All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata...

6
59 4 Na escola, tínhamos uma hora de almoço por dia. Como minha mãe não trabalhava e morávamos perto, geralmente eu ia para casa com quatro ou cinco meninas a tiracolo, todas falando sem parar, e nos espalhávamos pelo chão da cozinha para brincar e assistir à novela All My Children enquanto minha mãe distribuía sanduíches. Esse foi o início de um hábito que me deu forças ao longo da vida: manter um grupo animado de amigas íntimas — um porto seguro de sabedoria feminina. No almoço, dissecávamos o que havia acontecido na escola, e falávamos das nossas picuinhas com os professores e das tarefas que nos pareciam inúteis. Em grande parte, formávamos nossas opiniões por comitê. Idolatrávamos o Jackson 5 e não sabíamos o que pensar dos Osmond. O caso Watergate já tinha acontecido, mas nenhuma de nós entendia. Parecia que um monte de velhos tinha conversado perto de micro- fones em Washington, dc. para nós uma cidade distante com muitos prédios brancos e homens brancos. Minha mãe ficava muito feliz em nos servir. Isso proporcionava a ela uma janela cômoda para o nosso mundo. Enquanto minhas amigas e eu comíamos e fofocávamos, ela geralmente ficava de pé, calada, fazendo alguma tarefa do- méstica, mas sem esconder o fato de que estava captando todas as palavras. A verdade é que, na minha família, com os quatro apertados em menos de oitenta metros quadrados, nunca tínhamos privacidade. Isso só tinha importância de vez em quando. Craig de repente começou a se interessar por garotas, e Minha_Historia__NEW.indd 59 18/10/18 14:54

Transcript of All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata...

Page 1: All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala - mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar

59

4

Na escola, tínhamos uma hora de almoço por dia. Como minha mãe não trabalhava e morávamos perto, geralmente eu ia para casa com quatro ou cinco meninas a tiracolo, todas falando sem parar, e nos espalhávamos pelo chão da cozinha para brincar e assistir à novela All My Children enquanto minha mãe distribuía sanduíches. Esse foi o início de um hábito que me deu forças ao longo da vida: manter um grupo animado de amigas íntimas — um porto seguro de sabedoria feminina. No almoço, dissecávamos o que havia acontecido na escola, e falávamos das nossas picuinhas com os professores e das tarefas que nos pareciam inúteis. Em grande parte, formávamos nossas opiniões por comitê. Idolatrávamos o Jackson 5 e não sabíamos o que pensar dos Osmond. O caso Watergate já tinha acontecido, mas nenhuma de nós entendia. Parecia que um monte de velhos tinha conversado perto de micro-fones em Washington, dc. para nós uma cidade distante com muitos prédios brancos e homens brancos.

Minha mãe ficava muito feliz em nos servir. Isso proporcionava a ela uma janela cômoda para o nosso mundo. Enquanto minhas amigas e eu comíamos e fofocávamos, ela geralmente ficava de pé, calada, fazendo alguma tarefa do-méstica, mas sem esconder o fato de que estava captando todas as palavras. A verdade é que, na minha família, com os quatro apertados em menos de oitenta metros quadrados, nunca tínhamos privacidade. Isso só tinha importância de vez em quando. Craig de repente começou a se interessar por garotas, e

Minha_Historia__NEW.indd 59 18/10/18 14:54

Page 2: All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala - mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar

60

começou a se trancar no banheiro para falar no telefone, o fio espiralado do aparelho que ficava preso à parede da cozinha esticado pelo corredor.

A Bryn Mawr era uma escola mediana da cidade de Chicago — nem boa, nem ruim. A triagem étnica e econômica do bairro de South Shore continuou nos anos 1970, a população estudantil se tornando mais negra e mais pobre a cada ano que passava. Por um tempo, houve um movimento de integração na cidade inteira, e com isso as crianças eram levadas de ônibus a novas escolas, mas os pais de alunos da Bryn Mawr rechaçaram essa política, argumentando que seria mais proveitoso empregar o dinheiro na melhoria da escola em si. Como criança, eu não sabia se as instalações estavam degradadas ou se alguém se interessava pelo fato de quase não haver mais crianças brancas ali. A escola ia do jardim de infância ao oitavo ano, portanto, quando eu chegasse às séries mais avançadas, já teria conhecido todos os interruptores, todos os quadros-negros e rachaduras no corredor. Eu conhecia quase todos os professores e a maioria das crianças. Para mim, a Bryn Mawr era praticamente uma segunda casa.

Quando estava entrando no sétimo ano, o Chicago Defender, jornal sema-nal popular entre afro-americanos, publicou um virulento artigo de opinião alegando que a Bryn Mawr tinha passado, em poucos anos, de uma das me-lhores escolas públicas da cidade a um “lugar decadente”, conduzido por uma “mentalidade de gueto”. O diretor da escola, dr. Lavizzo, logo rebateu com uma carta ao editor, defendendo sua comunidade de pais e alunos e apontando o texto como “uma mentira ultrajante, que parece se propor a incitar apenas sentimentos de fracasso e evasão”.

O dr. Lavizzo era um homem corpulento, jovial, que tinha um afro volumoso de ambos os lados da careca e que passava boa parte do tempo num escritório ao lado da entrada do prédio. Sua carta deixa claro que ele sabia muito bem contra o que estava lutando. Muito antes de se tornar um resultado verdadeiro, o fracasso começa como um sentimento. É a vulnerabilidade que gera insegu-rança e depois é intensificada, muitas vezes de propósito, pelo medo. Esses “sentimentos de fracasso” que ele mencionou já estavam espalhados por todos os cantos do nosso bairro, sob a forma de pais que não conseguiam melhorar de vida financeira, de crianças que começavam a desconfiar que suas vidas não seriam diferentes, de famílias que viam os vizinhos melhor de vida irem embora para o subúrbio ou transferir os filhos para escolas católicas. Enquanto isso, corretores de imóveis predatórios circulavam por South Shore, sussurrando

Minha_Historia__NEW.indd 60 18/10/18 14:54

Page 3: All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala - mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar

61

para os proprietários que eles deveriam vender seus imóveis antes que fosse tarde demais, que os ajudaria a sair enquanto ainda dava. A inferência era de que o fracasso estava por vir, era inevitável, e que na verdade já tinha meio que chegado. A pessoa podia ficar presa nas ruínas ou fugir. Eles usaram a palavra que todo mundo mais temia — “gueto” —, jogando-a na conversa como se fosse um fósforo aceso.

Minha mãe não acreditava em nada disso. Já morava em South Shore havia dez anos e acabaria ficando mais quarenta. Não levou a sério esse jogo de medo e, ao mesmo tempo, parecia totalmente vacinada contra qualquer tipo de utopia. Era uma realista que só enxergava o que estava à sua frente, controlando o que podia.

Na Bryn Mawr, tornou-se uma das participantes mais ativas da Associação de Pais e Professores, ajudando a arrecadar fundos para novos equipamentos para as salas de aula, dando jantares para mostrar apreço pelos professores e fazendo campanha pela criação de uma sala de aula especial, para alunos de vários anos com alto desempenho. Esta última iniciativa era fruto da imagina-ção do dr. Lavizzo, que obteve o doutorado em educação na escola noturna e estudara a nova tendência de agrupar alunos por habilidade, e não idade — em suma, pôr os alunos mais inteligentes juntos para aprenderem em um ritmo mais acelerado.

A ideia era controversa, criticada por não ser democrática, como costumam ser todos os programas para os “superdotados e talentosos”. Mas era um mo-vimento que vinha ganhando força país afora, e nos meus últimos três anos de Bryn Mawr eu me beneficiei dele. Entrei no grupo de cerca de vinte alunos de séries diferentes, acomodado em uma sala autossuficiente afastada do resto da escola, com nosso próprio horário de recreio, almoço, música e educação física. Recebíamos oportunidades especiais, inclusive excursões semanais a uma faculdade comunitária, onde cursávamos uma oficina de redação avançada ou dissecávamos ratos no laboratório de biologia. Em sala de aula, fazíamos muitos trabalhos independentes, estabelecendo nós mesmos as nossas metas e avançando no ritmo que nos conviesse.

Tivemos professores dedicados — primeiro o sr. Martinez e depois o sr. Bennett, ambos afro-americanos tranquilos, bem-humorados e interessa-díssimos no que os alunos tinham a dizer. Havia a nítida sensação de que a escola tinha investido em nós, com isso, nos esforçamos mais e elevamos

Minha_Historia__NEW.indd 61 18/10/18 14:54

Page 4: All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala - mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar

62

nossa autoestima. O esquema de aprendizado independente só serviu para alimentar minha competitividade. Eu me atirava nas lições, vigiando silenciosamente onde estava em comparação com meus colegas enquanto mapeávamos nosso progresso da divisão longa à pré-álgebra, da redação de um parágrafo a artigos acadêmicos inteiros. Para mim, era um jogo. E, assim como em qualquer jogo, assim como a maioria das crianças, eu ficava mais feliz quando estava na frente.

Eu contava à minha mãe tudo o que acontecia na escola. Depois da atua-lização na hora do almoço, havia uma segunda, que eu fazia às pressas ao entrar pela porta de casa à tarde, largando a mochila cheia de livros no chão e procurando uma guloseima. Confesso que não sabia exatamente o que minha mãe fazia nas horas que eu passava na escola, sobretudo porque, como toda criança, eu era egocêntrica e nunca perguntei. Não sei no que ela pensava, como se sentia por ser uma dona de casa tradicional em vez de ter um trabalho diferente. Só sei que, quando eu chegava em casa, havia comida na geladeira, não só para mim como para minhas amigas. Sabia que quando minha turma fazia excursões, minha mãe quase sempre se oferecia para ser acompanhante, usando um vestido bonito e um batom escuro para ir de ônibus com a gente até a faculdade comunitária ou ao zoológico.

Na nossa casa, vivíamos com um orçamento apertado, mas dificilmente discutíamos seus limites. Minha mãe achava meios de compensar as dificulda-des. Fazia as próprias unhas, pintava o próprio cabelo (uma vez, por acidente, ele ficou verde) e só tinha roupas novas quando as ganhava do meu pai de aniversário. Nunca seria rica, mas era sempre habilidosa. Quando éramos pe-quenos, ela fez a mágica de transformar meias velhas em fantoches iguaizinhos aos Muppets. Fazia toalhas de crochê para cobrir o tampo da mesa. Costurava muitas das minhas roupas, pelo menos até o ensino médio, quando de repente o mais importante de tudo passou a ser ter uma etiqueta de cisne da GloriaVanderbilt no bolso da frente do jeans, então insisti que ela parasse.

De vez em quando ela mudava a organização da nossa sala de estar, co-locando uma capa nova no sofá, trocando as fotos e gravuras emolduradas que ficavam nas paredes. Quando o tempo começava a esquentar, ela fazia uma faxina completa de primavera que era quase um ritual — aspirava os

Minha_Historia__NEW.indd 62 18/10/18 14:54

Page 5: All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala - mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar

63

móveis, lavava as cortinas e tirava todas as vidraças para passar Windex no vidro e limpar os peitoris antes de substituí-las por telas, para que o ar da primavera entrasse no nosso apartamento minúsculo, abafado. Em seguida, costumava descer para limpar o apartamento de Robbie e Terry, sobretudo à medida que os dois envelheciam e ficavam cada vez menos capazes. É por causa da minha mãe que até hoje quando sinto o aroma de Pinho Sol me sinto de bem com a vida.

Na época do Natal, ela ficava especialmente criativa. Teve um ano em que aprendeu a cobrir nosso imenso aquecedor de metal com papelão corrugado com desenhos que imitavam tijolos vermelhos, grampeando tudo para termos uma falsa chaminé que ia até o teto, além de uma lareira falsa, com direito a console e piso. Em seguida, recrutou meu pai — o artista da família — para pintar umas chamas alaranjadas em pedaços de papel de arroz. Depois, colocá-vamos uma lâmpada por trás delas, formando uma fogueira quase convincente. No Ano-Novo, tínhamos uma tradição: ela comprava uma cesta especial de antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala-mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar e jogar jogos de tabuleiro. Pedíamos pizza para o jantar e passávamos o resto da noite beliscando com elegância, minha mãe passando bandejas de enroladinhos de linguiça, camarão frito e um queijo especial assado com biscoitos Ritz. Perto da meia-noite tomávamos uma tacinha de champanhe.

Minha mãe mantinha o tipo de mentalidade materna que hoje considero genial e quase inimitável — uma espécie de neutralidade zen imperturbável. As mães das minhas amigas lidavam com os altos e baixos dos filhos como se fossem os seus próprios, e conheci muitas crianças cujos pais estavam atarefa-dos demais com seus próprios desafios para sequer estarem presentes na vida dos filhos. Minha mãe era simplesmente estável. Não julgava nem interferia imediatamente. Preferia monitorar nosso estado de espírito e ser uma teste-munha benevolente das angústias ou dos triunfos que o dia pudesse trazer. Quando as coisas estavam ruins, ela nos concedia apenas uma leve pitada de compaixão. Quando fazíamos algo incrível, seus elogios mostravam que ela estava feliz conosco, mas não exagerava a ponto de se tornarem a razão de fazermos qualquer coisa.

Seus conselhos costumavam ser objetivos e pragmáticos. “Você não pre-cisa gostar da sua professora”, disse-me ela um dia, quando cheguei em casa

Minha_Historia__NEW.indd 63 18/10/18 14:54

Page 6: All My Children - CLAUDIA...antepastos, do tipo que vinha cheia de queijo, ostras defumadas em lata e sala - mes diversos. Convidava a irmã do meu pai, Francesca, para nos visitar

cuspindo reclamações. “Mas o tipo de matemática que ela tem na cabeça é o que você precisa ter na sua. Concentre-se nisso e ignore todo o resto.”

Ela nos amava de forma consistente, Craig e eu, mas não nos controlava de forma exagerada. Sua meta era nos empurrar para o mundo. “Não estou criando bebês”, dizia. “Estou criando adultos.” Ela e meu pai nos davam diretrizes, e não regras. Isso quer dizer que, quando adolescentes, não tínhamos uma hora exata para o toque de recolher. Eles preferiam perguntar “Que horas você acha razoável estar de volta em casa?” e confiavam que manteríamos a palavra.

Craig costuma contar a história de uma garota de quem gostava no oitavo ano. Um dia, ela lhe fez um convite tentador: chamou meu irmão à casa dela, deixando bem claro que os pais não estariam lá e eles ficariam a sós.

Meu irmão sofreu em segredo: não sabia o que fazer. Estava empolgado com a oportunidade, mas sabia que ir era um comportamento ardiloso e desonroso, do tipo que meus pais jamais desculpariam. Mas isso não o impediu de contar à minha mãe uma meia verdade preliminar, informando sobre a garota, mas dizendo que se encontrariam numa praça pública.

Dominado pela culpa antes mesmo de levar a história adiante — aliás, por sequer cogitar a hipótese —, Craig acabou confessando o esquema de ficarem sozinhos em casa, esperando ou talvez até torcendo que minha mãe ficasse uma fera e o proibisse de ir.

Mas não foi o que aconteceu. Ela não faria isso. Não era seu modo de agir. Ela escutou, mas não tomou a decisão por ele. Preferiu jogá-lo de volta na

agonia e deu de ombros com indiferença. “Faça como achar melhor”, aconse-lhou, antes de voltar para a louça na pia e para a pilha de roupas lavadas que precisava dobrar.

Esse foi outro empurrãozinho para o mundo. Tenho certeza de que, no coração dela, minha mãe já sabia que ele tinha tomado a decisão certa. Hoje percebo que todas as medidas que tomava eram respaldadas pela segurança silenciosa de que estava nos criando para sermos adultos. Nossas decisões cabiam a nós. A vida era nossa, não dela, e sempre seria assim.

64

Minha_Historia__NEW.indd 64 18/10/18 14:54