Amizadevergílioferreira

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8 - Julho (sábado). Quantas pessoas te amaram? Quantas amaste? Quantas desperdiçaste no amor que não tiveste? Porque não basta ser amigo, há que saber sê-lo também - prestar atenção, ter o instinto do que é conveniente e amável. Ontem - mais uma vez - pediram-me que respondesse a um inquérito sobre a «amizade». São uma praga estes inquéritos. E batem-me constantemente à porta. Há os privilegiados que não abrem a porta e dizem de dentro que não estão. São os que têm um percurso mais nobre, por cima destas maçadas, mais próprias do proletariado intelectual. Estou fartíssimo disto, como das entrevistas, juro a pés juntos que nunca mais, mas são juras de desavergonhado e embarco sempre. Portanto, a amizade. Fui palrando ao telefone, que escrever é de penitência. A ver agora o que a jovem (tinha voz de jovem) irá cozinhar da conversa. A amizade é coisa da juventude, quando se tem vitalidade que transborda livremente de nós. E é para a vida inteira. Mas a vida separa-nos e fica uma amizade de remissa como um livro que temos na estante e poderemos ainda um dia folhear. Dois jovens separam-se e seguem o seu rumo. E quando casam, há logo a mulher a perturbar o circuito, a menos que se integre nele também. Amizades na idade adulta têm quase sempre outros ingredientes - a política, a literatura e assim. São as que rompem mais depressa e dão às vezes ódios até à morte. E chegados a velhos, a amizade é um encosto, uma bengala em feitio de gente. São os amigos dos jardins, talvez dos asilos, talvez apenas de um hábito que nos ficou de não sabemos quando. Aliás, a memória de como as coisas começaram perde-se muitas vezes. Há pessoas com quem cortámos relações e que estão ainda cortadas, mas já não sabemos porque é que o corte aconteceu. A maior amizade é enfim a de duas pessoas que se sentam num café ao lado uma da outra sem já nada dizerem. É, em variante, o caso de um velho casal que se troca uma palavra de dia ou de noite, é para se injuriarem. Seria um erro pensar-se que se não amam. Amam de verdade, que o amor é muito engenhoso nas suas formas de ser. E tanto assim é que, se um dos dois do casal se passa para o outro lado, o que fica faz normalmente logo as malas e passa-se também. Quantas pessoas te amaram e tu amaste? Pensa. Porque se o souberes, terás talvez sabido por inteiro a tua verdadeira biografia. Vergílio Ferreira, Conta-Corrente, Nova Série, 1993

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diário; amizade

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8 - Julho (sábado). Quantas pessoas te amaram? Quantas amaste? Quantas desperdiçaste

no amor que não tiveste? Porque não basta ser amigo, há que saber sê-lo também - prestar atenção,

ter o instinto do que é conveniente e amável. Ontem - mais uma vez - pediram-me que respondesse

a um inquérito sobre a «amizade». São uma praga estes inquéritos. E batem-me constantemente à

porta. Há os privilegiados que não abrem a porta e dizem de dentro que não estão. São os que têm

um percurso mais nobre, por cima destas maçadas, mais próprias do proletariado intelectual. Estou

fartíssimo disto, como das entrevistas, juro a pés juntos que nunca mais, mas são juras de

desavergonhado e embarco sempre. Portanto, a amizade. Fui palrando ao telefone, que escrever é

de penitência. A ver agora o que a jovem (tinha voz de jovem) irá cozinhar da conversa. A

amizade é coisa da juventude, quando se tem vitalidade que transborda livremente de nós. E é para

a vida inteira. Mas a vida separa-nos e fica uma amizade de remissa como um livro que temos na

estante e poderemos ainda um dia folhear. Dois jovens separam-se e seguem o seu rumo. E quando

casam, há logo a mulher a perturbar o circuito, a menos que se integre nele também. Amizades na

idade adulta têm quase sempre outros ingredientes - a política, a literatura e assim. São as que

rompem mais depressa e dão às vezes ódios até à morte. E chegados a velhos, a amizade é um

encosto, uma bengala em feitio de gente. São os amigos dos jardins, talvez dos asilos, talvez

apenas de um hábito que nos ficou de não sabemos quando. Aliás, a memória de como as coisas

começaram perde-se muitas vezes. Há pessoas com quem cortámos relações e que estão ainda

cortadas, mas já não sabemos porque é que o corte aconteceu. A maior amizade é enfim a de duas

pessoas que se sentam num café ao lado uma da outra sem já nada dizerem. É, em variante, o caso

de um velho casal que se troca uma palavra de dia ou de noite, é para se injuriarem. Seria um erro

pensar-se que se não amam. Amam de verdade, que o amor é muito engenhoso nas suas formas de

ser. E tanto assim é que, se um dos dois do casal se passa para o outro lado, o que fica faz

normalmente logo as malas e passa-se também. Quantas pessoas te amaram e tu amaste? Pensa.

Porque se o souberes, terás talvez sabido por inteiro a tua verdadeira biografia.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente, Nova Série, 1993