquele marujo, quenavegou trinta anos no oceano, enfren-tou todo tipo de tempestade e ainda ti-nha certa insegurança ao dizer que co-nhecia o mar. Todos nós teremos quenavegar nesse novo oceano, e isso come-çará no dia que esse Código entrar emvigor. Poderemos ficar na praia, brincan-do, ou poderemos iniciar uma viagem fan-tástica e que não terá fim. O objetivo daEMERJ é estimular a todos a que conhe-çamos profundamente esse Código e pos-samos assim dar a ele a aplicação queele merece. Obrigado pela atenção..