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Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR O PECADO: UM REGISTRO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD Nunes, Meire Aparecida Lóde * [email protected] Oliveira, Terezinha** [email protected] Resumo: Esse texto está vinculado a uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo investigar, por meio da análise das obras de Hieronymus Bosch (1450-1516), a História da Educação. Assim, nossa intenção nesse estudo, é enriquecer a fundamentação teórica acerca da contextualização social do pecado, uma vez que essa temática é recorrente nas pinturas de Bosch. Utilizamos as imagens de Bosch e Robinet Tetard (1475–1523), com o intuito de verificar a mesma temática em contextos diferentes. Por meio das reflexões verificamos que o modo de pensar de uma sociedade não muda de modo abrupto, mas sim é decorrente de um longo processo social e mesmo assim, existem temáticas que se perpetuam. Dessa forma, ressaltamos a importância das fontes iconográficas para o estudo histórico, pois, configuram- se um registro de como os homens se posicionaram diante de suas sociedades. Palavras-chave: História da Educação; pecado; iconografia; Bosch e Testard. Abstract: This text is linked to a more wide research, which has as an aim to investigate, through the analysis of Hieronymus Bosch's works (1450-1516), the History of the Education. This way our intention with this study, is to enrich the theoretical knowledge on social contextualization of sin, once that theme is appealing in Bosch’s paintings. We used the images of Bosch and Robinet Testard (1475-1523), with the intention of verifying the same theme in different contexts. Through the reflections we verified that the way of thinking of a society doesn't change in an abrupt way, but it is a result of one long social process and like this, there are themes that last longer. That way we point out the importance of the iconagraphics sources for the historical study, because, they are configured as registration in the way as the men were positioned to their societies. Word-keys: Education History; sin; iconography; Bosch and Testard. Introdução O rompimento de um período histórico para o surgimento de outro não se evidencia apenas em um campo da sociedade e nem ocorre de forma precisa. Esse é um processo lento que rompe gradativamente com determinados pensamentos e pode, mesmo com a mudança generalizada, manter preceitos de outrora. Esse fato pode ser evidenciado por meio do * Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. ** Docente do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá 690

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O PECADO: UM REGISTRO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD

Nunes, Meire Aparecida Lóde* [email protected]

Oliveira, Terezinha**

[email protected]

Resumo: Esse texto está vinculado a uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo investigar, por meio da análise das obras de Hieronymus Bosch (1450-1516), a História da Educação. Assim, nossa intenção nesse estudo, é enriquecer a fundamentação teórica acerca da contextualização social do pecado, uma vez que essa temática é recorrente nas pinturas de Bosch. Utilizamos as imagens de Bosch e Robinet Tetard (1475–1523), com o intuito de verificar a mesma temática em contextos diferentes. Por meio das reflexões verificamos que o modo de pensar de uma sociedade não muda de modo abrupto, mas sim é decorrente de um longo processo social e mesmo assim, existem temáticas que se perpetuam. Dessa forma, ressaltamos a importância das fontes iconográficas para o estudo histórico, pois, configuram-se um registro de como os homens se posicionaram diante de suas sociedades.

Palavras-chave: História da Educação; pecado; iconografia; Bosch e Testard.

Abstract: This text is linked to a more wide research, which has as an aim to investigate, through the analysis of Hieronymus Bosch's works (1450-1516), the History of the Education. This way our intention with this study, is to enrich the theoretical knowledge on social contextualization of sin, once that theme is appealing in Bosch’s paintings. We used the images of Bosch and Robinet Testard (1475-1523), with the intention of verifying the same theme in different contexts. Through the reflections we verified that the way of thinking of a society doesn't change in an abrupt way, but it is a result of one long social process and like this, there are themes that last longer. That way we point out the importance of the iconagraphics sources for the historical study, because, they are configured as registration in the way as the men were positioned to their societies.

Word-keys: Education History; sin; iconography; Bosch and Testard.

Introdução

O rompimento de um período histórico para o surgimento de outro não se evidencia

apenas em um campo da sociedade e nem ocorre de forma precisa. Esse é um processo lento

que rompe gradativamente com determinados pensamentos e pode, mesmo com a mudança

generalizada, manter preceitos de outrora. Esse fato pode ser evidenciado por meio do

* Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. ** Docente do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá

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pensamento religioso que foi predominante na Idade Média e colocava Deus no centro do

universo. No Renascimento essa forma de pensar ganha outros contornos, os quais vão levando

o homem a rever seu posicionamento. Todavia, o pensamento religioso não foi banido da

humanidade ele se perpetua, com outro formato, como podemos verificar no apontamento de

Huizinga (19--, p. 145) ao comentar da morte no declínio da Idade Média “[...] Em tempos

anteriores também a religião tinha insistido no constante pensamento da morte, mas os

tratados religiosos dessas idades apenas iam às mãos daqueles que tinham voltado costas ao

Mundo”. Portanto podemos verificar que um mesmo tema pode ser entendido de forma

diferente conforme o período, ou seja, a forma de entender determinado conceito é uma

conseqüência de como a mentalidade social esta construída.

Diante desse pressuposto, apresentamos nosso tema de abordagem: o pecado.

Sabemos que a sociedade medieval estruturou-se seguindo as regras do Cristianismo, o qual

entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra

sua natureza de pecar, conforme o pensamento medieval, a vida terrena é o local onde essa

batalha deve ser travada. Dessa forma, o pecado pode ser entendido como um preceito para o

comportamento do homem e determinante na organização da sociedade, mas que pode

assumir um significado distinto conforme o período histórico questionado.

Nossas reflexões acerca do pecado serão feitas com o olhar da História da Educação,

sendo que a efetivação da pesquisa será pela analise de imagens, por acreditarmos no grande

valor histórico das fontes iconográfica. Segundo Burke (2004) a iconografia é muito

importante, pois foi usada como uma forma de doutrinação religiosa. Dessa forma “[...] elas

também são um meio, através do qual, historiadores podem recuperar experiências religiosas

passadas, contanto que eles estejam aptos a interpretar a iconografia” (BURKE 2004, p. 58).

Nossa proposta se concretiza pela analise da obra de Bosch, Os Sete Pecados Mortais e o

Quatro Novíssimos do Homem, sendo que o fio condutor se estabelece pela premissa de como

Bosch, enquanto um representante do ideário mental do declínio da Idade Média,

materializava as preocupações acerca do pecado em sua arte. Para dialogar com Bosch,

visando verificar como o pensamento sobre o pecado permanece inserido nas sociedades,

trazemos as iluminuras do século XV do francês Robinet Testard1 (1475-1523).

Nossa opção em refletir sobre a História da Educação por meio da Arte de Hieronymus

Bosch, um pintor que viveu no sul da Holanda durante a Baixa Idade Média, se justifica pelo

fato desse ser um artista, o qual, até os dias atuais, desperta muitas inquietações naqueles 691

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que se deparam e tentam entender suas criações. Autor de uma Arte cheia de especificidades,

muitas vezes, pode nos remeter à um fantástico mundo de sonhos, ou pesadelos, Bosch é a

expressão de muitas contradições que permeiam o imaginário humano e, portanto, pode nos

oferecer muitas contribuições quando se deseja pensar a cerca da desconstrução e

reconstrução do imaginário coletivo que caracteriza o final da Idade Média. Diante dessa

complexidade simbólica que se instaura as obras de Bosch, entendemos que o conjunto de

seus quadros representa uma fonte riquíssima ao estudo da história da educação. Já a opção

pelas iluminuras de Testard, vem pelo fato de verificarmos que mesmo os artistas estando

inseridos em um mesmo contexto histórico, cada um tem suas particularidades decorrentes

das experiências vividas de forma especifica. Assim, propomos o dialogo entre as criações de

dois homens que viveram no mesmo período, porém um francês e outro holandês, com o

intuito de verificar como esses tratavam de um mesmo tema. Ressaltamos que não é nossa

intenção relacionar o contexto dos artistas e nem suas particularidades, nesse momento,

procuramos identificar as similaridades e divergências em suas representações.

O texto estrutura-se partindo da abordagem da obra Os sete pecados mortais e os

quatro novíssimos do homem, pois temos como foco central de nossas pesquisas estudar o

período de transição entre a Idade Média e Renascimento por meio da analise das criações de

Bosch, constituindo-se, portanto, nossa fonte principal de reflexão. Na seqüência entramos na

abordagem acerca da relação entre os pecados, especificamente da gula e da luxuria,

presentes nas imagens de Bosch e Testard.

Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos refletindo os conceitos de pecado no

final da Idade Média .

Bosch foi criador de um legado de obras que produz inquietações àqueles que tentam

decifrá-las, principalmente devido às poucas informações que se tem a seu respeito, o que

dificulta a reconstrução de sua contextualização, mas ao mesmo tempo torna-se fascinante

pelas múltiplas interpretações que nos possibilita. Não se pode afirmar com precisão a

intenção de suas obras, contudo a maioria dos historiadores de arte entende seus quadros

como reflexo das expectativas e angústias do final da Idade Média, como traduções visuais da

mentalidade do homem medievo. Esse apontamento é consolidado quando analisamos a

afirmação de Huizinga (19--, p. 159) que

No final da Idade Média dois factores dominaram a vida religiosa: a extrema tensão da atmosfera religiosa e a marcada tendência do pensamento a

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representar-se em imagens. [...] O espírito da Idade Média, ainda plástico e ingênuo, anseia por dar forma concreta a todas as concepções. Cada pensamento procura expressão numa imagem, mas nessa imagem se solidifica e se torna rígido.

FIGURA 1: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Hieronymus_Bosch-_The_Seven_Deadly_Sins_and_the_Four_Last_Things.JP

Assim, essa busca que se instaura no sentido de expressar o pensamento numa

imagem favorece nosso caminhar rumo ao entendimento desse período por meio da Arte. Para

efetivarmos nossa proposta, adentrando no universo que constitui o pensamento medieval

trazemos um tampo de mesa que Bosch pintou, no qual está expresso os sete pecados capitais.

A obra que recebe o nome de Os Sete Pecados Mortais e o Quatro Novíssimos do Homem traz

uma temática que era muito comum nesse período, pois a Idade Média foi um período em que

o pensamento do homem era conduzido por um ideal de felicidade pós morte. A recompensa,

que seria a vida eterna no Reino dos Céus, somente seria dada a aqueles que conseguissem ter 693

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uma vida terrena condizente com os preceitos de Deus, os pecados constituem-se como

obstáculos a serem vencidos pelos homens. O homem do final do medievo vivia nesse

momento, em uma constante aflição, uma tristeza generalizada, uma falta de esperança que

se agravava “[...] pela obsessão da proximidade do fim do mundo, pelo medo do inferno, das

bruxas e dos demônios. O pano de fundo de todos os modos de vida parecia negro. Por toda a

a parte as chamas do ódio se alteiam e a injustiça reina. Satã cobre com as suas asas sombrias

a Terra triste” (HUIZINGA 19--, p. 30).

A obsessão pela aproximação do dia do Juízo Final, no qual cada um seria julgado de

acordo com seus atos, era um fator que contribuía para a propagação do tema dos sete

pecados capitais. Para entendermos o sentido de pecado vamos nos fundamentar em Tomás

de Aquino2, que na tradução de Lauand (2004, p. 89-90), elucida que “[...] o desejo de

conhecer é natural ao homem, e tender ao conhecimento de acordo com os ditames da reta

razão é virtuosismo e louvável: ir além dessa regra é pecado da curiositas, ficar aquém dela é

pecado da negligência”. Podemos entender que o princípio para o homem não pecar está na

razão. Os atos realizados de forma comedida não se caracterizam como pecado, o que o leva a

este estado é a extrapolação dos limites, o qual se dá pela falta de consciência, ou razão.

Portanto, em um momento em que a sociedade se encontra desorientada, há a necessidade de

uma retomada de consciência, assim quando Bosing (2006) afirma que “É de supor que o

tampo de mesa do Prado servia de incentivo à meditação, nomeadamente, ao exame de

consciência intensivo que todos os bons cristãos deveriam fazer antes da confissão” leva-nos a

entender que a obra de Bosch vem a atender essa necessidade de conscientização, para que

os atos do homem não sejam excedentes ao ponto de transgredirem o bem social.

O fato evidenciado em Tomás de Aquino, do homem ser virtuoso ou pecador como

conseqüência de sua razão e a pintura de Bosch ter a função de meditação, a qual influirá nas

ações humanas, nos leva a uma outra questão característica desse período de transição entre

a Idade Media e o Renascimento: o homem passa ser responsável pelos seus atos. Deus

continua a ser o centro, mas o homem, pela sua razão, é senhor de seu destino, esse

apontamento pode ser verificado ao observarmos o tampo de mesa de Bosch que é composta

por um círculo central, os sete pecados estão distribuídos em volta desse circulo formando

outro maior. A disposição dos pecados em círculo não é inédita, o que de fato é interessante,

de acordo com Bosing (2006), é o fato de Bosch ter transformado essa disposição no olho de

Deus que tudo vê, pois no centro do circulo central está Jesus mostrando suas chagas e a sua

volta está escrito “Cuidado, cuidado, o Senhor vê”. Esse cenário, mostrado por Bosch leva o 694

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medievo a refletir seus atos, pois, a justiça divina que tudo vê, julgará as ações do homem

sim, porém ele, o homem, pode, por meio da razão, ser virtuoso ou pecador.

Em torno da representação de Jesus Cristo, Bosch traz cada um dos pecados capitais3

e nos quatro cantos do painel são representados em pequenos círculos a Morte, o Juízo Final,

o Céu e Inferno. Essas quatro pinturas não serão discutidas nesse momento, pois são temas de

grande complexidade e sua abordagem não está dentro da nossa delimitação que é

estabelecida pelos pecados capitais.

A gula e a luxúria nas criações de Bosch e Testard

Dos sete pecados capitais apresentados por Bosch, nota-se, em outras obras como A

Nave dos Loucos e Alegoria da Gula e da Luxuria, uma tendência em representar

principalmente a gula e a luxúria. Bosing (2006) elucida que durante o século XV ocorreram

muitas críticas a esses dois pecados, sendo entendidos como os mais corriqueiros dentro dos

conventos. Nessa perspectiva, nos delimitamos a fazer alguns apontamentos apenas à esses

dois pecados.

Seguindo nosso delineamento, iniciamos nossa abordagem pela luxuria. Sobre esse

pecado Tomás de Aquino pontua que o prazer sexual e a finalidade da luxuria, sendo esse o

mais intenso dos prazeres corporais e, portanto entendido como vicio capital. Esse vício

capital, que tem como matéria os prazeres sexuais, pode ser isento de pecado quando o seu

fim, guiado pela razão, é voltado à conservação da espécie humana. Contudo, a obra de Bosch

apresenta uma cena que está mais voltada a satisfação carnal. Esse apontamento ganha mais

significação ao observarmos, no lado direito da imagem, um casal cuja aparência nos remete à

dois homens. As relações homossexuais são muito comuns desde a Antiguidade, como podemos

comprovar nos apontamentos de Ullmann (2007, p. 16) “Já no século VI a. C a

homossexualidade estava espalhada amplamente pela Grécia. E devido à pouca oposição do

povo a esse fenômeno, os atenienses, no século IV antes de nossa era, aceitavam, sem

problema, o intercurso sexual entre homens”. Contudo, essa situação não é a mesma na Idade

Média, sendo condenada pela doutrina cristã, pois contraria o destino das relações carnais

pelo fato de não levar a reprodução ficando relegada apenas as satisfações terrenas.

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FIGURA 2: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem (detalhe: Luxúria)

Fonte:

http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jheronimus_Bosch_Table_of_the_Mortal_Sins_(Luxuria).jpg

A ilustração é composta também pela presença de dois outros casais, sendo que um

deles está em segundo plano em posição mais reservada dentro de uma tenda e as condições

em que se encontram proporciona um ar de intimidade devido a proximidade e o gesto que o

homem está em relação a mulher. O segundo casal encontra-se em primeiro plano, mesmo

estando distante do anterior, esses também estão amparados por uma parte da tenda que dá

uma dupla intenção: ao mesmo tempo em que a ação parece ser pública também tem um

aspecto de privado. Observamos no local, sobre uma mesa, uma jarra de vinho e frutos

vermelhos sendo esses símbolos da luxúria, desde a mitologia grega. A relação do vinho como

a luxúria, origina-se dos festivais conhecidos como bacanais em honra de Baco, o deus do

vinho, “Tais cerimônias tornaram-se violentas orgias, nas quais era consumida carne crua de

animais” (CARR-GOMM 2004, p. 35). O vinho, ainda, pode ser entendido como veiculo que leva

ao êxtase, um meio de liberdade dos prazeres, de abandonar a racionalidade, ou seja, um

facilitador à irracionalidade. Entretanto, simplesmente o ato da luxuria em si já conduz à esse

estado

Há um fato evidente: quando a alma se volta veemente para um ato de uma faculdade inferior, as faculdades superiores se debilitam e se desorientam em seu agir. No caso da Luxuria, por causa da intensidade do prazer, a alma se ordena às potencias inferiores – à potencia concupiscível e ao sentido do tato. E é assim que, necessariamente, as potencias superiores, isto é, a razão e a vontade, sofrem uma deficiência (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 108).

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Esse apontamento de Tomás de Aquino pode ser relacionado com a imagem do

francês Testard, que no Livro de Horas, traz iluminuras dos sete pecados capitais. Suas

representações são organizadas em duas partes, uma superior e outra inferior. Na parte

superior observam-se as características que nos remete a cada pecado se configurando na

imagem de um homem, assim, podemos entender o pecado agindo nas faculdades superiores,

na razão, que tem uma conseqüência em seu agir. A ação dos homens tomados pelo pecado

pode ser observada na parte inferior da imagem de Testard, que ilustra uma cena da

sociedade sendo guiada pelas faculdades inferiores do homem.

Figura 3: Luxúria de Robinet Testard (Book of Hours, France, Poitiers, ca. 1475 MS M.1001, fol. 98r)

Fonte: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm

Na imagem que expressa a luxúria podemos observar, na parte superior, um cavaleiro

de aparência jovem usando um elegante traje. A postura do jovem é altiva, mas em vez de

montar um belo cavalo ele esta sobre um bode, o qual apresenta vários significados, sendo

que dentre eles há a relação com a luxúria, como Carr-Gomm (2004,p. 39) aponta “Os bodes

também podem ser associados a Baco ou Pã e seus sátiros libidinosos”. As conseqüências da

luxúria na sociedade encontra-se expressa na parte inferior da imagem, a qual apresenta de

imediato um demônio indicando toda a ação. A cena é composta por três situações, sendo que

na parte central da imagem observamos uma mulher sendo cortejada por três homens. A

mulher está com sua mão direita dada a um de seus assediadores e tem sua cintura tocada por

outro que se encontra atrás dela, o terceiro homem está próximo, mas não a toca. A mulher é 697

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representada com gestos de aprovação, não apresenta nenhuma posição que nos leva a

verificar sua rejeição aos três cavaleiros. No canto direito da imagem encontra-se um casal, o

homem está com a mão direita segurando as costas da mulher e a outra está em baixo de seu

vestido. A mulher está em uma posição em que aparenta resistência à ação do homem. Logo

atrás, que pode ser entendida como um abuso sexual, tem outra mulher que assiste com

conformidade a cenas a sua frente.

Por meio da observação dessa imagem podemos entender que o pecado é aceito e

praticado espontaneamente por uma parte da sociedade, enquanto que por outra não. A

resistência ao pecado não implica sua extinção da sociedade, pois existem questões que não

podem ser evitadas, como no caso da mulher que é molestada, a diferença corporal do homem

e da mulher que proporciona uma maior força física ao homem, permite a ele impor a sua

vontade mesmo diante da reprovação do outro. Temos ainda uma terceira parte da sociedade,

representada na imagem pela mulher que observa a cena e nada faz, que pode ser entendida

como aqueles que por não se manifesta nem a favor e nem contra, contribuem para a

permanência da situação.

Na mesma condição da luxúria, enquanto uma transgressão da razão, situamos a gula.

Esses pecados encontram-se no mesmo campo por serem entendidos como pertencentes às

coisas sensíveis, cujo prazer “se dá no tato: nas comidas e nos prazeres venéreos, daí que a

gula e a luxuria sejam considerados vícios capitais” (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 102).

FIGURA 4: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem (detalhe: Gula)

Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jheronimus_Bosch_Table_of_the_Mortal_Sins

_(Gula).jpg 698

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Para abordarmos a gula retornando ao conceito de pecado e, portanto, novamente as

questões acerca da razão, pois o pecado sempre esta a margem da razão, podendo ser

entendido como uma ação desordenada acarretada pelo abandono às regras da razão. De

acordo com Tomás de Aquino, o que se torna mais difícil de se submeter a razão são os

prazeres naturais como o de beber e de comer. Essa ação desordenada pode ser visualidade na

imagem em que Bosch expressa o pecado da gula, a qual é composta por um homem obeso

sentado a mesa, comendo desenfreadamente. A seu lado tem a representação de uma criança,

também com aspecto obeso, que parece solicitar o alimento. Do seu lado oposto está outro

homem, esse, porém com um biótipo esguio, mas está a beber em uma jarra em uma atitude

que não apresenta nenhuma moderação. Há ainda a figura de uma mulher que traz mais

alimentos em uma bandeja, ela parece observar a cena que é constituída pelo desejo sem

temperança, por isso constitui-se enquanto pecado, pois o ato de comer e beber não é pecado

quando realizado com moderação com a finalidade de manutenção da vida corpórea.

Situação muito semelhante é a que Testard usa para representar a gula. Na imagem

superior, indicando o pecado da gula encontra-se um cavaleiro de aparência obesa, assim

como na representação de Bosch, bebendo diretamente em uma jarra e segurando um enorme

pernil. O animal que o cavaleiro esta montado é um grande javali, também chamado de

“porco selvagem”, o qual Carr - Gromm (2004,p. 187) elucida que “Os porcos também eram

considerados animais gulosos e inclinados à lascívia”.

Figura5: Gula (Book of Hours, France, Poitiers, ca. 1475 MS M.1001, fol. 84) Fonte: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm 699

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A parte inferior é composta, novamente com a presença do demônio que indica a

ação com uma das mãos e tem sua boca tampada com a outra. A cena principal configura-se

com uma mesa que ampara os alimentos. A sua volta encontram-se várias pessoas comendo e

bebendo de forma entusiasmada. No canto esquerdo da mesa observa-se uma mulher

segurando a cabeça de um homem que vomita, sendo essa, a nosso ver, a representação que

mais expressa a falta de temperança e caracteriza o prazer desmedido pelo ato de comer.

Fica-nos evidenciado que as imagens, tanto de Bosch como de Testard, que

representavam os pecados, estão relacionadas às discussões feitas anteriormente por Tomás

de Aquino o que nos leva a entender que os artistas eram conhecedores do significado de cada

pecado. Como pouco se sabe a respeito dos artistas e por não ser intenção do trabalho, nesse

momento, realizar uma investigação biográfica, não podemos afirmar como precisão como

eles adquiriram esse conhecimento. Pelo fato dessa temática ser muito divulgada nesse

período acreditamos que esse conhecimento pode ser proveniente das doutrinas eclesiásticas

ou simplesmente da cultura popular medieval, como afirma Bosing (2006, p. 9), ao se remeter

especificamente a Bosch, valendo-se das investigações realizadas pelo flamengo Dirk Bax,

“[...] devia-se, sobretudo procurar as fontes de Bosch nas doutrinas eclesiásticas e na

linguagem e nos costumes populares do seu tempo”. Contudo, atentamos ao fato de que

mesmo pautado em conhecimento corriqueiros, presente em outros momentos, ambos os

artistas, trouxeram em suas obras uma forma de reflexão sustentada nas questões presentes

em suas sociedades. A ambientação de ambos refletem a sociedade do século XV, Bosch traz,

quase que predominantemente os pecados em espaço externo que evidencia as cidades

holandesas e Testard, situa seus pecados em lugares internos, remetendo-se a corte.

Assim, o estudo realizado vem comprovar nossa inquietação primeira, acerca da

importância de se estudar os registros deixados pelos artistas a fim de entender a mentalidade

coletiva das diferentes organizações em diferentes tempos históricos, bem como, evidenciar

que a ruptura com o imaginário coletivo não se dá abruptamente, mas de forma gradativa,

pois dois artistas distintos do século XV tratam de forma semelhante o mesmo conteúdo que

foi tratado por Tomás de Aquino no século XIII enquanto uma forma de regular a sociedade, e

que nos leva a entender que essa temática ainda estava presente nessa sociedade de embates.

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Considerações finais

Por meio das reflexões desenvolvidas no decorrer do texto pudemos entender que a

classificação dos períodos históricos são necessários para a localização do homem no tempo,

porém a alma coletiva de um povo não muda em uma data especifica, ela vai sendo

transformada ao longo dos tempos. Esse apontamento se evidencia ao abordarmos o pecado,

pois esse tema que agiu durante a Idade Média como uma forma de regular a sociedade,

ainda, no inicio do período subseqüente estava inserido nas reflexões, atuando como

mediadora das críticas às instituições sociais.

Esse apontamento ganha maiores proporções ao observarmos as semelhanças das

criações artísticas de Bosch e Testard, homens que viveram em lugares diferentes, mas que

abordando o mesmo tema se tornam próximo em alguns aspectos. Dessa forma ressaltamos a

importância da fonte iconográfica para o estudo da história de forma geral e, especificamente

à História da Educação.

Referencias bibliográficas

BOSING, W. Hieronymus Bosch: cerca de 1450 a 1516. Entre o céu e o inferno. Paisagem, 2006.

BURKE. P. Testemunha ocular: historia e imagem. São Paulo: Edusc, 2004

CARDOSO, C. F. VAINFAS, R. Domínios da história : ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997

CARR-GOMM, S. Dicionário de símbolos na arte: guia ilustrado da pintura e da escultura ocidentais. São Paulo: Edusc, 2004.

HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. Ulisseia, [19--]

TOMÁS DE AQUINO. Sobre o saber (De magistro), os sete pecados capitais. Trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004

ULLMANN, R. A. Amor e sexo na Grécia Antiga. Porto alegre: Edipucrs, 2007.

1 Essas iluminuras são do Livro de Horas, as quais podem ser encontradas no site: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm 2 As citações feita de Tomás de Aquino são retiradas da obra Sobre o ensino (De magistro), Os Sete pecados capitais que foi traduzida por Lauand, portanto optamos em usar como indicação de referencia o ano de 2004 que é o ano de publicação dessa obra. 3 Usaremos no decorrer do texto pecados capitais em vez de pecados mortais, por aceitarmos os apontamentos feitos por Tomás de Aquino que esclarece que o termo capital vem de cabeça, capite, e ao apresentar três significados do termo coloca que “cabeça significa chefe ou governante do povo, pois os outros membros do corpo são, de certo modo, governados pela cabeça [...]” (TOMÁS DE AQUINO in LAUAND 2004, p. 75). Desse modo podemos entender que dos sete pecados entendidos como capitais derivam outros vícios. 701