_Alvaro Augusto Neves Musolino - Doutorado PDF

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  1 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA-UnB CENTRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO SOBRE AS AMÉRICAS CEPPAC MIGRAÇÃO, IDENTIDADE E CIDADANIA PALIKUR NA FRONTEIRA DO OIAPOQUE E LITORAL SUDESTE DA GUIANA FRANCESA DOUTORANDO:  Álvaro Augusto Neves Musolino ORIENTADOR: PROF.DR. Roberto Cardoso de Oliveira BRASÍLIA/DF 2006

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA-UnB CENTRO DE PESQUISA E PS-GRADUAO SOBRE AS AMRICAS CEPPAC

MIGRAO, IDENTIDADE E CIDADANIA PALIKUR NA FRONTEIRA DO OIAPOQUE E LITORAL SUDESTE DA GUIANA FRANCESA

DOUTORANDO: lvaro Augusto Neves Musolino ORIENTADOR: PROF.DR. Roberto Cardoso de Oliveira

BRASLIA/DF 2006

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LVARO AUGUSTO NEVES MUSOLINO

MIGRAO, IDENTIDADE E CIDADANIA PALIKUR NA FRONTEIRA DO OIAPOQUE E LITORAL SULESTE DA GUIANA FRANCESA

Tese de doutorado apresentada ao CEPPAC/UnB, como exigncia para a obteno do ttulo de doutor em Antropologia Social estudos comparativos da Amrica Latina e Caribe. Em de 02 de maro de 2006.

BRASLIA/2006

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BANCA EXAMINADORA Prof.Dr.Roberto Cardoso de Oliveira (Orientador-Presidente da Banca/CEPPAC)

Porf.Dr.Gillermo Ral Ruben (Membro externo-UNICAMP)

Prof.Dr.Roque de Barros Laraia (Membro Interno-DAN)

Prof. Dr. Paul Elliot Litlle (Membro Interno, Associado-DAN/CEPPAC)

Prof.Dr.Cristhian Thephilo da Silva (Membro Interno-CEPPAC)

Profa. Dra. Alcida Rita Ramos (Suplente- Membro Interno-DAN)

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RESUMO Esta tese resultado de uma pesquisa sobre os ndios palikur, que habitam a regio de fronteira situada entre o norte do Estado do Amap e o Departamento da Guiana Francesa, no Baixo rio Oiapoque, se estendendo pelo litoral sudeste at cercanias de Caiena. Tem por objeto de estudo as relaes proporcionadas pela identidade, etnicidade e nacionalidade deste grupo indgena que se estende pela Guiana Francesa desde a fronteira mencionada, a partir de aldeamentos situados na Terra Indgenas do Ua, no Brasil. Situando-se tambm na Guiana, se encontram nas localidades de Saint Georges, Regina, Ouanary, Roura e Macouri. um grupo indgena cujos membros, nos limites da fronteira, assumem as nacionalidades francesa e brasileira, sem, contudo, abandonar a sua condio de identidade tnica. Neste contexto procurou-se analisar o deslocamento do grupo tnico para o trabalho sazonal, para o casamento, para a manuteno de atividades rituais e religiosas, para a migrao com vistas obteno de cidadania francesa ou de cidadania brasileira, conforme os interesses pessoais, familiares e profissionais, para a assuno de determinada nacionalidade. Esta tese , portanto, resultado de um estudo etnogrfico das relaes intertnicas internacionais do povo palikur nesta fronteira. Palavras chave: ndios palikur, migrao, identidade, nacionalidade, cidadania, relaes intertnicas, fronteiras.

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ABSTRACT This thesis is the result of research about the palikur indians, who inhabit the frontier region between the north of the State of Amapa and the Department of French Guiana, in the lower Oiapoque River, and extends along southeastern coastline, up to near Caiena. The reason for this study is the proportional relationschip shown through identity, ethnicity and nationality of this group of indians whose habitat extends throughout French Guiana, from the afore mentioned frontier, in settlements, situated in the Indigenous Land of Uaa, in Brazil. Also found in the French Guiana in the municipal districts of St. Georges, Ouanary, Regina, Roura and Macouria. It is an indigenous group, whose members at the frontier assume french or brasilian nationality, although they do not give up their ethnic identity. This context has tried to analyze movements of the ethnic group for seasonal work, for marriage, maintenance of ritual and religious activities, migrations in the hope of obtaining french or brasilian citizenship, according to personal, familiar or professional interests. This thesis is, therefore, the result of ethnographical study of inter-ethnic and international relations of the palikur people at the frontier. Key words: palikur indians, migration, identity, nationality, citizenship, inter-ethnic relations, frontiers

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Para Carmo, Pedro e Lucas. Para Maria Vilma, in memoriam (16/01/2006)

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SUMRIO Agradecimentos I Introduo...................................................................................................................................12 II Aspectos Histricos...................................................................................................................19 1- O padro de vida caribe e a falta de estudos aruaque na rea da fronteira Brasil-Guiana francesa...........................................................................................................................................20 2- Histrico dos Palikur ...................................................................................................................28 3- As rotas palikur no eixo Urucau-Macouria ................................................................................43 III - A situao dos ndios Palikur na fronteira do Brasil e Guiana francesa...................................52 1- Comparaes na fronteira Brasil-Guiana francesa.....................................................................53 2- Pontos de confluncia e de divergncia entre as cidadanias do Brasil e Guiana francesa .......69 3- Polticas de atrao de populaes indgenas, preocupaes nacionais ..................................75 IV - Comparaes sobre a cidadania indgena palikur ...................................................................84 1- Cidadania indgena brasileira e cidadania francesa ...................................................................85 2- A migrao e transformao da cidadania .................................................................................90 3- Cultura pr-migratria e ajustes de nacionalidade .....................................................................96 4- A cidadania civil na Guiana francesa..........................................................................................98 5- O mecanismo informal de seleo social na Guiana..................................................................104 V - Observaes sobre o processo identitrio palikur.....................................................................108 1- Sobre as matrizes identitrias.....................................................................................................109 2- O processo identitrio palikur: depoimentos...............................................................................113 3- Situaes de contato intertnico e identidade sistmicas - Uma adaptao necessria da matriz intertnica Cardosiana para a fronteira estudada ...........................................................................127 4- Relaes igualitrias e desiguais entre os palikur relativamente aos Estados Nacionais .........131 5- Identidades tnicas, culturas tnicas, e sistema de dicotomias identitrias intertnicas de fronteira ...........................................................................................................................................135 6- Vnculos ticos do reconhecimento ............................................................................................150 VI guisa de concluso...............................................................................................................160 Bibliografia.......................................................................................................................................168 Sumrio do apndice ......................................................................................................................172

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Agradecimentos

No Brasil.

O percurso desta pesquisa com os palikur vem, desde 1991, quando realizei um survey no qual este povo foi alvo de investigaes no conjunto das terras indgenas do Ua, no Estado do Amap, para a realizao de trabalho de campo que resultou em um mestrado, no IFCH (Instituto de Filosofia e Cincias Humanas) da Unicamp.Meus estudos com este povo ainda pouco pesquisado continuou no curso de doutorado no CEPPAC (Centro de Estudos de Ps-graduao das Amricas) da UnB, em uma situao que envolvia a comparao do tratamento a eles dispensado pelos Estados nacionais do Brasil e da Frana, diante do histrico trnsito transnacional a que este povo tem se dedicado na fronteira entre os dois pases. No CEPPAC no ano de 2001, integrei dois grupos de pesquisa. Dentro do grupo de pesquisas intitulado Identidade, Etnicidade e Nacionalidade em Fronteiras, a partir de 2001 e orientado pelo professor Roberto Cardoso de Oliveira, tive oportunidade de estar em campo nos anos de 2002, 2003 e 2004 perfazendo ao todo seis meses de contato e de pesquisa de campo. No ano de 2002, contei com auxlio de pesquisa em projeto paralelo dirigido professor Stephen Baines do DAN (Departamento de Antropologia) da UnB, associado ao trabalho do CEPPAC, que me possibilitou passagens areas e material de campo, atravs de um financiamento obtido em nosso nome junto ao CNPq. Neste projeto participou o colega de curso no DAN e atual professor do CEPPAC, Christian Thephilo da Silva, que veio a ser membro da minha banca de doutorado. Neste mesmo ano contei para o meu deslocamento na regio norte, com o auxlio das antroplogas Elaine Moreira da Universidade Federal de Roraima, Priscila Faulhaber e Cludia Leonor Garcs do Museu Paraense Emlio Goeldi, da lingista Cndida Barros Drummond e do gegrafo Philip Lena tambm do Museu Goeldi, e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) respectivamente, alm da gegrafa Catherine Prost da Universidade Federal do Par, que me apoiaram durante a minha passagem por Belm, rumo fronteira do Oiapoque. No ano de 2003, contei com apoio financeiro do CEPPAC que na gesto dos professores Henrique Castro de Oliveira e Bencio Schmidt do DATA, me possibilitaram mais uma volta ao trabalho de campo, atravs da concesso de passagem area. Neste ano foi crucial a participao do professor Francisco Queixlos do Departamento de Lingstica da UnB e da lingista Odile Renault-Lescure.Esta por me informar sobre a realidade palikur na Guiana e aquele por me fornecer o contato com o meu futuro co-orientador francs, professor Grard Collomb, para a bolsa de estudos em regime de bolsa sanduche, concedida pelo CNPq, aos quais incluo nas minhas menes de agradecimento. Em Macap remeto meus agradecimentos a Lenira Reis pelo apoio prestado nos contatos conseguidos para a primeira estada em Caiena.

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No ano de 2004, desloquei-me para Paris por trs meses, para realizar pesquisa bibliogrfica para meu projeto de tese intitulado Oiapoque: Uma Fronteira de Identidades Indgenas, vinculado ao projeto maior anteriormente mencionado, e que foi aprovado em fins de 2003 com financiamento obtido atravs do CNPq.Graas a esta pesquisa, pude encontrar a restrita quantidade de dados bibliogrficos sobre os palikur, mesmo na Frana, no EREA/CNRS (Equipe de Recherche en Ethnologie Amerindinne/Centre National de Recherche Scientifique). Por outros trs meses estive acompanhando as rotas dos palikur na Guiana francesa. A todos quero agradecer a participao neste perodo de minha vida acadmica. Estendo meus agradecimentos aos professores Roque de Barros Laraia, do DAN , Paul Litlle do DAN/CEPPAC e Guillermo Rubn do IFCH/UNICAMP, pela participao na banca de doutorado. Quero tambm agradecer ao meu caro amigo, de longa data, Ciro Camillo Menegassi e filhos que me acolheram em Braslia e sem os quais seria impossvel a minha permanncia na cidade. Ao Paulo Carvalho agradeo a preocupao constante com o andamento dos trabalhos e a amizade dedicada. senhora Peggy Edwards agradeo por idntico motivo, logo acima apontado e pelo auxlio prestado com texto na lngua inglesa. Agradeo a compreenso e participao de minha mulher Carmo e de meus filhos Pedro e Lucas pelo sempre presente apoio afetivo, moral e material com os quais pude contar nos anos em que estive longe de minha casa e nas agruras que isto nos causou, durante esta longa viagem. *** Desde 2002 venho agradecendo aos povos indgenas da regio do Ua, e aproveito o ensejo para estender os agradecimentos mais uma vez s pessoas que pertencendo s etnias que habitam a regio indgena do Baixo Oiapoque me possibilitaram contatos em solo guianense. Da Funai de Oiapoque: Domingos Santa Rosa, Mario dos Santos, Wallace dos Santos, Tibrio dos Santos e tantos outros. Do posto indigenista da aldeia palikur de Kumen: Fabiano Macial da Silva, Marina Santa Rosa e Lus Fernando Santa Rosa da Silva. Da aldeia de Kumen (palikur): Senhor Nenlio, Nilo Orlando, cacique Zildo Batista Felcio, Gerome Labont, Manoel Labont, Mateus Batista, Pastor Joo Felcio, Lus Martins, Juscelino Iaparr e toda a comunidade do rio Urucau. Da aldeia Kumarum (galibi-marworno): Cacique Paulo Roberto da Silva, Felizardo dos Santos, cacique Aquilino, Lucivaldo dos Santos e toda a comunidade. Da aldeia Manga (karipuna): Amncio dos Santos, Jason Leal de Freitas, lvaro Silva, cacique Luciano dos Santos, cacique Anik, Dionsio dos Santos e toda a comunidade.

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Da aldeia Galibi do Oiapoque: Geraldo Lod e Gregrio Lod e famlia e toda a comunidade. Da aldeia Ariramba (karipuna e galibi-marworno): Cacique Sab. Da aldeia War (karipuna e galibi-marworno): Cacique Ubirat. Da aldeia Kunan (karipuna e galibi-marworno): Cacique Augusto

Na Frana

Minha rpida estadia nas bibliotecas do EREA (Equipe de Recherche en Ethnologie Amrindienne) de Ville Juif e do Muse de LHomme de Paris foram possibilitadas pelo antroplogo professor Grard Collomb membro da Maison des Sciences de LHomme, o qual colocou-me em contato com a Madame Bonnie Chaumeil, a qual afinal disponibilizou-me os raros livros e documentos sobre a populao palikur que pude encontrar.Atravs dela conheci o pesquisador de comunidades indgenas sul americanas, Pierre Chaumeil, tambm professor em Nanterre (Paris X), que contriburam para integrar este pesquisador naquela comunidade de estudos.A eles envio meus mais sinceros agradecimentos. Aos brasileiros que encontrei neste rpido intervalo bibliogrfico na Frana como Lucas Fretin e Analis, Douglas Costa, Renato Stuzmann e Silvia Tinoco, dedico as minhas gratas lembranas. Especiais agradecimentos ao recm ingressante em curso de doutorado na rea de etnologia indgena em Nanterre, meu amigo Ernesto Morgado Belo, o qual me apoiou bastante em Paris e que em curtssimo prazo soube elaborar um artigo que lhe garantiu o ingresso e financiamento em um Poste de Recherche junto aos ndios maku do alto rio Negro, do qual me orgulho muito em ter contribudo de alguma forma para o seu sucesso, atravs de nossas conversas. Ao amigo Tibor Somogyi quero especialmente agradecer a hospitalidade dos cinco primeiros dias na sua casa em Richebourg e a concesso de documentos que possibilitaram minha regularizao financeira na Frana.

Na Guiana francesa:

Endereo meus agradecimentos s seguintes pessoas que foram importantes informantes ou participaram de meu cotidiano ao longo de minha permanncia em trabalho de campo, abaixo relacionadas nas localidades onde moram. Em Caiena: Michel Launey, professor, lingista e pesquisador dos palikur. Serge Lena, professor na Universit de Antilles-Cayenne, que me prestou apoio e informaes durante meu percurso no pas.A partir de contato predisposto por Bonnie Chaumeil do

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EREA/CNRS (Equipe de Recherche en Ethnologie Amrindienne/Centre National de Recherche Scientifique). Marta Lena, que me prestou grande auxlio durante minha estadia em Caiena. Odile Lescure, pesquisadora do CNRS/CELIA (Centre National de Recherche Scientifique/Centre d`tudes des Langues dAmerique) e IRD (Institute de Recherche pour le Dvelopment) Madame Mauricienne, antiga liderana palikur na localidade de Macouria e organizadora de um centro de cultura palikur em Caiena. Edilma Coelho Barbosa, Monsieur Barbosa e filhos, do Bairro Kabassou. Em Tonate: Da aldeia Macouria/Kamuyuen (palikur): Capitain Jean Narciso, Jos Orlando Filho, pastor Joo Felcio, Faber Labont e toda a comunidade. Em Regina: Da aldeia Ville des Indignes: Aureille Martin e esposa, Madame Kaxuxa e Monsieur Lefred, Irmo Lauro e toda a comunidade. Em Saint Georges: Das aldeias Esprance I e II: Capitain Auguste Labont, Georges Labont e famlia, Cinval Ced, Alfredo Orlando e toda a comunidade. Em Ouanary: Da aldeia de Trois Paletuviers: Capitain Paul Martin e famlia. *** A todas as pessoas do Brasil, Frana e Guiana francesa, com quem convivi neste trabalho, expresso mais uma vez meus agradecimentos, por todo e qualquer tipo de participao nesta viagem s fontes palikur.

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I- INTRODUO.

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As relaes intertnicas do grupo indgena palikur entre os grupos indgenas brasileiros do Baixo rio Oiapoque e as sociedades nacionais envolventes na regio situada entre o Brasil e o litoral sudeste da Guiana francesa o que ocupa o foco principal de nossas observaes. Questes como nacionalidades, identidades e culturas tnicas sero abordadas luz do conceito da matriz intertnica, originalmente proposta por Cardoso de Oliveira (1976, cap. I, II e III) e adaptada a este estudo etnogrfico; alm da idia de Barth (1976:43,48) da irredutibilidade da identidade tnica a novos traos culturais nacionais impostos pela ao dos Estados. Aspectos gerais do trabalho de Rivire (2001) tambm foram utilizados para estabelecer um padro de modo de vida na macro-regio guianense. Ao escolhermos os palikur para este estudo, consideramos a condio privilegiada em que este grupo tnico vive na fronteira entre os dois pases, os quais possuem peculiaridades de ordem constitucional ligadas a cada sociedade nacional. Com a participao competitiva dos Estados nacionais na cooptao das populaes nativas ao longo da histria para integrarem os seus interesses geopolticos, aes protecionistas tomaram formas jurdicas e procuraram, atravs da cidadania, atrair as populaes indgenas. Nesta regio, o intenso contato intertnico dos indos com os Estados-Nao fortaleceu as identidades tnicas remanescentes. Entre elas se destaca a identidade palikur por manter historicamente uma hegemonia cultural e tnica desde os iniciais contatos intertnicos e por ter imposto, no decurso do processo histrico, a sua identidade tnica, o seu territrio e a sua fora de aglutinao poltica, ora absorvendo em seu seio etnias inteiras, ora se aliando a outras etnias para fazerem frente inexorvel dominao das frentes de expanso nacionais. Atualmente, os palikur compem um sistema intertnico que perpassa a fronteira e apresenta dentro dele, um sistema identitrio que contm uma identidade sistmica que se compe da identidade tnica palikur, da identidade brasileira e da identidade francesa. A identidade palikur estabelece uma matriz identitria ou um conjunto de identidades em forma sintetizada que conjuga a indianidade brasileira, a nacionalidade brasileira e a nacionalidade francesa. Assim, uma forma-sntese que se define nas expresses palikur-brasileira, palikurfrancesa, palikur-ndio regional da rea Ua ou palikur-uaaiano so expresses que indicam uma identidade sistmica pertinente ao sistema intertnico transnacional que tem nos palikur seus protagonistas histricos.

*** Os palikur, povo da famlia aruaque tm sobrevivido na regio do baixo Oiapoque desde os primeiros tempos coloniais, miscigenado-se com outros povos indgenas que, porventura, confluram para esta zona em busca de refgio do assdio representado pela colonizao europia. A nao palikur foi uma etnia hegemnica, at meados do sculo XIX, quando, ento, comeou a sofrer um grande e inexorvel declnio demogrfico que a reduziu a pouco mais de

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duas centenas de indivduos nas primeiras dcadas do sculo XX, estudados e registrados etnograficamente pela primeira vez por Nimuendaj. A partir da terceira dcada do sculo XX, contudo, os palikur tm se recuperado demograficamente, apesar de surtos de doenas ocasionais no incio do sculo passado, atingindo na atualidade cerca de duas mil pessoas divididas entre os dois pases e com alta taxa de recuperao populacional. No processo da recuperao tnica, a participao dos dois Estados nacionais fronteirios tem sido decisiva com o oferecimento de servios mdicos de melhor qualidade, e tem possibilitado a instalao dos grupamentos em reas de ocupao indgena resguardadas as particularidades polticas de cada nao que interferem diferenciadamente no modo de vida nacional e, portanto, na cidadania de cada uma das divises da etnia que se agrupam distintamente em cada pas. No Brasil, os palikur se concentram na tradicional zona pantaneira das plancies inundveis do rio Urucau, na bacia do rio Ua, dentro do municpio amapaense de Oiapoque, levando um modo de vida ainda vinculado s suas tradies mais antigas, as quais ainda resistem aos novos tempos, porm sofrendo as vicissitudes relativas ao modo de vida das sociedades envolventes do Brasil e da Guiana. Na Guiana, os palikur espalham-se nas periferias das principais localidades do litoral sul de Caiena, em bairros indgenas (Villes Indignes) com um padro de vida urbano dependente que passaram a adotar ao migrarem para o territrio francs a partir da dcada de 1960. Dcada a partir da qual levas migratrias aconteceram com relativa intensidade por duas dcadas rumo Guiana. Os membros da etnia no Brasil tm migrado sazonalmente procura de trabalho junto a seus companheiros tnicos de nacionalidade francesa. O trnsito dos palikur pela fronteira, traz conseqncias que tm operado transformaes profundas em sua sociedade tradicional do Urucau. Ao abandonarem a partir de meados da dcada de 1960 a prtica do xamanismo, ingressaram na era do protestantismo evanglico que lhes incutiu a rennia das velhas crenas que passaram a ser condenadas, mas ainda sobrevivem resistindo em pequenos focos no protestantes situados em pequenas aldeias. A cidadania francesa passou a ser um objetivo a ser procurado por parte dos emigrantes. Outra parte contenta-se com um trabalho sazonal para se obter dividendos monetrios que reduzem o seu tempo de trabalho anual e no Brasil fornecem financiamento para a compra de mantimentos, remdios e mquinas que acontece com cada vez mais freqncia na vida da etnia no lado brasileiro, influenciada que pela tecnologia e subsdios econmicos e sociais oriundos do primeiro mundo. Nesta etapa, o processo migratrio que aglutina os palikur no entorno das cidades do litoral sul da Guiana e os atrai para o exerccio do trabalho temporrio polticas de facilitao do Estado francs acontecem para que se oferea aos palikur, condies burocraticamente mais brandas para que estes optem pela sua cidadania.

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Como uma estratgia de sobrevivncia da etnia, esta tem se dividido entre a adoo de uma ou outra nacionalidade, alm dos novos componentes de identificao que se juntaram aos elementos tradicionais de sua cultura. A cultura palikur, mais tradicional no Brasil, e bastante transformada na Guiana, contudo, no divide a comunidade tnica que procura sobreviver em atitude de colaborao social e econmica, procurando manter a identidade tnica preservada, apesar das distintas nacionalidades. em cada uma das cidadanias, que assumem os indivduos desta etnia, que residem diferenas de ordem poltico-jurdica e identitria vinculadas, cada uma a seu respectivo Estado. *** Suas aldeias em territrio guianense dispem-se em uma linha de rota migratria que se estendem desde a cidade de Saint Georges de LOyapock na fronteira, passando por Regina, Roura, para terminar em Tonate a noroeste de Caiena. A migrao desta etnia foi observada etnograficamente durante o trabalho de campo no eixo formado entre a aldeia Macouria (municpio guianense de Tonate) e a regio do Urucau (municpio brasileiro de Oiapoque) e foi alvo de pesquisa histrica e antropolgica em bibliografia produzida no Brasil (Arnaud, Arajo Jorge, Carvalho, Musolino e Ricardo) e no exterior (Grenands, Hurault, Launey, Nimuendaj e Passes). Disputados pelos interesses dos Estados nacionais limtrofes, em povoar suas terras, os palikur tm conseguido ampla mobilidade na fronteira, sendo alvo de benefcios prprios das cidadanias de cada pas que lhes facultam condies de participao social sui generis em cada lado fronteira. Os processos de adoo das cidadanias nesta fronteira, portanto, so distintos para os palikur que optam entre uma nacionalidade e outra. Na Guiana francesa, via de regra, seguindo os preceitos constitucionais, cada palikur imigrante alvo de uma poltica de assuno de cidadania que o envolve e seduz atravs de benefcios sociais oferecidos pelo Estado francs, mas que o alija de sua matriz identitria ou forma-sntese identitria, tornando-o compatvel com sua forma de sujeito de direito civil. Isto : torna-se apenas cidado francs que deixa legalmente de ser ndio, porm no deixa de ser membro de uma comunidade tnica. No Brasil, tambm seguindo disposies constitucionais e contando com o amparo das agncias de contato, os palikur tm sido solicitados a permanecerem no Brasil, desfrutando de benefcios, sobretudo legais que os identificam no binmio indgena-cidado, compondo uma matriz identitria ou forma-sntese identitria compatvel com a sua forma de sujeito de direito poltico. No precisam abdicar na forma da lei, como na Guiana, de gozar de sua condio tnica original, para ser cidado. Estas diferenas constitucionais cotejadas, segundo teorias de natureza jurdica, poltica e identitria enfatizadas nas obras de Cardoso de Oliveira, Barth, Marshall, Saes, Maille, e Musolino compem o quadro terico dos processos identitrios observados que ocorrem em

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ambos os lados da fronteira e predispem uma anlise crtica na comparao das cidadanias francesa e brasileira diante da realidade identitria do grupo tnico palikur. *** O trabalho de campo realizado foi ao mesmo tempo instigante, e desafiador. O contato que foi desenvolvido com as comunidades palikur no Brasil e na Guiana Francesa foi muito gratificante, pois se contou com muito apoio por parte das lideranas e dos agentes de contatos externos para poder se integrar s comunidades existentes ao longo da rota migratria. Na rea palikur brasileira, sempre se contou com o rpido auxlio da agncia da FUNAI de Oiapoque, nas visitas de 2002 e 2003 e com a simpatia da comunidade palikur. O transporte e o acesso aldeia principal de Kumen sempre foram facilitados, bastando uma pequena contribuio de ordem financeira para fazer parte das viagens. O alojamento se dava na sede do Posto Indgena. Nas reas palikur guianenses, obteve-se em 2004, muito apoio nas aldeias Esprance I e II (em Saint Georges) por parte das lideranas locais de Georges Labont e Capitain Auguste Labont, os quais ou ofereceram sua casa para o tempo necessrio para a realizao da pesquisa nestas localidades, ou ofereceram o transporte com o qual se pode visitar a aldeia de Gabaret. Esforaram-se as lideranas para obter transporte fluvial gratuito para o andamento desta pesquisa at as aldeias de Trois Paletuviers e Tampak na margem esquerda do Oiapoque, no municpio de Ouanary. Em Macouria obteve-se a condescendncia por parte do Capitain Jean Narciso e Faber Labont (autodenominado presidente da aldeia) para se voltar quantas vezes necessrio. Contudo, o alojamento disponibilizado era uma ampla cobertura de palha de uso comunitrio que no tinha paredes, nem gua corrente, o que dificultava uma permanncia mais longa, obrigando-se ao deslocamento constante para Caiena procura de alojamento, via de regra,difcil. Como o custo de vida em Caiena muito alto, isto limitava, por motivos financeiros, o tempo de permanncia em Macouria. Nos cerca de trs meses de permanncia na Guiana o percurso da rota rodoviria de Saint Georges at Macouria (municpio de Tonate) foi feito por quatro vezes e visitadas as aldeias de Macouria, Favard/Wayam, Regina, Esprance I e II, Tampak e Trois Paletuviers. exceo de Esprance I, os alojamentos nas aldeias francesas eram muito desconfortveis e precrios. Na Guiana, partindo de Saint Georges rumo Regina e Macouria, o transporte rodovirio muito caro e inconstante, nunca se tendo perspectiva segura da data e hora de viagens, a menos que se aluguem txis, cujos servios no so freqentes e raramente disponveis em fins de semana. H na Guiana linhas informais de vans e de automveis particulares que fazem em quatro horas o trajeto Caiena/Saint Georges, ao custo de 35 a 40 euros.Problemas de sade

acometeram o pesquisador que dentro de um quadro de pneumonia progressiva, nos ltimos dias de campo, abreviou sua volta para casa. Apesar dos contratempos acima aludidos, os dados coletados em campo foram suficientes para a realizao do presente trabalho.

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No processo de produo do texto, houve reflexes sobre o campo, procurando aliar a experincia emprica aos dados bibliogrficos levantados, na perspectiva de tecer a histria dos palikur, examinar sua atual situao scio-econmica, comparar diferentes direitos e deveres relativos a cada carta constitucional que definem diferentes situaes de identidade tnica e de cidadanias conjugadas para as formaes palikur francesa e brasileira. *** Para o levantamento historiogrfico e etnolgico foram importantes as consultas realizadas no Muse de LHomme e no EREA/CNRS de Paris onde as poucas obras disponveis sobre os palikur foram encontradas. Nimuendaj, o iniciador dos trabalhos etnogrficos sobre a etnia palikur, ainda segue informativo como fonte histrica, lingstica e etnogrfica, sendo citado constantemente pelos autores franceses que pesquisam na regio da foz do Oiapoque. Os Grenand possuem obras, ainda muito utilizadas no Brasil e no exterior, que comportam muitas informaes histricas acerca das origens e formaes sociais dos palikur. As obras de Dreyfus-Gamelon tambm tiveram sua contribuio, pequena, mas necessria, como veterana das pesquisas sobre a populao palikur na Guiana. Hurault nos apresenta um quadro descritivo da situao scio-poltica em dcadas passadas recentes e na poca crtica (1969) para a sobrevivncia das etnias indgenas do litoral Guianense quando um decreto do Conseil Gnral de Guyanne (CGG) colocou em situao de igualdade jurdica perante a cidadania francesa, os ndios guianenses, forando-os a assumirem o modo de vida urbano, no processo de afrancesamento ento desencadeado. Contribuindo para uma viso das comunidades lingsticas e de comunicao que se formaram no pas, temos Queixals e Renault-Lescure, Launey e Passes. Sendo os trs primeiros lingistas, contribuem tambm para uma viso histrica e etnogrfica do povo palikur, como os Grenand, porm em menor escala. Entre as obras dos autores brasileiros que preponderam sobre os estudos da etnia, est o livro de referncia de Ricardo editado pelo CIMI/ISA (Conselho Indigenista Missionrio/Instituto Socioambiental), o qual foi possvel graas aos trabalhos precedentes dos Grenand e os livros e artigos de Arnaud, do Museu Paraense Emlio Goeldi. Arnaud, que seguindo os estudos pioneiros do Major Eurico Fernandes, funcionrio do SPI na dcada de 1940, realizou importantes estudos etnogrficos e histricos sobre os palikur, podendo ser considerado um continuador das pesquisas iniciais de Nimuendaj. Ele emprestou tese de PHD de Passes sobre os palikur, realizada em 1998 na Inglaterra, inmeras referncias, assim como a obra de Nimuendaj. Os historiadores da diplomacia brasileira Arajo Jorge e Carvalho reportaram as negociaes levadas a cabo entre Frana e Brasil na definio das fronteiras entre os dois Estados nacionais, bebendo na fonte do trabalho do Baro do Rio Branco arquivada no Itamaraty e

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souberam sintetizar atravs de suas obras, os acordos polticos ento adotados na questo da definio da fronteira estabelecida no Oiapoque. Refletindo sobre a situao poltica dos palikur, emprestamos de Marshall, Edelman, Maille e Saes, os conceitos de cidadania e direito nos seus aspectos polticos e civis para frente s Constituies nacionais francesa e brasileira, desenvolver teoricamente a situao jurdica das cidadanias vinculadas noo de sujeitos de direito ora poltico, ora civil, ora ambos, de que podem usufruir os migrantes palikur observados na fronteira considerada.

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II- ASPECTOS HISTRICOS

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1- O padro de vida caribe e a falta de estudos aruaque na rea da fronteira BrasilGuiana francesa Peter Rivire em seu livro O indivduo e a sociedade na Guiana, delineia uma macroregio qual se refere como Guiana, ou ilha guianense, historicamente assim conhecida desde os tempos iniciais da colonizao europia. Esta uma regio circundada pelos rios Amazonas, Negro, Orinoco e canal do Cassiquiare na sua parte fluvial e pelas guas do Atlntico. uma regio que se divide atualmente entre Brasil, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana francesa (2001:22). Apesar de Rivire inserir na sua rea de estudos integrada no que se denomina de regies de campos e serras das Terras Baixas da Amrica do Sul vrios grupos indgenas que se situam ao longo do divisor de guas que separa os rios que desembocam no Atlntico, entre eles grupos caribe, na sua maioria, no inclui os galibi do Oiapoque ou kalina da Guiana, cuja presena na margem brasileira do rio Oiapoque, perto da foz, muito pequena e no determina formas de organizao aos demais caribe, tupi e aruaque situados nesta altura da fronteira do Brasil com a Guiana francesa. Pelo contrrio, assume as formas de organizao social destes.1Por este motivo pouco iremos utilizar esta clssica etnografia geral dos povos caribe da regio, a no ser que identifiquemos tal rea como detentora de uma subcultura, como j ocorreu com Steward no Handbook of South americans Indians2 onde se indicam traos gerais compartilhados pelos povos que habitam a regio. Tais caractersticas gerais podem ser teis para descrever os palikur, inseridos neste meio macro-regional, na falta de melhores descries etnogrficas, contudo elas no representam traos de etnicidade locais, os quais tambm tm mudado constantemente pelo continuado contato intertnico e drasticamente desde a dcada de 1960, como verificaremos na recente histria da etnia mais adiante. Faltam-lhes agrupamentos sociais tais como linhagens, cls, metades, grupos de idade... diz-nos Rivire sobre os habitantes caribe e aruaques da regio (2001:24). Contudo, ele no se aproxima em suas anlises das formas de vida e organizao social existentes no litoral franco-guianense, na extenso de sua delimitao regional pretendida como uma unidade cultural a ser estudada (Melatti, 1997; captulo 2: 1). Sua ateno recai principalmente nas sociedades indgenas que habitam os pases limtrofes com o Brasil ao norte do Amazonas e Rio Negro, dentro da ilha guianense, nas terras elevadas que formam o macio Guianense. Rivire exclui deliberadamente de seu foco de observaes os ianomnis (yanoamas) e os waraos, apesar de serem estes dois grupos os mais numerosos que vivem na regio (2001:22). Em relao aos makuxis (caribe) e uapichanas (aruaques), apesar dos grupos

Rivire assume o fracasso em elaborar um quadro preciso sobre a regio, o que prejudicar o valor do livro que realizou como contribuio a um estudo comparativo mais amplo(2001:22). 2 Steward, Julian H. (org) Handbook of South American Indians in Bulletin of the Bureau of Americam Ethnology, 143,1946-1950.

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constiturem dois dos maiores grupos da regio, Rivire relata que eles receberam relativamente pouca ateno... (2001:25). A sua escolha dos grupos caribe recai ento sobre os apara, wayanas, tiriys, pemons, waiwais, akawaios yekuanas, panares e caribe (kalinas) do rio Barama e do rio Maroni (2001:22).3 As nicas sociedades que se localizam no litoral da guiana francesa e que integram o estudo de Rivire realizado a ttulo comparativo entre as sociedades indgenas da ilha guianense so as duas ltimas. Rivire s cita os aruaques em seu estudo ao se desculpar da pouca ateno dispensada aos uapichanas que, apesar de grande tempo de contato com os no indgenas, seu conhecimento em relao a eles falho e lastimvel, pois eles constituem a maior populao de falantes do arawak na regio e sobre seu grupo lingustico no se possui estudo detalhado (2001,Cf.nota 1; pgina 25). Porm, a falha auto-assumida de Rivire mais ampla que a aquela anunciada na nota de rodap. Melatti reporta-nos que Rivire realizou seu trabalho de campo junto aos tiriys, falantes de uma lngua caribe [...e...] inclui em seu estudo comparativo apenas aquelas sociedades caribe ou a elas semelhantes e as menos modificadas pelo contato no momento em que estudadas pelos seus pesquisadores-fontes, deixando tacitamente de lado os ndios do litoral atlntico, os mais intimamente relacionados com os civilizados e influenciados por eles e as sociedades tupis [emerillon, waipi e karipuna do norte] da fronteira Brasil-Guiana francesa (Melatti, 1997:captulo 2, p.1), bem como as sociedades aruaques da regio limtrofe, entre elas a palikur e a lokono. Tambm os caribe galibi-marworno que habitam o norte do Amap foram deixados de lado no estudo de Rivire. No cremos na ignorncia de Rivire relativamente a estes povos. Acreditamos que foram excludos por serem prximos demais dos civilizados. Dessa maneira, apesar da grande rea de abrangncia do estudo comparativo de Rivire e de sua validade para se estabelecer um padro de estrutura social para os caribe citados nos seus apontamentos, a falta macia dos povos aruaque, dos caribe e tupi brasileiros e franceses parece-nos ser, hoje, uma grande lacuna a ser considerada e preenchida nos estudos da ilha guianense. Como nosso propsito bem mais modesto, abrangendo o extremo norte do Amap na altura do baixo rio Oiapoque e estendendo a rea da pesquisa na senda das mais recentes migraes palikur rumo Caiena e o litoral que se estende desde esta capital departamental francesa at a fronteira setentrional com o Brasil, nos satisfaz as exigncias de observao de campo relativamente aos palikur que, alis, so o objeto exclusivo deste estudo. Esta sub-regio comporta padres organizacionais gerais da rea maior guianense, portanto, mais relacionados com as etnias de lngua caribe.

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Ver no livro de Rivire mapa pgina 23.

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Contudo, particularidades do povo palikur que por seu turno se distinguem dos lokono, etnia tambm aruaque, se encaixam nestes padres organizacionais gerais da rea guianense. Os palikur agrupando-se em aldeias prprias noroeste de Caiena, nas localidades de Macouri e Chaumire e os lokono dividindo seu espao com os imigrantes brasileiros na periferia denominada Kabassou, a sudeste do centro de Caiena. Tal realidade tnica pinada da complexa situao multitnica existente na Guiana francesa, principalmente na capital, nos remetem a um contexto social no qual os universos palikur uno e mltiplos se interpenetram. O universo social palikur sendo nico, enquanto uma identidade social, os inserem por outro lado, pela interao intertnica, em universos sociais mltiplos caracterizados pelas identidades nacionais e tnicas locais, colocando-os em contatos ora intertribais, ora intertnicos. Os grupos palikur analisados no contato se distinguem por meio de elementos culturais, estabelecendo estilos e conjuntos culturais variveis que, no entanto, constituem uma nica forma de identidade cultural original: a identidade tnica palikur, apesar dos estilos culturais variantes determinados pelo meio social de cada Estado-Nao nos quais habitam. Assim, por intermdio de saberes seculares da variao das lnguas, das tcnicas de trabalho, da adoo de novas tecnologias, da insero nos projetos de cidadania, que cada povo na rea adjacente e subjacente do universo palikur, mantm a distino entre si, formando sistemas sociais que se interpenetram e interdependem. De fato, Lvi-Strauss no ensina que: As tcnicas mais simples de qualquer sociedade primitiva ocultaram nelas o carter de um sistema, analisvel em termos de um sistema mais geral. A maneira pela qual alguns elementos desse sistema foram mantidos ou excludos nos permite conceber o sistema local como uma totalidade de escolhas significativas, compatveis ou incompatveis com outras escolhas, que cada sociedade ou cada perodo, em seu desenvolvimento, foram levados a fazer (1967:19). Neste contexto apontado por Lvi-Strauss, se encaixam indivduos que, ao migrarem, assumem o estilo palikur de ser, assim como estes se inserem no estilo de cidadania francesa ou brasileira por livre escolha, para auferirem as vantagens advindas da sua subsuno a um Estado nacional. A histria regional registra vrias etnias que se subsumem a outras, desaparecendo ou formando novos grupos, estabelecendo um fluxo contnuo de migraes, e conseqentemente de novas formaes sociais, revelando a capacidade desses grupos de conservar suas estruturas sociais em meio s condies mais adversas (Rivire, 2001:29). O exemplo que Rivire nos oferece deste fenmeno recai sobre os caribe do rio Maroni (norte da Guiana francesa) que apesar do contato secular que tiveram e que ocasionaram significativas mudanas de ordem cultural e sua quase extino, souberam manter na adversidade do contato intertnico a maior parte de sua estrutura social tradicional (ver nota 3- 2001:29). Isto nos leva a crer que o que fundamental e invarivel a estrutura social, a organizao social

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trilhada pela manuteno da identidade histrica imprescindvel para a sobrevivncia de um grupo tnico. Nesta condio de invariabilidade, a estrutura social tnica utilizada como um elemento atravs do qual a comunicao e o trnsito entre grupos regionais podem ser facilitados e assumidos enquanto um comportamento social manifesto, bsico. E de fato o entre os caribe estudados por Rivire e os palikur, galibi-marworno, e karipuna observados neste estudo etnogrfico. luz da existncia de padres organizacionais comuns, entre as sociedades indgenas do Baixo Oiapoque e litoral sudeste da Guiana francesa, pode-se dizer que a invariabilidade proporcionada por tais padres organizacionais for uma base comum de interao entre os grupos indgenas da regio, na qual os elementos culturais dispem de uma capacidade variante que adotada e denominada particularmente por cada grupo tnico, mas que no fundo cumprem uma finalidade estrutural social semelhante para caracterizar uma cultura, um grupo de comunicaes e uma origem ancestral biolgica ou cultural, comuns. Porm, entre as populaes indgenas franco-guianenses, brasileiras e entre as populaes da ilha guianense, nota-se que os limites entre elas podem ser culturalmente diferenciados e, portanto, imprecisos, representando resultantes histricas distintas, originrias de constantes interaes entre aldeias de etnias diferentes de uma mesma regio ou sub-regio atravs dos casamentos intertnicos, do comrcio e da migrao (Rivire, 2001: 29). Entre os traos comuns de organizao social na regio da pesquisa que realizamos, notamos que a famlia nuclear uma significativa unidade de trabalho que atua desde o desmatamento, s vezes realizados em mutires denominados maiuhis (a palavra da lngua crioula karipuna) realizados pelos homens de uma aldeia como o plantio de uma roa de escala mais ampla, complementado pelas mulheres e contando at mesmo com o esforo de crianas na tutela dos mais pequenos, durante a execuo dos trabalhos, at na proviso de peixes e realizao de coletas. Uma famlia pode-se dizer, uma unidade tcnica de trabalho. Auto-suficiente na sua sobrevivncia. Uma unidade produtiva mnima dentro de um contexto maior de produo, representado nesta regio por famlias extensas ou associao de famlias extensas no seio da sociabilidade tnica ou mesmo intertnica. Neste quadro social muito raro que uma famlia nuclear se distancie na rea da aldeia de outros parentes com os quais forma uma unidade familiar extensa. Quando isto ocorre, geralmente h uma migrao de toda a famlia nuclear para outro stio ou pas no qual encontram parentes ou pessoas da mesma etnia ou etnia conhecida prxima. Os ritos de passagem que fazem parte do ciclo individual de vida exigem a participao integrada dos habitantes de uma ou mais comunidades. Entre os palikur esse nvel de participao envolve a interatividade entre duas ou mais aldeias situadas tanto na Guiana francesa ou no Brasil, muito comumente para se dedicarem comemorao de datas religiosas ou deslocamentos procura de trabalho e casamentos. O ritual tradicional da dana do tur e o culto religioso protestante de longa durao em um ou at trs dias de durao que so tambm

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denominados festas, constituem parte fundamental que antecede os mutires de uma ou mais famlias extensas associadas para o trabalho, e envolvem a derrubada de mata, a preparao do terreno da agricultura de coivara, a colheita e o processamento de alimentos, todos considerados anvit (trabalho conjunto, na lngua palikur), mas que so prtica comum de todas as etnias que se localizam na rea observada do trabalho de campo etnogrfico. Os xams, que exercem o poder da comunicao com os espritos e o mundo invisvel, na Guiana francesa como no norte do Brasil, podem ser homens, mulheres e crianas. Entre os palikur necessariamente eles so homens, quase sempre chefes de famlias extensas que se sagram chefes polticos ou se tornam, desde a dcada de 1960, pastores pentecostais vinculados Assemblia de Deus ou pastores da Igreja Adventista do Stimo Dia, que fundam novas aldeias juntamente com familiares seus que passam a ocupar funes de liderana interna e/ou de representatividade perante os Estados-Nao entre seus comandados. Nesta regio, os xams palikur, caribe e tupi, devido o seu poder de ouvir os espritos, passam a deter o poder poltico da aldeia ou determinam os homens de comando nas aldeias ou mesmo assumem a divulgao e o controle das novas seitas bastante comuns entre suas aldeias tanto na Guiana francesa como no Brasil. O chefe da aldeia (Capitain na Guiana e cacique no Brasil), entre os palikur, quase sempre tem alguma qualificao no campo de conhecimento xamanstico ou tem parentesco com algum xam vinculado a uma famlia extensa; e entre outras qualidades precisa ter generosidade e discurso persuasivo. De nada valer a um eventual chefe palikur o seu posto, se no estiver respaldado por uma extensa rede familiar. Sua palavra deve ser respeitada, e ele deve ser capaz de impor o seu controle absoluto sobre quaisquer fontes de recursos escassos e assim determinar proibies e tabus que visem controlar a reproduo de caa, pesca e recursos da floresta. Os palikur constituem em cada aldeia, unidades autnomas, fazendo com que os chefes se vinculem cada vez mais, dentro do processo histrico do contato intertnico tutela dos Estados, aos quadros polticos institucionais em ambos pases. No Brasil, a autoridade de um chefe palikur atualmente extrapola uma aldeia e se estende via parentesco a pequenas aldeias formadas no entorno de uma aldeia principal. Na Guiana francesa, a autoridade de um chefe palikur restringe-se aos limites da prpria aldeia. *** As novas tecnologias na produo de alimentos e excedentes agrcolas contriburam enormemente para o desenvolvimento da organizao scio-econmica palikur. No Brasil, implementos e insumos agro-pastoris tm sido transferido aos palikur e conseguido o seu sucesso e participao no comrcio regional como produtores de farinha de mandioca.Tambm tm tido algum progresso na criao de gado bovino de corte, uma atividade ainda incipiente entre eles. Na Guiana francesa, contam com subsdios para o plantio, mas suas terras para agricultura so extremamente menores do que as disponveis no Brasil, restando a alternativa quase imposta do trabalho assalariado informal, muitas vezes possibilitada pelos prprios palikur

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que l vivem e que so alvos de financiamento agrcolas ou que sendo integrados cidadania francesa, vinculam-se ao mercado formal de trabalho e sublocam terras e cedem verbas para os palikur brasileiros que migraram em busca de trabalho. Dessa forma, as atuais roas palikur, aumentaram de tamanho e produzem excedentes maiores, os quais so comercializados nos prprios municpios ou consumidos em atividades rituais e inmeras festas. A disponibilidade desses bens de produo agrcola movimenta vrias famlias palikur brasileiras atravs da fronteira rumo Guiana, para realizar o trabalho de plantio de mandioca e produo de farinha, com vistas a obterem algum lucro que lhes garanta a aquisio de bens e vveres que os dispensem do trabalho grande parte do ano, quando voltarem ao Brasil. No processo de acesso aos bens e equipamentos disponibilizados pelos Estados nacionais aos palikur nesta fronteira, a participao dos chefes de aldeia fundamental para que o contato se mantenha, seja duradouro e dessa forma proporcione uma rede social embasada nas alianas para o trabalho realizado com a participao de famlias, alianas matrimoniais e comerciais. Assim constituindo ideais de identidade tnica que se fundamentam em irmandades de consanginidade, ora ficcionais, ora religiosas e ora geracionais. A irmandade ficcional aquela na qual os subgrupos tnicos se relacionam segundo um ideal de formar uma aldeia composta de verdadeiros palikur de uma mesma famlia extensa. Atualmente isso raramente acontece, devido aos freqentes casamentos intertribais/intertnicos. Assim sendo, sempre haver parentes distantes ou estranhos presentes nas aldeias. Mas apesar disso, a pertinncia a uma aldeia pode ser equacionada ficcionalmente com relacionamentos prximos de parentesco [...] a exemplo dos yekuanas, povo caribe da Venezuela que insistem bastante em manter a crena de que uma aldeia um todo consangneo, unificado e solidrio (Arvelo-Jimenez apud Rivire, 2001:56). Rivire atribui nessa descrio de Arvelo-Jimenez, fundamental importncia, pois diz que: Embora nem sempre [...tais idias...] sejam expressas em termos semelhantes ou colocados com a mesma explicitude, verificamos que estas idias e identificaes esto presentes em toda a regio da ilha guianense (2001:57). As irmandades geracionais se estabelecem segundo um critrio de irmandade categorial ampla, prpria entre os palikur para formar grupos sucessrios de chefia, na falta de descendncia masculinas (filho do Capitain/Cacique ou filho da irm do Capitain/Cacique), para dar continuidade poltica a uma famlia extensa no comando de uma aldeia. A migrao de famlias extensas ou parte delas com suas respectivas lideranas para fundar novas aldeias na Guiana francesa ou no Brasil possibilitou o surgimento de um modelo genrico da genealogia das alianas de poder na rea do rio Ua, no Amap, atravs de um conceito de irmandade geracional, que uma irmandade categorial ampla, poltica, consangnea ou no, observada entre os palikur no Brasil. Este modelo tornou fluidas as relaes de irmandade categorial ampla, pois a colocou no lugar da irmandade consangnea como elemento necessrio e suficiente para que ocorressem

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alianas entre famlias no necessariamente formadas a partir da consanginidade (Cf. Musolino,1999:161). Dessa forma, a maioria dos laos de parentesco entre os caciques do rio Urucau, no Amap, fictcia, ou seja, no reflete parentesco consangneo e deve-se mais ao significado extenso do termo irmo (Galvo, 1979:94). A irmandade religiosa estabelecida por fora da historicamente recente transformao religiosa entre os palikur um caso ampliado dos critrios de irmandade geracional, pois se adotando o significado extenso do termo irmo, alcana-se a noo de irmandade geracional e de irmandade tnico-religiosa, ambas ampliadoras da noo categorial de irmandade consangnea. Tal fato implementou as alianas polticas entre as famlias extensas, formando grupos hegemnicos na rea palikur do Brasil. As noes de irmandade reunidas, principalmente a noo de irmandade religiosa tornouse um forte gerador de sinal diacrtico da identidade palikur. Geraes mais recentes dos palikur da Guiana francesa e do Brasil diferem bastante em seus traos culturais locais, preservando, contudo, os diacrticos de sua etnia e de sua irmandade ampliada. Os palikur guianenses mais jovens s vezes s se expressam plenamente em lngua crioula ou em francs, guardando apenas rudimentos da lngua palikur. Os palikur brasileiros se expressam em palikur e em portugus, o que dificultaria aparentemente a interlocuo entre as geraes mais recentes dos palikur considerando a socializao existente nos dois lados da fronteira. Mas uma grande parcela dos palikur de ambos pases falam bem o crioulo karipuna, lngua franca dessa regio do norte do Brasil e sul da Guiana francesa. Identificam-se tambm pelas religies pentecostal e adventista que tm em comum, conforme aludido. Uma grande parte dos palikur mais velhos esforam-se para ensinar nas aldeias do territrio francs a sua lngua materna que menos falada pelos jovens em idade escolar, pois o Estado francs no apia escolarizao nem alfabetizao na lngua palikur. oferecida apenas a escola oficial na lngua francesa. Qualquer esforo no sentido de implantar uma escola na lngua palikur de iniciativa estritamente ligada s geraes mais antigas, que luta com dificuldades para conseguir este intento. A lngua que possibilita atualmente o entendimento entre as novas geraes de palikur em ambos os lados da fronteira , portanto, o crioulo karipuna. Rivire (2001:108) aponta uma caracterstica histrica regional para as populaes indgenas que a migrao quando as aldeias tornam-se instveis por excesso de populao nelas ocorrendo cises. Entre os palikur, a natureza de tais cises se atribua a disputas xamansticas e na medida em que as aldeias cresciam tornava-se cada vez mais difcil manter a fico amplamente divulgada de que seus moradores constituam um ncleo de parentes consangneos e solidrios. O conflito um fato imanente nas aldeias indgenas da regio. Quanto maior a aldeia maiores as disputas e as crises conseqentes deste crescimento e menores as possibilidades de resoluo. Quanto maior a aldeia, mais doenas e mortes ocorrem e tanto maior a suspeita de feitios que atingem os grupos politicamente dissidentes daqueles hegemnicos. As suspeitas de

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feitio recaem sobre os indivduos co-residentes mais recentes na localidade. Portanto, os conflitos levam a uma ruptura dos relacionamentos sociais e conseqente ciso das aldeias. Mas os palikur afirmam que depois da evangelizao proporcionada pela religio crist trazida por pastores norte-americanos, serenaram-se os nimos, no crem mais em feitios e esto em paz com todos os seus irmos... (Dados de campo). A partir dos conflitos intratribais das dcadas de 1950 e 1960 nos quais os palikur partidrios de um ou outro xam trocavam acusaes de feitio e malevolncia para justificar doenas e mortes, importante que lembremos que as suas movimentaes migratrias tambm ocorrem por outras razes: para realizar relacionamento ritual, danar, negociar, visitar parentes, explorar recursos naturais, trabalhar sazonalmente, procurar servio mdico, procurar terras no Brasil, receber casa de alvenaria na Guiana, tornar-se cidado francs, tornar-se ndio brasileiro, realizar casamentos, experimentar novos ou tradicionais modos de vida (dados de campo). Esses fatores de migrao ajudaram a formar uma rede social geograficamente restrita. No caso dos palikur, que se localizavam preferencialmente entre a foz do Oiapoque e a foz do Approuague at meados do sculo passado, atualmente estenderam sua rede de aldeias para o entorno de Caiena, passando pelos municpios de Saint Georges e Regina e na rota terrestre recm aberta, a Route National-2 (RN-2), tendem a fundar novas aldeias. Tambm na rea Indgena Ua, no municpio de Oiapoque, tendendo a fundar novas aldeias, principalmente na BR-156, estrada federal que corta a rea, com perspectivas de realizar comrcio na cidade de Oiapoque, viajar para Macap ou migrar para a Guiana.

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2- Histrico dos Palikur

Os palikur foram avistados pelos europeus pela primeira vez em 1500 quando o navegador espanhol Vicente Yanez Pinzn, em seu relatrio de viagem datado de 1513, os denomina de paricura, registrando a existncia de uma provncia Paricura em meio a um conjunto de vrios grupos indgenas, cujos territrios se interpenetravam e mudavam constantemente dentro da dinmica existente entre suas formaes sociais. O navegador ingls Laurence Keymes, em 1596, realizou uma expedio exploratria nas costas da Guiana, onde assinalou a presena de doze naes indgenas. No litoral, a parte ao norte do rio Oiapoque era ocupada por ndios caribe. A parte sul do mesmo rio era ocupada por ndios aruaque (Arnaud-1984:12). No sculo seguinte o povo palikur foi confundido com freqncia com outros povos da rea do baixo Oiapoque, notadamente com os marawanas e os arikari (Nimuendaj, 1971[1926]: 15). O crescente assdio colonizatrio no Amap envolvendo a Frana, Portugal, Inglaterra e Holanda induziu os povos indgenas da rea situada entre o Amazonas e o Oiapoque a migraes para o norte, quando ento as incertezas sobre suas identidades comearam a ser melhor esclarecidas atravs da documentao colonial. As disputas coloniais entre os europeus na regio levaram muitos destes povos indgenas guerra, como seus aliados. Das guerras, a mais lembrada foi a ocorrida entre os grupos aruaques, particularmente os palikur e os galibi, do grupo caribe, atualmente denominados kali`na, que foram seus inimigos tradicionais e cuja memria histrica coletiva ainda guarda sobre a guerra numerosos traos. Os palikur e galibis viveram desde os primrdios da colonizao as presses e contrapresses geopolticas francesas e portuguesas e depois brasileiras sobre a regio. Dentro dos interesses distintos dos Estados coloniais, imperiais e republicanos sobre a regio fronteiria, os poderes poltico, militar, econmico e religioso eram instrumentos de conquista e de consolidao das estruturas geopolticas intencionadas pelas potncias nacionais em litgio, pela dilatao das fronteiras disputadas. Neste contexto as populaes indgenas jogavam um papel fundamental de aliana, para o estabelecimento e fixao das fronteiras pretendidas.Pois a elas caberiam, fazer o comrcio representar as naes europias aliadas, fornecer homens para lutar e serem alvo de catequeses por parte dos colonizadores. Os franceses passaram ento a procurar a amizade e a aliana com os palikur de quem conseguiram a aquiescncia, aps os trabalhos missionrios iniciados por volta de meados do sculo XVII, para dar combate aos galibi que resistiam colonizao na regio de Caiena (Launey, 2003:13-14). ***

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importante retomar-se alguns dados histricos das alianas palikur pregressas do incio do perodo colonial francs, para melhor entender a sua proximidade dos franceses desde os primeiros tempos do contato. Em 1590, tem-se notcia de que os palikur aliaram-se aos yayo contra os galibi (Passes, 1998:4). La Ravardire e Guy de Mocquet, em 1604 assinalaram a presena de uma confederao formada por ndios "yayo" e "karipoun-palikur" para combater os galibi, cuja populao Mocquet avaliou em cerca de quatro mil ndios (Arnaud-1984:12). Em 1623, uma expedio comandada por Jess de Forest e Louis de Maira navegou pelos esturios dos rios Ouanary e Oiapoque, encontrando os "yayo", "maraone" e "arouk", desenvolvendo relaes pacficas. dessa poca que se tem informao de uma guerra intertribal entre os palikur do rio Cassipor e os galibi da regio de Caiena.(Arnaud-1984: l3; Hurault,1972:69-353). Nos primrdios, os contatos entre europeus e indgenas eram espordicos e destinados basicamente ao escambo de madeiras, drogas da mata e produtos de caa e pesca. Nesta poca, o contato com os europeus (portugueses, franceses, holandeses e ingleses) era pacfico e assim se manteve at quando estes iniciaram a colonizao efetiva, atravs de instalao de benfeitorias, utilizando a fora de trabalho indgena nas plantaes. A reao dos povos nativos foi violenta, transmutando-se de um relacionamento pacfico para combates que se estenderam por dcadas a fio no sculo XVII. No ano de 1624, Forest consegue a paz entre os grupos galibi e palikur sob a gide da Companhia das ndias Ocidentais que o enviara para reconhecer a regio e fundar estabelecimentos comerciais. Essa paz durou at 1643, quando mercenrios franceses, atravs da Companhia do Cabo Norte, desencadearam um processo colonizatrio na regio que contou inicialmente com o apoio dos galibi para dar combate aos palikur, que resistiram a esse processo. Entretanto, os franceses novamente voltaram-se contra os galibi, saqueando suas roas e tentando convert-los em fora de trabalho escravo, o que os obrigou a refugiarem nas reas de domnio holands, entre os rios Essequibo e Maroni (Hurault, 1972:79). *** Desde o final do sculo XVI at o final do sculo XVII, os povos "tucuju", "maraon", "aroaqui" e "aru" - atualmente extintos - impediram a fixao dos europeus na rea. Os aru, particularmente apoiados pelos franceses, deram combate sem trgua aos portugueses, na regio do delta amaznico, at acomodarem-se nas cabeceiras do rio Ua onde coexistiram pacificamente com os galibi, sendo por eles, por fim, integrados. Durante essa poca, os galibi ofereceram resistncia ao assentamento colonial francs na regio de Caiena.A resistncia indgena impediu, no ano de 1639, a implantao da Capitania do Cabo Norte, primeira tentativa portuguesa de colonizao da costa do Amap. (Ricardo, 1983:7).

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Os portugueses passaram a estabelecer os primeiros aldeamentos missionrios, a partir da segunda metade do sculo XVII. Desta data, passaram a assediar as costas do Amap com tropas de ndios aportuguesados, para dar combate aos ndios locais, principalmente aos palikur, maraon e aru (aruaques), aliados dos franceses. Datam de 1652/1653 os relatos do jesuta Biet sobre os palikur na regio do cabo Orange, tendo os galibi como inimigos. Datam de 1666 os dados obtidos pelo governador da Guiana, Lefbvre de La Barre sobre a populao indgena situada entre os rios Cassipor e Maroni, que foi avaliada em cerca de trs mil e quinhentos ndios aos quais de somavam os palikur, os "karipuoas" e os "yao" (Arnaud, 1984:14). Estes ndios eram aliados no combate aos galibi. Os palikur em torno de 16504 uniram-se aos marau (maraons) para combater os galibi que por volta de 1690 comearam a retirar-se para a Guiana francesa, restando um grupo de seus descendentes que se reassentaram no norte do Amap, como veremos mais adiante, nas cabeceiras do rio Ua. O final do sculo XVII na regio caracterizou-se pelo esforo do governo de Caiena em apaziguar a guerra entre os palikur e os galibi na qual o Marqus de Frroles, governador colonial francs, exerceu esforos nesse sentido. (Arnaud, 1984:14).Em 1691, os franceses conseguiram formular a paz entre os galibi e os palikur.Desde ento estes ltimos enfrentaram forte queda demogrfica no contato com os europeus, que lhes passaram doenas, que os debilitaram enquanto povo guerreiro (Launey, 2003:14). E os enfraqueceram diante dos portugueses com seus aliados indgenas que lhes davam combate.Por este motivo, como uma estratgia de preservao e de defesa do grupo ameaado, alm da aliana com os franceses, passaram os palikur a associarem-se a outros povos indgenas locais ou migrantes para fazer frente colonizao portuguesa.Dessa forma reestruturaram-se atravs de estabelecimentos de alianas polticas, matrimoniais e qui comerciais para retomarem sua hegemonia regional.Assim, na regio do baixo Oiapoque por volta de 1650 at atingir o sculo seguinte, os palikur passaram por processos de associao com os povos marau e arikari, acima mencionados, mas tambm h registros de sua unidade com os aru, may e tokoyene que foram seus aliados, envolvendo-se na disputa territorial entre Frana e Portugal pelo controle do Amap (F.&P. Grenand,1987:21-29). Nimuendaj (1971[1926]: 5-8) assinala que de 1680 a 1794 os ndios dessa regio foram abordados e capturados pelos jesutas franceses enviados por Caiena, para a catequizao e pelos escravizadores portugueses.

Em 1653 o padre jesuta Antoine Biet visitou os palikur e reportou a Caiena a tribo denominada de palicours, situados no norte do Amap.A partir de ento passaram a ser conhecidos por este nome. (Nimuendaj. 1971[1926]:1-4;F.&P.Grenand,1987:21-22; Passes,1998:4;Launey,2003:13).A partir de ento o trabalho catequtico os aproximou de Caiena.

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Entre os anos de 1720 e 1780, os palikur foram intensamente disputados entre os catlicos franceses e os escravizadores portugueses. Os portugueses agiam em aliana com outros ndios, tais como os waipi do alto Oiapoque. Na dcada de 1790, sob os efeitos da ao colonial, os palikur sofreram forte baixa demogrfica resultante de lutas, deportaes e migrao. Nesta dcada, no atingiam mais de mil pessoas ( Grenand, P. ,1979:4; Passes,1998:5). Os povos indgenas do litoral do Amap e delta amaznico entraram em contato com as vagas colonizadoras com maior intensidade a partir dos sculos XVII e XVIII, portanto. A regio do litoral do Amap at as ilhas da foz do Amazonas foi a nica rea onde os europeus implantaram a colonizao, que utilizava como ttica a presena exclusiva de povos indgenas que, ora eram vistos como aliados, ora como inimigos, como acima se argiu. Durante o sculo XVIII, os ndios palikur, maraon, galibi, aru, may e tokoyene resistiram fixao efetiva das bases coloniais. E foram envolvidos nas contendas militares entre Frana e Portugal. Entretanto a falta de definio poltica (como conseqncia do Tratado Provisrio, de 04/03/1700, assinado em Lisboa entre Portugal e Frana, sobre essa regio, que estipulava que os portugueses podiam operar at a margem meridional do rio Oiapoque e os franceses at a margem setentrional do rio Amazonas) que de fato acabou por determinar a proeminncia da ao indgena. Por ser uma rea de contestado onde os limites de fronteira no estavam definidos, a rea situada entre a foz do Amazonas e a foz do Oiapoque continuou a ser terra de ndio (Carvalho, 1959:197). No litoral do Amap, os ndios aliavam-se aos franceses ou aos portugueses conforme se estendia a disputa entre estes pelo domnio da regio contestada. Tanto portugueses como franceses organizaram expedies punitivas e de aprisionamento que objetivaram arregimentar fora blica e de trabalho, desarticulando a organizao social dos inimigos nativos. Esta ao somada ao catequtica (dos descimentos indgenas prximos de Belm) resultou no despovoamento da regio ao longo do sculo XVIII (Ricardo, 1983:7). As expedies de retaliao portuguesas afastaram as populaes indgenas para a Guiana e para a regio situada entre os rios Oiapoque e Cassipor. Essa regio concentrou os grupos remanescentes do litoral amapaense, que compem hoje a base da populao indgena que vive na bacia do rio Ua. De fato, em 1722, tropas portuguesas massacraram e deportaram para o Par os aru, sob a alegao de eles se uniram aos franceses para resistir influncia da colonizao lusa. A represso das tropas de expedies punitivas portuguesas contra os palikur e seus aliados tenderia a continuar por todo o sculo em vigncia. Por volta de 1750, contudo, a regio do baixo Oiapoque at o rio Caloene era conhecida como zona de refgio e segurana para as diferentes etnias indgenas que procuravam abrigo das influncias, perseguies e da escravizao europias movidas contra os ndios. Os ndios que ali se assentavam, passavam a integrar um processo de fuso intertribal das mais diversas etnias, cujas principais foram os palikur, os galibi,

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arus, os itutan, e os maraon do rio Ouanary e a partir da quarta dcada do sculo XIX, os karipuna, que se renderam hegemonia palikur, os mais antigos moradores da bacia do Ua, e que constituram um ncleo aglutinador das etnias regionais do baixo Oiapoque. *** Os Grenand (1987:14-29) propem que a tendncia unificao comeara em torno do fim do sculo XVI ao meio do sculo XVII quando os may desistindo de competir com os palikur na regio, passaram progressivamente a empreender um movimento de relativa unificao regional centrada sobre os Palikur (Cf. Grenand, F&P. 1987:16). Com a queda populacional causada pela presena e ao colonial europia, a tendncia de unificao de etnias passou a englobar os aru e os maraon entre alguns grupos palikur localizados na rea do Ua, atravs da realizao de matrimnios, que passaram a aceitar outras etnias no seu seio, entre os sculos XVII e XVIII. E depois se generalizaram medida que se estabelecia uma unificao regional acelerada, pressionada pela baixa demogrfica indgena causada pela colonizao. Neste perodo, se desenvolveram na regio mais de uma lngua veicular e uma realizao cerimonial conjunta e intertnica tomou lugar entre os povos autctones que se uniam neste processo, a festa-dana ritual do tur, de origem aruaque, inserida no meio indgena que se constitua, atravs da hegemonia dos palikur.5 Alm de uma liderana geral que os federava a partir do grande chefe Anakayouri, que fugindo dos espanhis no incio do sculo XVII, a partir da regio de Trinidad, habitou na regio da Baa do Oiapoque e pertencendo ao povo yayo, liderou os grupos federados do baixo Oiapoque e do centro do Amap contra os galibi. Outros grandes chefes foram vinculados aos palikur de pocas mais antigas sua definitiva instalao no rio Urucau. No entanto, tal tipo de chefia parece ter sido uma necessidade guerreira da poca, para unificar povos aruaque e aliados, tendo por isto mesmo que desempenhar atividades de conciliao e acolhimento relativamente aos pequenos grupos que batiam em retirada desde a rea de controle portugus que exercia a perseguio sistemtica aos povos indgenas do litoral amapaense.A ao de chefia atribuda aos palikur contribuiu para fazer das costas do Amap e da Baa do Oiapoque uma unidade cultural e poltica mais ou menos homognea(cf.Grenand, F.e P. 1987:19). Os palikur nesta poca se uniram para resistir presso colonial portuguesa sob o comando de uma nao indgena palikurizada e dirigida por um comando centralizado. Do final do sculo XVI a meados do sculo XVIII, organizao hegemnica dos palikur se estendeu por uma rea que abrangia desde as lagunas da regio do lago Maiacar at o rio Curipi. Durante o sculo XVIII, houve uma dinmica especfica para a ocupao das costas da Guiana e do Amap, distinta da dinmica desenvolvida para a ocupao do interior dessas regies. No litoral, os ndios reagiram contra a colonizao atravs de guerras, rebelies e migraes. Ao passo que as populaes do interior foram atacadas por expedies de A dana do tur ainda hoje utilizada como ritual propiciatrio de sociabilidade intertnica pelas etnias galibi-marworno, karipuna e palikur (entre estes, numa escala bastante reduzida, mas ainda existente e resistente entre os palikur no convertidos ao cristianismo protestante).5

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aprisionamento dirigidas por holandeses, franceses e portugueses que formavam tropas de ndios caripuna ou canicaru ou tapuio (Farage, 1991:102 e Guimares, s/d: 36). Dessa mesma forma agia uma parte da populao dos galibi situada ao norte do litoral de Caiena, denominada Taira, que aprisionavam entre os anos de 1720 e 1780 ndios emerillon e wayana do alto curso do rio Maroni (Ricardo, 1983:7). No interior do Suriname, "caripunas" (etnonmia utilizada para os macuxi, wapixana e paranaviana) do rio Rupununi aprisionavam ndios para o trfico escravo holands (Farage, 1991:57). No Amap, as expedies de "ndios portugueses" (tapuios) atacavam os habitantes do alto rio Oiapoque e do alto rio Cassipor.(Ricardo, 1983:7). Como em 1691 decretou-se a partir de Caiena o fim dos conflitos entre os palikur e os galibi, no incio do sculo XVIII, no mais se registraram embates entre essas etnias (Launey, 2000:14). No ano de 1729, a faixa costeira do litoral do Amap entre os rios Caloene e Cassipor era habitada pelos may de origem caribe (Gillin, 1948:809 apud Arnaud, 1968:1-21), sendo que os palikur a esta altura j prximos dos franceses ocupavam uma faixa mais a oeste, desde o rio Curipi at as cabeceiras do rio Caloene. O mapa tno-histrico de Curt Nimuendaj (1981) nos indica no sculo em questo que os may ocupavam juntamente com os karanari e karane uma faixa mais ao norte que atingia a foz e a regio do baixo Oiapoque. Tambm na regio do baixo Oiapoque, Nimuendaj assinala para o sculo XVIII, margem esquerda do esturio, a presena de populaes indgenas maraon, nas margens do rio Ouanary e aru na altura do mdio e baixo rio Approuague. Os ndios itutan ocupavam, neste sculo, as cabeceiras do rio Cassipor (1741) e rio Caloene (1760), ainda segundo Nimuendaj. Nesta poca os itutan e os maraon entraram em processo de fuso intertnica com os aru na regio do alto rio Ua, os quais se integraram na sociedade galibi que se estabeleceu nas cabeceiras deste rio.6 Quanto aos palikur, nos informa o citado mapa, que desde 1652 a rea do rio Urucau era por eles ocupada. Os palikur deslocaram-se da foz do Amazonas a partir do sculo XVI, at se estabelecerem em definitivo neste rio da bacia do Ua. Este conjunto de informaes nos leva a supor que o final dos conflitos entre os palikur e galibi teria ocorrido em virtude da crescente hegemonia do governo de Caiena que agiu no apaziguamento e unio entre as etnias da rea. Grenand nos relata que a guerra se estendeu por vrias dcadas at o final do sculo XVII. Nesta poca os palikur juntamente com seus aliados may, yao e maraon, moveram guerras contra os galibi, o que resultou na separao destes em dois grupos: um que se refugiou nas cercanias de Caiena, em Macouria, e outro que se localizou nas cabeceiras do rio Ua, aps a batalha do Monte Tipoc (Grenand apud Ricardo, 1983:21; Arnaud, 1984:14).6

Atualmente, formam a etnia dos galibi-marworno.

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*** A poltica indigenista de Caiena optava pela unificao dos indgenas que em 1791 viria atravs da concesso da cidadania francesa a todos os ndios da Guiana, estabelecendo tal poltica como estratgia de ocupao do Amap (Provncia de Aricary) na regio do baixo Oiapoque (Arnaud, 1984:15). Os franceses, ao ocuparem as costas guianenses, distinguiam, como os demais europeus, os indgenas em dois grandes grupos. Basicamente os "carib guerreiros" e os "arawak pacficos" (Farage, 1991:105). A concesso de cidadania objetivou cooptar as populaes indgenas da rea, olvidando a poltica anterior que procurava a aproximao s com os povos aruaque, tambm chamados "amis des Franois" (Nimuendaj, 1971[1926]: 5). Houve, portanto, por parte de Caiena, esforos na unio de povos aruaque com povos tupi, na regio de Caiena e do baixo Oiapoque, para subjugar povos caribe. Tudo indica que nossa afirmao seja correta, pois os dois grandes combates de que se tem notcia ocorridos entre os galibi e os palikur, um no rio Curipi e outro no Monte Tipoc, datam do final do sculo XVII. Tempo em que os palikur se tornaram prximos dos franceses e estabeleceram o seu territrio desde o rio Curipi at as cabeceiras do Caloene (Arnaud,1984:14). Estabeleceram-se os palikur ao longo deste territrio com significativa concentrao no rio Urucau e cercanias do Monte Tipoc, no igarap Tapamuru, afluente esquerdo do Ua. Em consonncia com a estratgia de ocupao da regio que se estendia do rio Cassipor ao rio Maroni, o governo de Caiena iniciou o trabalho de arregimentar as etnias indgenas amigas, para subjugar as etnias guerreiras que hostilizavam a presena francesa. Isso se fazia atravs da catequese intensiva que durou sessenta anos de 1706 a 1766, quando ento foram extintas as misses e expulsos os jesutas franceses. Tambm fazia parte da estratgia de ocupao territorial da Guiana a aceitao por parte de Caiena das levas de ndios fugidos do aprisionamento e dos descimentos efetuados pelos jesutas portugueses estabelecidos na ilha de Maraj. A principal regio de confluncia dos fugitivos era o baixo Oiapoque, "uma regio perfeitamente conhecida e muito freqentada, de longe a mais populosa do interior da Guiana", conforme relato de M. Prfontaine, em 1749 (cf.Arnaud, 1984:15). A regio do baixo Oiapoque se consolidaria no decorrer do sculo XVIII, como uma rea de refgio de ndios brasileiros que para l migravam, estabelecendo-se nas misses religiosas francesas at quando foram extintas entre 1764 e 1766. Aps essa data, o afluxo migratrio continuara, porm com sua intensidade reduzida, conforme indicam os censos levados a cabo pela administrao francesa.

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CENSO DA POPULAO INDGENA DO BAIXO OIAPOQUE (SC. XVIII)

Ano

Populao Local

Indgena Populao

Indgena Fonte

Migrante (Misses) 400 Sem dados Prfontaine Lescallier

1719 1787

1200 484

(Montado a partir de Arnaud 1984:14-15). Como desdobramento da estratgia de ocupao promovida pela Frana, em 1791, Caiena optara pela concesso da cidadania a todos os ndios da Guiana, exceo dos mestios nascidos da unio entre ndios e negros. Tal poltica desencadearia uma intensificao do fluxo migratrio de ndios em direo zona de controle francesa que os portugueses a essa altura estabelecidos no Cabo Norte na costa do Amap, continuaram a combater. A partir de 1794, penetraram os portugueses no rio Ua, saqueando e capturando ndios, inclusive das regies circunvizinhas. Durante os quatro anos seguintes, a partir desta data, a costa situada entre os rios Amazonas e o Oiapoque foi amplamente devastada pelos portugueses em resposta poltica de ocupao francesa da rea em litgio (Arnaud, 1984:15). Nesta poca os portugueses queimaram as aldeias indgenas encontradas e deportaram suas populaes para outras reas do interior amaznico. ttica da concesso de cidadania aos ndios por parte da Frana, Portugal contrapusera a prtica da devastao e do terror, para preservar o sistema escravista de ndios existente no Par. Esse modo de agir dos portugueses resultou no despovoamento intensivo do territrio, notadamente na orla martima. *** O sculo XIX caracterizado na regio do baixo Oiapoque pela integrao de remanescentes de outros povos da costa do Amap, entre os palikur e galibi do Ua. Registra-se tambm uma intensificao do comrcio com Caiena. O Tratado de Utrecht (11/04/1713) entre Frana e Portugal fixava a fronteira da regio do Contestado no rio Oiapoque ou Vincente Pinzn. Entretanto o tratado no impediu a continuidade das incurses francesas ao sul desse rio, levando os governadores do Par, na poca a se ocuparem de uma resposta militarizada contra Caiena. O governo de Francisco de Sousa Coutinho (1790/1803) foi grande incentivador da idia de interveno militar e conquista da Guiana Francesa por parte de Lisboa. (...) "Sousa Coutinho demonstrava que somente decretando medidas policiais, podiam os sditos portugueses ficar livres do perigoso contato da ideologia liberal republicana e herege que se espalhava ento pelo mundo. Os exemplos dos acontecimentos de So Domingos,

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onde se rebelavam os negros contra os franceses, j imitados em Caiena e ameaavam ser seguidos tambm no Par, para onde estavam fugindo proprietrios rurais franceses. Alguns destes foram mesmo aproveitados por Sousa Coutinho no seu plano de valorizao agrcola do Amap (cf. Carvalho, 1959:199). A invaso de Portugal pelas tropas francesas e a fuga da famlia real para o Brasil compuseram o momento oportuno para que fosse posta em prtica a estratgia de Sousa Coutinho. Tropas coloniais invadiram a Guiana, a partir do Par e sitiaram Caiena que se rendeu em 10/01/1809. A ocupao portuguesa perdurou at 1817 e procurou desenvolver

economicamente a colnia com o objetivo de integr-la ao Imprio Portugus. Tal objetivo no se detinha nas possesses francesas. O governo portugus do Rio de Janeiro pretendeu tambm anexar as Guianas Holandesa e Britnica. O governador designado Maciel da Costa desenvolveu na Guiana Francesa o comrcio e a agricultura, importando gado da Ilha de Maraj, organizando as alfndegas a partir de 1810 (Carvalho, 1959:200). Os palikur habitavam neste sculo os rios Ua, Curipi e Urucau e os galibi haviam se estabelecido nas cabeceiras do rio Ua. Passaram ao longo do sculo XIX por um processo de assimilao de outros povos nativos desta regio, como foi o caso dos itut e maraon, assimilando tambm ndios fugitivos dos descimentos promovidos pelas misses do baixo Amazonas, como foi o caso dos aru, notadamente entre os galibi do Ua. Concomitantemente ao processo de fuso intertnica que se consolidara ao longo deste sculo, o processo de criolizao se intensificou com a divulgao da lngua crioula (kheuol/pato), utilizada para a realizao do comrcio com Caiena. O sculo XIX comeou na regio com os efeitos deletrios das lutas, deportaes e migraes causadas pela presena colonialista. Os palikur ento, estavam demograficamente debilitados.Mas com as migraes ocorridas em direo ao Urucau puderam se recompor dentro de um processo de fuso intertnica, acima descrito, no qual os grupos indgenas remanescentes puderam, finalmente, localizarem-se em uma rea de refgio pouco assediada pelas autoridades francesas e sob a liderana palikur de uma confederao indgena. Como a atividade catlica missionria moderara-se durante quase um sculo, como a relao de comrcio com os crioulos crescesse em paz, possibilitou-se aos palikur um crescente mercado de excedentes agrcolas e florestais que os projetou como o nico grupo indgena de importncia na regio (Grenand, P. 1979:4). A regio recebeu, entre os anos de 1836 e 1840, sucessivas levas de populao indgena originrias da regio vizinha de Belm, tais como So Caetano de Odivelas, Bragana, Vigia e Estreito de Breves, as quais fugiam da represso desencadeada pelo presidente do Par, Sousa Franco, contra os rebeldes cabanos (Guimares, s/d: 8). Os cabanos eram em sua grande maioria compostos por indgenas que falavam o nheengatu e haviam participado ativamente do levante contra o governo do Par. Menendez (1992:292), cita-os como "ndios j destribalizados, 'descidos' ou descendentes de 'descidos', cujas aldeias originais em parte j no mais existiam. parte

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dessa populao 'tapuia' internada em pequenos grupos com seus tuxuas, que se junta aos cabanos". Os cabanos e suas famlias realizaram sua fuga atravs de barcos, pelo Atlntico, indo instalar-se primeiramente no rio Ouanary, para posteriormente localizarem na margem direita do Oiapoque, da ganhando as cabeceiras do rio Curipi (Ricardo, 1983:67). Do rio Curipi, expandiramse para as cercanias do igarap Tamin, acabando por ocupar todo o curso deste rio. As levas de migrantes indgenas da regio de Breves sucederam-se para as zonas do baixo Oiapoque e Ouanary at por volta de 1890 e acabaram coexistindo com os palikur, notadamente no alto e mdio curso do Curipi, adotando o nome de karipuna. Caripuna uma etnonmia genrica da rea em sculos passados, utilizada para distinguir ndios integrados aos colonizadores, notadamente, aos holandeses, que assim designavam as foras blicas compostas por indgenas a seu servio (Farage, 1991:102). O contato com os karipuna, historicamente mais habituados prtica do comrcio, proporcionou um fator de integrao aos povos indgenas na regio do esturio do Oiapoque com as comunidades crioulas.Quando em contato com os regates que vinham comprar deles tbuas, farinha e peixes, acabaram por absorver muitos destes indivduos que a eles se integraram. Exemplo disso so os crioulos, rabes, europeus e chineses que acabaram integrando-se aos karipuna.(Arnaud, 1970:1). O resultado da integrao, entretanto, mais amplo, envolvendo antecipadamente indgenas da bacia do Ua, como os galibi e palikur. Foram os karipuna importantes para a divulgao da lngua crioula. Em meados do sculo XIX e dcadas seguintes. Essa lngua acabou por tornar-se sua lngua materna ao cabo de um sculo de sua migrao para a regio do baixo Oiapoque. No final do sculo XIX, com os movimentos migratrios ocorridos na regio guianense, os ndios do baixo Oiapoque, exceo dos palikur comunicavam-se amplamente em pato (Ricardo, 1983:22). Nesta poca intensificou-se o assdio de regates vindos da Guiana, do baixo Oiapoque e da foz do Amazonas, propiciando uma maior divulgao do idioma crioulo. Os povos indgenas remanescentes do litoral amapaense concentraram-se na bacia do Ua, durante os sculos XVIII e XIX, recebendo a migrao cabana entre meados e fins deste ltimo sculo. A rea caracterizouse, ento, desde essa poca como zona de refgio indgena do processo de colonizao europeu/brasileiro nas costas do Amap. A dinmica intertnica, econmica e cultural que envolveu a regio do Ua acabaria por definir processos sociais que unificaram seus povos, tanto simblica como materialmente. Simbolicamente, por adotarem os povos do Ua um mesmo sistema lingstico, o pato, tambm chamado de lngua crioula karipuna (kheuol). E por realizarem uma unidade ritual, o tur. Materialmente, por terem uma economia comum secularmente baseada na produo de farinha de mandioca para o comrcio, inclusive de fronteira, que convergia para Caiena, principalmente. ***

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Os ndios do interior do Amap entraram em contato com frentes extrativistas oriundas da Guiana, do baixo Oiapoque, ou do Amazonas a partir da segunda metade do sculo XVIII. Durante esses contatos, os ndios procuravam obter manufaturados de ferro, muito freqentemente atravs de negros refugiados da Guiana Holandesa, alocados na Serra do Tumucumaque e no alto curso do rio Maroni. Portanto as migraes para o comrcio muitas vezes se faziam realizar atravs dos negros aquilombados, os quais intermediaram, da segunda metade do sculo XVIII at o incio do sculo XX, as relaes comerciais dos ndios do norte do Par com as colnias francesa e holandesa (Ricardo, 1983:8). A interao entre os diferentes povos nesta rea desencadeou uma srie de conflitos e posteriores fuses intertribais que se projetaram at a primeira metade do sculo XIX. A instalao desses povos em reas de refgio cresceu com a chegada dos fugitivos das misses do baixo Amazonas. A bacia do Ua foi o principal desses refgios no Amap. A disputa da regio do baixo Oiapoque que se iniciara em 1668 compreendia desde esse rio at o rio Cassipor. E era ocupada pelos franceses sob a administrao de Caiena. Quando o territrio do Contestado Franco-Brasileiro (Provncia de Aricary) integrou-se definitivamente ao Brasil, em 01/12/1900, por sentena do governo suo, em Berna, as autoridades brasileiras desalojaram do Oiapoque os habitantes originrios da Guiana, incluindo comerciantes, e passaram a combater qualquer tipo de relaes entre ndios e crioulos (Arnaud, 1984:17). O governo brasileiro, dessa forma, passou a exercer uma poltica na fronteira que desconsiderava por completo a tendncia formada secularmente na regio do baixo Oiapoque para o comrcio e a migrao indgenas. Sculos de histria deveriam ceder s novas imposies internacionais acordadas em Berna. Indiferentes aos acordos entre Brasil e Frana, os povos do Ua transitaram por dcadas a fio pela nova fronteira, assumindo com o passar do tempo a identidade nacional que lhes fossem poltica e economicamente mais vantajosa na localizao de fronteira, sem, contudo, abrir mo de sua identidade tnica. Os palikur, depois de poucas dcadas a partir da chegada regio da primeira vaga migratria cabana que viria a se constituir no grupo tnico karipuna, em 1836, perderam rapidamente a sua importncia poltica e comercial para este novo grupo tnico que aprendendo rapidamente o linguajar crioulo, que os palikur pouco falavam, passaram a dominar o comrcio com as rotas que se ligavam regio de Caiena, suplantando os palikur e os galibi do Ua. Desde ento os palikur passaram a se recolher dentro de suas tradies sempre procurando preservar seus hbitos e lngua. Quando a Frana cedeu ao Brasil o norte do Amap, a maioria dos palikur escolheu se localizar na Guiana por motivos comerciais. Mas em 1914, aps forte epidemia de gripe e sarampo que os dizimou, a maior parte dos sobreviventes retornou ao Urucau.Desde ento, os palikur dividem-se em dois grupos vinculados s polticas e influncias do Brasil e da Frana sobre estas populaes indgenas.

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Para compensar os benefcios da cidadania oferecida pela Frana, o Brasil passou a conceder terras para as populaes indgenas, como forma de mant-las do seu lado da fronteira, defendendo os interesses territoriais brasileiros, entretanto sob a tutela constante do Estado. dentro desse quadro histrico e poltico que viu-se chegar o sculo XX na regio do baixo Oiapoque. No comeo do sculo XX a ocupao brasileira da rea foi realizada pela presena militar: "No sentido de promover a segurana e a nacionalizao de nossa fronteira foi criada, em 1907, a Colnia Militar do Oiapoque, inicialmente localizada na zona de Demonty (Ponta dos ndios) e posteriormente transferida para Santo Antnio, situado de frente cidade francesa de Saint Georges. Em 1922, foi estabelecida mais acima a Colnia Agrcola de Clevelndia, a qual, entretanto, em 1924, tornou-se tambm presdio poltico com uma concentrao de 800 pessoas entre colonos e prisioneiros... (Cf. Moura, 1934; apud Arnaud, 1984:17). Do incio do sculo XX at o final da dcada de 1930, os indgenas continuaram circulando pela regio limtrofe. Foi quando o Estado brasileiro estabeleceu o SPI (Servio de Proteo ao ndio), como agncia de contato no norte do Amap, que procurou integrar a populao indgena sociedade brasileira, por intermdio de duas polticas sociais bsicas: a educao obrigatria em lngua portuguesa e a instalao de entrepostos comerciais que ajudassem os ndios a colocar o produto de seu trabalho no mercado brasileiro. Tais polticas visavam no fundo incutir nos habitantes regionais a identidade brasileira e bloquear a migrao e o comrcio indgena entre o baixo Oiapoque brasileiro e a Guiana. Aps o acordo diplomtico que estabeleceu a atual fronteira do Contestado francobrasileiro e a partir da instalao do SPI na regio, a fixao do indgena terra passa a obedecer a um movimento de concentrao populacional que gira em torno de postos de assistncia aos ndios, montados pelas diferentes agncias de contato direto: o prprio SPI e as misses religiosas catlicas. O SPI optara pela fundao dos postos indgenas para implementar tais polticas. A partir da instalao do posto do Encruzo, em 1942, os contatos entre os povos do Ua aumentaram, aumentando tambm em conseqncia a migrao interna, as trocas comerciais e a prestao de servios temporrios fora das reas indgenas. Neste sentido, Caiena continuou sendo pela proximidade maior e pelas vantagens remuneradoras do mercado, maior plo de atrao para as viagens com objetivos comerciais e de trabalho entre os habitantes do Ua. A ligao comercial tradicional entre a regio e o Baixo rio Approuague a meio caminho de Caiena e as tradicionais rotas martimas naquela direo, seriam reforadas pelo entreposto comercial crioulo representado por Saint Georges, ligada regularmente por mar capital da Guiana desde fins do sculo XIX. O entreposto comercial do Encru