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ANA SALDANHA O GALO QUE NUNCA MAIS CANTOU E OUTRAS HISTORIAS -

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ANA SALDANHA

OGALO

QUE

NUNCA

MAIS

CANTOUE OUTRAS HISTORIAS

-

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Índice

O galo que nunca mais cantou ............................. 11

A formiga diligente e o salazar .............................. 17

A vindima da Dona Raposa .................................. 23

Contrato de arrendamento ................................... 29

Quem tem medo do lobo minoritário? .................. 33

DuPontTM – as teias que a aranha tece ................... 45

O coelho sai da cartola .......................................... 53

O galo que não era de Barcelos – uma crisede identidade ........................................................ 63

O gato pardo ........................................................ 69

A ovelha negra ...................................................... 77

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O galo que nunca mais cantou

O nosso galo era bom cantor.Era mesmo bom cantor, tinha boa voz. Estava

sempre a cantar, cocoró-cocoró. Sempre, sempre a cantar, cocoró-cocoró.

Mais veio um dia e não cantou. Outro e mais outro e não cantou. Nunca mais se ouviu cocoró--cocoró. É que nunca mais se ouviu cocoró-cocoró!

E nós ficámos tristes. Gostávamos de o ouvir cantar, de madrugada ou a qualquer hora do dia ou da noite.

E também ficámos intrigados. Porque é que seria que ele nunca mais tinha cantado?

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Chamámos todas as galinhas da capoeira.— Não sabemos o que vos dizer — cacareja-

ram elas em coro.A mais despachada disse:— O nosso galo era bom cantor, tinha boa voz

e estava sempre a cantar. Mas veio um dia, como sabem, e não cantou, e mais outro dia e não cantou. Nunca mais cantou. Nós bem lhe perguntamos o que se passa, insistimos, mas ele mete-se pelos can-tos, não diz nada. Também, ele nunca foi de desa-bafar, é muito introvertido. Espalha-brasas, cheio de garganta, mas, no fundo, um tímido. Não se abre, não diz o que lhe vai na alma. Homens...

Chamámos a nossa vizinha.— Não sei o que vos diga — disse ela, o que

era para admirar. A nossa vizinha sabia sempre o que dizer e dizia-o com muitos pormenores e todos os dias, encostada ao muro que divide os nossos quin-tais. — Eu sempre achei que as galinhas da vizinha eram melhores do que a minha, sabe, vizinha? E que o vosso galo cantava que dava gosto, melhor do que o meu, que é um paspalhão. Tinha-me cá uma voz, o vosso galo! E cantava a toda a hora, que às vezes nem me deixava dormir. Não sei mesmo

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o que vos diga. Será uma fase? Há certas alturas da vida em que uma pessoa, ou um galo que seja, tem, enfim, certas...

Deixámos a vizinha encostada ao muro a falar e fomos telefonar ao veterinário.

— Não sei o que vos diga — disse o veteri-nário.

Tinha auscultado o nosso galo, tinha-lhe me-dido a pulsação e a tensão arterial, tinha-lhe metido uma espátula de madeira no bico.

— Não sei o que vos diga — repetiu.— Foi exatamente o que eu disse — disse a

vizinha, ainda encostada ao muro. — Tal e qual, vejam lá a coincidência.

— O vosso galo era mesmo bom cantor? — perguntou o veterinário.

Excelente, dissemos nós. Melhor do que o dela, disse a vizinha, muito melhor.

— Tinha boa voz?Ótima!Linda, disse a vizinha. Dava gosto ouvi-lo.— E estava sempre a cantar?Sempre, de dia e de noite. Cocoró-cocoró, não

se calava. Até, às vezes, não deixava dormir a vizinha.— Ora bem, fisicamente, aparentemente,

não vejo qualquer problema — disse o veterinário.

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— Mas, se quiserem, levo-o para a clínica, faço-lhe uma série de exames, uma ressonância magnética, um teste auditivo, umas análises ao sangue...

— Obrigada, senhor doutor — disse a nossa mãe. — Acho que não se justifica.

(É que o nosso galo não tinha seguro de saúde.)

Por fim, chamámos a nossa prima Alzira.O que a nossa prima Alzira não sabe de galos

não vale a pena saber. Era a ela que devíamos ter recorrido logo, poupava-se a despesa da deslocação do veterinário e da consulta.

— Não tem que saber — disse logo a nossa prima Alzira. — Então não veem que o vosso galo está de crista tombada, todo murchinho?

Era verdade. Como é que ainda não o tínha-mos notado?

— O vosso galo apanhou mas foi uma valente depressão.

Fez o diagnóstico e receitou, a nossa prima Alzira.

Seguindo as instruções da nossa prima Alzira, começámos a misturar meia pastilha de antidepres-sivo na ração que damos ao nosso galo.

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Agora, ele já canta cocoró-cocó, embora já não tenha boa voz como dantes.

Ah, e a vizinha e as galinhas andam muito mais satisfeitas.

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A formiga diligente e o salazar

Vai, ó preguiçoso, ter com a formiga,observa o seu proceder e torna-te sábio.Ela não tem guia, nem capataz, nem mestreBíblia Sagrada, Provérbios 6.6,7

A formiga é diligente, como as crianças exem-plares dos livros que a avó tem na estante de portas de vidro: «O Américo era um menino muito dili-gente. Todavia, não obtinha resultados. Um dia...»

«Diligente» quer dizer que trabalha muito, que não desperdiça o tempo com coisas sem importância. Quer dizer que não é como o Miguel.

O Miguel já está há um ror de tempo deitado de bruços no chão da cozinha da avó, ao lado da

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Mafalda, a observar a formiga, que é diligente e, todavia...

— É uma tonta — diz a Mafalda.Tonta?Sim, é uma tola de primeira, diz a Mafalda.

Para que anda, neste dia quente de férias, toda apres-sada da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, para a frente e para trás, a carregar um peso enorme, uma migalha de bolo que o Miguel e a Mafalda lhe puseram no meio do caminho? Para quê? A formiga não vai a lado nenhum, só faz-que-faz...

E o formigueiro, onde será o formigueiro?— Deve ser no jardim — diz a Mafalda. — A

formiga deve estar perdida.— E se a ajudássemos? Se a ajudássemos a

encontrar a casa dela?O Miguel fala baixo. A avó está no quartinho

ao lado a ver televisão, está sentada no sofá de veludo vermelho, com a cabeça tombada para o ombro, a boca escancarada e os olhos fechados. O Miguel não quer incomodar a avó, que tanto insistiu para que ele fizesse uma sesta ao princípio da tarde e está ela agora a dormitar depois do lanche.

O Miguel e a Mafalda levantam-se com cui-dado para não esmagar sem querer a formiga.

— Olha — diz a Mafalda —, tu ficas a tomar conta dela, para não a perdermos, e eu vou ver onde é a casa dela. Está bem?

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A Mafalda regressa do jardim com más no-tícias.

— Procurei por todo o lado e não encontrei nada.

— Oh! — diz o Miguel.— Não encontrei a casa da formiga no jardim

— diz ela com um sorriso maroto —, porque... sabes porquê?

— Porquê?— Queres saber?— Quero. Diz!— Porque a casa da formiga deve ser mas é

junto à porta da cozinha! Tem um buraquinho na parede, é lá de certeza.

Está tudo muito bem, mas como é que vão fazer para ajudar a formiga a percorrer a enorme praça que é o chão de ladrilhos da cozinha e a descer a avenida principal, a calha da porta que dá para o jardim?

— Já sei — diz a Mafalda. — Procura aí uma coisa para a empurrarmos.

O Miguel olha à volta. O que poderiam usar?Na cozinha da avó há utensílios para cortar,

para raspar, para coar, para perfurar. Mas nada com que o Miguel e a Mafalda possam ajudar a formiga a chegar a casa.

— Anda lá, que estou farta de desviar a for-miga com este papel.

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A formiga está encurralada, julga-se encur-ralada, está farta de dar voltas sobre voltas para ir sempre ter ao mesmo lugar.

— Já sei! — diz a Mafalda. — Já sei! Ora vê aí na banca se ainda lá está o salazar da tua avó.

Salazar? O que é isso?— É aquela coisa que ela usou para raspar a

tigela do bolo. É uma espátula.Espátula. Só hoje, o Miguel já aprendeu três

palavras novas. Não, quatro: «diligente» e «todavia», da história que a avó leu ao Miguel e à Mafalda quando ainda tinha esperança de que eles fizessem uma sesta; e agora «salazar» e «estálu...» não, «es-plátupla».

Também! A Mafalda só quer ser ela, que coi-sa!

Não, desta vez é o Miguel. Foi ele quem en-controu o salazar, foi ele quem o lavou muito bem lavado (depois de lamber os restos de massa de bolo de chocolate), é ele quem vai ajudar a formiguinha a ir para a sua casinha.

— Sou eu! Se não...Vai dizer: — Se não, choro — mas lembra-se a

tempo que as lágrimas só comovem (e nem sempre) a mãe e a avó.

— Se não — emenda —, mato a formiga.

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É assim, que é para a Mafalda saber que ele não é nenhuma menina. Mata, se tiver de matar, mata, qual é a dúvida? Ele é rapaz, não é uma menina como a Mafalda.

— Ai é? Então olha!A Mafalda pousa a folha branca sobre a for-

miga e espalma-a com a sua mão pequena. Não é o seu primeiro crime.

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