Algumas Concepções de Direito e suas Lacunas

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    Juan Ruiz Manero2

    Resumo: O artigo inicia com uma anlise das re-laes entre casos e normas jurdicas naquilo quese pode chamar modelo clssico de Alchourrn

    e Bulygin, correspondente obra NormativeSystems, de ambos os autores. O autor assinalacomo as teses desse modelo clssico impedema percepo quanto aos desacertos entre os ju-ristas e como elas contrastam fortemente com ascrenas compartilhadas entre eles; crenas essasque, a juzo do autor, so constitutivas da reali-dade do Direito. Problemas anlogos apresenta aconstruo de Joseph Raz, outro grande expoentecontemporneo do positivismo chamado forte

    ou excludente. Ambas as construes, de Al-churrn e Bulygin e a de Raz, tm em comum, naopinio do autor, uma viso empobrecida da va-riedade de normas regulativas. Na segunda parte,o autor trata de apresentar um modelo alternativode abordagem das relaes entre casos e normasa partir de uma viso da dimenso regulativa doDireito que apresente esta como sendo compostade dois nveis: o das regras e o dos seus princ- pios subjacentes. Finalmente, o autor apresentaalgumas reconstrues coerentes com o modelo

    anterior, no que se refere aos conceitos de lacunanormativa e de lacuna axiolgica.

    Palavras-chave: Normas regulativas. Regras.Princpios. Lacunas. Lacunas normativas. Lacu-nas axiolgicas.

    Abstract: The article begins with an analysisabout the relations between cases and juridicalnorms on what may be called classic model

    by Alchurrn and Bulygin, corresponding tothe work Normative Systems, by both au-thors. The author notes how how the thesis ofthis classic model prevent the perception onthe mistakes between the jurists and how theystrongly contrast with the shared beliefs betweenthem; beliefs which, in the authors opinion, areconstitutive of the reality of Law. Analogue pro- blems presents the construction of Joseph Raz,another great contemporary exponent of the so-

    -called Strong or excludent positivism. Bothconstructions, by Anchurrn and Bulygin and by Raz, have in common, in the authors opi-nion, and impoverished vision on the variety ofregulative norms. On the second part, the authorpresents an alternative model of approaching therelations between cases and norms from a vi-sion of the regulative dimension of Law whichpresents it as composed by two levels: the rulesand the underlying principles. Finally, the author presents some coherent reconstructions to the

    previous model, in which refers to the conceptsof normative gap and axiological gap.

    Keywords: Regulative norms. Rules. Prin-ciples. Gaps. Normative gaps. Axiologicalgaps.

    1 Traduo feita pelo professor Luiz Henrique Urquahrt Cademartori. Todas as citaesdiretas foram traduzidas livremente pelo professor Luiz Henrique Urquhart Cademartori.

    E-mail: [email protected].

    2 Professor catedrtico de Filosofa do Direito da Universidade de Alicante.E-mail: [email protected]

    Doi:10.5007/2177-7055.2010v31n61p31

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    1. Introduo

    Em setembro de 2002, tive a oportunidade de ouvir no semin-rio Garca Maynez de Teoria do Direito, realizado no Mxico DF a

    palestra de Eugnio Bulygin, chamada criao e aplicao do Direito.Nessa palestra aqui reproduzida em verso ulterior Eugnio Bulygin,a propsito da abordagem das lacunas, escolhia como representantes doEixo de erro, sobre o qual lanava seu ataque, no sei se preventivo, aFernando Atria a quem eu at ento no conhecia e nem tinha lido e amim mesmo.

    Pouco depois em outubro do mesmo ano tive a oportunidadede conhecer Fernando Atria e de ler pela primeira vez um trabalho seu

    Legalismo, direitos e poltica, sobre o qual travamos uma longa e, pormomentos, agitada discusso no Seminrio do departamento de Alicante.O trabalho de Fernando Atria , por um lado, pareceu-me de grande quali-dade, mas, por outro, eu me encontrava e assim continuo em profun-do desacordo com os posicionamentos tericos de Fernando a respeito docontrole jurisdicional de constitucionalidade, sendo as posies relativas

    a esse tema que constituem as concluses principais do trabalho dele. Na-quela mesma ocasio, Fernando me deixou saber que estava preparandoum livro de textos dele mesmo e de Eugenio Bulygin sobre o problemadas lacunas normativas e me convidou a participar do projeto, ao qual,naturalmente, aceitei com satisfao, somando a ele alguma contribuio.

    Tal como j tinha dito naquela poca, eu no havia lido nenhumtexto de Fernando Atria com exceo do trabalho, citado anteriormente,

    Legalismo, direitos e poltica. Considerando que tenho a tendncia de for-mar impresses precipitadas que, naturalmente, resultam equivocadasna maioria das vezes ocorreu-me a ideia (partindo do nosso desacor-do sobrejudicial review) de que, sobre as lacunas, iria ficar em desacor-do com Fernando tanto quanto estava com Eugenio Bulygin, cujas tesessobre o tema venho discutindo com uma obstinao que apenas a boa

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    vontade de Eugenio sabe desculpar ao menos desde o livro de 1990,Jurisdio e Normas3.

    A leitura dos textos de ambos os autores, aqui mencionados, per-mitiram-me, no entanto, perceber que, ao menos quanto a Atria, nossasideias no se opunham tanto assim. Minhas posies a respeito dos temasaqui discutidos se encontram prximas s teses defendidas por ele, j queEugenio Bulygin segue, de forma irredutvel, fiel a uma concepo deDireito e de racionalismo jurdico da qual discordo profundamente. Mi-nha contribuio, pois, a essa discusso consistir em expor novamente, a

    partir de um enfoque ao menos parcialmente novo, minhas discordncias

    com Eugenio Bulygin. Para isso, procederei da seguinte forma: irei exporem primeiro lugar como se articulam as relaes entre casos e regras (ea hiptese das lacunas) de acordo com o que podemos chamar de modeloclssico4 de Alchourrn e Bulygin, fazendo tambm uma breve refernciaao enfoque de Raz. Posteriormente, esboarei uma viso alternativa dosmesmos problemas e concluirei com algumas reformulaes dos conceitosde Lacuna Normativa e de Lacuna Axiolgica , que me parecem mais ade-quadas para a realidade dos nossos sistemas jurdicos do que os conceitos

    originais que encontramos emNormative Systems.

    2. Sobre as Relaes entre Casos e Regras nas Concepes de

    Direito de Alchourrn, Bulygin e Raz

    O que est na base do tratamento que d Alchourrn e Bulygin aoproblema das lacunas uma concepo da dimenso reguladora do direito

    3 Na obra, discute-se a distino entre permisses fortes e fracas e sua relevncia para oproblema das lacunas, em Ruiz Manero,Jurisdiccin y normas: 37 ss.; em Atienza y RuizManero, Las piezas del derecho. Teora de los enunciados jurdicos: 100 ss.; em RuizManero,Algunos lmites de la teora del derecho de Alchurrn y Bulygin: 115 ss.4 Entendo pormodelo clssico aquele contido emNormative Systems e nos trabalhos,em conjunto ou em separado, de ambos os autores que resultam consistentes comessa obra. Parece-me plausvel supor que os ltimos trabalhos de Alchourrn sobre ascondicionantes derrotveis pudessem terminar por implicar uma reviso profunda de

    tal modelo, mas essa questo no ser abordada aqui. Em todo caso, nos textos aquimodelo clssico.

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    que v a este, exclusivamente, como um conjunto de unidades as diver-sas regras jurdicas que correlaciona cada uma dessas unidades (outrostantos casos genricos) com alguma soluo normativa. Essas unidadesou regras podem ser ou o produto direto de uma fonte ou, ento, fruto dasconsequncias lgicas das unidades que so produto dessa fonte. De talmodo que, enfrentando um caso individual, a tarefa do jurista se limita acomprovar se o conjunto de propriedades que tal caso individual apresen-ta resulta ou no subsumvel ao conjunto de propriedades que constituemo caso genrico correlacionado, em algumas dessas unidades ou regras,com alguma soluo normativa. possvel que seja duvidoso ou con-trovertido se as propriedades que o caso individual apresenta so ou nosubsumveis s do caso genrico, isto , se possvel que nos enfrentemoscom o que os prprios autores, Alchourrn e Bulygin, chamam de lacunade reconhecimento, ao que logo faremos aluso. De qualquer modo, s hduas possibilidades de resposta: o caso individual resulta subsumvel; ouno resulta subsumvel, no caso genrico. Na primeira suposio, quandose afirma a subsumibilidade, o caso individual tem uma soluo jurdica

    predeterminada, isto , a soluo prevista na regra que contempla o caso

    genrico correspondente. Na segunda suposio, quando se nega a subsu-mibilidade, abrem-se duas possibilidades. A primeira que o caso indi-vidual apresente propriedades que (ainda no constituindo um conjuntoque resulte subsumvel no conjunto de propriedades que configuram umcaso genrico e uma regra do sistema) resultam pertencentes ao Univer-so de Propriedades consideradas como relevantes pelo sistema jurdico.Se as coisas so assim, o caso, visto como caso genrico (isto , comoum conjunto de propriedades) constitui uma lacuna normativa do sistema.

    A segunda possibilidade que o caso apresente propriedades pertencentesao Universo de Propriedades do Sistema e, sendo assim, o caso resulta ju-ridicamente irrelevante, isto , encontra-se alm das fronteiras do Direito.

    Deixando, ento, de lado, os casos juridicamente irrelevantes, o quenos resta que todos os casos que apresentam alguma propriedade per-tencente ao Universo de Propriedades do sistema jurdico e a respeito dosquais as regras jurdicas guardam silncio, isto , todos os casos no ir-relevantes em relao com os quais uma regra jurdica no correlaciona

    uma soluo normativa, esses so os casos de lacuna normativa. Em tais

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    casos, o que deve fazer o juiz? Frente a tais supostos de lacuna, os autoresafirmam:

    O juiz no tem nenhuma obrigao especifica, nem de condenarnem de impugnar a demanda. S tem a obrigao genrica de jul-gar, e cumpre com sua tarefa julgando de qualquer das maneiras possveis: condenando ou no. Em outras palavras: o juiz tem aobrigao de julgar, isto , de condenar ou rechaar a demanda, masno deve condenar, como tambm no tem a obrigao de rechaara demanda [...] (ALCHOURRN; BULYGIN, 1971, p. 215).

    Casos, pois, em que o juiz somente pode cumprir seu dever de resol-v-los ao preo de no cumprir com seu dever acerca de que tal soluose fundamenta no direito preexistente pela mera razo de que de acor-do com a concepo de Alchourrn e Bulygin simplesmente no h taldireito preexistente: o juiz no pode resolv-los criando uma norma quequalifique normativamente, para o caso genrico correspondente, a aoem questo, e fundamente em tal norma a soluo do caso individual.O fato de que tal norma geral criada pelo juiz possibilita fundamentar ou

    a admisso ou a denegao da demanda poder ser mais ou menos ra-zovel ou mais ou menos disparatada, mas estes juzos de razoabilida-de ou de irrazoabilidade sero sempre puras apreciaes extrajurdicas.Juridicamente, a deciso do juiz inteiramente discricionria, no sentido

    de que no est vinculada a pautas jurdicas preexistentes, pois no hmais pautas jurdicas do que as que correlacionam casos com solues eisto , precisamente, o que falta aqui. Juridicamente, a deciso do juiz seencontra justificada sempre que se fundamenta numa regra geral constru-

    da pelo prprio juiz, e ser igualmente justificada se de tal regra geral sederiva a admisso como se dela mesma se deriva a denegao da deman-da. Eugenio Bulygin tem permanecido at o presente momento irreduti-velmente fiel a essa reconstruo, como mostra sua aceitao do exem-

    plo proposto por Fernando Atria a respeito do lugar de frias conjugais.Na opinio de Bulygin, se falta uma regra a respeito das obrigaes (ou aausncia de obrigaes) de um e de outro cnjuge, a deciso do juiz est

    justificada, sempre que se encontre mediada por uma regra geral criada

    por ele mesmo, da qual se derive, ou (no caso de que o juiz crie uma

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    norma digamos patriarcal) a obrigao da mulher seguir o marido aolugar das frias escolhido por ele, ou (no caso do juiz criar uma normadigamos matriarcal, ou se, preferir feminista) a obrigao do maridode seguir a mulher ao local de frias escolhido por ela; ou, ainda, (no casodo juiz criar uma norma digamos anarquista) a permisso para ambosde se omitirem das pretenses do outro. O juiz cumpre com a sua obriga-o em qualquer das trs suposies; em qualquer uma das trs trata-sede uma deciso justificada e aqui tudo se resolve de forma satisfatria.De acordo com o direito, no h mais o que discutir.

    Pode, evidentemente, ocorrer o caso em que duas regras jurdi-

    cas correlacionem o mesmo caso com solues normativas incompat-veis, isto , que o sistema contenha uma antinomia. Essa possibilidade,na opinio de Alchourrn e Bulygin, no se pode nunca excluir porquea consistncia do sistema no um trao garantido nele, mas meramenteum ideal racional. Em todo caso, os sistemas jurdicos usualmente con-tm meta-regras (constitudas por critrios de lex superior, lex posteriore lex specialis), que, ao hierarquizar as regras em conflito, possibilitamsolucionar, mediante pautas proporcionadas pelo prprio direito, a maior

    parte das antinomias. Mas o que interessa destacar que a consistncia como trao que o direito apresenta, ou bem de entrada, pela ausncia noseu seio, de regras inconsistentes, ou pela eliminao das inconsistnciasmediante meta-regras jurdicas um ideal racional de difcil realizao

    plena, pela mera razo de nossa incapacidade para antecipar, mediante aconfigurao dos correspondentes casos genricos, todas as combinaesde propriedades que podem apresentar os casos individuais. Da que, emrelao com as normas que, como tais, so inconsistentes, podem apare-

    cer supostos de inconsistncia por certas combinaes no previstas defato (ou, se preferir, de propriedades, conforme Alchourrn). Um exem-

    plo imaginrio seria o seguinte: suponhamos uma norma N1, contidanuma lei processual, de acordo com a qual todos os funcionrios pblicosteriam a obrigao de entregar ao juiz penal qualquer documento solici-tado por este e, suponhamos tambm, uma norma N2, na qual todos osfuncionrios pblicos ficam proibidos de entregar a quem quer que sejaos documentos qualificados como secretos dos que tiverem conhecimento

    em razo do seu cargo. Quando tal situao ocorre com respeito a normas

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    do mesmo grau (isto , quando duas normas do mesmo grau aparecemcomo antinmicas no que se refere a combinaes de propriedades no

    previstas pela autoridade editora de ambas), o direito teria critrios parasua soluo: porque o critrio de lex posterior resulta aqui irrelevante e delex specialis pode funcionar em ambos os sentidos (tanto pode entender--se que juiz penal especial frente a quem quer que seja como quedocumento classificado como secreto especial frente a qualquer do-cumento) pelo que no se chega a uma soluo. O juiz no teria outra

    possibilidade, ante a ausncia de guias jurdicos para resolver a antino-mia, seno escolher a forma no guiada pelo direito (usando diriamAlchourrn e Bulygin seus critrios de preferncia pessoal) entre umae outra norma as quais resultam conflituosas para o caso. Sua deciso seacharia igualmente justificada tanto se escolhesse uma como se escolhes-se a outra das normas em conflito.

    Pode ocorrer tambm que, por razes de indeterminao semnti-ca na descrio de alguma propriedade configuradora do caso genricosolucionado numa regra, resulte duvidoso no sentido de que no hajausos lingusticos seguros a respeito se uma propriedade (menos gen-

    rica) que exibe certo caso individual est ou no compreendida naquela.Um exemplo proveniente de Dworkin, do qual Alchourrn e Bulygin fa-zem uso, a norma segundo a qual os contratos sacrlegos so nulos e,sendo assim, coloca-se a questo que, se o contrato entre Tim e Tom, ce-lebrado no domingo , por essa circunstncia, sacrlego , por essa razo,tambm nulo. O juiz deve estabelecer, pois, se os contratos celebradosno domingo esto includos ou excludos da extenso sacrlego. Nessecaso, por no haver uma regra lingustica clara, o juiz deve usar, para fun-

    damentar sua deciso, no uma definio lexicogrfica ou informativa desacrlego, mas uma definio estipulativa (baseada numa deciso dis-cricionria de sua parte). Essa definio estipulativa , como seria no casode se encontrar disponvel a correspondente definio lexicogrfica, uma

    proposio analtica que, como tal, verdadeira apenas em virtude dosignificado dos termos relevantes e isto, naturalmente, desde que se esta-

    belea a incluso na denotao de sacrlego dos contratos celebrados nodomingo, tanto como se opta por excluir tais contratos de tal denotao.

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    Sua deciso se encontra, de acordo com Alchourrn e Bulygin, igualmen-te justificada em ambos os casos.

    Outro suposto caso que os juristas tendem a ver como problemtico,mas que para Alchourrn e Bulygin resulta ntido, d-se quando o sistemaapresenta, em relao a certo caso (genrico), o que eles denominam delacuna axiolgica. De acordo com os autores esse caso constitui uma la-cuna axiolgica de um determinado sistema normativo se o caso em ques-to est solucionado por esse sistema normativo, mas sem que se consi-dere como relevante para essa soluo, certa propriedade que, de acordocom alguma hiptese de relevncia, deveria ser considerada como rele-

    vante. Em tais situaes, o caso est devidamente solucionado por essesistema. O que ocorre nelas que a soluo julgada como valorativa-mente insatisfatria por certo intrprete e/ou aplicador, os quais entendemque o legislador, de maneira axiolgica inadequada, no considerou comorelevante uma propriedade que, de acordo com a hiptese de relevnciaassumida pelo intrprete ou pelo aplicador, deveria ter sido tomada comorelevante. Um bom exemplo de lacuna axiolgica estaria constitudo pelofamoso caso Riggs versus Palmer, que Dworkin popularizou h mais de

    trs dcadas e que foi rebatizado por Carrio como El caso Del nieto apu-rado, vale dizer, O caso do neto apressado. Como se lembrar, trata-sede um caso em que um neto reclamava, ao entrar em posse da herana deseu av, que de acordo com as regras sobre a sucesso aplicveis ao casolhe corresponderia, sem dvida alguma, a herana, porque tais regras noconsideravam como relevante a propriedade, presente neste caso, de quequem reclama a herana tivera assassinado o av. Pois bem, se recons-truirmos a situao de acordo com as categorias de Alchourrn e Bulygin,

    o que havia aqui era uma divergncia valorativa entre a tese de relevnciado sistema jurdico, as propriedades consideradas como relevantes nasregras do sistema para configurar os casos, para as quais a propriedadeter assassinado o de cujus aparecia como irrelevante, e uma hiptesede relevncia externa ao sistema (a de que os juzes que assumiram estecaso), para quem a propriedade haver assassinado o de cujus deveriaser considerada como relevante. Mas tal coisa um mero desacordo valo-rativo que, como tal, no afeta a soluo juridicamente predeterminada do

    caso, que no mais que o que se deriva da regra que configura o caso e

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    produto das decises sobre relevncia do legislador e no das hipteses,ou preferncias, sobre relevncia externas ao sistema de regras jurdicas.

    Pois bem, se tudo o que anteriormente foi dito correto (isto , se uma reconstruo adequada da tese de Alchourrn e Bulygin), encon-tramos-nos com uma primeira consequncia geral sumamente chocante,qual seja, a de que, de acordo com a concepo de Alchourrn e Bulygin,no h espao para falar da existncia, no Direito, de casos a respeito dosquais seja controvertida a soluo exigida pelo Direito: h casos que en-contram sua soluo numa regra preexistente e casos para cuja soluo o

    juiz deve construir discricionariamente (ou escolher) a regra na qual deve

    subsumir tal caso. E discricionariamente deve entender-se aqui no seusentido mais forte: como algo no guiado por normas jurdicas de nenhu-ma classe, de forma que qualquer discusso sobre a maneira como o juizdeve exercer a discricionariedade uma discusso sobre preferncias,alheias todas elas ao que, de acordo com o Direito, deve fazer-se. Maisespecificamente, a relao entre casos individuais e regras pode apresen-tar, de acordo com o que chamado modelo clssico de Alchurrn eBulygin, as seguintes modalidades:

    a) Casos claramente abrangidos por uma regra e s por uma regra(ou por duas ou mais regras redundantes): a soluo jurdica cor-reta a predeterminada pela regra que configura o caso genricocorrespondente, sem mais especificaes. No particular, quandose alega que o caso individual apresenta propriedades que deve-riam ser consideradas como relevantes e que no se encontramreconhecidas como tais na configurao do caso genrico (lacu-

    nas axiolgicas), tais alegaes no so nada mais que uma ex-presso de um desacordo valorativo externo ao direito.

    b) Casos no abrangidos por regra alguma (lacunas normativas): uma soluo juridicamente correta qualquer deciso do juiz, des-de que se fundamente numa regra geral.

    c) Casos abrangidos por duas regras incompatveis (antinomias) noque cabe resolver a incompatibilidade atravs das meta-regras delex superior, lex posteriorou lex specialis: uma soluo juridi-

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    camente correta fundada em qualquer das regras incompatveis,entre as quais o juiz escolhe discricionariamente.

    d) Casos duvidosos que resultam ou no passveis de subsunonuma regra, por falta de determinao semntica dos termosempregados na configurao do caso genrico contemplado naregra (lacunas de reconhecimento). correta a soluo funda-mentada em qualquer das interpretaes possveis dos termosempregados na configurao do caso genrico (tanto a que incluio caso individual como a que exclui), entre as quais decide o juizdiscricionariamente.

    Parece que tudo isso apresenta uma imagem da relao entre casose regras que resulta por completo alheia s ideias compartilhadas entre os

    juristas.

    a) A respeito dos casos do tipo 1: os juristas devem considerar queas regras esto sujeitas a excees implcitas que no resultaminteiramente antecipveis. De forma que, quando eles mesmos seafastam da soluo predeterminada por uma regra, entendem que

    fazem tal coisa por razes jurdicas e que tambm em tais casosaplicam o Direito e no o modificam com base nas suas prefe-rncias pessoais.

    b) No que se refere aos casos de tipo 2:, parece que qualquer juris-ta consideraria que, se no h regras para certo caso, a condutacorrespondente resulta, desse modo, de forma imediata, no vin-culada juridicamente e, por isso, livre. Que resulte, de imediato,

    juridicamente no vinculada no quer dizer, entretanto, que re-sultem assim considerados todos os fatores. O direito pode con-ter elementos que vo se explicitar de outra forma de racio-nalizao anloga que determinem que a conduta em questodeva considerar-se, nesse caso, como finalmente proibida peloDireito. Em todo caso, a discusso a respeito de se a conduta emquesto deve, no caso em que se trate, considerar-se finalmentecomo no vinculada juridicamente ou como proibida, uma dis-

    cusso a respeito do que o Direito, considerados todos os fatores,determina para o caso e no como uma discusso de preferncias

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    pessoais relativas ao uso de poderes de exerccio no guiadas ju-ridicamente.

    c) No que se refere aos casos do tipo 3: isto , antinomias no re-solveis pelo uso das meta-regras lex superior, lex posterioroulex specialis, no parece que os juristas considerem que o juiz

    pode escolher uma das duas regras em conflito, seno que deveratender ao peso, em relao com o caso, das razes subjacentesa uma e outra regra em conflito. E que os desacordos a esse res-

    peito so desacordos a respeito da devida relao jurdica com ocaso, e no, mais uma vez, desacordos relativos a preferncias

    pessoais a respeito do uso de poderes de exerccio no guiadojuridicamente.

    d) E, por ltimo, os casos de tipo 4: dvidas acerca da subsumi-bilidade de certa propriedade que exibe um caso individual napropriedade presente na configurao de um caso genrico, valea pena voltar ao prprio exemplo com que operam Alchourrne Bulygin a subsumibilidade ou no da propriedade descritivacelebrado no domingo na propriedade valorativa sacrlego.

    Confesso minha incompetncia valorativa para emitir opiniesacerca do que deva ou no considerar-se sacrlego, mas o queme interessa destacar que o problema similar ao que o legis-lador usa, para configurar o caso genrico, um termo que designaum conceito vago do tipo dos que os juristas gostam de deno-minar conceitos jurdicos indeterminados. Quando o legisladorusa, para guiar a conduta (para configurar o caso ou para carac-terizar a ao) um conceito jurdico indeterminado tal como

    abuso de direito, fraude de lei, prodigalidade, boa f etc. o que faz configurar o caso, ou caracterizar a ao, median-te propriedades valorativas, sem determinar que propriedadesdescritivas constituem as condies de aplicao da proprieda-de valorativa correspondente, conforme Richard Hare (1952).A tarefa de determinao dessas condies de aplicao enco-mendada pelo legislador ao aplicador do Direito. O que no querdizer, ao juzo dos juristas, que o rgo aplicador habilitado

    para determinar, de qualquer maneira que lhe parea apropriada,

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    tais condies de aplicao. Um exemplo, os juristas no con-sideram que o rgo aplicador goze de discricionariedade paraqualificar como abuso de direito qualquer caso de exerccio deum direito subjetivo com o qual no simpatize. Tambm aqui os

    juristas consideram que h determinaes das condies de apli-cao corretas e incorretas. E, mais uma vez, as discusses sobrea correo ou a incorreo so, tambm nesse mbito, discussesacerca do que o Direito exige num determinado uso de poderesde exerccio no guiado juridicamente.

    A apresentao que fazem Alchourrn e Bulygin da relao entre

    as regras e casos resulta, assim, no muito distante, mas fortemente con-trastante com as crenas compartilhadas entre os juristas, os modos deargumentao que estes consideram aceitveis e as pretenses que elesexprimem quando desenvolvem algum desses modelos de argumentao.De onde Alchourrn e Bulygin observam uma mera separao do exigido

    pelo Direito na adoo de uma soluo distinta da determinada numaregra aplicvel ao caso pela presena de uma lacuna axiolgica os juris-tas entendem que esse afastamento pode estarjuridicamente justificado,

    isto , vem exigido pelo prprio direito, porque essa propriedade que aregra aplicvel ao caso toma como relevante poderia ser que devesse, deacordo com o Direito e no com as hipteses pessoais de relevncia, sertomada em conta como relevante. E assim mesmo, em aspectos nos quaisAlchourrn e Bulygin observam pura discricionariedade no sentido defaculdade para construir, selecionar ou precisar a norma que fundamenta adeciso em meras preferncias pessoais os juristas observam operaes

    juridicamente vinculadas e apresentam suas opinies a respeito como quepretendendo refletir o que o Direito exige para o caso. Os desacordos apa-recem, assim, como verdadeiros desacordosjurdicos, e no como meroscontrastes de preferncias pessoais.

    Suponho que Eugenio Bulygin poderia me conceder razo a tudoanteriormente dito e replicar que tudo isso, no final das contas, no tem amenor importncia. Poderia arguir que a imagem que ele prprio e CarlosAlchourrn apresentam da relao entre casos e regras no se compadece

    com a imagem que, dessa mesma relao, tem os juristas, mas, sendo as-

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    sim as coisas, pior para os juristas. Tambm no, por exemplo, arguiriaBulygin a teoria da evoluo se compadece bem com a imagem do G-nesis e no implica problema algum para a primeira, salvo para o fanticoreligioso. Mas acontece que a histria da evoluo das espcies e essa ins-tituio social que chamamos de Direito se encontram em nveis ontol-gicos distintos. E isso pela simples razo de que a evoluo das espciesest constituda por fatos independentes de qualquer crena a respeito,enquanto que a existncia e o modo de operar do Direito, so fatos depen-dentes de crenas compartilhadas. E, por esse motivo, qualquer Teoria doDireito que pretenda ser epistmicamente objetiva, h de ser correspondentecom as crenas (subjetivas, obviamente) compartilhadas pelos participantesna instituio, ou na prtica social, a que chamamos Direito.

    De forma que, como veremos, no pode considerar-se casual estamesma discordncia com as crenas compartilhadas pelos juristas e em

    particular, ao considerar como casos no regulados pelo Direito, casosque qualquer jurista consideraria como claramente regulados por ele ,isso tambm ocorre na obra de outro dos campees contemporneos do

    positivismo forte, isto , na obra de Joseph Raz.

    Joseph Raz , provavelmente, o defensor mais conhecido da concep-o de Direito que se chama positivismo excludente ou tese forte dasfontes sociais. Tese a que Eugenio Bulygin (1981, p. 430 e ss.) consideradefinidora da posio positivista. De acordo com ela, a identificao deuma norma como norma jurdica consiste em atribu-la a uma pessoa oua uma instituio relevante (isto , a uma fonte), como expresso de suadeciso e expresso de seu juzo e tais atribuies podem basear-se uni-

    camente em consideraes de fato, pois a argumentao moral pode es-tabelecer o que que as instituies jurdicas deveriam ter expressado ousustentado, mas no o que realmente expressaram ou sustentaram, defendeJ. Raz (2001, p. 196).

    Para compreender o alcance da tese de Raz, nada melhor do queum exemplo dado por ele mesmo. Podemos supor que uma norma5 N1

    5 Raz, a rigor no fala em exemplo de norma, mas de doutrina jurdica. Mas uma

    doutrina jurdica, na terminologia da commom law, no pertence linguagem acerca doDireito, mas linguagem mesma do Direito. Essa a razo do porqu da substituio na

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    que estipule que um contrato que propicia a corrupo na vida pblica ilcito e uma deciso judicial D como a seguinte, que se apresenta comoaplicadora da norma anterior: considera-se ilegal um contrato pelo qualo contratante empreiteiro deveria contribuir com fundos para a campa-nha eleitoral de um candidato nas eleies locais, como retribuio pelocompromisso de que, no caso de resultar eleito, o candidato promovera construo de uma rua que interligue dois complexos habitacionais.Raz d por certo que essa deciso embora se encontre preparada paraa linguagem especfica que se refere ao caso particular, baseia-se numa

    preposio geral que se aplica a uma classe de casos isto , numa normacujo teor viria a ser algo assim como N2 se consideram ilegais aquelescontratos em que algum proporciona fundos eleitorais a um candidatoem troca do compromisso de que, uma vez eleito, tome alguma decisoespecfica. Suponhamos assim mesmo que N2, uma vez usada como ra-tio decidendi de D, estabelece um precedente obrigatrio, de forma que,a partir de D, N2 indubitavelmente uma norma vlida do sistema jurdi-co, expressamente formulada. Pois bem, antes da sentena, pertencia aosistema jurdico uma norma, se bem que implcita, que estabelecia o que

    estabelece a norma N2? A resposta de Raz negativa: pelo seu juzo, otribunal, em tal caso, no se limitou explicitar o contedo do Direito jexistente, mas modificou o Direito. Algum poderia pensar que, efetiva-mente, assim so as coisas pela razo de que N1 no determina a decisoD, mas que, de acordo com N1 era possvel alguma deciso, por exemplo,a que se fundamentara na considerao de que a troca de dinheiro por

    promessas eleitorais no constituem uma forma de corrupo poltica eque, portanto, um contrato desse teor deve ser lcito. No essa a posio

    de Raz: este assume a posio de que: de acordo com N1 no cabia outradeciso seno a fundada em N2. Isso implica que o tribunal em questodeveria usar N2 como fundamento de deciso. E se assim , que sentidotem a afirmao de que N2 no era uma norma vlida do sistema anterior deciso judicial? Que sentido tem, dizer que uma norma uma nor-ma jurdica vlida, mas que os tribunais tm o dever de us-la, nos casosapropriados, como fundamento de suas decises? E se os deveres judi-

    exposio do exemplo, da expresso doutrina jurdica pela expresso norma , para nodar lugar a equvocos a respeito.

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    ciais a respeito no so modificados, que sentido tem dizer que o direitomudou?

    A resposta de Raz se encontra em uma concepo acerca das condi-es de verdade dos enunciados que afirma a existncia das normas jur-dicas vlidas: um enunciado que afirma a existncia de uma norma jur-dica vlida verdadeiro, na opinio de Raz, apenas se sua verdade podeapoiar-se exclusivamente em premissas fticas verdadeiras, sem recorrera argumentos . Pois bem: antes da sentena que estabeleceu a ilegali-dade de tais contratos, no havia maneira de argumentar que existia umanorma legal que taxava a tais contratos de ilcitos, a menos que se bus-

    casse apoio em argumentos morais; por isso, no existia direito algum arespeito (RAZ, 2001, p. 200).

    Logo, por que sustentar uma tese sobre as condies de verda-de dos enunciados acerca da existncia de normas? Como sabido, issodepende, a partir do afirmado por Raz, da concepo acerca do Direito.Concepo que o v como um mecanismo destinado a prescindir da deli-

    berao na nossa determinao sobre os cursos de ao a adotar. As auto-ridades jurdicas deliberam sobre as razes pr e contra um determinadocurso de ao, dadas certas circunstncias. Sua deliberao produz certasinstrues (ou razes executivas) para os submetidos a elas (as normas

    jurdicas) que podem ser entendidas e seguidas sem ter que reabrir o pro-cesso deliberativo. Essa a principal vantagem de dispor de autoridades

    jurdicas e de um sistema jurdico: seus destinatrios podem economizaros custos de deliberao. Tal vantagem, como bvio, perder-se-ia parase estabelecer o significado das instrues das autoridades, atendendo s

    razes que elas mesmas tm levado em conta.Pois bem, o problema que as instrues das autoridades jurdi-

    cas nem sempre renem as condies necessrias para que seus destinat-rios possam poupar-se da deliberao. Essas condies renem-se quandoas instrues da autoridade tm a forma de regras que correlacionam umcaso genrico, configurado mediante uma combinao de propriedadesdescritivas, com a obrigao, a proibio ou a permisso de uma ao,caracterizada assim descritivamente. As normas desse tipo, por exemplo,

    circulando por autoestrada, est proibido ultrapassar a velocidade de 120

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    km/h tm o que se chama autonomia semntica, isto , seu significado pode estabelecer-se e, portanto podem ser seguidas sem atender srazes subjacentes nelas, as razes que as justificam. Mas o que ocorrequando as instrues sob a forma de regras isto , de enunciado quecorrelacionam um caso com uma soluo normativa configuram o casomediante propriedades carentes de autonomia semntica a respeito das ra-zes subjacentes regra: por exemplo, o Cdigo Civil espanhol determi-na que o juiz, dado o correspondente processo, declare incapazes isto, prive da capacidade de trabalhar aquelas pessoas que apresentemenfermidades ou deficincias permanentes de carter fsico ou psqui-co que impeam a pessoa de governar a si mesma. Aqui, seguir a regrasem atender suas razes subjacentes no tem sentido. Isso tambm ocorrequando uma norma caracteriza a ao mediante propriedades valorativas(abusivo, fraudulento, de m-f) como ocorre no caso dos chamados con-ceitos jurdicos indeterminados, a que antes fizemos referncia; e, tam-

    bm, quando as normas se recusam a configurar o caso e se limitam aestabelecer a obrigatoriedade prima facie de determinados princpios, a

    prevalncia de cada um deles a respeito dos outros, somente pode ser es-

    tabelecida, atendendo ao peso das razes que cada um deles incorpora;ou quando as normas limitam-se a ordenar aos poderes pblicos que per-sigam determinados objetivos coletivos (o pleno emprego, o acesso uni-versal habitao e a estabilidade econmica) sem pronunciar-se sobre oscursos de aes para consegui-los6.

    De acordo com a concepo de Raz, as normas jurdicas regulativasdeveriam constituir, todas elas, razes executivas ou peremptrias, isto ,suscetveis de serem aplicadas sem necessidade de deliberao por par-

    te de seus destinatrios, porque apenas assim se preserva a vantagem de

    6 Inclusive no caso de regras com autonomia semntica cabe dizer que, se bem possvel

    governam por elas convenes interpretativas mais complexas que ordenam atender, na

    me ao tipo de convenes interpretativas referidas, por exemplo, nos artigos 3 e 4 doCdigo Civil espanhol, quando dizem que, na interpretao das normas, deve-se atender

    outro semelhante entre os que tm razo idntica.

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    contar com autoridades, nos termos j vistos, que nos economizam doscustos da deliberao. Mas a imagem, evidentemente, implica o empobre-cimento injustificado da diversidade de normas jurdicas regulamentado-ras e da diversidade de forma em que cada uma delas pretende incidir narazo prtica de seus destinatrios. Muitas delas, como temos visto, no o caso de que no possibilitam fundamentar a adoo de cursos de ao,

    prescindindo da deliberao, seno que, apenas podem incidir no nossoraciocnio prtico de forma precisamente deliberativa.

    Certamente Raz tem conscincia de que nossas prticas jurdicasso muito mais complexas do que a mera aplicao das razes executivas

    ou peremptrias e, para encarar essa dificuldade, distingue entre o ra-ciocnio para estabelecer o contedo do direito no qual no caberiamavaliaes e se governaria com puros argumentos de fato e o racio-cnio com base no direito que deveria integrar o dado, registrado peloraciocnio para estabelecer o contedo do direito de que ele concedediscricionariedade aos juzes para afastar-se do ordenamento pelo prpriodireito, sempre que haja razes morais importantes para faz-lo (RAZ,2001, p. 207). Mas esta ltima considerao , na minha opinio, de

    consequncias devastadoras para a construo de Raz: porque, se assimfosse, resultaria que aquilo que a seu juzo constitui a vantagem de pos-suir um sistema jurdico (diminuir os custos de deliberao) acabaria porcompleto na hora da aplicao judicial dele. Sendo assim, as coisas paraa aplicao judicial, no se v como os particulares poderiam preservar

    para si mesmos essa vantagem. E, por outro lado, a reconstruo do racio-cnio judicial embasado na distino afasta ainda mais Raz do que so ascrenas compartilhadas entre os juristas, porque estes discutem a eventual

    justificao de deixar de lado, em certo caso, uma regra aplicvel ao mes-mo, no como se fora um problema de justificao moral no exerccio deum poder discricionrio, mas um problema de justificao jurdica, isto, de justificao derivada de razes jurdicas, cujo peso superior move aregra como fundamento da deciso.

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    3. Uma Viso Alternativa

    Assim, pois, tanto em Raz como em Alchourrn e Bulygin nos en-contramos com uma desconfigurao por empobrecimento do que se develevar em conta quando chega o momento de estabelecer o contedo doDireito. Em Alchourrn e Bulygin, apenas leva-se em conta o contedode um s tipo de enunciado (e suas consequncias lgicas): aquele quecorrelaciona um caso com uma soluo normativa, aos que hoje comumchamar de regras e para os que Alchourrn e Bulygin reservam o uso dotermo norma. Em Raz, apenas conta o contedo das instrues execu-

    tivas das autoridades, cuja identificao pode levar-se a cabo e seu sig-nificado pode ser estabelecido mediante puros argumentos de fatos, semintroduzir elementos avaliativos de qualquer espcie.

    Essas duas operaes de reduo encontram-se assemelhadas da se-guinte maneira: apenas as regras, isto , os enunciados que correlacionamcasos com solues normativas (apenas enunciados que tenham essa es-trutura) podem operar como razes executivas ou peremptrias (podemincidir dessa maneira no raciocnio prtico de seus destinatrios). Ter es-

    sas estruturas condio necessria para que elas possam operar de talmaneira (prescindindo da deliberao) como guias de ao. Certamente,

    para completar as condies suficientes, preciso que esses enunciadoscumpram uma condio adicional: que as propriedades que configuram ocaso e a ao ordenada apaream caracterizados descritivamente (porquea presena de predicados valorativos implica a necessidade de delibera-o acerca de suas condies de aplicao). Mas convm insistir que setrata, em todo o caso, meramente de condies suficientes de uma pos-

    sibilidade: isto , uma regra em que a propriedade do caso e a ao or-denada apaream caracterizadas descritivamentepode operar o raciocnio

    prtico de seus destinatrios da maneira que, para Raz, constitui a nicaforma adequada na hora de estabelecer o contedo de Direito, isto , demaneira completamente opaca, ou cega, a suas razes subjacentes. Mas

    pode faz-lo tambm de maneira mais sensvel a essas razes, de formaque tais razes (o esprito e finalidade das normas a que alude o CdigoCivil espanhol) sejam levadas em conta na hora de determinar o exigido

    pela regra (ampliando ou restringindo, por exemplo, seu significado lite-

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    ral). Que as convenes interpretativas vigentes em nossas comunidades jurdicas se orientam melhor por essa ltima direo no algo que re-queira, creio eu, argumentao especial.

    essa reduo das normas jurdicas regulativas a enunciados de umtipo apenas (no caso de Alchurrn e Bulygin) que estabelece o contedodo direito ao serem assumidos como razes executivas (no caso de Raz),o que, na minha opinio, est na raiz da falta de adequao de ambas asteorias , por um lado, e de forma imediata s crenas compartilhadas pe-los juristas, e por outro e imediatamente, realidade do direito (que sefaz operacional como realidade institucional atravs do jogo de crenas

    compartilhadas).EmPolitical Liberalism, escreve Rawls, caracterizando sua prpria

    concepo de filosofia poltica, que o que fazemos agrupar essas con-vices decantadas [...] [na cultura poltica de uma sociedade democr-tica] e tratar de organizar as ideias e os princpios bsicos implcitos atconvert-los em uma concepo poltica coerente da justia (RAWLS,1993, p. 98). Parafraseando Rawls e frente ao que representam concep-es como a de Alchourrn e Bulygin e a de Raz eu diria que uma

    boa Teoria do Direito a que proporciona uma imagem que seja capaz deorganizar um todo coerente de ideias fundamentais divididas na cultura

    jurdica pblica de nossas comunidades jurdicas. Nos ltimos anos ve-nho tentando trabalhar nessa direo em companhia de Manuel Atienza.O que segue com relao aos problemas das lacunas do Direito ,

    por isso mesmo, fortemente dependente (e, de certo modo, uma mera ex-plicitao) da teoria dos enunciados jurdicos que esboamos ambos em

    Las piezas Del derecho e na aplicao dessa teoria s figuras do abusode Direito, a fraude da lei e o desvio de poder que mostramos emIlcitosatpicos7.

    Mas antes de abordar o tratamento das lacunas de forma que resultecoerente com a Teoria do Direito que temos elaborado, Atienza e eu mes-mo, preciso contornar um par de obstculos preliminares: o primeirodeles o do status normativo das aes no reguladas, o segundo, inti-

    7 Atienza; Manero, op. cit. 1996.

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    mamente vinculado com o anterior, o da simetria (ou falta de simetria)entre as justificaes correspondentes s decises judiciais de aceitar oude recusar a demanda.

    Falar destatus normativo das aes no reguladas parece, de incio,algo assim como uma violao dos limites da linguagem normativa, con-forme Carrio (2001). As aes no reguladas so precisamente isso, aesno reguladas e, por isso, carentes destatus normativo. Agora, o que im-

    plica dizer de uma ao que carece destatus normativo com relao acerto sistema de normas? Quer dizer que essa ao no se v afetada pornenhuma norma desse sistema. Ou, dito de outra forma, que igual ao

    que ocorre com a permisso expressa nenhuma norma desse sistema violada pelo sujeito que tanto realiza a ao como se abstm de realiz-la.Nesse sentido, a disponibilidade da ao para o sujeito, em relao a essesistema de normas, a mesma tanto se a ao no est regulamentada

    pelo sistema como se a ao esta permitida pelo sistema. O sistema noimpe restrio alguma sobre a conduta em nenhum dos dois casos, deacordo com o pensamento de Hierro (2002). E essa a razo segundo aqual as condies de justificao da aceitao ou da negao do Direito

    da demanda no so simtricas: para a aceitao da demanda , essa neces-sita de uma relao com a conduta do demandado sem aplicabilidade denorma e que o demandado a tenha violado; para a negao da demanda,no preciso que a conduta do demandado constitua um caso de comple-mento (se a norma em questo de mandato) ou de uso ( se a norma emquesto permissiva) de uma norma. tambm suficiente que se trate deuma conduta no sujeita a norma.

    Isso parece-me bvio! Mas no h dvida de que, a partir daqui,surgem com naturalidade diversas objees. Falarei apenas de duas.A primeira objeo seria a seguinte: se a ausncia de regulamentao deuma ao produz os mesmo efeitos para o sujeito da ao que a regula-mentao da mesma por meio de uma regra permissiva, por que razoo legislador faz regras permissivas? Em Las piezas Del Derecho, colo-camo-nos Atienza e eu a questo e mostramos como o ditado da regra

    permissiva pode cumprir, dados os contextos apropriados, diversas fun-

    es importantes: 1) cancelar uma proibio, em tal caso, o dito de umaregra permissiva equivale a uma disposio derrogatria; 2) excetuar

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    uma proibio. Em tal caso, o enunciado da regra permissiva equivale aoenunciado de uma disposio que excepcionara a proibio de que se tra-ta; 3) esclarecer que um dado caso no est compreendido no alcance deuma proibio. Nesse caso, o dito da regra permissiva equivale ao ditode uma disposio definidora da conduta coberta pela regra permissiva;4) introduzir indiretamente uma proibio (de proibir, de impedir ou desancionar) s autoridades subordinadas. Nesse caso, o dizer da regra per-missiva equivale ao dizer de uma regra proibitiva (de proibir, impedir ousancionar) as autoridades subordinadas. De maneira que a relevncia dasregras permissivas parece poder explicar-se inteiramente em termos deregras proibitivas, de derrogao ou exceo das mesmas e de definies.Assim, por este lado, no parece haver dificuldade para a tese e que, aausncia de regulao (de proibio) e, a permisso, so situaes equiva-lentes para o sujeito.

    A segunda objeo bvia que suscita a tese anterior a seguinte:alguns sistemas (ou subsistemas) jurdicos contm regras de clausura per-missivas (que permitem expressamente tudo o que no probem outras re-gras do sistema), enquanto outros sistemas (ou subsistemas) no contm

    tais regras de clausura. Nos nossos sistemas jurdicos, a primeira situaod-se de maneira muito central no Direito Penal e tambm eventualmenteem outros setores como o Direito Administrativo sancionador, a ausn-cia de regras de clausura permissivas a situao normal em todo ombito do Direito Privado. E, indubitavelmente, a presena de tais regrasde clausura permissivas marca uma diferena importante entre o direito

    penal, segundo o qual, se uma conduta no est expressamente proibidana regra ento est, sob o ponto de vista do Direito Penal, permitida sem

    necessidade de deliberao ou ponderao alguma, enquanto que, no Di-reito Civil, por exemplo, a ausncia de proibio expressa por uma regrano garante que a conduta em questo no resulta estar ao final proibida,depois de uma ponderao que inclua todas as razes relevantes. Mas omesmo ocorre, nos mesmos setores do Direito, com condutas expressa-mente permitidas por uma regra: tambm aqui a permisso pode deslo-car-se em favor da proibio aps uma ponderao que inclua todas asrazes relevantes (e h figuras jurdicas estabelecidas precisamente para

    operar dito deslocamento, como o caso do abuso de direito, da fraude

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    da lei e do desvio de poder). Diramos, ento, que a diferena importanteentre o Direito Penal e outros setores do Direito no se encontra no senti-do de que o primeiro permita emsentido forte (pela presena nele de umaregra de clausura permissiva) o que em outros setores se permite apenasemsentido fraco (pela mera ausncia de uma regra proibitiva), seno queo primeiro , como sistema de proibies, um sistema exclusivo de re-gras, enquanto que, em outros setores, a ausncia de regras ou a presenade regras permissivas pode ver-se deslocada, num juzo final sobre a con-duta de que se trate um dado caso, por consideraes de princpios. Ditode outra forma, embora o sistema de proibies penais seja um sistemade regrasfechado, o sistema de proibies de outros setores do Direito um sistema de regras aberto s exigncias derivadas dos princpios, isto, das razes subjacentes s regras. Ou, dito de outra forma, no DireitoPenal no cabe a distino que cabe em outros setores do Direito entreos juzos de proibio em virtude de regras e de juzos de proibio consi-derando todos os fatores relevantes, mais do que no sentido de excepcio-nar, no juzo final, proibies contidas em regras pr-estabelecidas, masno no sentido de transformar em juzos finais de proibio o que aparece

    permitido por tais regras.O que tudo isto implica que a relao entre as regras do Direito

    Penal e suas razes subjacentes opera de maneira distinta ao modo comoopera a relao entre as regras de outros setores do Direito e suas razessubjacentes. No Direito Penal o papel das razes subjacentes para delimi-tar o mbito do penalmente ilcito se encontra limitado no seguinte sen-tido: uma vez estabelecidas as regras pelo legislador, apenas cabe apelar,

    por parte dos rgos aplicadores, s razes subjacentes s mesmas para

    excepcionar proibies. Mas no para ampliar o mbito do penalmenteilcito. Nesse sentido, o sistema de regras do Direito Penal um siste-ma fechado (vale a pena insistir na direo da ampliao de proibies,no na direo de excepcion-las). Pelo contrrio, nos outros mbitos doDireito, o sistema um sistema aberto reviso de suas regras e luz desuas razes subjacentes tanto na direo de ampliar como na de restringiras proibies contidas naquela.

    Naturalmente, falar de relaes entre as regras e suas razes sub-jacentes implica situar-se numa concepo de Direito que como a que

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    temos tratado de elaborar Atienza e eu mesmo nos ltimos anos vaimais alm dos limites de concepes do Direito como as de Alchour-rn e Bulygin e de Raz. Vai mais alm dos limites em um duplo sentido.Em primeiro lugar, que vai mais alm de Alchourrn e Bulygin no sentidode dar conta da presena no Direito de normas jurdicas entre um casogenrico entendido como um conjunto de propriedades e uma soluonormativa, entendida como qualificao dentica conclusiva de uma dadaao. Em segundo lugar, que vai alm de Raz, no sentido de dar conta da

    presena no Direito de normas regulativas que no pretendem operar noraciocnio de seus destinatrios, no como razes (protegidas ou exe-cutivas) destinadas a substituir a deliberao, mas como integrante do

    processo deliberativo.

    Esse duplo ir mais alm resulta, basicamente, em uma imagemda dimenso regulativa do Direito como uma estrutura de dois nveis: asregras e os princpios que as justificam (e que constituem as razes sub-

    jacentes daquelas ). Os princpios tm, de um lado, uma estrutura distintadaquela que Alchurrn e Bulygin apresentam como sendo comum a todasas regras; por outro lado, e precisamente em virtude dessa estrutura distin-

    ta, no podem pretender operar no raciocnio prtico como razes exe-cutivas ou protegidas. Vejamos rapidamente tudo isso. O caractersti-co dos princpios se encontra, pelo lado do antecedente, em que este nocontm outra coisa seno a propriedade de que exista uma oportunidadede realizar a conduta prescrita no consequente (trata-se, pois, de normascategricas no sentido de von Wright), e pelo lado do consequente, emque este no contm um dever conclusivo, mas meramenteprima facie derealizar uma dada conduta. Tal deverprima facie transforma-se em dever

    conclusivo sempre que, em relao com as propriedades do caso, no con-corra com outro princpio que tenha, em relao com estas mesmas pro-

    priedades, um maior peso. O resultado dessa ponderao entre princpiosconcorrentes uma regra que estabelece a prevalncia de um deles, dadascertas circunstncias genricas, isto , o dever conclusivo de realizar, da-das tais circunstncias, a conduta prescrita no consequente de um deles. precisamente por essas caractersticas estruturais que os princpios no

    podem pretender excluir a deliberao de seus destinatrios como base

    da determinao de sua conduta a seguir, pois a determinao de quais

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    so os deveres conclusivos em um certo caso no pode realizar-se, casose raciocine a partir de princpios, mais do que mediante um processodeliberativo que estabelea a prevalncia de algum deles em relao s

    propriedades do caso. Essa determinao dos deveres conclusivos, dadascertas combinaes de circunstncias genricas , normalmente, tarefa dolegislador. Mas como Hart (1968) enfatiza, o legislador no oniscientee no , por isso, capaz de antecipar todas as combinaes de circuns-tncias genricas que possam apresentar-se nos casos individuais futuros. por isso que as regras para diz-lo na terminologia que Schauer(2002) tem posto ultimamente em moda so sempre potencialmente su-

    praincludentes ou infraincludentes em relao com as ponderaes entreprincpios que esto subjacentes: sempre possvel que os casos indivi-duais apresentem propriedades genricas adicionais s previstas nas re-gras que se aplicam e que estas propriedades gerais demandem o deslo-camento da ponderao entre princpios contidos na regras aplicvel em

    benefcio de um novo sopesamento (que se expressa numa nova regra); e assim sempre que ocorram casos que apresentam combinaes de pro-

    priedades distintas s previstas nas regras, e que o equilbrio entre princ-

    pios oferea o mesmo resultado que aquele que oferece em relao comas combinaes de propriedades previstas nas regras. Para enfrentar am-bos os tipos de situaes, nossos sistemas jurdicos e nossas prticas ar-gumentativas contm instituies e modos de raciocnio bem conhecidos.Para o primeiro tipo de situao quando as regras preestabelecidas resul-tam supraincludentes, isto , quando enfrentamos casos nos quais a rela-o deles com as regras aplicveis em virtude de seus termos nos parecemsujeitas a excees implcitas em relao com os princpios que as justi-

    ficam, os sistemas de commom law dispem da tcnica de distinguishinge os de base continental tem desenvolvido, entre outros recursos, cate-gorias como o abuso de direito, a fraude da lei e o desvio de poder. Paraenfrentar o segundo tipo de situao quando as regras preestabelecidasresultam infraincludentes ou quando no dispomos de regras preestabele-cidas que expressem a ponderao entre princpios relevantes dispomosdas diversas modalidades de raciocnio analgico. Ocorre analogia legisquando certa regra resulta infraincludente em relao com as exigncias

    dos princpios que constituem sua justificao subjacente; h a analogia

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    iuris quando o equilbrio entre os princpios relevantes exige a gerao deuma nova regra, ainda no existindo uma regra prvia que consideremoscomo infraincludente.

    no marco dessa concepo da dimenso regulamentadora do Di-reito como uma estrutura de dois nveis as regras e suas razes subja-centes, isto , os princpios que as justificam onde se pode elaborar,a meu juzo, uma teoria das lacunas que resulte coerente com as ideiascompartilhadas pelos juristas e encare aquelas situaes que realmente sediscutem, em nossa prtica jurdica, sob esse rtulo.

    As lacunas, desde essa concepo, aparecem como dficits dos ti-

    pos do sistema de regras preestabelecidas em relao s exigncias de-rivadas dos princpios que as justificam. Pois o sistema de regras, peloque agora nos interessa, pode ser deficitrio em relao s exigncias de-rivadas dos princpios, de duas maneiras distintas: pode, em primeiro lu-gar, carecer, em relao com o caso, de regra na qual subsumi-lo, de talforma que a presena de tal regra vem exigida pelo sopesamento entre os

    princpios relevantes; pode, em segundo lugar, no se considerar comorelevante uma propriedade que, de acordo com as exigncias derivadasdo equilbrio, deveria ser considerada relevante. Obtemos assim os con-ceitos de lacuna normativa e de lacuna axiolgica que, como vamos verimediatamente, no so mais que reelaboraes dos conceitos correspon-dentes de Alchourrn e Bulygin, que se diferenciam destes unicamentenos dois extremos seguintes: primeiro, em que integram a considerao, aqual venho fazendo repetidas referncias, da dimenso regulativa do Di-reito como composta de dois nveis; e segundo, em que integram assim

    mesmo a considerao antes exposta de que a regulamentao equivalepragmaticamente regulamentao permissiva. Os dois conceitos seriamos seguintes:

    Determinado caso constitui uma lacuna normativa de certo sistemajurdico se e somente se (1) esse sistema jurdico no contm umaregra que correlacione o caso com uma soluo normativa e (2) oequilbrio entre os princpios relevantes a esse sistema jurdico exigeuma regra que correlacione o caso com uma soluo normativa que

    qualifique a conduta de que se trate como obrigatria ou proibida.

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    Certo caso constitui uma lacuna axiolgica de um determinado sis-tema jurdico se e somente se (1) esse sistema contm uma regraque soluciona o caso, mas (2) sem que tal regra considere como

    relevante uma propriedade que, de acordo com as exigncias que sederivam do equilbrio entre os princpios relevantes desse sistemajurdico, dever-se-ia considerar como relevante.

    Alguns comentrios a propsito dessas definies. A definio delacuna normativa exclui de seu mbito aqueles casos no cobertos poruma regra em relao com os quais o equilbrio dos princpios relevan-tes do sistema determinaria que ela permitisse, tanto a realizao, como a

    omisso da conduta de que se trate. De acordo com a definio, pois, emrelao com o caso das frias matrimoniais o sistema no conteria lacunaalguma. A razo que, de acordo com os princpios informativos da ins-tituio matrimonial nos sistemas jurdicos que reconhecem a igualdadeentre os sexos, uma eventual regra referente a esse caso no poderia sernada mais que permissiva: permitiria a cada um dos cnjuges, tanto aco-modar como no acomodar, a sua conduta conduta do outro cnjuge de

    passar as frias juntos em um determinado lugar. E esse mesmo efeito o

    fato de que aderir, ou no aderir, aos desejos do outro cnjuge sua condu-ta disponvel, dizer, livre de restries normativas, para ambos vemdeterminado igualmente pela ausncia de regra a respeito. Cada um doscnjuges se encontra, a respeito do outro, numa situao de privilgio eno de no-direito: cada um deles no tem direito a exigir do outro que oacompanhe a um determinado lugar de frias e cada um dos dois tem, as-sim tambm, o privilegio de no atender o desejo de frias do outro.

    Por outro lado, bvio no exemplo, que cada um dos cnjuges temo interesse que o outro o acompanhe ao lugar de frias escolhido por ele(ou ela). O marido tem um interesse de que a esposa o acompanhe Fran-a e a esposa tem o interesse que o marido a acompanhe frica do Sul.H, ento, um genuno conflito de interesses. E um conflito de interessesque o Direito no soluciona. No h a meu juzo lacuna alguma8. Os con-

    8 Concordo, pois, absolutamente com Fernando Atria (supra p.17, n.7) que no basta

    falar em lacuna. Mas no concordo que, no texto da mesma nota, argumente que se

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    flitos de interesses no resolvidos pelo sistema jurdico que no supemlacunas por parte desta so, a meu juzo, muito numerosos e de grandeimportncia em muitos setores do Direito Privado, como por exemplo,no Direito dos Contratos. claro que na negociao, por exemplo, de umcontrato de compra e venda, o potencial comprador tem um interesse emfixar um determinado preo e o potencial vendedor tem o interesse defixar o preo mais alto. H, aqui, ento, um claro conflito de interesse.E um conflito de interesses que o Direito, claramente, no resolve: por-que cada uma das partes tem o privilegio de no aceitar o preo proposto

    pela outra parte e, por sua vez, no tem o direito de exigir da outra par-te que aceite o preo que ele prope. O sistema jurdico poderia, desdelogo, resolver semelhantes conflitos de interesse configurando a relaocorrespondente (entre comprador e vendedor e entre cnjuges) como umarelao de potestade/sujeio, isto , situando a uma das partes em posi-o dominante. Mas isso precisamente o que um sistema jurdico liberal(a respeito dos contratos e das relaes matrimoniais) no pode fazer semdeixar de ser tal. Um sistema liberal caracteriza-se, pois, necessariamente,

    por deixar sem resolver um bom nmero de conflitos de interesses.

    Quanto s lacunas axiolgicas, acredito que a principal vantagemdo conceito, tal como aqui foi trazido, que permitem dar conta do pro-

    blema das chamadas excees implcitas sem as consequncias indesej-veis de outras reconstrues alternativas. No modelo clssico de Alchour-rn e Bulygin no qual a dimenso regulamentadora do Direito aparecereduzida ao formato de regras quem assinala a existncia de uma lacunaaxiolgica est formulando uma crtica necessariamente externa ao sis-tema jurdico: uma crtica formulada de uma hiptese de relevncia dis-

    tinta da tese de relevncia que o sistema assegura e o rgo jurisdicionalque resolva o caso fundamentando tal soluo numa regra configurada de

    Jurisdiccin y normas) minha concordncia com Alchourrn e

    interesses no resolvido pelo sistema, ele contm uma lacuna. A resposta a essa objeo

    pelo sistema jurdico constituem lacunas.

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    acordo com qualquer hiptese de relevncia distinta da tese de relevnciacontida numa regra do sistema, resolve necessariamente o caso de manei-ra no fundamentada juridicamente: o ato de fundamentar as solues noDireito implica, dessa forma, pagar o preo de que certo nmero de taisdecises apaream como valorativamente incoerentes. Fidelidade ao Di-reito e coerncia valorativa das decises jurdicas aparecem, assim, comotermos de uma discusso excludente em relao com os supostos de lacu-na axiolgica. No modelo de Raz, o problema se resolve de acordo com atese de que o Direito confere aos juizes discricionariedade para afastar-sesempre que haja razes morais fortes para faz-lo. De certo modo, a con-cepo de Raz acaba admitindo que o Direito no pretende ter autoridadesobre os juizes. Mas, como se tem argumentado convincentemente, no di-zer de Bayon (2002), se o Direito no pretende exercer autoridade sobreseus prprios rgos de aplicao, no se v como possa pretender terautoridade em absoluto.

    No marco da concepo aqui esboada, pelo contrrio, no h di-ficuldade para dar conta de como, quando os tribunais deixam de lado

    como fundamento de sua deciso uma regra jurdica aplicvel em vir-

    tude de seus termos ao caso de que se trate, podem estar fazendo-o porrazes jurdicas, e ditando assim a soluo exigida pelo Direito. Sem dei-xar de reconhecer a pretenso de autoridade do Direito sobre seus rgosde aplicao, a fidelidade ao Direito e a coerncia valorativa das decises

    jurdicas se reconciliam.

    Para terminar: a viso alternativa que aqui traada termina pro-pondo alguns conceitos de lacuna normativa e de lacuna axiolgica que

    no so nada mais que adaptaes (ou reformulaes) dos conceitos cor-respondentes encontrados emNormative Systems. Algum leitorcaritativopoderia assinalar que esta viso no mostra outra coisa seno minha in-capacidade para o pensamento original. Sem negar a parte de razo disto,acredito que, vale a pena por a devida nfase sobre algo mais importanteque tambm indicativo deste acabar propondo uma mera reformulaode conceitos j presentes emNormative Systems: a saber, a potncia e afecundidade ainda no marco de uma concepo distinta do Direito dos

    instrumentos conceituais que Carlos Alchourrn e Eugenio Bulygin nospresentearam h mais de 30 anos.

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