Aldeias indígenas no Rio de Janeiro colonial: espaços de ...essencial no processo de ocupação,...

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Página | 119 Fronteiras & Debates Macapá, v. 2, n. 1, jan./jun. 2015 ISSN 2446-8215 https://periodicos.unifap.br/index.php/fronteiras Aldeias indígenas no Rio de Janeiro colonial: espaços de ressocialização e de reconstrução identitária e cultural Maria Regina Celestino de Almeida 1 Resumo: Sem negar a violência da colonização sobre os povos indígenas, este artigo analisa o papel dos índios integrados à sociedade colonial do Rio de Janeiro, entenden- do-os como sujeitos históricos que foram capazes de rearticularam-se social e cultural- mente com outros grupos étnicos e sociais, assumindo a nova identidade que lhes havia sido dada ou imposta pelos colonizadores: a de índios aldeados, súditos cristão de Sua Majestade. Insere-se numa linha de pesquisa interdisciplinar que partindo da concepção de cultura e identidade históricas tem repensado as relações de contato entre índios e colonizadores, enfocando a inestimável contribuição de John Monteiro. A partir dessa perspectiva, o artigo enfatiza o papel das aldeias como espaço que, além de português e cristão foi também dos índios, no qual compartilhavam novas experiências com outros grupos étnicos e sociais, agindo politicamente para garantir alguns direitos que a lei lhes garantia. Nesse processo, reelaboraram suas culturas, histórias e identidades. Palavras Chaves: Índios; aldeias; Rio de Janeiro; identidades étnicas, trabalho indígena Indian villages in colonial Rio de Janeiro: spaces of resocialization and culture and i- dentity reconstruction Abstract: While this article does not seek to diminish the violence and harm that coloni- zation inflicted upon Indians, it analyses the role of Indians in Rio de Janeiro colonial so- ciety, showing them as historical agents, who were able to rearticulate themselves with others in social, political and cultural terms. In doing so, they adopted the new identity that the colonizers had imposed upon them: the identity of “índios aldeados” (village In- dians), Christian vassals of His Majesty. The study adopts an interdisciplinary focus that considers culture and identity as historical products, an approach which has yelded en- couraging results in the studies of relations between Indians and colonizers throughout the Americas, highlighting the fundamental contribution of John Manuel Monteiro. Ba- sed on these new insights, it seeks to emphasize that the Indian villages were not only Christian and Portuguese spaces, but also Indian ones, where they shared new experien- ces between themselves and other ethnic and social groups, performing political activi- ties which they were able to manage with great ability to get the few rights colonial le- gislation had given them. In this process, they reconstitute their cultures, histories and identities. Key-words: Indians; Indian villages; Rio de Janeiro, ethnic identities; indigenous labour John Manuel Monteiro deu contribuição inestimável à historiografia brasileira. Sob sua marcante e decisiva influência, multiplicam-se pesquisas histórico- antropológicas que, apresentando os índios como sujeitos históricos, estão reescre- vendo não apenas a história indígena, mas também as histórias regionais e, de forma 1 Universidade Federal Fluminense. Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP). Email: reginacelesti- [email protected]

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Aldeias indígenas no Rio de Janeiro colonial: espaços

de ressocialização e de reconstrução identitária e

cultural

Maria Regina Celestino de Almeida1

Resumo: Sem negar a violência da colonização sobre os povos indígenas, este artigo analisa o papel dos índios integrados à sociedade colonial do Rio de Janeiro, entenden-do-os como sujeitos históricos que foram capazes de rearticularam-se social e cultural-mente com outros grupos étnicos e sociais, assumindo a nova identidade que lhes havia sido dada ou imposta pelos colonizadores: a de índios aldeados, súditos cristão de Sua Majestade. Insere-se numa linha de pesquisa interdisciplinar que partindo da concepção de cultura e identidade históricas tem repensado as relações de contato entre índios e colonizadores, enfocando a inestimável contribuição de John Monteiro. A partir dessa perspectiva, o artigo enfatiza o papel das aldeias como espaço que, além de português e cristão foi também dos índios, no qual compartilhavam novas experiências com outros grupos étnicos e sociais, agindo politicamente para garantir alguns direitos que a lei lhes garantia. Nesse processo, reelaboraram suas culturas, histórias e identidades. Palavras Chaves: Índios; aldeias; Rio de Janeiro; identidades étnicas, trabalho indígena Indian villages in colonial Rio de Janeiro: spaces of resocialization and culture and i-dentity reconstruction Abstract: While this article does not seek to diminish the violence and harm that coloni-zation inflicted upon Indians, it analyses the role of Indians in Rio de Janeiro colonial so-ciety, showing them as historical agents, who were able to rearticulate themselves with others in social, political and cultural terms. In doing so, they adopted the new identity that the colonizers had imposed upon them: the identity of “índios aldeados” (village In-dians), Christian vassals of His Majesty. The study adopts an interdisciplinary focus that considers culture and identity as historical products, an approach which has yelded en-couraging results in the studies of relations between Indians and colonizers throughout the Americas, highlighting the fundamental contribution of John Manuel Monteiro. Ba-sed on these new insights, it seeks to emphasize that the Indian villages were not only Christian and Portuguese spaces, but also Indian ones, where they shared new experien-ces between themselves and other ethnic and social groups, performing political activi-ties which they were able to manage with great ability to get the few rights colonial le-gislation had given them. In this process, they reconstitute their cultures, histories and identities. Key-words: Indians; Indian villages; Rio de Janeiro, ethnic identities; indigenous labour

John Manuel Monteiro deu contribuição inestimável à historiografia brasileira.

Sob sua marcante e decisiva influência, multiplicam-se pesquisas histórico-

antropológicas que, apresentando os índios como sujeitos históricos, estão reescre-

vendo não apenas a história indígena, mas também as histórias regionais e, de forma 1 Universidade Federal Fluminense. Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP). Email: [email protected]

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mais ampla, a história colonial e a história do Brasil.

Este texto sobre índios e aldeias no Rio de Janeiro inclui-se entre esses traba-

lhos. Síntese de minha tese de doutorado desenvolvida na UNICAMP, sob a lúcida e

estimulante orientação de John Monteiro, o texto apresenta os índios aldeados do Rio

de Janeiro como sujeitos históricos que não se anularam diante do caos e da violência

impostos pela conquista e colonização de seus territórios. Ao invés de vítimas passivas

do projeto colonial, os aldeados foram vistos como agentes sociais que, apesar dos

imensos prejuízos, adaptaram-se às novas condições que lhes eram impostas, desen-

volvendo diferentes estratégias para fazer frente às adversidades e buscar as melhores

possibilidades de sobrevivência na nova ordem colonial. Essa leitura foi possível a par-

tir das atuais tendências teóricas e conceituais da História e da Antropologia, dentre as

quais destaco a historicização de alguns conceitos básicos para refletir sobre relações

de contato. Cultura e etnicidade entendidas como produtos históricos, dinâmicos e

flexíveis, que continuamente se rearticulam através das interações entre os grupos

étnicos e sociais em tempos e espaços definidos, permitem novas interpretações sobre

as trajetórias de povos indígenas inseridos em sociedades envolventes.1 A ampla dis-

cussão desses temas nos cursos da UNICAMP, nos ricos debates com colegas e profes-

sores e, sobretudo, nos encontros de orientação com John Monteiro foram fundamen-

tais para o levantamento e análise de questões essenciais que deram rumo à minha

pesquisa. Os inúmeros documentos sobre índios e aldeias lidos nessa perspectiva in-

terdisciplinar apontaram para o complexo processo de ressocialização nas aldeias, a-

través do qual, ao invés de terem desaparecido, como costumava ser sugerido pela

historiografia, os aldeados rearticularam suas culturas, histórias e identidades. 2

A Política de Aldeamentos no Rio de Janeiro sob o olhar histórico-antropológico

A política de aldeamentos da Coroa portuguesa foi essencial ao projeto de co-

lonização. Do século XVI ao XIX, as aldeias indígenas estabelecidas na colônia foram

objeto de preocupação das autoridades e de intensas disputas entre diferentes agen-

tes sociais nelas interessados. Os índios, afinal, desempenharam imprescindíveis pa-

péis nos processos de conquista e colonização em todas as regiões da América, com

importância variada, conforme os diferentes tempos e espaços.

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O Rio de Janeiro não foi exceção. Região conquistada após violenta guerra con-

tra os franceses e os índios tamoios, a criação das aldeias coloniais foi, ali, elemento

essencial no processo de ocupação, garantia e expansão dos territórios administrados

pela Coroa portuguesa. As aldeias foram o espaço privilegiado de inserção dos índios

no mundo colonial, onde diferentes povos etno-linguísticos misturaram-se e transfor-

maram-se em súditos cristãos do Rei para servir ao Império luso. Ao contrário do que

costumava ser sugerido pela historiografia, elas não foram efêmeras, nem tampouco

simples espaços cristãos e portugueses nos quais os índios ingressavam para sofrer

passivamente um processo de perdas culturais contínuas que os levariam brevemente

à perda da identidade indígena.

Com base nas novas tendências teóricas e conceituais da História e da Antropo-

logia, já não é possível pensar esse processo de intensas mudanças vivenciadas pelos

povos indígenas de forma unilateral, considerando apenas a ação dos colonizadores e

vendo os índios como massa passiva de manobra que, ao invés de agir por interesses

próprios, submetiam-se docilmente às imposições de colonos, autoridades e missioná-

rios. Conforme ressaltou Alcida Ramos3, todos os grupos sociais humanos são capazes

de agir criativamente frente às situações mais violentas com as quais se deparam. Da

mesma forma, Jonathan Hill4 alertou para a imensa capacidade dos povos indígenas

em rearticularem suas culturas, mitos e tradições para fazer frente aos novos desafios.

Este autor ressalta ainda a importância de se considerar o entrelaçamento das histó-

rias indígenas e das histórias coloniais que, imbricadas desde a chegada dos europeus

à América, não devem ser vistas de forma separada e muito menos excludente. A his-

tória colonial do Rio de Janeiro é também a história das aldeias e dos índios que, em

posição subalterna, passaram a integrar a sociedade colonial e contribuíram para deli-

near os seus rumos.

Sem desconsiderar a violência das relações de contato entre índios e coloniza-

dores e da própria política de aldeamentos que trouxe aos primeiros imensos prejuí-

zos, este artigo procura enfocar um aspecto, grosso modo, negligenciado pela historio-

grafia: o papel das aldeias como espaço possível de sobrevivência para inúmeros povos

indígenas que, em seu interior, estabeleceram intensas relações com outros grupos

étnicos e sociais, compartilharam experiências comuns, agindo politicamente para ga-

rantir alguns direitos que a lei lhes garantia e, nesse processo, reelaboraram suas cul-

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turas, histórias e identidades.

A conquista dos sertões e estabelecimento das aldeias

Terminada a guerra de conquista da Guanabara, Araribóia, líder dos índios

chamados Temiminós, queria voltar, com seus guerreiros, à capitania do Espírito San-

to, de onde havia saído para auxiliar os portugueses no combate contra os franceses e

tamoios. No entanto, o governador geral, Mem de Sá, lhe pediu que ficasse na recém

fundada capitania do Rio de Janeiro para “…ajudar a povoá-la por ser do rei, (...) e que

pedisse para si e para os seus as terras que necessitasse ... ”.5 Atendida a solicitação, as

terras escolhidas na banda d’além lhe foram passadas por Carta de Sesmaria de 1568 e

nelas se estabeleceu a primeira aldeia do Rio de Janeiro: São Lourenço, que se tornaria

importante baluarte de defesa da capitania.

Inicialmente localizada em terras dos jesuítas por questões de defesa, a aldeia

mudou-se em 1573, para a banda defronte da cidade. Alguns anos depois, para abrigar

os parentes dos índios principais6 de São Lourenço foi criada a segunda aldeia da capi-

tania, São Barnabé, localizada inicialmente em terras do Colégio da Companhia de Je-

sus e depois transferida para a região de Macacu.7Essas duas aldeias, estabelecidas por

acordos entre líderes indígenas e autoridades, iniciaram, no Rio de Janeiro, a política

de aldeamentos da Coroa Portuguesa.

Desde o Regimento de Tomé de Souza, a política indigenista da Coroa dividira

os índios em dois grandes grupos conforme as relações por eles estabelecidas com os

portugueses: os aliados e os inimigos. Os primeiros reuniam-se nas aldeias coloniais

criadas com a finalidade de incorporá-los ao Império português como súditos cristãos;

enquanto os últimos deviam ser vencidos em guerras justas que legitimavam sua es-

cravização. Coroa e Igreja se associaram nessa política, delegando às ordens missioná-

rias, especialmente aos jesuítas, um papel essencial.8

De acordo com Charlotte Castelnau-l’Estoile9, a aldeia fixa em substituição à

peregrinação missionária foi uma peculiaridade das missões religiosas na América e se

estabeleceu pela necessidade de fazer frente aos desafios locais. Dentre eles, cabe

destacar a intensificação das guerras indígenas, sobretudo durante o governo de D.

Duarte da Costa, que contribuiu fundamentalmente para a modificação do projeto

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inicial. Da fase de pregação itinerante, na qual os padres se dirigiam às aldeias dos ín-

dios nos sertões para ali catequizá-los, passou-se à prática de deslocá-los para a pro-

ximidade dos núcleos portugueses e assentá-los em aldeias construídas especificamen-

te para reuni-los. A conversão pela via amorosa dos primeiros tempos havia se mos-

trado ineficaz e logo se passou à conversão pelo medo.10 Nóbrega e Anchieta exulta-

vam com a violenta campanha militar de Mem de Sá que foi mola propulsora para os

índios abandonarem os sertões e se aldearem. As guerras coloniais, as guerras justas e

as muitas expedições de apresamento de índios caminhavam junto com a política de

aldeamentos, pois diminuíam as possibilidades de sobrevivência dos índios nos sertões

e os levavam a acordos e negociações com os portugueses que, grosso modo, culmina-

vam com seu ingresso nas aldeias.

Os sertões, no mundo colonial, designavam os espaços não ocupados pela ad-

ministração portuguesa, espaços da “barbárie”, onde habitavam os chamados índios

bravos.11 Eram, portanto, espaços móveis que se reduziam na medida em que a coloni-

zação avançava. Do século XVI ao XIX, os sertões da capitania do Rio de Janeiro e de

seus arredores foram encolhendo na medida em que as aldeias indígenas se estabele-

ciam cumprindo o papel de instituições de fronteira.12 Novas áreas eram continuamen-

te incorporadas ao Império português através de guerras, principalmente, contra ín-

dios hostis. Ocupado por razões estratégicas, o Rio de Janeiro continuaria mantendo

funções militares e defensivas para as quais as aldeias indígenas desempenhavam pa-

pel fundamental. Os aldeados, novos súditos cristãos do Rei, além de obrigados a pres-

tar serviços essenciais para as autoridades, missionários e colonos, constituíam a prin-

cipal força militar para ocupar e defender os territórios da Coroa.

A aldeia de São Pedro foi estabelecida em Cabo Frio para defender a região. Ex-

pulsos da Guanabara, os franceses haviam ali se estabelecido e, ainda aliados aos ta-

moios, continuavam contrabandeando o pau-brasil e impedindo a ocupação portugue-

sa, até serem vencidos pelo Governador do Rio de Janeiro, Constantino Menelau, com

quatrocentos índios de Sepetiba e portugueses voluntários.13Para garantir a soberania

sobre o território, no entanto, era necessário criar ali uma aldeia indígena. A aldeia de

São Pedro iniciou-se, em 1617, com quinhentos índios do Espírito Santo trazidos pelos

jesuítas. A maior parte deles veio da aldeia de Reritiba e deviam incluir muitos Goita-

cazes, aos quais se juntaram os seguidores de Constantino Menelau que, com certeza,

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incluíam alguns Tamoios.14 Sua função principal era combater, além dos estrangeiros,

outros Goitacazes e Tamoios que “infestavam” a região e o fizeram com extrema vio-

lência sendo, por isso, muitíssimo elogiados. O Padre Antonio de Matos ressaltou os

objetivos defensivos da aldeia, afirmando que para eles, jesuítas, o principal seria

“procurar a conservação e salvação do gentio vizinho daquele lugar chamado goitaca-

zes, os quais até agora não pode haver entrada por sua barbaria ...”15Mais tarde, ou-

tros Goitacazes e Guarulhos, de região próxima, foram ali aldeados, aumentando o

contingente populacional da aldeia que se manteve sempre como a mais populosa do

Rio de Janeiro. Os aldeados cumpriram bem sua função de defesa, destacando-se pela

violência no ataque aos índios hostis e aos estrangeiros, o que lhes valeu alguns ga-

nhos, pois sua força militar foi habilmente utilizada pelos jesuítas como poder de bar-

ganha nas negociações com a Coroa.

Apesar dos cuidados da legislação para evitar misturas de etnias nas aldeias, is-

so frequentemente ocorria. As guerras coloniais e indígenas somadas à política de al-

deamentos misturavam inevitavelmente povos diversos que, muitas vezes, passavam

da condição de inimigos a de aliados, tanto nas relações com os europeus quanto en-

tre si. Embora as fontes sejam pouco informativas a respeito dos grupos étnicos nas

aldeias, creio que, ao serem estabelecidas, elas deviam ser constituídas predominan-

temente pelos membros do grupo, cujo líder havia estabelecido o acordo com os por-

tugueses, tornando-se o capitão-mor da aldeia e mantendo a posição de liderança.

Essa posição podia se estender a seus descendentes, como ocorreu com Araribóia, em

São Lourenço.16 Isso, no entanto, não excluía a presença de outros grupos étnicos na

mesma aldeia. São Lourenço reunia, com certeza, povos diversos que já deviam estar

misturados aos Temiminós, desde o aldeamento no Espírito Santo e das guerras de

conquista.

A região sudoeste da baía de Guanabara seria ocupada também no início do sé-

culo XVII com o estabelecimento de duas aldeias, São Francisco Xavier de Itaguaí (inici-

almente chamada Itinga), sob a administração dos jesuítas; e Mangaratiba, sob o pro-

vável controle de Martim de Sá, governador da capitania do Rio de Janeiro, por duas

vezes (1602-1608;1623-1632). De acordo com Leite,17a aldeia de São Francisco Xavier

de Itaguaí deve ter se originado a partir da catequese de índios Carijós da lagoa dos

Patos estabelecidos pelos jesuítas na ilha de Marambaia, de onde foram transferidos

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para o sítio de Itaguaí, próximo à sua fazenda de Santa Cruz. O jesuíta Francisco Car-

neiro, Reitor do Colégio, ao visitar os padres em missão com os índios Carijós na região

de Laguna constatou a impossibilidade de fixar ali residência pelos ataques frequentes

dos paulistas e, dadas as necessidades de índios no Rio de Janeiro, optou por deslocar

os que estivessem de acordo. Em 1627, por decisão sua e ordem de El Rei e de Martim

de Sá realizou um descimento18 de quatrocentas almas e estabeleceu os índios em

terras do Colégio em Guaratiba, com ordem de que se lhes desse mantimentos e fer-

ramentas pelo espaço de seis meses até os índios lavrarem as terras e poderem se sus-

tentar.19

São Lourenço, São Barnabé, São Pedro e São Francisco Xavier de Itaguaí foram

as quatro primeiras aldeias do Rio de Janeiro que aparecem com mais frequência na

documentação e atravessaram praticamente todo o período colonial. Estiveram todas

sob a administração dos jesuítas e foram criadas, de acordo com Serafim Leite, para

atender à segurança militar “... à roda do incomparável centro geográfico fluminense,

que é Guanabara uma de cada lado da baía, e outra no fundo dela, formando o triân-

gulo defensivo da cidade.”20

Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba foi a primeira aldeia não jesuítica do

Rio de Janeiro e também teve, por todo período colonial, presença significativa na do-

cumentação. Estabeleceu-se com índios Tupiniquins trazidos de Porto Seguro por Mar-

tim de Sá, aos quais depois misturaram-se outros vindos de diversas aldeias. Martim

de Sá demarcou e cedeu parte de suas terras para os índios nela se estabelecerem e

cultivarem. Foi sempre uma aldeia pequena que não contava com a assistência dos

jesuítas e até o século XVIII não teve missionários ali residentes. No setecentos, foi

palco de violentos conflitos por terra e por oposição a líderes e autoridades não reco-

nhecidos pelos índios.21 Há indícios de que essa aldeia tenha sido administrada pela

própria família Sá, apesar da proibição da lei.

Santo Antonio de Guarullhos foi criada com índios guarulhos reduzidos por ca-

puchinhos franceses (desde 1659) e aldeados pelos italianos em 1672 na capitania da

Paraíba do Sul (ex-São Tomé). Desde o século XVI, as hostilidades dos índios nessa re-

gião, sobretudo dos goitacazes impunham sérios obstáculos à ocupação portuguesa.

Combatidos pelos conquistadores e pelos índios aldeados de Cabo Frio e Reritiba, mui-

tos goitacazes foram vencidos e vários deles ingressaram na aldeia de São Pedro. Só no

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final do século XVII seria criada uma aldeia indígena na região, com a redução dos ín-

dios guarulhos que, após a derrota dos goitacazes, continuavam dominando a vizi-

nhança, atacando fazendas no vale do rio Muriaé e fazendo incursões até Macaé.22 A

aldeia foi administrada pelos capuchos da Província da Conceição, padres muito exi-

gentes e rígidos com os índios, o que provavelmente incentivava as fugas bastante

frequentes. Ao iniciar-se o século XVIII, a aldeia se encontrava em situação precária e

disputas por questões de terra desencadearam sérios conflitos entre os jesuítas, a Câ-

mara da Vila de São Salvador e os índios guarulhos.23 Extinta pelo abandono dos índios

no final do século XVIII, o aforamento de suas terras serviu para financiar a Aldeia de

São Fidelis que então se formava com índios coroados e muitos guarulhos que volta-

ram a aldear-se.

Além dessas, outras aldeias se estabeleceram na segunda metade do século

XVIII e início do XIX no sertão do Paraíba, região até então chamada Sertão dos Índios

Bravos. No final do século XVIII e início do XIX, os índios coroados, guarulhos e puris

constituíam ameaças à ocupação portuguesa nos sertões norte e sul do Rio de Janeiro,

próximos às atuais fronteiras do Estado de Minas Gerais e São Paulo respectivamente.

Atacavam os portugueses no médio vale do Paraíba, região para onde a ocupação por-

tuguesa se expandia pela necessidade de novas terras principalmente para criação de

gado que, em expansão desde o século anterior, ganhava novo impulso nos setecen-

tos.24

O Rio de Janeiro, capital da colônia desde 1763, já se tornara, no final do sete-

centos, o principal centro comercial e portuário do Brasil. Não obstante, os sertões da

capitania continuavam povoados por “índios bravos”. Os puris e os coroados enfrenta-

vam-se e eram um obstáculo ao avanço da ocupação que, no norte fluminense, se da-

va a partir dos Campos dos Goitacazes, seguindo em direção inversa ao curso do rio

Paraíba. Ambos haviam deixado a serra da Mantiqueira acossados pelos Botocudos e

estendiam-se pelos sertões norte e sul do atual Estado do Rio, próximos ao rio Paraíba.

Ali foram fundadas as últimas aldeias na capitania para que os fazendeiros pudessem

se instalar em paz na região com suas lavouras e criação de gado, aproveitando a mão

de obra indígena.25 São Fidelis (1779) foi fundada com índios coroados por capuchi-

nhos italianos e com os rendimentos da extinta aldeia de Santo Antonio de Guarulhos;

São José de Leonissa da Aldeia da Pedra, na confluência com o rio Pomba, estabeleceu-

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se para aldear os puris que, inimigos dos coroados, não deviam ficar na mesma aldeia.

Não obstante, dadas as dificuldades na escolha do local e na submissão dos puris, eles

só se aldearam alguns anos depois em Santo Antonio de Pádua que, instalada na mar-

gem meridional do Paraíba, confluência com o rio Pomba, acabou incluindo além dos

puris, seus inimigos coroados. Na região sul do Rio de Janeiro, também próximo ao rio

Paraíba, outros puris e coroados também se aldearam, no final do século XVIII e início

do XIX, nas aldeias de São Luiz Beltrão, Valença e Santo Antonio do Rio Bonito, esta

fundada em 1824-1825 para abrigar os índios fugitivos da aldeia de Valença.26

Aldeias indígenas coloniais – espaços de sobrevivência para os índios

Do exposto, não resta dúvida que as aldeias indígenas cumpriram, no Rio de Ja-

neiro, a importante função de expandir e defender os territórios coloniais para a Coroa

portuguesa. Além disso, tinham também outro papel fundamental: assegurar a força

de trabalho necessária aos colonos, missionários e autoridades que, nos primórdios da

colonização, dependiam dos índios para tudo. Os aldeados eram obrigados ao trabalho

compulsório que se fazia de acordo com um sistema de rodízio e pagamento de salário

irrisório regulamentado por várias leis.27No entanto, as aldeias serviam também aos

índios. Se eles se aliavam aos portugueses, estabelecendo acordos, inclusive para in-

gressar nas aldeias, deve-se convir que o faziam movidos por interesses próprios. Es-

tudos recentes em diversas regiões e temporalidades são fartos em exemplos sobre os

objetivos diversos que levavam índios e não índios a se aliarem em guerras e projetos

políticos aparentemente comuns. Sobre isso, cabe lembrar Mintz,28segundo o qual

comportamentos semelhantes podem ter significados bem diversos para os vários a-

gentes, conforme seus lugares sociais.

As inúmeras leis e os infindáveis conflitos sobre a formação e o funcionamento

das aldeias coloniais dão a dimensão de sua importância para os diferentes agentes

nelas envolvidos e informam sobre os variados interesses que os impulsionavam. Ín-

dios, colonos, missionários e autoridades locais e metropolitanas disputavam, grosso

modo, na justiça colonial para fazer valer suas diferentes expectativas em relação às

aldeias.29 Essas disputas permitem perceber que, para eles, as aldeias tinham diferen-

tes significados e funções, os quais se alteravam, conforme a dinâmica da colonização

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e das relações entre os atores. Enquanto para a Coroa e missionários, as aldeias devi-

am transformar os índios em súditos cristãos e força de trabalho para defender seus

territórios e garantir o desenvolvimento das atividades produtivas; para os colonos

elas significavam, principalmente, redutos de mão de obra. Para os índios, no entanto,

as aldeias coloniais tinham significados e funções bem diversos.

Ao estabelecer acordos com os portugueses, em condições de extrema violên-

cia e desigualdade, os índios deviam buscar, principalmente terra e proteção, como

informam os documentos. Diante do caos instalado nos sertões, com guerras, epide-

mias, escravizações em massa e redução, cada vez maior, de territórios livres e recur-

sos naturais, o ingresso nas aldeias coloniais surgia, com certeza, como possibilidade

de sobrevivência. Os índios optavam pelo mal menor, submetendo-se a uma nova si-

tuação que lhes trazia imensos prejuízos. Sujeitavam-se às regras portuguesas, pas-

sando a viver em condição subordinada e sujeitos ao trabalho compulsório. Mistura-

vam-se com outros grupos étnicos e sociais, viam reduzir-se as terras às quais tinham

acesso e expunham-se às altas mortalidades. Além de tudo, submetiam-se à nova roti-

na, que lhes proibia o uso de certas práticas culturais e os incentivava a abandonar

antigos costumes e incorporar novos valores, como parte do processo de transformá-

los em súditos cristãos.

Apesar de tudo, tinham aspirações próprias e não abdicaram de negociar sobre

suas perdas como informam instigantes documentos sobre seus conflitos e reivindica-

ções no interior das aldeias. Os variados registros sobre esses conflitos informam sobre

suas principais solicitações na condição de aldeados e súditos cristãos do Rei: queriam

garantir suas terras, queriam cargos, aumentos de salários, ajudas de custo, destitui-

ção de autoridades não reconhecidas por eles e, principalmente, recusavam a escravi-

dão.30

Ser súdito cristão, no entanto, não significava absolutamente condição de i-

gualdade com os demais. Na rígida hierarquia social do Antigo Regime, os índios alde-

ados tinham um lugar jurídico próprio, ao qual correspondiam deveres e direitos espe-

cíficos, porém ocupavam um dos estratos mais baixos da sociedade. Além de submeti-

dos ao trabalho compulsório, estavam sujeitos aos estatutos de limpeza de sangue que

os discriminavam e os proibiam, até as reformas pombalinas, de ocupar determinados

cargos e receber títulos honoríficos. Abaixo deles, no entanto, estavam os escravos

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índios e negros, bem como os “índios bravos” dos sertões, sempre passíveis de serem

escravizados. A posição dos aldeados nessa sociedade hierárquica, escravocrata e de-

sigual deve, pois, ser pensada nesse contexto de interação com os demais grupos e

suas respectivas condições econômico-sociais que lhes dava um referencial de identifi-

cação, como lembrou Schwartz.31

Assim, apesar das condições limitadas e opressivas, os aldeamentos indígenas

lhes ofereciam algumas garantias e até privilégios se comparados com outros grupos

etnicos e sociais que viviam em condições inferiores, tais como escravos negros e indí-

genas. Nas aldeias coloniais encontraram possibilidades de agir para fazer valer o mí-

nimo de direitos que a lei, apesar de oscilante, lhes garantia e fizeram isso até o século

XIX. Em seu processo de ressocialização nas aldeias aprendiam novas práticas culturais

e políticas que souberam utilizar na busca dos possíveis ganhos permitidos pela legisla-

ção. Agiram conforme a cultura política do Antigo Regime, baseada na troca de favores

e serviços, num sistema de reciprocidade, através do qual os súditos serviam ao Rei

que, em seu papel de monarca justo e piedoso, os recompensava. As reivindicações

dos aldeados, mais especificamente de suas lideranças, demonstram que eles incorpo-

raram rapidamente essa prática. Apresentavam-se com o nome de batismo cristão, a

partir da aldeia na qual habitavam, enfatizando, em geral, os muitos serviços prestados

ao Rei que os faziam merecedores das solicitações reivindicadas.

Constata-se, pois, que os conflitos em torno das aldeias não se deram absolu-

tamente à revelia dos índios, como costumava ser sugerido pela historiografia. Os do-

cumentos revelam a participação direta dos aldeados nos embates acerca de seus pró-

prios interesses. Esses embates ocorreram, principalmente, por questões relativas às

suas terras e trabalho.

Trabalho e Terras dos Aldeados: conflitos e acordos

Os índios foram força de trabalho essencial na capitania do Rio de Janeiro, tan-

to na condição de escravos, quanto de aldeados. Os primeiros, embora com presença

significativa na capitania, até meados do seiscentos, não serão tratados no âmbito des-

te capítulo. Quanto aos aldeados, suas obrigações incluíam as mais diversas atividades,

porém deviam prioritariamente atender aos serviços do Rei, sobretudo os de defesa.

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Seu emprego nas obras públicas concentrou-se principalmente na construção e manu-

tenção das fortalezas. Segundo o padre Plácido Nunes “... todas as Fortalezas, que se

acham no Rio de Janeiro (...) foram feitas pelos Índios de Cabo Frio e S. Barnabé e ou-

tras Aldeias...”.32 A aldeia de São Francisco Xavier de Itinga, dois anos depois de esta-

belecida, já “... podia dar 43 carijós, homens válidos para as obras da defesa do Ri-

o”.33Em 1646, o governador Duarte Correa Vasqueanes referindo-se ao péssimo esta-

do das fortificações ressaltava a necessidade de “…trazer nelas todos os oficiais e ín-

dios que são necessários”.34 Os aldeados constituíam também importante força militar

na cidade, como demonstram vários documentos, principalmente dos jesuítas fre-

quentemente chamados para, com seus índios, acudir à defesa da cidade.35

Além das fortalezas, outras obras públicas ocupavam os índios: construíram o

aqueduto da Carioca, abriram o Caminho Grande do Rio de Janeiro para Minas até o

Rio Paraibuna, foram carregadores, extraíram pedras, cortaram madeiras, tanto para o

serviço público como particular, foram remeiros, guias, flecheiros e caçadores de ex-

pedições dos sertões, perseguiram escravos negros fugitivos e atacaram quilombos,

dentre muitas outras atividades. Para o serviço dos moradores, deviam ser recrutados

principalmente para as lavouras, pastagens e expedições ao sertão, mas também cor-

tavam madeiras, eram carregadores e faziam serviços domésticos.36

As ordens religiosas também se serviram largamente do trabalho dos índios em

suas fazendas e residências, principalmente beneditinos e jesuítas, dos quais se tem

mais informações. É instigante constatar, pelo menos duas ocasiões, nas quais os ín-

dios da aldeia de São Pedro parecem ter servido aos jesuítas também como uma espé-

cie de exército particular. Afinal, combater era, pelo visto, a especialidade desses ín-

dios e os padres não deixaram de aproveitá-la. Por ocasião do litígio de terras entre os

jesuítas e os padres de São Bento, na região de Cabo Frio, os índios atacaram e destruí-

ram fazendas e currais dos beneditinos. No século XVIII, quando os inacianos se indis-

puseram com o administrador da armação de baleias na Ponta de Búzios, ameaçaram-

no dizendo que os índios dali o expulsariam. Quanto aos padres de São Bento, docu-

mentos de sua própria ordem informam a existência de índios administrados e escra-

vos a seu serviço.37

A importância e a intensidade do trabalho dos aldeados na capitania variaram

conforme tempos e espaços. No vale do Paraíba, tanto na região norte quanto sul,

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quando, no final do século XVIII e início do XIX, as últimas aldeias eram estabelecidas, a

mão de obra indígena ainda era bastante cobiçada. Além de apaziguar áreas, as novas

aldeias davam aos moradores o acesso ao trabalho dos índios em seus pastos e lavou-

ras, bem como nos cortes de madeira, serviço no qual os índios daquela região foram

amplamente empregados. O caso do fazendeiro José Rodrigues da Cruz que atraiu os

índios coroados para suas terras, tendo sido depois encarregado pela própria Coroa de

aldeá-los, é bastante significativo sobre o interesse que o trabalho dos índios ainda

despertava na região.38 Ali, foi bastante frequente, por parte de autoridades civis e

eclesiásticas, distribuir os índios para serem apadrinhados por fazendeiros que os es-

tabeleciam em suas próprias terras.39

O trabalho compulsório dos aldeados era obrigatório, mas tinha limites estabe-

lecidos pela lei e pela resistência dos índios com forte apoio dos jesuítas até sua expul-

são. A repartição do trabalho dos índios foi sempre uma questão problemática que

gerou muitas disputas sobre as leis e seu cumprimento. Autoridades e padres preocu-

pavam-se em manter um número mínimo de índios nas aldeias para assegurar sua

manutenção e o atendimento aos serviços do Rei. Para isso, as leis previam sistema de

rodízio dos aldeados, limitando seu tempo máximo de trabalho fora das aldeias. Po-

rém, as inúmeras leis faziam-se e cumpriam-se, no cotidiano da colônia, conforme as

necessidades e pressão dos interessados e das conjunturas políticas e econômicas que

levavam a Coroa a favorecer ou dificultar o acesso dos colonos aos trabalhadores indí-

genas.40

Houve, por vezes, ordens para que os padres dessem todos os índios necessá-

rios ao serviço de autoridades, dos moradores ou da Coroa, o que nem sempre foi

cumprido. Em outras ocasiões, por necessidades do serviço do Rei ou pelo esvaziamen-

to das aldeias, foi ordenado o retorno imediato de todos os índios às aldeias. Eram

também frequentes as denúncias dos padres contra colonos e autoridades que retira-

vam das aldeias mais índios do que o permitido, desrespeitando o sistema de rodízio e

o tempo máximo para a sua ausência. Em 1682, o Reitor e outros padres da Cia. quei-

xavam-se pela quantidade de índios e índias que se ausentavam das aldeias de Itinga,

São Barnabé e Cabo Frio por mais de dois meses, tempo destinado por Sua Majestade

para servirem aos moradores.41 Mais de um bando foi proclamado ordenando a resti-

tuição dos índios, bandos esses provavelmente não cumpridos. Convém ressaltar, no

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entanto, que os índios podiam ficar nas fazendas e engenhos por vontade própria, co-

mo costumava ocorrer como os de São Barnabé que, atraídos pela liberdade dos cos-

tumes, não regressavam, segundo reclamação dos jesuítas. A prática de casar índios

com escravos para impedir seu retorno às aldeias devia ser frequente, conforme mui-

tas denúncias, que chegaram a incluir os próprios jesuítas. 42

A principal acusação contra os inacianos, feita tanto por moradores quanto por

autoridades locais, era a de não distribuírem adequadamente os índios das aldeias

para o trabalho compulsório, visando mantê-los para uso próprio e exclusivo em suas

propriedades. As autoridades da colônia não tinham o direito de repartir os índios de-

vendo recorrer, como os moradores, às aldeias em caso de necessidade; daí somarem

suas reclamações às dos colonos contra os limites, segundo eles, impostos pelos jesuí-

tas. Em 1645, o governador Francisco Soutomaior queixava-se de os padres da Com-

panhia retirarem os índios dos serviços públicos da cidade.43Na mesma carta, o gover-

nador censurava o Principal da aldeia de Mangaratiba que lhe recusara os índios solici-

tados, alegando só obedecer ao General Salvador Correia de Sá.

Além de apontar para uma provável administração particular nessa aldeia, a

acusação do governador contra o principal pressupõe a participação ativa dos índios

nas decisões sobre seu trabalho fora das aldeias. Os embates eram, pois, frequentes e

complexos envolvendo vários atores, dentre os quais os índios. A repartição dos aldea-

dos para o trabalho ficava a cargo dos líderes indígenas que haviam se tornado capi-

tães mores das aldeias e eram encarregados pela lei de intermediá-la, junto com o

padre superior. Esta era uma das novas funções exercidas pelos principais na condição

de capitães-mores das aldeias. Os jesuítas, inúmeras vezes, deixaram claro os limites

de seu controle sobre os índios. Em situações de confronto, defendiam-se, alegando

que os próprios índios se negavam a trabalhar.

O padre superior da aldeia de São Pedro, justificando o não cumprimento das

ordens do Rei para que os índios trabalhassem para os moradores de Cabo Frio, em

1683, dizia não poder obrigá-los “…e que Vossa Majestade se cansará de lhe pedir ra-

pazes e índios quando isso pertence ao Capitão dessa Aldeia para os nomear e irem

então ao meu beneplácito”.44 Trata-se de instigante embate entre a Câmara de Cabo

Frio e os moradores contra os jesuítas acusados de enviar os índios para servirem a

seus amigos no Rio de Janeiro, deixando os pobres moradores desprovidos de traba-

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lhadores. A ordem do Rei favorável aos primeiros não foi cumprida e os padres alega-

ram nada poder fazer contra a vontade daqueles índios que eram muitos e fortemente

unidos entre si. Segundo eles, os índios afirmavam seu interesse em trabalhar no Rio

porque lá recebiam mais e em dinheiro, enquanto, em Cabo Frio, eram pagos com pa-

nos de algodão.

Outro exemplo sobre a vontade e decisão dos índios quanto aos serviços pres-

tados fora da aldeia nos é dado pelo padre Francisco Morais que ressaltou o “… notá-

vel desaforo em que estão com não quererem ir servir senão os que eles querem e

pelo preço que eles querem, e se os obrigamos, ausentam-se da Aldeia ...”.45 Em 1795,

Manoel M. do Couto Reys, administrador da Fazenda de Santa Cruz referindo-se ao

trabalho dos índios, afirmava que “quem os nomeia, quem os atende nas representa-

ções é o seu capitão mor…”.46

Cabe, porém, ressaltar que esses chefes indígenas, feitos capitães mores das

aldeias e encarregados de repartir os índios para o trabalho, também enfrentavam

resistência por parte de seus subordinados. Em Itaguaí, no início do século XIX, o capi-

tão mor dizia ser dificil arregimentar os índios para os serviços do rei, pois muitos refu-

giavam-se para dele escapar e os solteiros iam para a pesca e não voltavam.47 Com

certeza, havia nas aldeias um complexo jogo de forças entre os chefes indígenas, os

índios comuns, os padres superiores, os moradores e as autoridades locais. Sem des-

cartar as possíveis dissimulações presentes em todos esses discursos que procuravam

justificar o não cumprimento das ordens, é imperioso constatar a participação dos lí-

deres indígenas nesses embates.

O trabalho fora das aldeias devia ser remunerado e, embora muito mal pago, des-

pertava o interesse dos índios. Por mais irrisórios que fossem seus salários, em várias

ocasiões, eles se manifestaram procurando garanti-los ou aumentá-los. O dinheiro era

parte do mundo colonial e os índios aprenderam a fazer uso dele e a reivindicá-lo. Os

capitães mores das aldeias, cujos cargos nem sempre eram remunerados, buscavam

através de recursos jurídicos obter soldos que consideravam justos para o exercício de

suas funções lançando mão, em geral, de exemplos de seus pares que recebiam salá-

rios. Várias solicitações por parte de líderes indígenas demandavam aumento do soldo

e de ajudas de custo necessários, segundo eles, para o bom cumprimento do serviço

de Sua Majestade.

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O pagamento dos serviços dos índios aldeados fora das aldeias era variado poden-

do ser em espécie, principalmente rolos de algodão, ou em dinheiro. Há alguns regis-

tros interessantes sobre embates em torno de seu pagamento, como visto no caso de

Cabo Frio. Dentre outros exemplos, cabe citar a reivindicação de Miguel Duarte, índio

do Cabelo Corredio. Ele se apresentava, em 1741, como “procurador de todos os mais

índios aldeados no distrito da Capitania do Rio de Janeiro e das mais capitanias anexas

aquele Governo ...”. Solicitava aumento de soldo, argumentando que“... como leais

vassalos de V.M. estão sempre prontos para o seu real serviço, tanto nas obras que se

fazem na cidade, como pelas mais capitanias…”.48 Referia-se aos exaustivos serviços

prestados com prejuízo de suas mulheres e filhos que ficavam na aldeia sem ter quem

os sustentassem. O parecer do Conselho Ultramarino lhe foi favorável.

Este requerimento é especialmente instigante porque revela uma identificação dos

aldeados num âmbito que vai além das aldeias. Trata-se de uma ação coletiva encami-

nhada por um índio que se assumia como representante de índios de diferentes aldei-

as identificados entre si por serem aldeados, trabalharem para os serviços do Rei e

serem mal pagos. Este exemplo não deixa dúvidas sobre o envolvimento dos índios nas

disputas referentes aos seus trabalhos e salários, revelando sua consciência sobre a

condição específica por eles ocupada no mundo colonial e do papel que ali desempe-

nhavam. De acordo com as reivindicações, sabiam o seu lugar: eram subordinados,

mas tinham um papel a desempenhar na colônia, servindo ao Rei e, pelo bom desem-

penho desse papel, mereciam mercês e as reivindicavam conforme os códigos portu-

gueses.

A aldeia era um forte referencial de identificação, pois era a partir dela que, grosso

modo, os índios se apresentavam. Encaminhavam suas petições ao Rei valorizando o

passado de lutas em defesa do império português, enfatizando, muitas vezes, o papel

das próprias aldeias. Afinal, o caráter defensivo marcou o estabelecimento da maioria

delas e iria ser sempre lembrado nas reivindicações apresentadas pelos índios. Os líde-

res de São Lourenço traçavam sua origem a partir da fundação da aldeia, remontando

sua história à conquista do Rio de Janeiro e enaltecendo os feitos de seus antepassa-

dos. Esta ação política e coletiva dava-lhes o sentido de união em torno de um objetivo

comum, contribuindo para desenvolver neles o sentimento de identificação de grupo e

de pertencimento a uma aldeia e ao próprio Império Português. Nas reivindicações dos

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índios pode-se perceber dois elementos destacados por Max Weber49 como essenciais

para a formação do sentimento de comunhão étnica: a ação política comum e o senti-

mento subjetivo de comunidade.

Várias razões levavam os índios a recorrer à justiça, porém a luta pela garantia das

terras das aldeias parece ter sido, na capitania do Rio de Janeiro, especialmente impor-

tante para dar coesão aos aldeados e mantê-los unidos nessa condição até o século

XIX. Ao se aldearem, passavam a ocupar um lugar jurídico específico e ímpar em rela-

ção aos demais grupos sociais com os quais interagiam na colônia. A ideia de pertencer

às aldeias unificava-os, bem como o compartilhamento de um passado comum e a

ação política coletiva em busca dos direitos que lhes tinham sido dados.50

A terra coletiva das aldeias, embora limitada e restrita se comparada à amplitude

dos sertões, foi um bem de significativo valor para os aldeados, como evidencia seu

esforço em defendê-la até o início do século XIX. Afinal, eles se aldeavam em busca de

melhores possibilidades de sobrevivência e a base disso estava na terra com suas roças

e ferramentas prometidas pelos acordos de paz e de descimento, previamente estabe-

lecidos com os portugueses. O processo de aldeamento implicava em um processo de

territorialização, no sentido que lhe foi atribuído por Pacheco de Oliveira,51 isto é, pas-

savam a habitar um território fixo dado ou até imposto, conforme as circunstâncias,

por uma ordem político-administrativa externa ao grupo. Nesse processo, desenvolve-

ram novas formas de relação com o território.

Integrados à colônia e vivendo muito próximos ou mesmo dentro de centros urba-

nos e inseridos em suas atividades produtivas, os aldeados foram incorporando práti-

cas de negociação com o território, tais como aforamentos, vendas e exploração de

madeiras. Embora essas práticas incentivassem a presença de não índios nas aldeias e

contribuíssem para aumentar as usurpações de suas terras, os índios apoiados pelos

jesuítas, até sua expulsão, e depois por conta própria, procuravam manter o controle

sobre as terras e rendimentos das aldeias, como evidenciam inúmeros documentos

que tratam das disputas em torno deles.

As terras das aldeias podiam ser concedidas pelos padres, por particulares ou

pela Coroa, através de sesmarias, porém eram consideradas patrimônio coletivo dos

índios da aldeia para a qual foram requeridas. Do século XVI ao XIX, assiste-se à preo-

cupação das autoridades em garantir essas terras para os índios através da legislação e

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de várias medidas favoráveis a eles, dadas às contínuas invasões. De acordo com o

Alvará de 1700 devia ser dada a cada uma das aldeias uma légua de terras, em qua-

dra“…para sustentação dos Índios e Missionários, com declaração de que cada aldeia

se há de compor ao menos de cem casais…”. Caso não atingissem esses números e

estando próximas as aldeias, a légua devia ser repartida entre elas, com a garantia de

que se crescessem teriam sua légua devidamente estabelecida. De acordo com o Alva-

rá, as terras eram dadas às aldeias e não aos missionários porque “…pertence aos ín-

dios e não a eles, e porque tendo-as os índios as ficam logrando os Missionários, no

que lhes for necessário para ajudar o seu sustento e para o ornato e culto das igrejas

…”.52

As terras dadas em sesmaria, segundo a lei, só podiam ser alienadas, (vendidas

ou arrendadas) sob determinadas condições que, se não fossem cumpridas, acarretari-

am sua devolução ao domínio da Coroa. Porém, o descumprimento dessa lei foi cons-

tante na colônia, ao qual aderiram também os índios e os padres. Em São Lourenço e

São Barnabé, aldeias muito próximas ao núcleo da cidade do Rio de Janeiro, essas alie-

nações ocorriam desde o século XVII. Aforamentos, vendas e trocas de terra eram rea-

lizadas e davam margem a muitos confrontos, pois a tendência dos foreiros era au-

mentar por sua própria conta a porção que lhes cabia. Com base nas leis que procura-

vam garantir as terras para os índios, estes últimos associados aos jesuítas procuravam

resistir às frequentes usurpações, mas eram, em geral, os maiores perdedores. A ten-

dência era para a contínua diminuição do patrimônio das aldeias. Os inúmeros reque-

rimentos contra apropriações ilícitas encaminhados ao Rei por padres e índios eviden-

ciam o contínuo desrespeito às leis e às muitas provisões e cartas régias expedidas a

seu favor.

A participação intensa dos padres nos conflitos e negociações envolvendo as

terras dos índios pode suscitar a ideia equivocada, a meu ver, de terem os índios sido

motivados apenas pelos interesses dos religiosos, visto que os rendimentos favoreciam

principalmente às igrejas. Há, sem dúvida, nas fontes, informações aparentemente

consistentes para sustentar tal ideia, tais como algumas declarações dos próprios ín-

dios e vários documentos, através dos quais se observa que os rendimentos das aldei-

as deviam prioritariamente atender às necessidades religiosas. Provia-se em primeiro

lugar a igreja, os ofícios divinos e os párocos e depois as necessidades dos índios, tais

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como sustento, vestuário, e curativo dos índios pobres e educação de seus filhos.53So-

me-se a isso o fato de que os índios, grosso modo, justificavam suas petições, alegando

além dos inúmeros serviços prestados ao Rei, a necessidade de acudir à pobreza de

sua aldeia e de zelar cuidadosamente pela Igreja.

Seria, no entanto, demasiado simplista concluir daí que os rendimentos das ter-

ras das aldeias reduziam-se única e exclusivamente aos interesses dos padres ou que

os índios haviam se tornado católicos fervorosos. Sem duvidar da conversão dos alde-

ados, nem aprofundar aqui essa complexa questão, convém refletir sobre a possibili-

dade de encontrarmos aí diferentes significados para um mesmo discurso: o zelo pela

Igreja. Sobre o catolicismo dos índios, estudos recentes têm demonstrado como mui-

tos deles acolheram a nova religião, vivenciando-a, no entanto, ao seu próprio modo.54

Além disso, cabe ressaltar o significado simbólico das igrejas nas aldeias que,

para os índios, com certeza, ia além do aspecto religioso. Elas constituíam, desde o

século XVI, marcos de fundação das aldeias indígenas, cujos nomes, grosso modo, de-

rivavam dos santos aos quais eram dedicadas. Símbolos de criação e existência das

próprias aldeias, não era, pois, de estranhar que as petições se fizessem em torno de-

las e de seus cuidados. Perdê-las poderia significar a perda da própria aldeia. Não era à

toa, portanto, que, em seus requerimentos, os índios se mostrassem tão zelosos com o

amparo às suas igrejas. Não se pode descartar também o provável interesse em agir de

acordo com os padres, com os quais estabeleciam complexas relações de conflitos e

alianças. Além disso, os aldeados haviam incorporado a cultura política do antigo regi-

me e, em busca de suas reivindicações, era de se esperar que reproduzissem as falas

condizentes com as expectativas das autoridades em relação a eles. Ao tratarem da

defesa de suas terras e rendimentos, como bons súditos cristãos e fiéis servidores de

seu Rei, referiam-se às necessidades de garantir a sua subsistência e rendas das aldeias

para poderem atender às igrejas e aos cultos divinos, bem como para desempenhar

satisfatoriamente os serviços d’El Rei.

Foram muitos os conflitos sobre terra e, grosso modo, as queixas partiam dos

índios e padres contra os moradores. Situação peculiar, no entanto, ocorreu na aldeia

de São Pedro, no início do século XVIII, quando os moradores de Cabo Frio, sentindo-se

prejudicados pelo excesso de terras dos índios, reclamaram através da Câmara, solici-

tando sua divisão. Acusavam os jesuítas por terem pedido terras para uma aldeia que

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nunca chegou a ser estabelecida e por terem comprado terras dos índios, nas quais

fizeram uma fazenda de gado para o Colégio. A disputa girava em torno da Ponta de

Búzios, onde, há muitos anos, os índios faziam pescarias e, segundo os moradores,

alguns sesmeiros tinham suas lavouras e pescavam, também há vários anos. O Procu-

rador Geral da Companhia e o Reitor do Colégio opinaram sobre o assunto e ambos

reconheceram que a terra fora dada para uma aldeia nunca estabelecida, porém não

por culpa dos padres, mas por falta de índios suficientes. Os dois depoimentos enfati-

zavam o tamanho da aldeia: uma das maiores que tem a Companhia de Jesus, segundo

o Procurador Geral; e três vezes maior que a cidade, de acordo com o Reitor. Ambos

ressaltaram sua importância para a defesa de Cabo Frio, “…pois dela é que se temem

os corsários”.55Os padres propunham um acordo amigável, ficando eles com a Ponta

de Búzios e deixando aos moradores meia légua de terras mais perto da cidade e a

pescaria livre. O Reitor, no entanto, desistia de pedir confirmação da posse da Ponta

de Búzios, deixando-a devoluta. Tal atitude derivava, me parece, do reconhecimento

de que não tinham nenhum direito legal àquela posse. De acordo com todos os infor-

mes, incluindo os dos próprios padres, as terras da Ponta de Búzios, onde os índios há

anos faziam suas pescarias e os padres mantinham algum gado, não lhes pertencia

legalmente. Não obstante, todos os depoimentos foram favoráveis aos índios, não por

direito, mas pelos relevantes serviços de defesa que prestavam ao Rei e por serem os

moradores poucos, pobres e inúteis à Coroa quando comparados aos índios. Ordem

régia de 1727 mandava fosse conservada a pescaria na posse da aldeia e dos seus ín-

dios.56

Trata-se de instigante embate, no qual se pode observar o poder de barganha

dos índios e padres da aldeia de São Pedro, anteriormente citado. No entanto, se os

índios parecem ter sido ali vitoriosos, essa não era a regra. Nas disputas por direito,

preponderaram incontáveis injustiças cometidas contra os aldeados, cujos direitos,

muitas vezes, pareciam estar só no papel, dadas as violências e práticas desrespeitosas

e abusivas dos colonos, autoridades e, até de religiosos, que não titubeavam em burlar

a lei para satisfazer seus interesses. Esses aspectos foram sempre os mais destacados

pela historiografia. Sem esquecê-los, importa ressaltar a atuação dos índios nessas

disputas, desconstruindo a ideia de que a violência da dominação teria anulado suas

possibilidades de ação e resistência.

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As reformas de Pombal: propostas de assimilação e resistências indígenas

Na segunda metade do século XVIII, as reformas pombalinas e a expulsão dos

jesuítas foram um ponto de inflexão na história das aldeias. O Diretório dos Ín-

dios57lançou as bases da política assimilacionista com a intenção de transformar as

aldeias em vilas e lugares portugueses e os índios em vassalos dos reis, sem distinção

alguma em relação aos demais. Em contraste com a legislação anterior, a lei visava a

acabar com os costumes indígenas nas aldeias e incentivar a miscigenação e a presen-

ça de não índios em seu interior. Não obstante, reafirmou os direitos dos primeiros

sobre as terras, tendo declarado serem eles os “primários e naturais senhores das

mesmas terras…”.58

Convém lembrar, no entanto, as diferenças regionais que incluíam a diversidade

dos povos indígenas com variados níveis de inserção na colônia. Se o objetivo da nova

lei era a assimilação, alcançá-la exigia diferentes procedimentos, como ocorreu na

própria capitania do Rio de Janeiro: enquanto no vale do rio Paraíba, algumas aldeias

se estabeleciam, nas áreas de colonização antiga, aldeias seculares eram transforma-

das em freguesias como primeiro passo para sua extinção. Nessas áreas, as terras de-

volutas já eram escassas e os moradores interessavam-se mais pelas terras dos índios

do que por seu trabalho. A expulsão dos jesuítas complicara a situação, pois além das

terras confiscadas aos padres terem voltado ao domínio da Coroa, passando a ser dis-

putadas e pedidas em sesmarias, os índios perderam poderosos aliados em seus en-

frentamentos com os moradores.

Foi uma época de inúmeros conflitos e avanço destes últimos sobre as terras das

aldeias que, embora continuassem pertencendo aos índios, tornavam-se mais vulnerá-

veis através de uma legislação incentivadora da presença de não índios no seu interior.

Some-se a isso, o desenvolvimento socioeconômico da capitania que implicava na

conquista e incorporação dos sertões mais distantes com a criação de novas aldeias e

na ameaça cada vez mais intensa ao patrimônio indígena nas aldeias já seculares.

As informações esparsas sobre as reformas nas aldeias no Rio de Janeiro indicam

que as medidas visavam confiscar os bens dos jesuítas, preservando, porém, o patri-

mônio das aldeias para os índios. As aldeias mantiveram-se em seus locais de origem e

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tornaram-se freguesias, sendo apenas São Barnabé erigida à categoria de vila, ainda no

século XVIII. É instigante constatar que continuaram a aparecer na documentação co-

mo aldeias e seus habitantes permaneceram distintos dos demais moradores, identifi-

cando-se e sendo identificados como índios tanto na documentação oficial quanto no

cotidiano de suas relações. Permaneceram nas aldeias, cultivando as terras ou arren-

dando-as, porém ainda defendendo, através de petições, as terras que lhes haviam

sido dadas séculos antes pela Coroa Portuguesa e cujos rendimentos deviam destinar-

se a atender às suas necessidades coletivas.59

Em 1766, a Memória de todas as freguesias do Bispado do Rio de Janeiro incluía

as Aldeias de São Lourenço, São Barnabé, São Francisco Xavier de Itaguaí, Nossa Se-

nhora da Guiade Mangaratiba e São Pedro.60 O mapa das vilas da Comarca do Rio de

Janeiro de 1816 ainda faz referências às aldeias distinguindo-as das vilas e freguesias

do mesmo nome, embora não apresente, em muitos casos, o número de habitantes

separadamente. Esses exemplos indicam a manutenção das distinções, reconhecida

por autoridades, moradores e, sem dúvida, pelos próprios índios que continuavam

reivindicando direitos que lhes haviam sido dados pela condição de aldeados.

Não é o caso, no entanto, de desconsiderar o intenso processo de mestiçagem

que caracterizou a trajetória dos índios nas antigas aldeias, processo esse que se acele-

rou consideravelmente após as reformas pombalinas. Se esses aldeados chegaram ao

final do século XVIII e início do XIX, ainda se afirmando como índios nas contendas pela

afirmação de seus direitos, deve-se convir que devia ser provavelmente impossível

distingui-los dos demais grupos étnicos e sociais com os quais interagiam por quais-

quer sinais diacríticos, laços consanguíneos e/ou caracteres físicos específicos. Com

base nas novas tendências teóricas e conceituais da História e da Antropologia é possí-

vel afirmar que eles deviam ter se tornado mestiços, sem necessariamente terem dei-

xado de ser índios.61

Desde meados do século XVIII até o XIX, observa-se na documentação contradi-

ções em torno da classificação dos aldeados na condição de índios ou de mestiços.

Enquanto autoridades e moradores destacavam a condição de mistura e desapareci-

mento dos índios das aldeias como justificativa para avançar sobres suas terras e ex-

tinguir aldeias, estes últimos contrariavam esses discursos apresentando petições por

direitos pela condição de aldeados.

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Se, de acordo com Cohen62, os grupos têm interesse em manter-se distintos,

enquanto condições políticas e econômicas estão ligadas a essa distinção, essa parece

ter sido uma forte razão para os índios aldeados terem resistido à política assimilacio-

nista, mantendo, para usar a expressão de Cardoso de Oliveira63, sua “identidade con-

trastiva” em relação aos moradores com os quais interagiam e até dividiam o mesmo

espaço. No final do setecentos e início do XIX, nas áreas de colonização antiga, os ín-

dios das aldeias aparecem como os agentes sociais mais interessados, senão os únicos,

em mantê-las. A meu ver, isso se explica, em grande parte, pelo fato de que, apesar de

todas as mudanças, a principal função das aldeias para os índios se mantinha: espaço

de sobrevivência no mundo caótico e ameaçador da colônia. As lutas nessa época se

faziam principalmente pela manutenção do patrimônio, ao qual tinham direito como

grupo: as terras e os rendimentos das aldeias. Foi principalmente em torno da ação

política comum pela manutenção desses direitos que essas identidades, a meu ver, se

mantiveram e até se fortaleceram neste período, contra as pressões que se faziam no

sentido de reconhecê-los como mestiços. Ser ou não ser índio implicava em assegurar

ou perder terras coletivas das aldeias, de forma que essas controvérsias, ou mesmo

disputas por classificações étnicas, podem ser vistas como disputas políticas e sociais,

como destacou Guillaume Boccara.64

O estabelecimento de benfeitorias dentro das aldeias, tais como tabernas, en-

genhocas e engenhos era permitido e tornou-se mais frequente após as reformas

pombalinas, acentuando a presença cada vez mais intensa de não índios nas aldeias.

Incentivados pela nova lei, estes últimos instalavam-se nelas desenvolviam ali seus

negócios e avançavam sobre as terras dos índios, intensificando os conflitos. Dentre

vários exemplos, cabe citar o caso da aldeia de São Francisco Xavier de Itaguaí, que

chegou a ser extinta e restaurada por ordem da rainha em atendimento à solicitação

do capitão-mor índio José Pires Tavares, que se dirigiu à Lisboa para defender a aldeia.

Foi um conflito longo e complexo que se estendeu por vários anos até a extinção da

aldeia, já no século XIX. Sem aprofundá-lo, importa ressaltar que os argumentos con-

trários aos índios afirmavam sua condição de mistura, decadência e mestiçagem. Estes

últimos, por sua vez, manifestavam-se, com base na identidade indígena, opondo-se

aos interesses do dono de engenho construído no interior da aldeia que queria expul-

sá-los. Nessa disputa, vale ressaltar, os aldeados contaram com o apoio dos moradores

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da freguesia interessados em erigir a aldeia/freguesia à condição de vila no mesmo

local onde se encontrava, em oposição ao dono do engenho construído em seu interi-

or, que queria deslocá-la. Venceram a causa, criaram a vila, estabeleceram a câmara,

que acabou por decretar o fim da aldeia com os mesmos argumentos usados pelo do-

no do engenho que, antes, tentara transferi-los.65

A temporária aliança com os moradores permitiu aos índios manter a aldeia

por mais algum tempo, embora os interesses contrários logo tenham se manifestado,

levando à sua extinção. Mais uma vez, os índios acabaram perdendo, porém o episódio

evidencia além da fluidez e complexidade das alianças e interesses entre os grupos em

contato, a participação direta dos índios nos embates que envolviam seus interesses.

Vários outros casos sobre disputas e acordos entre moradores e índios por questões

de terras das aldeias são visíveis na documentação sobre este período na capitania do

Rio de Janeiro e apontam para a força do discurso da mestiçagem e do desaparecimen-

to dos índios para justificar o avanço sobre suas terras e a extinção das aldeias. Por

outro lado, aponta também para a força do discurso contrário, pois o reconhecimento

da identidade indígena continuava garantindo direitos à terra. Ser índio ou ser mestiço

tinham significados políticos e sociais que geravam ganhos ou perdas para os classifi-

cados e para os agentes classificadores, daí terem sido amplamente utilizados pelos

diferentes atores em suas contendas por terra.66

As aldeias indígenas do Rio de Janeiro foram extintas no decorrer do século XIX,

como resultado de um processo longo e gradual que se iniciou no tempo das reformas

pombalinas e se estendeu à segunda metade do XIX com avanços e recuos dados prin-

cipalmente à ação dos aldeados. Misturados, poucos e vivendo em aldeias pobres e

decadentes, conforme diziam os discursos, os aldeados, fossem índios ou mestiços,

continuaram esforçando-se por manter suas aldeias e a vida comunitária, por quase

um século depois da proposta assimilacionista lançada por Pombal.

Considerações finais

Tal como em várias outras regiões do Brasil e da América, os povos indígenas

do Rio de Janeiro foram sujeitos históricos dos processos históricos nos quais se inseri-

ram. Suas atuações devem, portanto, ser consideradas como variáveis importantes

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para a compreensão mais ampla e complexa dos rumos da conquista e da colonização.

Em 1995, John Monteiro67anunciara que páginas inteiras da história do Brasil seriam

reescritas quando os índios fossem inseridos na condição de sujeitos. Lentamente, seu

prognóstico vem se cumprindo. Histórias indígenas, histórias regionais, história coloni-

al e história do Brasil vão sendo repensadas a partir de inúmeras pesquisas interdisci-

plinares realizadas por antropólogos e historiadores, dentre os quais incluem-se vários

indígenas, cada vez mais presentes nas academias. Essa revisão historiográfica deve

tanto a John Monteiro que não seria um exagero falar de uma história dos índios ou

dos índios na história do Brasil antes e depois dele.

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assentá-los em aldeias coloniais estabelecidas junto aos núcleos portugueses. 19 Leite, 1938-1950, p. 563-568. 20 Idem, p.95. 21 Silva, 1854, p.195-205. 22 Silva, 1854. 23 Lamego, 1913. 24 Cardoso, 1984. 25 Magheli, 2000. 26 Silva, 1854; Malheiros, 2007; Lemos, 2004. 27 Perrone-Moisés, 1992, p. 115-132. 28 Mintz, 2010, p. 223-237. 29 Almeida, 2003. 30 Idem. 31 Schwartz, 1996. 32 Leite, 1938-1950, p. 129. 33 Idem, p.115. 34 Ms. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) Rio de Janeiro, documentos catalogados por Castro e Al-

meida (RJCA) doc.438-439. 35 Leite, 1938-1950, p.103-104. 36 Almeida, 2003. 37 Ms. Arquivo do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Estados do Mosteiro: Rio de Janeiro v. I e II:

1623-1793. 38 Sobre isso ver Silva, 1854, p.503-509; Lemos, 2004, Almeida, 2008b. 39 Malheiros, 2007; Lemos, 2004. 40 Sobre a legislação a respeito do trabalho indígena ver Perrone-Moisés, 1992; Beozzo, 1983. 41 Ms.Arquivo Nacional (ANRJ), cód.77,vol.1,fl.79v. 42 Azevedo, 1991. 43 Ms. AHU, Rio de Janeiro, documentos avulsos (RJA), cx. 2, doc.57. 44 Ms. AHU RJA, cx. 5, doc.45. 45 Leite, 1938-1950, p. 98.

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46 Ms.ANRJ, Fazenda de Santa Cruz, caixa 507, pacote 1. 47 Silva, 1854, p.373-374. 48 Ms AHU RJCA cx.48, doc.11346. 49 Weber, 1994. 50 Almeida, 2003. 51 Pacheco de Oliveira, 1999. 52 Castro e Almeida, 1921, v. 6, p. 519. 53 Silva, 1854. 54 Pompa, 2003; Vainfas, 1995. 55 Ms. AHU, RJA, cx.13,doc.79. 56 Ms. AHU, RJA, cx. 13, doc. 135. 57 Legislação de 1757, criadainicialmente para a Amazônia e no ano seguinte estendida às demais regiões

da América portuguesa, quepassou a regulamentaro funcionamento das aldeias indígenas 58 Diretório §80. Beozzo, 1983, p.34. 59 Almeida, 2003. 60 Ms. Arquivo Histórico Ultramarino Rio de Janeiro, Avulsos. cx. 84, doc. 7. 61 Almeida, 2008b. 62 Cohen, 1978. 63 Cardoso de Oliveira, 1976. 64 Boccara, 2001. 65 Almeida, 2013. 66 Almeida, 2010. 67 Monteiro, 1995.