Albrecht Durer

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REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO, N 1, 2003. ISSN 1806.3993 As Gravuras do Renascentista alemão Albrecht Dürer do Acervo Brasileiro Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner ECA-USP/ IA-UNICAMP Apoio : FAPESP Resumo: As estampas do artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) da Coleção Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro foram submetidas, pela primeira vez na história a uma investigação pericial com o intuito de formar um juízo histórico objetivo para cada uma delas. Com o uso de "métodos laboratoriais" a pesquisa definiu a qualidade de cada peça do acervo. Privilegiando a vertente “técnica”, examinou a qualidade do material por meio de análise criteriosa do papel da estampa e de suas devidas marcas d’água medievais, as quais ajudaram a evidenciar grande parte do diagnóstico. Cada passo da pesquisa foi comprovado por meio de imagens em Infravermelho. Introdução As gravuras do artista alemão Albrecht Dürer (1471 – 1528) do acervo brasileiro se encontram na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro desde o século XIX. O histórico deste patrimônio originou-se basicamente no dia 1° de novembro de 1755, quando a cidade de Lisboa foi acometida por um terremoto seguido de um grande incêndio. Por isso, a antiga Real Biblioteca da cidade aniquilou-se, tratando o rei D. José I de prover a Família Real com um novo acervo. Quando a Família de Bragança, reinante em Portugal, veio para o Brasil em 1807, trouxe consigo a Real Biblioteca ( Ajuda e Infantado), a qual foi acomodada no Rio de Janeiro. Regressando a Família Real para Portugal, em 1821, deixou a Real Biblioteca na cidade, onde permanece até hoje, passando, então, a ser propriedade dos brasileiros. O acervo permaneceu durante algum tempo sem tratamento sistemático. Vinte anos depois, estabeleceu-se uma primeira organização técnica com a criação da Seção de Iconografia da Fundação BN – RJ e Dr. José Zephyrino de Menezes Brun foi nomeado chefe do setor. De início, redigiu apontamentos 1

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REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO, N 1, 2003. ISSN 1806.3993

As Gravuras do Renascentista alemão Albrecht Dürer do Acervo Brasileiro

Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner

ECA-USP/ IA-UNICAMP

Apoio : FAPESP

Resumo:

As estampas do artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) da Coleção Fundação

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro foram submetidas, pela primeira vez na história

a uma investigação pericial com o intuito de formar um juízo histórico objetivo para

cada uma delas. Com o uso de "métodos laboratoriais" a pesquisa definiu a

qualidade de cada peça do acervo. Privilegiando a vertente “técnica”, examinou a

qualidade do material por meio de análise criteriosa do papel da estampa e de suas

devidas marcas d’água medievais, as quais ajudaram a evidenciar grande parte do

diagnóstico. Cada passo da pesquisa foi comprovado por meio de imagens em

Infravermelho.

Introdução

As gravuras do artista alemão Albrecht Dürer (1471 – 1528) do acervo

brasileiro se encontram na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro desde o

século XIX.

O histórico deste patrimônio originou-se basicamente no dia 1° de novembro de

1755, quando a cidade de Lisboa foi acometida por um terremoto seguido de um

grande incêndio. Por isso, a antiga Real Biblioteca da cidade aniquilou-se, tratando o

rei D. José I de prover a Família Real com um novo acervo.

Quando a Família de Bragança, reinante em Portugal, veio para o Brasil em

1807, trouxe consigo a Real Biblioteca ( Ajuda e Infantado), a qual foi acomodada no

Rio de Janeiro. Regressando a Família Real para Portugal, em 1821, deixou a Real

Biblioteca na cidade, onde permanece até hoje, passando, então, a ser propriedade

dos brasileiros. O acervo permaneceu durante algum tempo sem tratamento

sistemático. Vinte anos depois, estabeleceu-se uma primeira organização técnica com

a criação da Seção de Iconografia da Fundação BN – RJ e Dr. José Zephyrino de

Menezes Brun foi nomeado chefe do setor. De início, redigiu apontamentos

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manuscritos em fichas rudimentares sobre o acervo1, conservadas até hoje na BN -

RJ, extremamente interessantes, sobretudo pela espontaneidade da redação do autor

no que se refere às estampas de Albrecht Dürer, coincidentemente as primeiras a

serem selecionadas e recrutadas para tratamento entre as outras que havia.

A Seção das Estampas da Fundação BN-RJ começou, então, a ter existência e

história próprias: as estampas foram catalogadas por escolas artísticas, no princípio

reunidas de maneira bastante promíscua; submetidas à limpeza, reparação e

montagem. Após o tratamento, foram expostas as mais conservadas. Esta primeira

exposição durou sessenta anos, conforme indicação no “Catálogo da Exposição

Permanente dos Cimélios da Bibliotheca Nacional” 2. O Catálogo dos Cimélios foi o

primeiro registro oficial editado após a partida da Família Real para Portugal.

1.A arte de gravar na Alemanha

Logo após a entrada do século XVI, aconteceu na Itália a descoberta de uma

escultura clássica antiga3. Tal evento provocou no meio artístico-cultural mais evidente

discussões inumeráveis sobre o poder expressivo, beleza e semelhança com o real

que a peça trazia em si. Na Alemanha, no entanto, o evento provocou, apenas, a

observação mais atenta da natureza antiga da peça descoberta, pois, para os alemães

da época, as letras despertavam mais interesse do que imagens. A repercussão de

um evento como este não atingia, para eles, o âmbito de controvérsias sobre o Belo;

antes, representava um enigma iconográfico, ou, no máximo, trazia informações de

fontes históricas.

Impregnada pelo espírito da pintura flamenga, a arte na Alemanha se

desenvolvia vagarosamente, sobretudo no que diz respeito às definições estilísticas. O

surgimento da consciência artística deste povo nasceu aos poucos, e foi somente por

meio de impasses conceituais que conquistou suas próprias concepções estéticas.

É inegável que o desenho germânico da época fazia suscitar a força da

sensibilidade do expectador. Seu traçado não era, definitivamente, uma inscrição

carinhosa; abrupto, se assemelhava a um corte, a uma marca que mais parecia

rasgar e despedaçar. Dobrava-se bruscamente em ganchos incontidos, justapondo os

pontos como gráficos agitados ou como dentes de um serrote, evocando, no interior

de seu simbolismo, o cortante, o bico, a serra, a lâmina; no intuito de impor, como uma

idéia fixa, a expressão de sua dura sensibilidade espiritual.

A escolha dos temas, por sua vez, possuía uma obsessão análoga à

severidade estilística; por exemplo, a ferocidade dos tipos, particularmente aqueles

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que representavam os carrascos de Cristo, de um realismo ímpar em relação a todas

as outras escolas, transmitiam fielmente a imagem da atrocidade, sangue e

sofrimento. O mesmo se dava com o martírio dos santos.

Para modelar formas, a arte do norte servia-se de linhas e entalhes grossos,

inchados; ao contrário, por exemplo, dos florentinos, tão canônicos na suavidade

representativa das sombras por traços paralelos, curtos e oblíquos.

Este tipo agressivo de habilidade artística particular da Alemanha redundou na

criação de gravuras; primeiramente sobre madeiras e, depois, sobre metal; e é nesta

dimensão da estética que a arte germânica obteve tanto mérito na representação da

multiplicidade dos afetos humanos.

Nascida das miniaturas, as gravuras foram formadoras de uma exclusividade

artística que levou à percepção das formas de uma maneira clara e muito precisa.

Tecnicamente foi a xilografia que primeiro alcançou rápido progresso no século

XV na Alemanha. Textos como Ars Moriendi, Speculum humanae salvationis, entre

outros, puderam ser complementados por figuras gravadas, graças ao advento da

impressão por Gutemberg que, em 1455, criou o primeiro livro. Mas, foi por volta de

1470/75 que as xilogravuras para edições de livros começaram a aparecer

sistematicamente, e o uso da prensa se estendeu às pequenas edições. Rapidamente

as técnicas chegaram a Nuremberg, cidade de Dürer, proporcionando um grande

desfrute cultural. Lá o movimento intenso em torno do trabalho para ilustração de livros

nos anos oitenta ofereceu estímulo e instrução suficientes para a iniciação do jovem e

ambicioso desenhista em exercício nos principais ateliês da cidade.

Os editores normalmente dividiam as edições em duas classes: “cópias de

luxo”, pressupondo xilogravuras coloridas à mão, e “cópias ordinárias” em preto e

branco. Os ilustradores atuavam como funcionários dos editores, e o trabalho

distribuía-se entre os desenhistas, talhadores e, no caso de grandes

empreendimentos, copistas (formzeichner), que transferiam as composições dos

esboços ou estudos para as matrizes.

MATRIZES DE MADEIRA4:

No princípio, as xilogravuras usavam cores como um acessório para evidenciar o

desenho. As cores, no entanto, valiam-se dos planos vazios. Na medida em que estes

planos iam sendo modificados pela evolução técnica, o uso das cores foi-se tornando

inapropriado. Isto já vinha vigorando há algum tempo, mas Dürer foi o primeiro a

abusar do entrelaçamento de linhas para compor sombras, refinando o desenho

plástico com o claro e o escuro. Dissolveu definitivamente a massa preta empastada

anteriormente usada na composição de ramagens, ornamentos, ou pequenos objetos,

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e espalhou-a em áreas, abrindo-as com linhas entrecruzadas, de maneira que a

escuridão mais densa sutilmente transparecesse.

Esta metodologia foi, com o tempo, se aperfeiçoando, e os trabalhos clareando

cada vez mais.

MATRIZES DE METAL5:

O artista que grava numa matriz de metal, tal qual o xilógrafo,também trabalha

sobre um desenho cuidadosamente elaborado, pré-fixando todas as linhas que tem

intenção de demonstrar no produto final. O resultado deste trabalho, a gravura a buril,

se caracteriza pela metodologia extremamente analítica, particularizada, devendo, por

isso, tender ao concreto, ao passo que a xilogravura tende à abstração, pela sua

expressão mais sintética, mais abreviada.

É interessante observar que o desenvolvimento destas duas técnicas, no

século XV, deu-se em sentido oposto: a xilogravura moveu-se da abstração ao

concreto, e a gravura a buril, ao abstrato. Isto ocorreu porque os xilógrafos foram

intensificando a rigidez linear entre os espaços e volumes tridimensionais, e os

burilistas, ao contrário, gradualmente foram suavizando a técnica e tornando o

desenho difuso por meio de afiadíssimos talhos.

Observa-se que as primeiras modelagens das antigas placas foram executadas

por traços pequenos, finos e numerosos que se fundiam em modelos absolutamente

não lineares.

O aperfeiçoamento desta técnica, pelo contrário, tendeu para a estilização dos

contornos da seguinte forma: traços inerentemente lineares, ou incisivos;

absolutamente contínuos; elásticos, não obedecendo a qualquer uniformidade de

espessura, no entanto, sob a rigidez de um domínio quase matemático. Move-se na

direção diagonal em golpes paralelos, justos.

Em oposição ao desenho livre feito, por exemplo, a lápis, os traços que incidem

no metal são determinados pela interação de dois impulsos muito simples: um reto e

outro circular.

Presume-se que para Dürer a prática com as matrizes de metal remonte ao

mesmo período das de madeira. Criado na ourivesaria do pai, desde cedo se

familiarizou com a incisão no metal. Quando mais tarde decidiu dedicar-se

inteiramente à investigação do corpo humano privilegiou a placa de cobre para seus

estudos. A técnica de incisão no metal foi um aprendizado constante para este mestre

que buscava a aplicação da essência intangível na forma tangível.

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A gravura em metal, incompatível com a gravura em madeira no que diz

respeito a relevo, não pôde, nos primórdios de sua elaboração, ser utilizada na

impressão de livros.

Na época em que Dürer começou a usar as matrizes de metal, Martin

Schongauer, da cidade de Augsbourg, ativo em Colmar, já havia levado este tipo de

técnica a um nível elevado de perfeição, graças à habilidade de execução de uma arte

ilusionista harmonizando espaço e textura. Os ateliês alemães da época, de pintura,

ou de escultura, possuíam séries inteiras dos trabalhos de Schongauer.

Dürer submeteu a técnica a uma evolução. A princípio, ainda elaborava a forma

das personagens e dos objetos com pequenos entalhes e hachuras cruzadas,

desenho denso, habilidade primária em lidar com os contrastes. Nas primeiras

composições, a figura ainda parecia encurralada no espaço. Logo após 1500, os

traços vão se tornando mais elásticos, flexíveis, tênues, e harmonizados com a

composição que começou a se espalhar artisticamente no espaço.

2. O caráter pioneiro de Albrecht Dürer

Albrecht Dürer (Nuremberg, 21 de maio de 1471 a 6 de abril de 1528), depois

de ter aprendido a ler e a escrever na escola, e apenas terminada sua aprendizagem

como ourives na oficina do pai, se deu conta que queria ser pintor. Esta ambição,

porém, não foi alcançada sem muita luta, gradual evolução técnica, e uma percepção

intuitiva extraordinária.

Para ele, a verdadeira essência do trabalho de arte jazia em sua forma,

expressão direta da significação espiritual, e, por isso, é inegável seu talento,

primeiramente como desenhista.

O desenho, sabe-se, é o impulso que esboça a forma futura daquilo que a

princípio é apenas pressentimento de uma criatividade. É também por meio do

desenho que se manifesta espontaneamente o sistema nervoso e muscular, no gesto

de busca da abstração do pensamento.

A autonomia intelectual de Dürer quase o impossibilitava de conformar-se com

a simples imitação do sensível, optando, assim, pela livre idiossincrasia, re-elaborando

aquilo que retirava do contato com a natureza. Sua arte se aproxima muito da doutrina

artística re-discutida na Itália da época, conhecida a princípio pelo nome de Idéia6. A

essência de suas criações exprimia um impulso íntimo, como se deixasse fluir uma

imagem interior advinda da alma, canal condutor da infinita plenitude criadora e

original; grosso modo conhecida como “inspiração”. É como se Dürer conhecesse

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profundamente aquela “surda intenção significativa” que procura desesperadamente

tomar corpo.

O componente inquieto de sua personalidade era justamente aquele que

almejava a posse da habilidade de representar a Idéia livremente; a maneira direta de

fazer fluir o conceito7 diretamente para sua a mão.

As xilogravuras, ou estampas advindas de matrizes de madeira, sempre foram

mais populares que os buris, basicamente porque sua produção era menos laboriosa,

o que as beneficiava consideravelmente no preço. Também não requeriam exames

minuciosos do observador, produzindo nele forte impacto e reação direta.

Dürer manteve-se atento a este tipo de percepção. Procurou tirar o máximo

proveito destas potencialidades inerentes e até limitadas da matriz de madeira. Isto

não quer dizer que seu sentimento para as formas fosse diferente em outros tipos de

trabalho; mas ele só se permitia um forte exagero expressivo nos desenhos

destinados às xilogravuras.

O desenho nos buris foi para ele um permanente exercício de leveza no toque.

Os traços foram evoluindo até tornarem-se cada vez mais refinados com a prática

desta técnica. Dürer foi o primeiro artista em Nuremberg a lidar com a “pura criação”

em gravura.

Suas gravuras compreendiam todas as temáticas: sagradas e seculares,

paisagens, figuras humanas e de animais, elementos concretos em estreita relação

com os abstratos. Repetiu nos buris temas das xilogravuras e vice-versa.

Enquanto as xilogravuras se tornavam cada vez mais simples e de expressão

elementar, muito embora sempre tecnicamente inovadoras, os buris apresentavam um

conhecimento especializado de formas e técnica extremamente bem concluídas,

acrescidas de um charme especial dedicado aos escorços, textura das superfícies

trabalhada manualmente com invejável destreza, e uma sutil discrição nas nuances da

luz.

Contudo, a temática principal para Dürer era o nu. A vontade de assimilar os

princípios da arte italiana e, a partir dela, os da Antiguidade clássica, dominaram toda

sua atividade criativa. Este tema era praticamente desconhecido ou ignorado pela arte

germânica daqueles anos. Assim, entendeu que alguém tinha de começar a dispor do

organismo natural do corpo sob os princípios científicos exatos, e que a correção

matemática da forma humana seria, definitivamente, a grande lição de arte que tinha a

aprender. Percebeu que as poucas representações do nu que existiam na época eram

totalmente inexpressivas, não só porque careciam de força, mas porque a estrutura do

corpo humano não tinha absolutamente sido compreendida a contento pelos seus

conterrâneos nórdicos.

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Começou, então, a copiar modelos italianos à exaustão. Segundo Wölfflin8, “...o

homem que poderia dar à arte germânica uma completa concepção nova de realidade,

contentava-se com uma arte emprestada...”, e, o fato de todos estes corpos

pressuporem uma natureza diferente da germânica não causava a ele a mínima

preocupação.

No entanto, a relação com o real não era suficiente para Dürer naquele

momento. Seu desejo era atingir o sublime, naquilo que o homem tem de semelhança

com Deus; o lado divino.

Como faria para demonstrar um ser mais belo que outro, dispondo de uma

caligrafia naturalmente tolhida pelas inegáveis asperezas da alma germânica?

Encontrou a fórmula que aplicou na gravura a buril Adão e Eva (1504). Este protótipo

não deixava de ser uma representação da Natureza, mas contava com a inteligência e

o poder de abstração do artista em todo seu conteúdo e temática.

Era, portanto, o álibi estrutural de representação que continha em seu cadinho

uma parcela da perfeição. O desenho, considerado “intelectual”, não satisfazia

somente as obrigações de clareza e abstração, mas demonstrava em si o resultado da

marca mais fundamental da natureza humana.

Neste momento da carreira de Dürer, houve um contraste marcante de

atitudes: as xilogravuras satisfaziam os sentimentos populares com temas edificantes;

os buris, que evidentemente atingiam um outro tipo de público, provocavam algumas

reticências...

As criações de Dürer tornaram-se populares principalmente por se tratarem de

trabalhos gráficos. Na Alemanha, os desenhos tinham quase que o dever de

comunicar, além de serem imprescindíveis para a popularidade do artista. Dürer sabia

que somente por meio do aperfeiçoamento dos traços poria em prática seu sonho de

juventude: a pintura.

E foi além. Deixando-se penetrar pelo espírito da Renascença, considerou

como um dever redigir uma vasta obra pedagógica para uso dos jovens artistas

alemães: ensaios que transmitiam ensinamentos profissionais das academias italianas

e, neles, acrescentar lições de ética. O ambicioso projeto, que deveria ser coroado

com uma reflexão sobre o significado da arte, foi produzido sob forma de Tratados:

Geometria e Perspectiva (1525), Tratado sobre as Fortificações (1527), e os Quatro

livros das Proporções do Corpo Humano, publicado por seu amigo Pirckheimer seis

meses após sua morte.

O nome de Albrecht Dürer estará para sempre vinculado à lembrança do artista

que trouxe um elemento estrangeiro modificador para dentro de sua tradição estética

nativa alemã.

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Também foi o primeiro a estabelecer o chamado “direito de propriedade

artística”, pois já marcava sobre as pranchas de madeira seu monograma, declarando-

se autor do desenho, registrando, assim, a autoria de sua Idéia, o que exigia muito

dele, pois era onde constantemente se testava, experimentando formas.

A assinatura de Dürer enquanto marca de propriedade, evoluiu de ano para

ano, conforme demonstrado em gráfico retirado do livro de S. R. Koehler, Engravings,

Dry – Points and Etchings of Albrecht Dürer, New York, The Grolier Club of New York,

1897,p. xiv:

seu

Tom

Apoc

(152

sua

3. D

Düre

dese

goiv

enta

resp

Albrecht Dürer, qu

famoso monograma n

ando como exemplo

alipse (1496/7-99) e

6), que foi a última e

caligrafia.

ürer e as xilogravura

A elaboração das

r certamente foi reali

nho à ponta de prata

a.

Não é de hoje qu

lhado suas próprias

eito, há muito, é abso

e buscou garantias e direitos de propriedade artística, adotou

o momento em que terminou sua série do Apocalipse.

o maior dos monogramas, o n˚7, retirado da série do

comparando-o com o da n˚ 8, aplicado à matriz do Erasmus

stampa gravada por Dürer, torna-se notória a evolução de

s

matrizes para as primeiras grandes séries de xilogravuras de

zada sob sua supervisão. Ele que dominava desde criança o

, não se contentaria com uma técnica padronizada do uso da

e advêm dúvidas sobre o fato de Albrecht Dürer ter, ou não,

matrizes de madeira. A opinião dos historiadores a este

lutamente dividida.

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Para aqueles que defendem a idéia de que Dürer foi o artesão de suas próprias

matrizes, pelo menos no início de carreira, pode-se dizer que, enquanto aprendiz, este

envolvimento foi real9. Porém, a evidência de variações na caligrafia de diversas obras

denuncia trabalho de mãos diferentes, sem que com isso se descarte, naturalmente, a

do próprio artista.

Há, no entanto, o mesmo número de argumentos reforçando o fato de Dürer

nunca ter cortado seus blocos. Adam von Bartsch10 diz que, se considerarmos o

número de desenhos à mão que Albrecht Dürer deixou; a abundância de estampas em

metal traçadas com grande elegância e elaboradas com talento inegavelmente

sublime que fez; os quadros que pintou, geralmente acabados com minúcia ímpar; se

calcularmos o tempo que empregou para compor suas obras literárias e estudos sobre

o Belo; a eventual demanda de tempo, na época, consumida pelas viagens que ele

próprio registrou; não se pode crer que o artista tenha tido disponibilidade suficiente

para gravar o número prodigioso de gravuras em madeira que levam seu nome, tanto

mais que a gravura em madeira é um trabalho extremamente lento e puramente

mecânico e, por conseqüência, incompatível com a impetuosidade do gênio, e as

ocupações nobres de um mestre como Albrecht Dürer.

Bartsch11 diz que é possível esclarecer esta dúvida, pois, para ele, Dürer

definitivamente não praticava a xilografia. O principal argumento do estudioso é o fato

do nome de Dürer aparecer sempre com um epíteto de “pintor”, “desenhista”, “editor

de gravuras em madeira”; nunca como “gravador”.

Por exemplo, pode-se ler no título da série A Grande Paixão : “Passio Christi

ad Alberto Durero Norimbergensi Effigiata”; ou no fim da série O Apocalipse de São

João: “Gedrucket zu Nurnberg durch Albrecht Dürer, maler12”. Na segunda edição

desta mesma obra, com texto latino no verso também se pode ler: “Impressa denuo

Nurnberg per Albertum Durerum, pictorem”.

Realmente, ao se inspecionar as inscrições das gravuras retiradas da madeira,

as palavras como sculpere ou incidere são solenemente evitadas; porém palavras

como effigiare, imprimere, per figuras digerere, delineare, designare, imaginibus

circunscribere podem significar que Dürer tenha fornecido somente o desenho.

Ainda segundo Bartsch13, Jean Neudorffer, que publicou em 1547 uma curta biografia

de Dürer, disse expressamente que Hieronymus Resch foi quem escavou a maior

parte dos desenhos de Dürer nas madeiras. Portanto, conclui-se que se deve crer que

as peças que se distinguem por uma bela execução pertencem a este gravador de

madeira e que as outras, às vezes, nem sempre tão elaboradas, provêm de diferentes

gravadores.

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Panofsky14 conta que enquanto Dürer trabalhava na oficina de editores, nos

primeiros anos de carreira, não talhava pessoalmente seus desenhos, já que esta

tarefa fazia parte de um esquema divisor de trabalhos. No entanto, muitas vezes o fez,

para se familiarizar com o processo técnico e, sobretudo, a fim de demonstrar a força

de suas intenções para os talhadores profissionais, muito embora não lhe coubesse tal

obrigação. Com o tempo, formou sua própria equipe de talhadores que contava com

uma nova geração de artesãos, como era o caso de Hieronymus Andreae, chamado

de “Formschneyder”, que talhou a maior parte das xilogravuras de Dürer em meados

de 1515.

Por meio de registros deixados por outros artistas contemporâneos de Albrecht

Dürer é possível notar que havia um número considerável de xilogravadores

suficientemente habilidosos trabalhando nos ateliês somente como ajudantes do

artista. Bartsch15 também cita os nomes de Hans Glaser, Hans Guldenmund, Henri

Hondius,

Estabelecidas as devidas afinidades entre artesãos e mestre, em casos de

pedidos simples ou que requeressem rápida resolução, acontecia de Dürer também se

servir do procedimento breve para desenhar, ou apenas esquematizar o desenho na

prancha de madeira.

Bartsch16 explica que não haveria tão grande desigualdade de perfeição entre

as gravuras em madeira marcadas com o monograma de Dürer se ele as tivesse

elaborado em sua totalidade com as próprias mãos. Não haveria, portanto, exemplos

de monogramas vistos de maneira inversa, ou de linhas duplas, como é o caso do que

ocorre com freqüência na série do Apocalipse.

No que concerne à série da Pequena Paixão, no entanto, o renomado

xilogravador britânico John Thomson17 discerne nada menos do que quatro mãos

diferentes no entalhe destes blocos.

Ainda segundo Bartsch, há algumas estampas que são belíssimas porque o próprio

autor traçou o desenho sobre a prancha e o gravador escavou com exatidão os

intervalos entre os traços e as hachuras do desenho. Outras são medíocres, porque o

gravador decalcou o desenho privando-o, assim, de sua originalidade e de seu espírito

primitivo. Outras ainda são piores, porque o próprio gravador desenhou sobre a

prancha a imagem que ele copiou do original alterando completamente seu valor.

Há outras peças, ainda, que não podem ser consideradas ruins, apesar de

muito mal traçadas, devido ao fato do entalhador as ter elaborado sobre desenhos

leves e com bistre18 ou à sangüínea, movimentando-se às cegas sobre os contornos e

hachuras que, no original, já se encontravam suavizados ou apagados.

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Conseqüentemente, foram entalhadas de forma mais grosseira, ou com muita

dificuldade.

O comércio das gravuras no interior e exterior da Alemanha assegurou a Dürer

certa facilidade na vida. Dürer morreu rico, “re-opulenta”, como Pirckheimer insistia em

deixar evidente19, e, segundo o próprio artista, era a venda das xilogravuras que lhe

fornecia rendimentos regulares, e com isso a possibilidade de dar emprego nem

sempre a tão bons artesãos quanto alguns mencionados pela historiografia, pois,

muitos deles eventualmente se assenhoreavam de algumas obras desviando-as do

destino a que elas estavam determinadas.

As gravuras de Dürer se espalhavam pela Europa e participavam de todas as

grandes feiras comerciais de objetos de arte. Seu ateliê atravessava os anos difíceis

para classe artística praticamente sem grandes problemas e, se ele próprio se

ausentava, era substituído por algum membro da família nas feiras, como, por

exemplo, Agnes Dürer, sua mulher.

Quando, em 1505/1506 viajou para a Itália, seu ateliê continuou a funcionar a

todo vapor. Com Hans Schäufelein, Hans Baldung Grien e Hans Von Kulmbach, os

três Hans, Dürer dispunha de auxiliares competentes que mais tarde vieram a se

consagrar como artistas na Alemanha.

4. Metodologia de análise do acervo brasileiro das gravuras de Dürer

As estampas de Albrecht Dürer da Coleção Fundação Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro foram submetidas pela primeira vez a uma investigação pericial com o

intuito de formar um juízo histórico objetivo para cada uma delas.

Por meio de métodos laboratoriais, a pesquisa definiu a qualidade de

impressão de cada peça do acervo; conseqüentemente privilegiou a vertente “técnica”

de análise, ou seja, examinou a qualidade do material, por meio de análise criteriosa

do papel e de suas devidas marcas d’água, as quais ajudaram a evidenciar grande

parte do diagnóstico. As estampas foram submetidas a exames com lentes

microscópicas, lâmpada ultravioleta e fotografadas com filme Infravermelho a fim de

comprovar cada passo da pesquisa.

O interesse de atribuir um laudo às estampas de Albrecht Dürer foi o de corrigir

e tornar exata a situação do atual acervo brasileiro, fato muito importante para a

significação deste patrimônio cultural no âmbito geral.

As estampas de Dürer vêm sendo catalogadas por alguns especialistas há

muitos anos, e o resultado deste longo trabalho organizou criteriosas relações entre a

qualidade das impressões, tipos de papel, marcas d’água e conseqüente datação.

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Na prática a análise das gravuras deu-se da seguinte forma:

ANÁLISE PRÁTICA:

A análise de uma estampa do século XV / XVI inicia-se pelo papel onde ela

está impressa.

Em uma folha de papel antiga é possível observar os seguintes caracteres:

vergaduras, pontusais, e, a característica mais importante, a filigrana.

As vergaduras são linhas horizontais alternativas escuras e claras que podem

ser vistas quando se observa a transparência do papel. Os fios, muito finos e

apertados no século XIII, vão se tornando mais grossos e espaçados na metade do

século XIV e, logo após, retomam sua forma original, ou seja, finos e apertados.

Os pontusais são marcas postas de forma perpendicular aos fios horizontais da

vergadura. Pontusais elaborados com bastões de madeira, os mais primitivos, são

praticamente invisíveis à luz. Nos papéis de formato ordinário do fim do século XV ao

XVI, a distância entre eles variava de 38mm a 23mm20.

A reaproxi

sinal de progresso

mação dos pontusais (vide desenho demonstrativo) parece ser um

e melhora. Por exemplo, no caso de se encontrar a mesma filigrana

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em dois papéis diferentes, deve-se ter por mais antigo aquele que os pontusais são

mais espaçados21.

As Filigranas são marcas que demonstram de uma maneira mais ou menos

precisa e pontual qual é a idade da folha de papel.

Nos primeiros vinte anos do século XIV, as filigranas eram “nomes” de muitos

papeleiros eventualmente originários de Fabriano (Itália) ou das proximidades. Este

procedimento foi abandonado, pois muito pouca gente sabia ler, naquela época de

ignorância geral, e este tipo de “marca” não atingia sua meta de maneira eficiente.

Logo se tratou, então, de renunciar aos escritos e adotar um signo qualquer que

estabelecesse relação direta com os papeleiros, fazendo desta marca uma assinatura

particular.

Mais tarde, no começo do século XVI e com o progresso trazido pela instrução,

repetiu-se a idéia de filigranar as iniciais, ou o nome do papeleiro. Como havia muitas

oficinas de papel numa mesma região, as filigranas diferenciavam-se pelos símbolos

individuais ou pelas iniciais do nome do papeleiro, além de marcas de proveniência

nacional ou provinciana, normalmente acompanhando os brasões de cidades, ou de

estados. Com o aumento de produção acabou-se por aplicar os nomes das marcas

mais conhecidas, por exemplo, o “sino”, o “cacho de uva” etc.

Em meados do século XV, os papeleiros empregavam filigranas diferentes para

designar a qualidade, por exemplo: a “torre” designava papel de boa qualidade; a

“cabeça de boi sem olhos com haste em cruz”, papel de média qualidade; a “buzina de

caçador”, o ordinário.

Para definir uma filigrana, é necessário fazer uma comparação entre as

disponíveis, pois, em diversos papéis a marca é indistinta, mal vista e ás vezes um

pouco apagada, conforme a maneira de estampar no papel.

Há variações entre os mesmos modelos de filigranas, e, por vezes são tão sutis

a ponto de se tornarem indistintas uma da outra, exceto pelo lugar diferente que

ocupam sobre a folha de papel.

Não se conhece o motivo que levou ao emprego das filigranas. É possível que

a mesma marca tenha sido usada simultaneamente por muitas oficinas, tanto que era

comum o aparecimento de contrafações das marcas mais em voga na época. Mas,

estas contrafações, a julgar pelos casos conhecidos, não tinham uma identidade

absoluta com o modelo padrão, se contentando em uma imitação, por vezes assaz

grosseira. E ainda, quando uma marca era muitas vezes contrafeita, e acabava por se

tornar banal, cada papeleiro a reforçava de uma maneira particular ou a fazia

acompanhar de um signo distintivo que permitia a ele reconhecer seus próprios

produtos, apesar da semelhança de sua marca com as de outros fabricantes.

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Page 14: Albrecht Durer

A pesquisa às estampas de Dürer sempre foi e continuará sendo um trabalho

contínuo. As divergências ou alterações que uma marca d’água apresenta em relação

às padronizadas e catalogadas pelos estudiosos serão arquivadas pelo no maior

centro de pesquisa em marcas d’água, Der Wasserzeichenkartei Piccard im

Hauptstaatsarchiv, Stuttgart, Alemanha, pois o intuito das perícias modernas é

abastecer o centro com novos elementos recém apurados nas pesquisas de todo

mundo.

A PESQUISA ÀS ESTAMPAS BRASILEIRAS:

A forma de dispor as informações sobre as estampas do acervo brasileiro de

Dürer assemelhou-se à usada nos Corpus Flamengos e europeus. Contudo, tal

distribuição de informações não obedeceu a tamanha rigidez, uma vez que tratou-se

da análise de séries absolutamente heterogêneas, e, no caso das xilogravuras,

algumas não encaixaram-se estreitamente em um só conjunto editorial que

eventualmente comporia o grupo de imagens dos livros de Dürer editados a partir de

1511. A análise documental do acervo brasileiro elaborou laudos somente às peças

vinculadas às categorias internacionalmente adotadas.

É necessário primeiramente esclarecer alguns procedimentos padrões para

entendimento das referências de qualquer estudo das estampas de Albrecht Dürer:

cada estampa tem um número, já definido no século XIX por Adam vom Bartsch

(1866), e a qualidade da impressão é mundialmente situada por meio de uma letra,

normalmente estabelecida pelo catálogo de Joseph Meder (1932). É evidente que há

outros especialistas técnicos devidamente respeitados cuja pesquisa posterior trouxe

novas informações, e estas devem ser adicionadas.

A grande maioria das xilogravuras de Albrecht Dürer do acervo brasileiro na

Fundação BN-RJ advém das séries dos “três grandes livros” de Dürer: “O Apocalipse

de São João”, “A Grande Paixão” e “A Vida da Virgem”; e da série do pequeno livro “A

Pequena Paixão” (xilo). Já entre os trabalhos em buril, há estampas que são

formadoras de séries, por exemplo, A Pequena Paixão em buril; estampas de

temática semelhantes: As Virgens ou Os Santos; ou estampas ligadas à temática

laica.

SÉRIES:

Da série de xilogravuras O Apocalipse de São João, originalmente composta

de quinze estampas, foi resgatado um conjunto de cinco estampas cuja característica

principal baseou-se na presença da marca d’água, passaporte indispensável à sua

inserção em categorias pré- estabelecidas pelos estudiosos de Dürer, ainda que estas

pertençam a uma edição tardia. Interessante anotar que a última estampa deste

conjunto “O Anjo que tem a Chave do Abismo” possui uma particularidade no reverso,

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o que concede à peça uma característica ímpar: um leve desenho da Crucificação

elaborado à bistre ou à sangüínea, e um desenho a lápis de uma Madona.

Da série A Grande Paixão (xilo), originalmente composta de onze estampas, foi

resgatado um conjunto de outras cinco estampas apresentando as mesmas

características que selecionaram as anteriores. A estampa “O Transporte da Cruz”,

parte deste conjunto, apresenta outra particularidade interessante no seu reverso, e,

embora diferente da anterior não deixa de tornar a peça única entre suas irmãs:

arabescos em forma de desenhos-letras impressos à sanguínea. O detalhe indica

peça impressa em papel contemporâneo ao artista, pois além de se tratar de “papel

aproveitado” para estampar, a policromia impregnada nele tem tonalidade

avermelhada variável, tipicamente usada no século XV.

Entre as estampas da série da Pequena Paixão em buril é possível encontrar

exemplares originais enquadrando-se nas primeiras categorias dicionarizadas pelos

estudiosos, como é o caso da estampa “Jesus diante de Caifás”.

Da série A Vida da Virgem originalmente composta de vinte estampas foi

resgatado um conjunto de quinze estampas (treze mais duas repetidas). No entanto,

esta grande série peca, na maioria das vezes, pela divergência das marcas d’água e

ausência do texto latino no reverso, o que leva a crer se tratarem de impressões

tardias.

Sabe-se que, por questão de garantia, as séries eram encadernadas juntas.

Esta forma de conservação causou, por vezes, sérios embaraços, pois muitas vezes

acontecia do estudioso se deparar com folhas soltas pertencentes a grupos que um

dia formaram álbuns. Por esta razão, as folhas não se assemelhavam apresentando,

por exemplo, margens mais largas ou mais estreitas.

Pela sua resistência, as matrizes de madeira eram mais cobiçadas pelos

impressores e editores a ponto de aparecerem estampas individuais ou mesmo séries

delas em diversos locais, inclusive nos mais inusitados. E, os especialistas alertam: a

ausência de marcas d’água, o papel de rugosidade grosseira, a tonalidade, e outros

fatores levam a concluir que o reaproveitamento de muitas matrizes deve ter ocorrido

após a morte de Dürer.

Todo cuidado é pouco quando se trata de análise de uma estampa deste

artista, a maior vítima de plágios dos meios artísticos. Albrecht Dürer sempre foi muito

criterioso com sua produção no mercado, uma vez que se deu conta rapidamente de

que sua criação era pouco protegida no seio do mundo artístico. Para Meder,

“...xilogravuras bem impressas e limpas são uma raridade”22

De maneira geral as matrizes foram expostas a todo tipo de danos em

conseqüência da utilização demasiada e da má conservação.

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Page 16: Albrecht Durer

A irregularidade das impressões resultantes de fendas, lacunas, e dilapidação

causada por carunchos fez com que algumas matrizes fossem corrigidas de maneira

muito habilidosa. No entanto, todos estes danos devem ser visíveis e reconhecíveis

nas impressões, para que se possa chegar a conclusões corretas acerca da seqüência

cronológica da estampa e também da qualidade.

Impressões muito escuras aparecem principalmente entre as xilogravuras.

Meder diz categoricamente: “não são necessariamente as ’primeiras tiragens’ como se

tem preconizado por regra”23. São definidas como tendo “ótima graduação”’

(Vollgratig), mas, atenção para os traçados densos, números duplicados e letras

preenchidas; e no reverso, marcas.

Estampas hiper escurecidas, que quase sempre advêm da aplicação de uma

camada de tinta muito forte com limpeza superficial da matriz e, às vezes,

deslocamento do papel durante a impressão, resultam na duplicação das linhas. Estas

duplicações podem ser efeito da tensão excessiva da prensa, que tonalizaram

somente algumas partes e deixaram a impressão desigual. Ao serem duplicadas, as

linhas que seriam difíceis de serem enxergadas dão a falsa impressão de serem

fortes, devido à intensidade de escurecimento.

Estampas excessivamente claras derivam, também, da má qualidade da

tiragem. São resultantes de uma limpeza descuidada, de modo que algumas partes

não são atingidas pela impressão,tais como as áreas de finas camadas de tinta ou

mesmo as áreas vazias.

Outro dano comum às impressões é a destruição pelo uso da tesoura, que

ocorreu com o objetivo de eliminar completamente manchas de sujeira ou rasgões.

Por exemplo, as chapas de cobre mal limpas ao longo da linha de borda produziam

margens sujas ou muito carregadas que eram recortadas rente.

Este procedimento ocorreu também no caso de blocos com molduras largas,

cujo entintamento de forma descuidada produzia linhas de contorno borradas que

tinham de ser endireitadas e, portanto, acabavam por tornarem-se “estreitas”.

Enquanto as provas feitas pelo próprio Dürer caracterizavam-se por um preto

marfim profundo, já se encontravam entre as grandes edições preparadas para livros,

tais quais Apocalipse, A Grande Paixão, A Vida de Maria, do ano de 1511, efeitos

cromáticos amarronzados, totalmente opostos aos vistos nas “impressões

preliminares”, preto-azulados.

Joseph Meder24 aponta que o grande consumo parece, no entanto, ter se

conformado com uma qualidade inferior. E sempre que as pranchas matrizes iam

parar em mãos estranhas, mais aparecia a tonalidade acastanhada, que era, contudo,

originalmente preta, mas que desbotava em função do verniz de baixa qualidade que

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chegava a atravessar o papel aparecendo amarelado também no verso da estampa,

interferindo, decisivamente, na aparência da impressão. A regeneração das estampas

deterioradas em função do verniz amarelado não é possível. Pertencem, certamente a

uma qualidade inferior, e podem ser conferidas por meio de marcas d’água tardias.

Impressões tiradas de matrizes com lacunas, áreas com cantos afundados, fissuras e

fendas devem ser submetidas a comparação minuciosa entre diferentes impressões

da mesma matriz. Esta comparação enriquece a investigação e permite que se possa

chegar à real e definida seqüência das mudanças.

No processo de impressão podem ter ocorrido alterações tais como a utilização

de papéis diferentes, mas ainda assim, correspondentes à época ou mais recentes.

As marcas d’água, visíveis na maior parte das diferentes impressões vão

ajudar a estabelecer a cronologia. A literatura técnica sobre a especulação dos

trabalhos gráficos de Dürer ensina que, teoricamente, este caminho pareceu ser

perfeitamente adequado, mas, na prática, surgiram todos os tipos de dificuldades. Por

exemplo, surgiram exemplares sem possibilidade de visualização da marca d’água, o

que acabou por formar uma incógnita para o examinador. Tornou-se, então necessário

eliminar a possibilidade de visualização da marca d’água, isto sem contar que nem

todas as impressões continham uma clara e perfeita marca d’água ou não possuíam

mesmo qualquer marca, o que acarretou inúmeras contravenções, porque certas

marcas d’água dão ao papel especial qualidade e pureza e, outras, definem um tipo de

papel inferior.

ALGUNS CRITÉRIOS PARA OBSERVAÇÃO IMEDIATA DE FRAUDE SÃO OS

SEGUINTES:

Tanto os menores quanto os maiores núcleos de uma estampa podem ter sido

desenhados com muita habilidade. O papel com o qual os resquícios do original foram

remendados pode ter sido colado com tanta maestria que se torna difícil distinguir as

partes velhas das novas, mesmo com auxílio de lupas poderosas.

Kurz25 diz que as reproduções fotomecânicas de estampas fazem-se passar por

originais com mais freqüência do que se imagina, graças a alguns procedimentos que

perigosamente aproximam a estampa fraudulenta da aparência original. Segundo ele,

a xilogravura dificilmente pode ser distinguida da zincografia se analisada pela forma

como o relevo desenhado emerge. A diferença se dá somente quando na estampa

aparecem resquícios da estrutura da madeira.

A colotipia26 se dá pelo formato peculiar de pontos minúsculos. Não se tratam

nem mesmo de pontos, mas linhas curvas que se inserem como larvas. No entanto, é

importante observar que a colotipia mostra uma carência notória de profundidade e

relevo, o que ajuda a estabelecer a distinção entre os exemplares analisados.

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O mais perigoso de todos os procedimentos é a fotogravura, retirada de

prancha de cobre idêntica à usada pelas outras artes de estampar; inclusive a

superfície aveludada da tinta (mezzo) é confundida no uso deste processo. Sem o

auxílio de um original para comparação, torna-se impossível assegurar-se se o

exemplar analisado é autêntico ou se trata de uma reprodução fotomecânica.

Quanto às marcas d’água, segundo Kurz27, este tipo de estudo ajuda

ocasionalmente, quando, é claro, não houver papel velho filigranado em suficiente

quantidade para ser comprado e usado nas falsificações.

Medidas também fornecem garantias sumárias, uma vez que as estampas são

lavadas e secadas, esticadas e comprimidas e o papel se ajusta com facilidade.

O desejo de dar ao exemplar uma aparência antiga também se dá por meio de

dois métodos de falsificação:desenho de má qualidade e uma boa lavada da folha até

que as linhas se tornem acinzentadas, a fim de sugerir o necessário desbotamento

provocado pelo tempo.

As estampas de Albrecht Dürer do acervo brasileiro passaram por provas

rigidamente observadas, inclusive sendo re-conferidas permanentemente em seus

detalhes diante do próprio fac-símile da primeira edição de 1511 dos três grandes

livros de Dürer (O Apocalipse, A Grande Paixão e A Vida da Virgem), modelo padrão;

auxílio de vários estágios no exterior lidando com as peças originais das coleções

européias, e, principalmente, grande colaboração profissional de especialistas no

assunto fornecendo material de pesquisa de primeira linha. Todos estes antecedentes

foram importantes para formulação dos laudos que acompanharam cada uma das

análises das estampas originais. Os laudos, além de fundamentar cada afirmação

levantada no Corpus, tinham por objetivo classificar a estampa posicionando-a em

uma das categorias estabelecidas primeiramente por Joseph Meder, padrão de

rigidez da hierarquia de qualidade de uma impressão.

1 José Zephyrino de Menezes Brum,Ficha dp Catálogo Sistemático por Escolas, Rio de Janeiro, 1876, manuscritos, sem numeração. 2 Publicado sob a direção de João Saldanha da Gama, Rio de Janeiro, G. Leuzinger e Filhos, 1885, p.578 a 678. 3 Laocoonte e seus filhos (séc.I d.C., mármore, altura: 2,13m) grupo de estátuas que foi encontrado em Roma em 1506. Por muito tempo foi aceito como um original grego de Agesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes, mencionado pelo escritor romano Plínio. Atualmente pensa-se tratar de uma cópia romana ou de uma obra do Período Helenístico Final. 4 Prancha de superfície igualada onde se desenha. O desenho pode ser feito diretamente na prancha, pode ser transferido por decalque, ou ainda, consistir numa colagem sobre a matriz de papel fino onde a imagem se mostra. Há artistas cuja metodologia consiste em pintar a superfície da prancha de branco. Com uma lâmina bem afiada escava-se em torno dos riscos e manchas, de modo a deixar o desenho em relevo. Como os talhos são de certa profundidade,

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não é preciso uma técnica muito especial de entintamento. A tinta de natureza oleosa, para melhor fixação ao papel, é passada a tampão ou a rolo (n.a.). 5 Placa metálica de superfície igualada onde se talha, rasga, ou se faz corroer (no caso, com ácido), linhas representativas do próprio desenho. Após este procedimento, aplica-se um líquido “revelador”. O entintamento se estende por toda a superfície da chapa, que, depois de polida, mantém a tinta apenas dentro dos sulcos (n.a.). 6 Assunto ricamente abordado por E.Panofsky, Idea.Contribución a la historia de la teoria del arte, Cátedra Ediciones, Madrid, 1985 7 Termo usado por Michelangelo no soneto: “Non há l’ottimo artista alcun concetto, ch’um marmo solo in sé non circonscriva col suo soverchio, e solo a quello arriva la man che ubbidisce all’intellecto” Apud Benedetto Varchi, Lezione sopra un sonetto di Michelangelo,VIII, Roma, p.1324. 8 Heinrich Wölfflin: The Art of Albrecht Dürer, London, 1971, p. 27. 9 Apud (catálogo) Albrecht Dürer : Woodcuts and Woodblocks, Edited by Walter Strauss, Abaris Books, New York, 1980, p. 620, que remete a Ivins, 1929, p.102-111. 10 Adam von Bartsch: Le Peintre graveur, Les Vieux Maitres Allemands, vol. VII, 2nd partie, A. Dürer, Leipzig, Imprimerie de C.W. Vollrath, 1866, p. 7. 11 Adam von Bartsch: Le Peintre graveur, Les Vieux Maitres Allemands, vol. VII, 2nd partie, A. Dürer, Leipzig, Imprimerie de C.W. Vollrath, 1866, p. 7,8. 12 N.a. : maler quer dizer pintor . 13 Adam von Bartsch: Le Peintre graveur, Les Vieux Maitres Allemands, vol. VII, 2nd partie, A. Dürer, Leipzig, Imprimerie de C.W. Vollrath, 1866, p. 8,9,10. 14 Erwin Panofsky: Albrecht Dürer, vol. I, Princeton, 1945,p.46. 15 À p. 12. 16 Bartsch, 1866, vol . VII, pág. 26, nota 9. 17 Apud (catálogo) Albrecht Dürer : Woodcuts and Woodblocks, Edited by Walter Strauss, Abaris Books, New York, 1980, p. 620. 18 Bistre: Mistura de fuligem e goma, empregada em desenho e pintura. 19 Apud Peter Strieder, Dürer, Albin Michel, Anvers, 1990,p.47. 20 Charles Moïse Briquet, Les Filigranes : dictionnaire historique des marques du papier dés leur apparition vers 1282 jusqu’en 1600, I vol. , Paris, Alphonse Picard & Fils, 1907, p. 8, verbete III. 21 Charles M. Briquet, idem, vol. 1, p. 8. 22 Joseph Meder, Dürer Katalog, 1971, p. 55: “Gut und rein gedruckte Holzschnitte sind Seltenheiten”. 23“Es müssen auch durchaus nicht ‘ganz frühe Abdrücke’ sein, als welche sie in der Regel angepriesen werden”, Joseph Meder, Dürer Katalog, 1971, p. 52. 24 Joseph Meder,- Dürer-Katalog, Qualität der Stiche und Holzschnitte, p.56 e ss. 25 Otto Kurz, Fakes- A Handbook for Collectors and Students, London, 1948, p.111. 26 Processo de impressão com filme de gelatina. 27 Idem à referência anterior , p.112.

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