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A INGERNCIA MILITAR NA REPBLICA E O POSITIVISMO

Arsnio Eduardo Corra

AGRADECIMENTOCabe ressaltar que todo o trabalho exigiu de mim perseverana e pacincia, no entanto mais ainda daquelas pessoas que junto minha vida exercem de uma forma ou de outra, papis relevantes. Diante disso agradeo a Marlene, Paulo, Ana, Antonio, Pedro, Lauro, ngela e especialmente ao professor Antonio Paim pelas horas dispensadas na discusso do tema por mim desenvolvido; alguns anos se passaram e o seu incentivo, colaborao e crtica se incorporaram ao trabalho.

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SUMRIOPREFCIO ...................................................................... INTRODUO ................................................................ 5 8

Captulo IO Processo de Constituio da Doutrina do Comte 1 O Curso de filosofia positiva como sistematizao da Cincia moderna 2 A proposta de um positivismo pedaggico 3 O apelo ao sentimento 4 Religio da humanidade 5 Concluso 14 14 25 38 43 62

Captulo IIFracassa a Tentativa dos Militares de se Manterem Sozinhos no Poder 1 Sumrio da situao nas primeiras dcadas republicanas 2 O carter liberal da oposio ao regime militar no comeo da Repblica, comprovado pela anlise de documentos da dcada 3 A imprensa na primeira dcada republicana 4 O corolrio do processo: A poltica dos governadores 5 O civilismo e a nova tentativa de se manterem Sozinhos no poder 64 65 70

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Captulo IIIComo se Estruturou e Conseqncias da Aliana com Os Castilhistas 1 A aparente vitria da profissionalizao 3 117 117

2 Hiptese relativa nova feio assumida pela ingerncia Militar na poltica nos anos 20 3 A natureza e o papel do tenentismo 4 A doutrina castilhista 5 A aliana com os castilhistas

121 128 135 140

Captulo IVO Ambiente que Conduziu Aliana com os Liberais 1 A eleio de Vargas em 50 e o surgimento da faco Nacionalista e sua antpoda 2 Insistncia numa candidatura militar, inconformismo e pronunciamentos militares na segunda metade dos anos 50 3 Razes da instabilidade poltica nos anos 50 4 A eleio e renncia de Jnio Quadros, pretextos para novos pronunciamentos militares 5 O movimento poltico-militar de 64 e o governo Castello Branco 145 146 152 156 160 162

Captulo VComo Evoluiu a Fundamentao Doutrinria da Ingerncia Militar na Poltica e sua Crtica 1 A interpretao do comtismo por Benjamin Constant 2 O cerne da doutrina tenentista possibilidade de sua Conciliao com a interpretao precedente 3 O cerne da doutrina castilhista possibilidade de sua Conciliao com a plataforma Benjamin Constant 4 O substrato doutrinrio de 64: o denominado autoritarismo Instrumental 5 Condio de sucesso da profissionalizao 167 167 169 171 172 174

BIBLIOGRAFIA

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PREFCIOA obra de Arsnio Eduardo Corra desenvolve interessante anlise acerca do papel que desempenharam os militares na histria republicana brasileira, destacando os fundamentos doutrinrios em que se alicerou a sua participao e as perspectivas que, neste final de milnio, se descortinaram no que tange profissionalizao das Foras Armadas. Em cinco captulos o autor percorre os momentos principais dessa participao, partindo da anlise dos fundamentos doutrinrios do comtismo. O ttulo dos captulos j revela a abrangncia do estudo: O processo de constituio da doutrina de Comte (Captulo I); Fracassa a tentativa dos militares de se manterem sozinhos no poder (Captulo II); Como se estruturou e conseqncias da aliana com os castilhistas (Captulo III); O ambiente que conduziu aliana com os liberais (Captulo IV) e Como evoluiu a fundamentao doutrinria da ingerncia militar na poltica e sua crtica (Captulo V). A anlise desapaixonada sobre o fundamento culturolgico da participao dos militares na vida poltica brasileira tem merecido, a bem da verdade, poucos estudos. Depois das clssicas obras Militares e civis: a tica e o compromisso, de Paulo Mercadante e, Os militares na poltica, do brasilianista Alfred Stepan, publicadas na dcada de 70, so relativamente escassas as contribuies nesse terreno. Merece destaque, entre as anlises recentes, a empreendida pelo brigadeiro Murillo Santos na sua obra intitulada O caminho da profissionalizao das Foras Armadas (1991). Num momento em que o Brasil aspira a ver amadurecidas as suas instituies democrticas, de capital importncia o estudo dos fundamentos culturais do comportamento militar. Justamente na medida em que pretendemos sair de uma concepo estatizante da segurana nacional, para elaborar uma concepo em funo da segurana cidad, esse estudo impostergvel. A obra de Arsnio Eduardo Corra vem responder a essa inquietao e ter, decerto, ampla acolhida de parte do pblico leitor.

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Considero particularmente valioso o estudo que ora apresento, porque constitui captulo fundamental da anlise mais larga do Estado patrimonial brasileiro. Embora o autor se refira en passant questo do neopatrimonialismo, no difcil traar os elos de ligao entre os fundamentos doutrinrios do comportamento militar e a dinmica do nosso Estado patrimonial. Max Weber distinguiu, nos seus estudos acerca do patrimonialismo, duas modalidades de organizao social: a patrimonial pura e a patrimonial estamental. A primeira consistiria na consolidao da dominao poltica a partir da hipertrofia de um poder patriarcal original, que alargaria a sua dominao domstica sobre territrios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, que passariam a ser tratados como propriedade patrimonial (familiar) do governante. As relaes de autoridade entre dominante e dominados pautar-se-iam pelo cdigo da piedade filial. O melhor exemplo deste tipo de organizao seria, entre ns, o engenho real descrito por Antonil e estudado por Oliveira Viana em Populaes meridionais do Brasil (1920) e Instituies polticas brasileiras (1951). Raymundo Faoro, em sua obra clssica Os donos do poder (1958), estudou a forma em que se deu este tipo de patrimonialismo paternalista no Portugal do sculo XIV, quando o Mestre de Avis organizou o Estado, aps a revoluo de 1385, como alargamento de sua domus. A segunda consistiria na organizao do Estado como instncia domstica do governante, mas auxiliado no alargamento do seu poder sobre territrios, pessoas e coisas extrapatrimoniais por uma organizao pr-burocrtica, que lhe garantiria um mnimo de racionalidade administrativa e um mximo de fidelidade sua pessoa. Karl Wittfogel, no seu conhecido estudo intitulado O despotismo oriental (cuja primeira edio data dos anos 50), analisou a forma em que se consolidou esse estamento nas sociedades hidrulicas e formulou a lei que preside o seu funcionamento, identificando-a como Lei da racionalidade varivel, ou seja: o estamento pr-burocrtico patrimonialista possui um mnimo de racionalidade que permita ao soberano fazer aquelas reformas sem as quais o seu poder discricionrio correria perigo, mas somente na medida em que se mantenha o status quo, ou seja, no estimulando, de parte da sociedade, o surgimento de sentimentos de nobreza, ou de independncia de alguns setores face ao soberano. Exemplo dessa organizao pr-burocrtica seria, entre ns, a Guarda Nacional, conforme foi amplamente estudada por Fernando Uricoechea em sua obra O minotauro imperial (1978). Karl Wittfogel estudou a maneira como 6

funcionou o patrimonialismo estamental no Antigo Egito e no imprio czarista. A questo das Foras Armadas insere-se, no caso brasileiro, nesse contexto. Elas foram, j no final do Imprio, aps a ecloso da chamada Questo Militar, as porta-vozes de propostas cientificistas, de carter modernizador, que no eram novas na nossa cultura, posto que o momento pombalino tinha j dado ensejo a um modelo de neopatrimonialismo, como ficou claro aps as anlises de Simon Schwartzman (em So Paulo e o estado nacional, 1975, e Bases do autoritarismo brasileiro, 1984) e de Antnio Paim (em A querela do estatismo, 1978). A doutrina que melhor exprimiu o lan modernizador das Foras Armadas no Brasil foi, primeiramente, o positivismo comtiano na verso de Benjamin Constant Botelho de Magalhes e ulteriormente, o castilhismo (que constitua uma modalidade de positivismo heterodoxo), o nacionalismo tenentista, o socialismo autoritrio e o autoritarismo instrumental de inspirao udenista. Na atual transio do Estado patrimonial para uma forma no patrimonial de Estado, inspirada no iderio liberal, tornou-se insuficiente a justificativa doutrinria que inspirou as nossas Foras Armadas nas suas intervenes polticas. A nica alternativa para elas, num Estado liberal de direito, correspondente moderna democracia, o caminho da profissionalizao, na forma em que tem sido estudado esse fenmeno pelos professores Samuel Huntington e Robert Dahl, e dando prosseguimento reforma proposta pelo marechal Castello Branco, que encontrou acolhida em amplos setores das Foras Armadas, tanto no plano institucional (as reformas efetivadas pelo governo Geisel do prova disso), quanto do ngulo terico (a obra do brigadeiro Murillo Santos, atrs mencionada, testemunha esse fato). O estudo, ora apresentado, de Arsnio Eduardo Corra, contribui, de forma criativa, a esse esforo institucional e terico. Ricardo Vlez Rodrigues

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INTRODUONa Histria do Brasil, como de Portugal, os militares sempre tiveram uma grande ingerncia na poltica, na condio de parcela proeminente de uma elite burocrtica de que se pode dizer, sem riscos de exagero, que dispunha de maior poder que a nobreza. No pretendo aqui avaliar de modo ligeiro e superficial as hipteses dos estudiosos dessa singularidade do Estado portugus, que Alexandre Herculano e seus contemporneos aproximam do conceito weberiano de Estado patrimonial. Nossa pretenso muito mais modesta e consiste apenas em fixar a distino de comportamento que aparece com a Repblica os militares assumem diretamente o poder e tratam de mant-lo e lembrar a explicao de conhecido estudioso, hoje virtualmente esquecida. Na introduo que elaborou para o seu livro Doutrina contra doutrina (1894), a que deu o expressivo ttulo de Os novos partidos polticos no Brasil e o grupo positivista entre eles, Slvio Romero observa que: (...) desde o tempo do imprio eles (os militares) se dividiam pelos diversos credos polticos existentes. Conservadores, liberais e republicanos de todos os matizes, contavam com membros das Foras Armadas em seu seio. 1 Lembra que os conservadores tinham o seu Caxias, os liberais, o seu Herval ... 2 Com a Repblica, prossegue, altera-se radicalmente o comportamento dessa elite. Escreve: (...) durante a nossa vida de Nao independente, por setenta dilatados anos, a fora militar tinha aparecido por vezes na arena poltica, a propsito, como guiada por um esprito superior; praticava o seu feito, ajudava o mundo civil e retirava-se tambm a propsito, como que guiada ainda pelo mesmo esprito superior. 3

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Doutrina contra doutrina o evolucionismo e o positivismo no Brasil, Rio de Janeiro, 1894; 2. edio ampliada, 1895; Obra filosfica, Rio de Janeiro, Jos Olmpio, pp. 247-496. 2 Idem. 3 Idem.

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Ao que acrescenta: H alguns anos, porm, em dias da Repblica, ela tomou o direito de cidade na poltica e parece no querer mais largar o posto. 4 Lembra que em tempo de Deodoro, o Congresso contou por dezenas o elemento militar. Em tempo de Floriano, a direo governativa de muitos Estados (excetuando nove ou dez), caiu nas mos da poderosa classe. Explicitando o carter de sua anlise, diz Slvio Romero: No propriamente uma censura que fazemos: um fenmeno histrico que constatamos e cuja explicao repousa em parte no estado de cultura em que se acha o Brasil, em parte na propaganda ditatorial dos positivistas. 5 Para o conhecido estudioso da realizada brasileira de seu tempo, a mudana de comportamento da elite militar explica-se pela popularizao das doutrinas positivistas em seu seio, que por si s no levariam quele resultado no lhes fossem favorveis s condies sociais do Pas. Conclui: Sendo a classe mais organizada na Nao, tendo atirado fora o trono, meteram-se os seus chefes na direo do pas, tomando conta dos lugares que acharam vagos. A propaganda positivista de um governo ditatorial, feita diretamente nas publicaes e nas prdicas do Apostolado, veio fortalecer essa tendncia por achar preparado o terreno nas escolas militares pela ao doutrinria de Benjamin Constant. 6 Com efeito, apesar de o comtismo ser contrrio s Foras Armadas permanentes e o Apostolado considerar a doutrina francamente contrria a toda espcie de militarismo, Benjamin Constant acreditava que o Exrcito brasileiro, por seus feitos, tradio e ndole, devia exercer papel de liderana na transio para o Estado positivo.

4 Idem. 5 Idem. 6 Idem.

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Na ordem do dia elaborada para registrar o seu afastamento da Pasta da Guerra, em junho de 1890, Benjamin Constant depois de agradecer as seus colaboradores e de resumir a trajetria do Exrcito nacional, conclui do seguinte modo: Um exrcito enfim que, correspondendo s legtimas aspiraes nacionais, instalou e firmou para sempre em slidas e largas bases, a repblica no seio da ptria por meio de uma revoluo eminentemente pacfica e humanitria (...) soube elevar-se nobremente sublime misso social e poltica reservada aos exrcitos modernos, que de acordo com os sos preceitos da cincia real, que deve inspirar e guiar a sua conduta, mais pacfica do que guerreira, mais humanitria do que nacional. 7 A misso embasada no positivismo que caberia ao Exrcito est definida. Benjamin Constant diz em seguida: que eles obedecem consciente ou inconscientemente na sua ndole, organizao e nos seus destinos a leis imperturbveis reguladoras da evoluo geral do progresso humano que tende inevitvel e progressivamente, para o feliz regime final industrial e pacfico, resultante do fraternal congraamento dos povos. 8 Benjamin Constant acreditava que a evoluo humana se dava cientificamente, no rejeitando o ideal pombalino e abraando o comtismo; continua sua pregao: Para ele, caminham mais rapidamente que todos os outros como foroso e grato reconhec-lo, os povos americanos, de um modo ainda mais acentuado o povo brasileiro, sempre predisposto a sacrificar dignamente o seu egosmo nacional ao largo e fecundo amor universal. 9 Comte acreditava que os proletrios e as mulheres estavam em melhores condies para receber os ensinamentos da cincia real, por no estarem envolvidos com o chamado status quo, assim Benjamin Constant acreditava que os povos americanos estavam predispostos a receberem a s cincia real. Benjamin Constant conclui: A orientao dominante nos povos e nos exrcitos americanos do-nos lisonjeira esperana de que aquele sublime ideal do verdadeiro progresso humano, se transformar em futuro no muito remoto, em grata e feliz realidade. Para ele concorrer poderosamente o exrcito brasileiro a que me orgulho de pertencer. 107 R.T.Mendes Benjamin Constant, Rio de Janeiro, Apostolado Positivista, 1894; 2 vol. Peas Justificativas, pp. 281-282. 8 Idem. 9 Idem. 10 Idem.

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Como se v, o enunciado de Benjamin Constant claro. Corresponde, de fato a uma plataforma de carter poltico, com a vantagem de ter por fundamento o que se supunha correspondesse ltima palavra da cincia. O cientificismo, como apontaram vrios estudiosos, tambm uma das mais arraigadas tradies de nossa cultura. Os militares entregaram o poder aos civis, em 1894, tendo fracassado a nova tentativa de ali consolidar-se empreendida pelo governo Hermes da Fonseca (1910-1914), de sorte que a tese de Slvio Romero acabou sendo esquecida. O curioso que no tenha sido ressuscitada nas anlises recentes acerca do encaminhamento que foi dado pela elite militar ao movimento de 1964, que era em sua origem de carter insofismavelmente liberal. Quero aqui, portanto, voltar hiptese de Slvio Romero, dando-lhe maior amplitude para levar em conta o curso histrico subseqente. Atravs de Benjamin Constant, o positivismo facultou, a uma parte da elite militar, justificativa par atribuir-se misso que escapava inteiramente sua destinao constitucional e prpria natureza dos exrcitos, constitudos para fazer a guerra. Essa parcela da elite militar, tudo leva a crer, h de ter compreendido, sobretudo depois da experincia do governo Hermes, a impossibilidade de levar a bom termo aquele propsito, refluindo para entregar a hegemonia ao grupo que apostava na profissionalizao. Mas a prpria profissionalizao exigia recursos de que o pas no dispunha, recaindo-se de novo na hiptese de que o Exrcito tinha mesmo era que promover o progresso. Nessa altura h de ter surgido no esprito dessa elite a evidncia de que, sozinhas, no se manteria no poder. Sozinha derrubara a Monarquia mas no lograra deter o poder em suas mos. Acabara tendo que entreg-lo ao elemento civil na pessoa de Prudente de Morais. Na verdade, como registra a histria, no o entregou no sentido prprio do termo, to contrafeita estava, j que Prudente a ningum encontrou no Itamarati, para cumprir essa formalidade. O correto dizer-se que o abandonou. Alguns anos mais tarde, sob Hermes da Fonseca, tentaram novamente os militares ocupar os governos estaduais legitimamente constitudos. Mas no seria ainda desta vez. Parece bvia a verificao de que, para alcanas os seus objetivos, teriam que realizar alianas polticas. Como as firmaram subsequentemente, em algum momento h de ter sido feita a inferncia que aqui sugerimos.

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Os militares consumaram uma aliana bastante slida com os castilhistas de Getlio Vargas e, finda aquela ditadura, acabaram fixando fortes vnculos com segmentos da UDN, graas ao que chegaram mais uma vez ao poder em 64 e o mantiveram por longos 20 anos, com as funestas conseqncias que temos presente. Com razo ou sem razo chamou-se de Estado Novo da UDN o movimento de 64. provvel que o tenentismo tenha servido de elo para fixao de uma aliana poltica com o castilhismo, que permitiu apaziguar os dois grupos em torno do Estado Novo. Oliveiros S. Ferreira reeditou uma carta do general Gis Monteiro, em que reconhece o grande apreo em que teve o castilhismo abandonando-o apenas quando se deu conta de que as dimenses do Brasil tornava-o liliputiano. O documento em apreo tambm uma reafirmao da atualidade da plataforma Benjamin Constant, ainda nos comeos do ltimo ps-guerra, evidenciando que a elite militar no arquivara o seu projeto de assumir o poder e promover diretamente a modernizao do pas. Razo pela qual tratou de estabelecer novas alianas que levaram a 64. De sorte que dificilmente ser superado, em definitivo, o ciclo republicano das intervenes militares sem desvendar-lhe o substrato terico ltimo. Formulada essa hiptese geral, permito-me fundament-la abordando os aspectos que considero mais destacados: 1 A adeso dos militares brasileiros a uma doutrina francamente antimilitarista poderia ser explicada pelo carter da prpria obra de Comte, que evoluiu de forma no muito coerente como procuraremos demonstrar, facultando com cada uma das suas reviravoltas a formao de vertentes a bem dizer autnomas, como o positivismo de Littr, o chamado positivismo ilustrado brasileiro, o catolicismo positivista do nosso Apostolado etc. Essa afirmativa de que o pensamento comtiano era multifacetado ns a fundamentaremos no Captulo I. 2 Como se evidenciar da anlise subseqente, os militares no aproveitaram a sua ascendncia no novo regime para implantar instituies que a tornassem, simultaneamente, estvel e democrtica. Para comprov-lo, dividiremos esta ltima parcela de nossa exposio em dois segmentos, dedicado o primeiro reconstituio do processo histrico em suas trs fases, a saber: 1.) Em que os militares tentam sustentar-se sozinhos no poder; 2.) Perodo de constituio e mantena da aliana com os castilhistas e 3.) Como se estruturou e o ambiente que conduziu aliana com os liberais.

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Em continuao, examinaremos como evoluiu a fundamentao terica dessa ingerncia militar na poltica e indicaremos em que precisaria apoiar-se, do ponto de vista doutrinrio, o anseio de profissionalizao que igualmente permeia as nossas Foras Armadas ao longo da Repblica.

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Captulo I

O Processo de Constituio Da Doutrina de Comte1 O Curso de filosofia positiva como sistematizao da cincia modernaO Curso de filosofia positiva, cuja publicao integral exigiu 12 anos, tendo aparecido o primeiro volume em 1830 e o sexto e ltimo em 1842, representa uma notvel sistematizao dos progressos realizados pela cincia moderna ao longo do sculo XVIII e nas primeiras dcadas do sculo XIX. unnime o reconhecimento de que Augusto Comte era um grande expositor. O Curso louva-se da hiptese de que a cincia veio para substituir, em definitivo, o precedente saber sistematizado, compreendendo essa substituio o abandono da filosofia. So em nmero de seis as cincias integrantes do saber positivo: matemtica, astronomia, fsica, qumica, fisiologia e fsica social, sendo esta ltima criao do prprio Comte. No plano original, cada disciplina deveria merecer 10 lies. Na edio definitiva esse af simtrico, do qual seu autor nunca conseguiu livrar-se de todo, acabou sendo violado para revestir-se dessa forma final: Cincia Matemtica Astronomia Fsica Qumica Fisiologia Fsica Social Total N de lies 16 9 9 6 12 15 67

............................... ............................... ............................... ............................... ............................... ............................... ...............................

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A esse total so acrescentadas cinco lies, sendo duas iniciais dedicadas s preliminares gerais, e trs no final. As seis cincias so agrupadas do seguinte modo: Matemtica; Cincias dos Corpos Brutos; (Astronomia, Fsica e Qumica); Fisiologia e Cincias dos Corpos Organizados; (Fisiologia e Fsica Social). Tomada de forma autnoma, a Fisiologia no propriamente uma cincia separada, mas uma exigncia do mtodo expositivo. Em sua primeira abordagem trata: 1 da estrutura e da composio dos corpos vivos; 2 da classificao dos corpos vivos; 3 da fisiologia vegetal; 4 da fisiologia animal. A observao dos fenmenos fsicos e sociais no envolve, em si mesma, nenhuma questo digna de ateno. Escreve na Primeira Lio do Curso: Assim, para citar o exemplo mais admirvel, dizemos que os fenmenos gerais do universo so explicados, enquanto o possam ser, pela lei da gravitao newtoniana, porque, de um lado, esta bela teoria nos mostra toda a imensa variedade dos fatos astronmicos como um nico e mesmo fato encarado sob diversos pontos de vista (...). A lei de gravitao newtoniana para Comte o bastante para no mais procurar explicaes, a em continuao ele justifica: enquanto de outro lado, este fato geral nos apresentado como simples extenso de um fenmeno que nos eminentemente familiar e que, s por isso, encaramos como perfeitamente conhecido, o peso dos corpos na superfcie da terra. Concluindo, ele explica como encara as causas: Quanto a determinar o que so em si mesmos essa atrao e esse peso, quais so suas causas, trata-se de questes que encaramos como insolveis, que no so mais do domnio da filosofia positiva e que abandonamos com razo imaginao dos telogos ou s sutilezas dos metafsicos. 11 Certamente que inteiramente correto o registro de que a cincia moderna desinteressou-se de problemas ontolgicos. A filosofia das cincias, que sobreviveu a Comte, em que pese a sua interdio, afirma-o explicitamente como se pode ver do seguinte esclarecimento de um contemporneo, L.W.H. Hull: A lei da inrcia, base da nova fsica, foi parcialmente estabelecida por Galileu, mas justo continuar chamando-a primeira lei newtoniana do movimento. A lei afirma que todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento uniforme retilneo, a menos que atue sobre ele alguma forma. Portanto, h que ter uma fora atuando para haver movimento.11 Augusto Comte, Curso de filosofia positiva, ed. Francesa, Paris, Editora Schleicher Frres, reed. 1908.

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Em seqncia afirma: A frmula: se no h fora atuando no h movimento, substituda pela frmula: se no h fora atuando no h mudana de movimento. A palavra acrescida constitui uma novidade radical. Aristteles, com efeito, definia a fora como a causa do movimento; Newton define-a como a causa das mudanas de movimento.12

Contudo, constitui uma inferncia indevida, tomar essa tese por base para negar o carter efetivo da denominada temtica gnoseolgica, isto , o problema implicado na observao cientfica. Por desconhec-lo, Comte no se deu conta da mudana de plano ao passar das cincias naturais ao que denominou de fsica social, como teremos oportunidade de indicar. Vejamos, contudo, ainda que brevemente, o enunciado bsico acerca das cincias, contido no Curso. Para Comte, a matemtica a cincia mesma. Afirma explicitamente a esse propsito: , pois, pelo estudo das matemticas, e somente por ele, que se pode fazer uma idia justa e profunda do que seja uma cincia. As demonstraes matemticas so precisas e atendem ao pressuposto da cincia. Na seqncia, diz: nela unicamente que se deve buscar conhecer com preciso o mtodo geral que o esprito humano emprega constantemente em todas as pesquisas positivas, porque em nenhuma outra parte as questes so resolvidas de maneira to completa, e as dedues prolongadas to longe quanto, ao mesmo tempo, com rigorosa severidade. O raciocnio cartesiano de Comte esta plenamente demonstrado. No h dvida quanto preciso matemtica, mas buscar entender o esprito humano atravs dela tentar estabelecer uma moral racional. Continuando, diz: nela, igualmente, que nosso entendimento deu as maiores provas de sua fora, porque as idias que considerava, so do mais alto grau de abstrao possvel na ordem positiva. Toda educao cientfica que no comece por um tal estudo peca necessariamente pela base. 1312 L. W. H. Hull, Histria e filosofia da cincia (trad. Espanhola), Barcelona, Ed. Ariel, 1961, pp.190. 13 Na dcada de 90 do sculo passado, a Sociedade Positivista preparou uma edio do Curso de Filosofia positiva em quatro volumes em 1907, a mesma edio apareceu sob a responsabilidade da Editora Schleicher Frres, que se toma por base para as presentes citaes. Subsequentemente, indicaremos apenas a Lio, o tomo (Livro) e a pgina da edio mencionada.

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Entende que as definies clssicas da matemtica, que a tm como a cincia das grandezas ou a cincia que tem por objetivo medir as grandezas, so pouco precisas e carentes de rigor. Prope esta reconceituao: a cincia matemtica tem por objetivo a medida indireta das grandezas, propondo-se constantemente determinar as grandezas umas pelas outras, segundo relaes precisas que existem entre elas. Este enunciado, em vez de dar somente a idia de uma arte, como fazem at aqui todas as definies correntes, caracteriza imediatamente uma verdadeira cincia, e mostra-a de pronto composta de imensa cadeia de operaes intelectuais, que podero evidentemente tornar-se mais complexas em razo da seqncia de intermedirios que dever estabelecer entre as quantidades desconhecidas e aquelas que comportam uma medida direta, do nmero das variveis coexistentes na questo proposta, e da natureza das relaes que percorrero entre todas estas diversas grandezas os fenmenos considerados. Certamente que a medida estabelece um patamar privilegiado de objetividade, dotando de universalidade as explicaes cientficas. Contudo, nem todos os fenmenos prestam-se circunstncia. Assim, mesmo chamando de fsica social ao conhecimento que imaginava ter adquirido da sociedade, Comte no conseguiu reduzi-lo a enunciados matemticos. Nem por isto renunciou crena de que se tratava de uma verdadeira cincia, crena que foi recusada pelos meios cientficos tanto de seu tempo como posteriores, com as conseqncias que se verificar no que se refere evoluo de seu pensamento. A segunda cincia a astronomia. Comte, com razo, atribui-lhe o papel de haver demonstrado a viso do universo construda a partir do geocentrismo. com entusiasmo que registra o evento: Nenhuma revoluo intelectual faz tanta honra retitude natural do esprito humano e mostra to bem a ao preponderante das demonstraes positivas sobre nossas opinies definitivas, pois nenhuma teve que superar conjunto to formidvel de obstculos. Comte reconhece a contribuio das descobertas da astronomia e seus reflexos sobre o saber humano. Em seguida, diz: Pequeno nmero de filsofos isolados, sem outra superioridade social alm daquela derivada do gnio positivo e da cincia real, foi suficiente para destruir, em menos de dois sculos, uma doutrina to antiga quanto nossa inteligncia, diretamente estabelecida sobre as aparncias mais fortes e mais vulgares, intimamente ligada ao sistema inteiro das opinies dirigentes.

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Comte atribui as descobertas evoluo do pensamento positivo ou pensadores que adotaram as suas premissas. Continua: (...) e, por conseguinte, aos interesses gerais dos maiores poderes existentes, e qual, enfim, o orgulho humano prestava mesmo um apoio instintivo, no mais recndito de cada conscincia individual. Comte entende que as descobertas contrariavam o poder estabelecido, e diz: Deste modo, a vaidade humana teve que ser, sem dvida, profundamente humilhada, quando a conscincia do movimento da terra veio dissipar as iluses pueris que haviam sido construdas sobre sua importncia preponderante no universo. Na seqncia, ele pergunta se a evoluo do saber no dignificaria mais o homem, ou, em suas palavras: Mas, ao mesmo tempo, o simples fato desta descoberta no tendia necessariamente a dar-lhe um sentimento mais elevado de sua verdadeira dignidade intelectual, fazendo-o apreciar toda a importncia de seus meios reais, convenientemente empregados, pela imensa dificuldade que nossa posio, no mundo de que fazamos parte, opunha aquisio exata e certa de semelhante verdade? 14 Comte divide a astronomia em geomtrica (onde trata dos fenmenos geomtricos elementares dos corpos celestes, da teoria do movimento da Terra e das leis de Kepler) e mecnica, onde estuda detidamente a gravitao universal. Segue-se como terceira cincia a fsica15 , em relao qual Comte procurou fixar limites rgidos ao seu desenvolvimento futuro, o que levaria seus seguidores a chocar-se frontalmente com o curso real do progresso da cincia. Tratando desse aspecto, a propsito da crtica que Otto de Alencar (1874/1912) desenvolveu ao pensamento de Comte, Amoroso Costa (1885/1928) teria oportunidade de assinalar: Para o filsofo (emprego as suas prprias expresses), a cincia fundamental est radicalmente esgotada com a construo da Mecnica Celeste, termo de sua evoluo normal. Comte entendeu que a cincia estava esgotada.

14 23. Lio, Livro 1, pp. 87-8. 15 Conceituada deste modo na 28. Lio: A fsica consiste em estudas as leis que regem as propriedades gerais dos corpos, ordinariamente considerados como massa, e constantemente colocados em circunstncias susceptveis de manter intacta a composio de suas molculas, e mesmo, mais frequentemente, seu estado de agregao.

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Continuando, Amoroso Costa diz: Nada justifica a invaso do domnio matemtico pelas abstraes desprovidas de racionalidade e de dignidade, que nele faz prevalecer a anarquia acadmica; s resta agora elaborar uma sistematizao final subordinada ao conjunto dos conhecimentos humanos. 16 Nesse mesmo texto, Amoroso Costa enumera os desenvolvimentos da matemtica que superaram inteiramente a viso comtiana, para acrescentar: Note-se que no aludo aqui seno aos progressos da cincia que contriburam diretamente para quebrar os limites decretados pela Sntese. A Sntese proposta por Comte encerrava o desenvolvimento da cincia. Continua: Que diria Comte se pudesse imaginar o sucesso das geometrias no euclidianas e dos espaos a mais de trs dimenses; das funes estranhas cujas singularidades parecem desafiar a intuio; da Mecnica da relatividade; do monumento que j hoje a Fsica matemtica, no falando da Astronomia estelar e ... Finaliza com uma observao contundente: de todas as questes, enfim, que vedou ao mtodo matemtico, em nome de uma vaga sociologia. 17 Em relao quarta cincia, a qumica, tampouco Comte conseguiu prever os seus desdobramentos. Na poca de Comte, a biologia ainda no se achava constituda como cincia. Sob denominao de fisiologia considera, como indicamos, matria introdutria s cincias dos corpos vivos. Nas lies dedicadas a esta como cincia autnoma, estuda a fisiologia intelectual e ativa, que desdobra: 1.) no exame das teorias antigas e, 2.) na exposio da teoria positiva. Na verdade pretende agrupar segmentos diversos que posteriormente constituram-se como cincia independentes, a exemplo da evoluo das espcies.

16 Conferncia sobre Otto de Alencar (1918) in As idias fundamentais da matemtica e outros ensaios, 3. ed., So Paulo, Convvio, 1981, pp. 71-72. 17 Idem.

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No Curso recusa as idias de Lamarck 18, e no sabe efetivamente como lidar com os fenmenos psquicos, negando estatuto cientfico psicologia. Acerca dessa ltima questo, escreveria nessa obra: Se se considera as funes intelectuais sob o ponto de vista esttico, seu estudo somente pode consistir na determinao das condies orgnicas de que dependem: forma assim uma parte essencial da anatomia e da fisiologia. Sob o ngulo esttico, as funes intelectuais pertenceriam anatomia e fisiologia. No que respeita dinmica, diz: Considerando-as sob o ponto de vista dinmico, tudo se reduz a estudar a marcha efetiva do esprito humano, pelo exame dos procedimentos realmente empregados para obter os diversos conhecimentos exatos que j foram adquiridos, o que constitui essencialmente o objeto geral da filosofia positiva. Transfere do aspecto singular da pessoa humana para o coletivo, quando atribui marcha do esprito humano. Conclui: Numa palavra, encarando todas as teorias cientficas como grandes fatos lgicos, unicamente pela observao aprofundada desses fatos que se pode chegar ao conhecimento das leis lgicas. Entende que s existem duas perspectivas gerais: Tais so evidentemente as duas nicas vias gerais, complementares uma outra, pelas quais se pode chegar a algumas noes racionais verdadeiras sobre os fenmenos intelectuais. V-se, pois, que sob nenhuma considerao no h lugar para essa psicologia ilusria, ltima transformao da teologia, que se tenta inutilmente reanimar em nossos dias. Comte no percebeu a psicologia e entende que ela nada tem de cincia, sendo em ltima anlise um fenmeno da teologia. Conclui: e que, sem se inquietar nem do estudo fisiolgico de nossos rgos intelectuais, nem da observao dos procedimentos racionais que

18 A origem das espcies, de Darwin, de 1859, dois anos depois da morte de Comte, distancia-se muito menos da realidade do que costume supor: pois, sob o ponto de vista poltico, os verdadeiros sucessores desses ou daqueles povos so certamente aqueles que, utilizando e dando prosseguimento aos seus esforos primitivos, prolongaram seus progressos sociais, qualquer que seja o territrio em que habitem, e mesmo a raa de que provm; numa palavra, sobretudo a continuidade poltica que deve regular a sucesso sociolgica, ainda que a comunidade de ptria possa influir extremamente, nos casos ordinrios, sobre essa continuidade. Mas, sem empreender aqui semelhante exame, reservado naturalmente a um tratado especial, onde a idia da nao ou de povo seria diretamente submetida anlise positiva, basta ao nosso objetivo empregar

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habitualmente a hiptese proposta, a ttulo de simples artifcio cientfico, cuja utilidade no contestvel. Ed. Cit., Livro IV, pp. 191-2.

dirigem efetivamente nossas diversas investigaes cientficas, pretende chegar descoberta de leis fundamentais do esprito humano, contemplando-o em si mesmo, isto , fazendo completa abstrao das causas e dos efeitos. 19 O processo de constituio do pensamento cientfico coroa-se com a elaborao da sociologia. Esta se constitui a partir de um conjunto de hipteses que, na viso de Comte, estariam estabelecidas com todo rigor. Esquematicamente poderiam ser formuladas do seguinte modo: 1.) possvel conceber o processo de evoluo da humanidade como dizendo respeito a um povo nico, abstrao que permitiria compreender as leis fundamentais que regem aquela evoluo; 2.) Entendida como totalidade, a humanidade deve estar sujeita s leis da evoluo dos seres biolgicos em geral; e, 3.) A evoluo do esprito humano coincide com os ciclos porque passa a humanidade, o que possibilita caracteriz-los com inteira preciso. No que respeita idia de conceber a humanidade, com um ser nico, Comte teria oportunidade de afirmar o seguinte: Para fixar mais convenientemente as idias, importa estabelecer preliminarmente, por uma indispensvel abstrao cientfica, seguindo o feliz artifcio judiciosamente estabelecido por Condorcet, a hiptese necessria de um povo nico, ao qual seriam idealmente atribudas as modificaes sociais consecutivas efetivamente observadas entre populaes distintas. Esta fico racional. 20 O mtodo histrico permite empreender uma ampla sistematizao da evoluo da humanidade, mtodo que assim caracterizado na prpria 48. Lio: A comparao histrica dos diversos estados consecutivos da humanidade no constitui apenas o principal artifcio cientfico da nova filosofia poltica: seu desenvolvimento racional formar tambm o fundamento mesmo da cincia, no que poder oferecer de mais caracterstico, sob todos os aspectos. sobretudo deste modo que a cincia sociolgica deve, em primeiro lugar, distinguir-se profundamente da cincia fisiolgica propriamente dita. A sociologia fundada por Comte utilizar a composio entre os fatos histricos para medir sua evoluo e fundamentar esta cincia.

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19 1. Lio, Livro I, pp. 18-9. 20 Na 48. Lio do Curso.

Em seqncia diz: Com efeito, o princpio positivo desta indispensvel separao filosfica resulta desta influncia necessria das diversas geraes humanas sobre as geraes subseqentes, que, gradualmente acumulada de maneira contnua, termina finalmente por constituir a considerao preponderante do estudo direto do desenvolvimento social. Acreditando no desenvolvimento cientfico da sociedade, mas ressalvando que esta deve levar algum tempo para atingir o estado positivo, diz: Enquanto esta preponderncia no seja imediatamente reconhecida, este estudo positivo da humanidade deve racionalmente parecer um simples prolongamento espontneo da histria natural do homem. Concluindo, Comte afirma: Mas pela criao espontnea deste novo ramo essencial do mtodo comparativo fundamental, a sociologia ter tambm aperfeioado, por seu turno, segundo um modo que lhe estava exclusivamente reservado, o conjunto do mtodo positivo, em proveito comum de toda a filosofia natural, e de maneira que a alta importncia cientfica pode apenas ser entrevista, atualmente, mesmo pelos melhores espritos. 21 A adequada ordenao dos fatos histricos, identificando, pela observao, aquelas disposies que se expandem e evoluem, acarretando em contrapartida o declnio infinito da disposio oposta, asseguram escrever logo adiante, na mesma Lio: que os movimentos da sociedade, e mesmo os do esprito humano, podem ser realmente previstos. Cientificismo a toda prova, continua Comte: (...) numa certa medida, para cada poca determinada e sob cada aspecto essencial, mesmo em relao quilo que aparece primeira vista como o mais desordenado, a partir de um exato conhecimento prvio do sentido uniforme, das modificaes graduais indicadas por uma judiciosa anlise histrica, passando sempre, em conformidade com o esprito da cincia, dos fenmenos mais ao menos compostos. 22 O enunciado bsico da lei dos trs estados encontra-se na Primeira Lio e tem o seguinte teor: Estudando o desenvolvimento total da inteligncia humana em suas diversas esferas de atividade, desde sua primeira manifestao at os nossos dias, creio haver descoberto uma grande lei fundamental, qual est sujeito por uma necessidade invarivel, e que parece poder ser solidamente estabelecida, seja pelas provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organizao, seja

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21 Na 48. Lio, pp. 236-7 22 Idem.

pelas verificaes histricas resultantes de exame atento do passado. Os pressupostos da lei esto caracterizados. Continua: Esta lei consiste em que cada uma das nossas concepes passa sucessivamente por trs estados tericos diferentes: estado teolgico ou fictcio; estado metafsico ou abstrato;e estado cientfico ou positivo. Definida a lei, explica seu contedo na seqncia: Em outros termos, o esprito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente em cada uma de suas investigaes trs mtodos de filosofar, cujo carter essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: enfim, o mtodo positivo. Define como o esprito humano processa os conhecimentos e conclui: Da trs espcies de filosofia, ou de sistemas gerais de concepes sobre o conjunto dos fenmenos, que se excluem mutuamente; a primeira o ponto de partida necessrio da inteligncia humana; o terceiro seu estado fixo e definitivo; o segundo unicamente destinado a servir de transio. 22 O estado teolgico manifesta, espontaneamente, uma predileo caracterstica pelas questes mais insolveis e mais radicalmente inacessveis a toda investigao decisiva. Assim, passa sucessivamente do fetichismo (atribuio a todos os corpos exteriores uma vida essencialmente anloga nossa), ao politesmo e ao monotesmo. E com este comea o inevitvel declnio. O estado metafsico apresenta a singularidade de possuir muitos pontos de contato com o precedente teolgico ao mesmo tempo em que aponta na direo do estado positivo. Escreve Comte a esse propsito: Como a teologia, com efeito, a metafsica tenta sobretudo explicar a natureza ntima dos seres, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de produo de todos os fenmenos. Explica do que se ocupa a metafsica e, em seguida, compara-a teologia. Mas, em lugar de empregar os agentes sobrenaturais propriamente ditos, os substitui cada vez mais por entidades ou abstraes personificadas, cujo uso, verdadeiramente caracterstico, sempre permitiu design-la pelo nome de ontologia. Identifica na metafsica o que poderamos chamar de mtodo, e a critica: A eficcia histrica dessas entidades resulta diretamente de seu carter equvoco; pois, em cada um desses seres metafsicos, inerentes aos corpos correspondentes sem com eles se confundir, pode o esprito, vontade, segundo esteja mais prximo do estado teolgico que do positivo, ver uma verdadeira emanao da 23

potncia sobrenatural ou uma simples denominao abstrata do fenmeno considerado.23 1. Lio do Curso de filosofia positiva, Augusto Comte.

Conclui sobre o estgio da metafsica em relao ao estado positivo: No mais a pura imaginao que domina e no ainda a verdadeira observao; mas o raciocnio adquire aqui uma larga extenso e prepara-se confusamente para o exerccio verdadeiramente cientfico. 24 Agora a humanidade alcana a subordinao necessria e permanente da imaginao observao. A par disto, apresenta a tendncia constante e irreversvel a tornar necessariamente relativas todas as noes que, precedentemente, eram consideradas como necessrias e absolutas. Parece a Comte, finalmente que todas as lnguas ocidentais atribuem palavra positivo estes significados: realidade, utilidade, certeza e preciso. E ainda, um quinto sentido assim apresentado: Uma ltima acepo universal caracteriza sobretudo a tendncia orgnica do esprito positivo, de maneira a separar, apesar da aliana preliminar, do simples estado metafsico, que nunca pode ser crtico, assim se anuncia a destinao social do positivismo, para substituir o teologismo no governo espiritual da humanidade. Parece a Comte, nesse momento, que a ltima acepo universal enunciava o positivismo. E continua: Esse quinto significado do ttulo essencial da s filosofia conduz naturalmente ao carter sempre relativo do novo regime intelectual, pois que a razo moderna no pode cessar de ser crtica em relao ao passado seno renunciando a todo princpio absoluto. O relativismo intelectual um pressuposto da cincia e Comte o adota como pressuposto do positivismo. Mais a frente diz: Quando o pblico ocidental sentir esta ltima conexo, no menos real que as precedentes, embora mais escondida, positivo tornar-se- em toda parte inseparvel de relativo, como hoje de orgnico, de preciso, de certo, de til e de real. 25 Com o Curso de filosofia positiva, Augusto Comte coroa uma importante etapa de sua obra que, de certa forma, inaugura o que a posteridade chamou de Filosofia Cientfica ou Cientfico-positiva. Essa parcela seria dissociada da parte restante por um de seus principais discpulos: Emile Littr (1801/1881), e teve muitos desdobramentos, a saber: John Stuart Mill (1806/1873) proporcionou-lhe uma teoria do conhecimento; Herbert Spencer (1820/1903) separou os propsitos reformistas de Comte daquilo que deveria constituir a cincia da sociedade e Roberto Ardig (1828/1920) dotou-a de uma teoria moral. 24

24 Idem. 25 Idem.

2 A proposta de um positivismo pedaggicoO programa de estruturar as ento denominadas cincias morais imagem e semelhana das cincias da natureza, havia sido formulado por Condorcet (1743/1794) na obra Esquise dum tableau historique des progrs de lesprit humaine, publicada postumamente em 1795. Esse projeto foi acalentado por diversos outros pensadores, o mais notvel dos quais seria Saint Simon (1760/1825), de quem Comte chegou a ser secretrio em sua juventude. Assim, quando apareceu o ltimo volume do Curso de filosofia positiva, em 1842, Augusto Comte estava certo de que o mundo cientfico logo o reconheceria como o Newton das cincias sociais. Tal entretanto, no ocorreu. Na viso de Comte, o evento decorria do comprometimento do que se poderia chamar de comunidade cientfica para usar uma expresso contempornea com aquilo que ele caracterizou como estado metafsico. Essa constatao equivalia a uma outra; o estado positivo no seria plasmado historicamente de modo espontneo. Era preciso o que Marx designou como sendo o parteiro da Histria. Do mesmo modo que Marx, Comte tambm voltou-se para o proletariado. Certamente os dois no tinham entendimento idntico quanto camada social que efetivamente mereceria a denominao. Em Comte no certamente a classe operria, ou pelo menos no apenas esta. provvel que tivesse em mente o que no sculo XVIII chamou-se de terceiro estado. O projeto de Comte consiste em educar o proletariado no que denominaria de estado positivo. Este projeto pedaggico est formulado no Discurso sobre o esprito positivo (1844), onde apresenta a Biblioteca do Proletrio, com a indicao de obras que, desde Aristteles, contriburam para a instaurao do saber positivo, a serem lidas e estudadas. O Discurso sobre o esprito positivo foi publicado em Paris em 1844. A obra que inicialmente fazia parte do Tratado filosfico de astronomia popular, sendo seu prembulo, acabou tornando-se aquela obra ordenadora do pensamento comtiano. A traduo brasileira menciona, na nota do tradutor, o seguinte: O texto original de que me utilizei constitudo por um s captulo de 108 pginas, sem nenhuma 25

subdiviso que lhe torne mais fcil e mais amena a leitura. Mais adiante, continua: A Sociedade Positivista de Paris, ao publicar, em 1908 uma nova edio do Discurso, introduziu nele partes, subdivididas em captulos e sees. Alm disso, numerou as linhas ou pargrafos, seguindo uma srie nica de 1 a 79. 26 Portanto, as referncias neste trabalho so as da traduo anteriormente citada. O Discurso est dividido em quatro partes, a saber: 1 Superioridade Mental do Esprito Positivo, dividida em trs captulos, sendo que o primeiro trata da Lei dos Trs Estados: teolgico, metafsico e positivo; no segundo, ocupa-se do destino do Esprito Positivo, constituio da Harmonia Mental, Harmonia entre a Cincia e a Arte e, por fim, a Incompatibilidade da Cincia com a Teologia; no terceiro compara os atributos do Bom Senso e do Esprito Positivo; 2- Superioridade Social do Esprito Positivo, igualmente dividida em trs captulos, sendo que o primeiro trata da Aptido do Esprito Positivo para Resolver a Crise Social, fala da impotncia das escolas atuais; Conciliao Positiva da Ordem e do Progresso; no segundo trata da Sistematizao da Moral Humana, mostra a evoluo da Moral Positiva, necessidade de independncia da Moral em relao Teologia e Metafsica, e por fim da necessidade de um Poder Espiritual Positivo; no terceiro trata do Surto do Sentimento Social, mostra que a teologia e a metafsica estimulam o egosmo e que o positivismo altrusta e coletivo; 3 Condies do Advento da Escola Positiva, dividida em trs captulos, sendo que o primeiro trata da Instituio de um Ensino Popular, no segundo da Necessidade de uma Educao Universal e, por ltimo, do Destino Essencialmente Popular da Instruo Positiva. Concluso: Aplicao da Astronomia nesta parte. Comte revela que o ensino popular deve referir-se Astronomia at que o ensino sistemtico e completo se torne oportuno. E, por fim, diz: A utilidade desta cincia est ligada sua influncia histrica; pois foi a Astronomia, antes da Sociologia, o principal motor das grandes revolues intelectuais da Humanidade. 27 Destacamos da terceira parte do Discurso 28 , onde o autor trata das Condies do Advento da Escola Positiva, o captulo sobre a Instituio de um Ensino Popular Superior. O primeiro pargrafo trata das correlaes entre a propagao das noes positivas e as disposies do meio atual. Entendendo ser a Escola Positiva superior a todas as escolas filosficas existentes e, mais, que hoje a anarquia verificada deve-se a essas mesmas escolas filosficas, considerou que havia chegado a hora de mudar. A diferena entre a Escola Positiva e as demais que esta prope que haja um movimento mental, ou seja, racional dos fatos sociais.

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26 Discurso sobre o esprito positivo, traduo de Renato Rodrigues Pereira e Ivan Lins, Editora Globo/Editora Universidade de So Paulo, 1976, pp. XIV. 27 Idem. 28 Pp. 91 a 107 da obra citada.

Acreditando ter racionalizado a cincia social, ele entende que a adoo da Escola Positiva impe a ordem, pois o seu sucesso ser conhecido com o decorrer das mudanas. o prprio Comte que diz: Na poca atual, por falta de uma base racional suficiente e enquanto durar a anarquia intelectual, elas no podem ter uma existncia eficaz seno com um carter puramente provisrio ou transitrio. clara a crena de que possvel racionalizar a sociedade impondo-lhe ordem e, na seqncia, diz: Destinada a dissipar, enfim, esta desordem fundamental, pelas nicas vias que a possam dominar, esta nova escola carece, antes de tudo, da manuteno contnua da ordem material, tanto interna como externa, sem a qual nenhuma grave meditao social poderia ser convenientemente acolhida ou mesmo suficientemente elaborada. 29 Essa proposta de ordem trouxe para a escola a observao de que ela era conservadora, uma vez que reformaria a sociedade sem revoluo. Isso sem dvida consolidaria o poder nas mos dos atuais detentores, pois descoberto o caminho era s segui-lo. O advento da Escola Positiva ser obstaculizada pelos espritos teolgicos e metafsicos, que necessariamente tero que evoluir para ingressarem no esprito positivo. Essa evoluo, por representar o abandono de posies mentais j fundamentadas, representa um enorme obstculo. Os cientistas em geral na Frana, tinham sua formao parcial sobre o todo, isto , eram especialistas; isso representava um obstculo ao esprito positivo que propunha uma sntese, ou seja, uma totalidade at ento no experimentada pela maioria dos homens da cincia. Comte diz: Assim, a nova filosofia, que exige diretamente do esprito de conjunto, e que faz prevalecer para sempre a cincia nascente do desenvolvimento social sobre todos os estudos hoje constitudos, h de encontrar profunda antipatia, a um tempo ativa e passiva, nos preconceitos e nas paixes da nica classe que lhe poderia oferecer diretamente um ponto de apoio especulativo e do qual no deve esperar durante muito tempo, seno simples adeses individuais, alm de mais raras a do que em qualquer outra parte. Comte prev a no adeso da maioria dos intelectuais da sua poca proposta positivista.

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29 Idem.

Ele continua: Esta preponderncia emprica do esprito de mincia na maior parte dos cientistas atuais e sua cega antipatia por toda e qualquer generalizao, acham-se muito agravadas especialmente em Frana, por sua reunio habitual em academias onde os diversos preconceitos analticos se fortificam mutuamente, e onde, alm disto, mui frequentemente se desenvolvem interesses abusivos, a se organizando uma espcie de insurreio permanente contra o regime sinttico que deve prevalecer de agora em diante. Comte atribui s especializaes e reunies em academias a falta de esprito de conjunto no saber da sua poca. Finaliza ento: O instinto de progresso que caracterizava, h cerca de meio sculo, o gnio revolucionrio, havia confusamente sentido estes perigos essenciais, de modo a determinar a supresso direta dessas companhias atrasadas, que, convindo somente elaborao preliminar do esprito positivo, se tornavam cada vez mais hostis sua sistematizao final. 30 O segundo pargrafo trata da universalidade necessria deste ensino. Uma das formas de vencer as resistncias seria a divulgao sistemtica dos principais estudos cientficos junto massa ativa. A formao em Frana era por profisses, ou seja, especialidades, isso tornava o acesso ao conhecimento universal um entrave. A divulgao geral da Escola Positiva traria uma renovao no esprito cientfico da poca e prepararia a opinio pblica para a evoluo pretendida. Comte entendia que era necessrio apelar ao bom senso universal, pois os espritos da poca estavam calcados na especialidade e tinham uma viso apenas parcial e voltada para uma profisso. Todos deveriam tomar conhecimento do conjunto das noes reais que se tornariam a base sistemtica da sabedoria humana. Comte diz que: Assim, a universal propagao dos principais estudos positivos no somente destinada hoje a satisfazer uma necessidade j muito pronunciada no pblico, que sente, mais e mais, no serem as cincias reservadas exclusivamente aos sbios, existindo sobretudo para ele mesmo. Sentindo que suas propostas no alcanavam o pretendido, comea a estend-las para outros seguimentos, e continua: Por uma feliz reao espontnea, semelhante destino, quando for convenientemente desenvolvido, dever melhorar por completo o esprito atual, despojando-o de sua especialidade cega e dispersiva, para faz-lo adquirir, poupo a pouco, o verdadeiro carter filosfico indispensvel sua principal misso.

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30 Discurso sobre o esprito positivo, Augusto Comte.

Entende Comte que o tempo far com que os sbios, aps deixarem suas especialidades cegas, acolham suas idias e ajudem a melhorar o que ele chama de esprito atual, e diz: Este caminho mesmo o nico que possa, em nossos dias, constituir gradualmente, fora da classe especulativa propriamente dita, um vasto tribunal espontneo, to imparcial como irrecusvel, formado pela massa dos homens sensatos. A convocao para todos e a inteno conquistar um universo cada vez maior de adeptos s suas propostas, e diz: (...) tribunal diante do qual viro extinguir-se, de modo irrevogvel, muitas opinies cientficas falsas, que as vistas peculiares elaborao preliminar dos dois ltimos sculos, misturaram profundamente s doutrinas verdadeiramente positivas, que sero por elas submetidas ao bom senso universal. 31 O pargrafo terceiro trata do destino essencialmente popular deste ensino. O povo a parte da sociedade mais numerosa e ele nunca recebeu nada anlogo ao esprito positivo, quando muito os princpios teolgicos foram introduzidos. Portanto, essa parcela da sociedade a que apresenta melhores condies para absorver o esprito positivo e t-lo como principal instrumento de apoio, tanto mental como social. O destino popular do ensino assim apresentado por Comte: A fim de assinalar melhor esta tendncia necessria, uma ntima convico, a princpio intuitiva, depois sistemtica, me determinou, h muito, a representar sempre o ensino exposto neste trabalho como sendo dirigido principalmente classe mais numerosa. Comte percebe que, rejeitado pelos sbios, o destino de suas propostas o povo, e continua: (...) que nossa situao deixa desprovida de toda instruo regular, em conseqncia do desuso crescente da instruo puramente teolgica que, substituda provisoriamente, s para os letrados por uma certa instruo metafsica e literria, no pde receber, sobretudo na Frana, nenhum equivalente anlogo para a massa popular. Reconhece que no h uma educao popular na Frana e prope aquela que entende ser mais moderna, a sua, e diz: A importncia e a novidade de semelhante disposio constante, meu vivo desejo de que seja convenientemente apreciada, e mesmo, se ouso diz-lo, imitada, obriga-me a indicar aqui os principais motivos deste contato especial que a nova escola filosfica deve, assim, instruir hoje com os proletrios, sem que todavia o seu ensino exclua jamais qualquer outra classe. 32.

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31 Idem. 32 Idem.

O alheamento do povo ao sistema de educao geral, torna-o mais bem preparado para receber o esprito positivo. Uma considerao a ser feita a de que h uma ausncia de cultura especulativa no povo. Essa situao, segundo Comte, era uma vantagem aos espritos populares. Ele assim se expressa: Uma primeira considerao que importa aprofundar, embora sua natureza seja sobretudo negativa, resulta, a este respeito, de uma judiciosa apreciao do que, primeira vista, parece apresentar grave dificuldade, isto , a ausncia atual de toda cultura especulativa. A falta de uma cultura especulativa trar a vantagem de podermos inici-los corretamente, pensava Comte, e continua: Sem dvida lamentvel, por exemplo, que este ensino popular de filosofia astronmica ainda no encontre entre todos aos quais especialmente se destina, alguns conhecimentos matemticos preliminares, que haviam de torn-lo ao mesmo tempo mais eficaz e mais fcil e cuja existncia sou mesmo forado a supor. Fala sobre filosofia astronmica e reconhece que possvel melhor-la. Para isso prope: Mas a mesma lacuna se encontraria tambm na maior parte das outras classes atuais, nesta poca em que a instruo positiva se acha limitada, em Frana, a certas profisses especiais que se ligam essencialmente Escola Politcnica ou s escolas de medicina. Reconhece ainda que h falha no ensino das classes intelectualizadas, no havendo portanto, nenhum obstculo intransponvel para o ensino popular, e conclui: No , portanto, isso uma falha verdadeiramente peculiar aos nossos proletrios. Quanto a faltar habitualmente esta espcie de cultura regular que as classes letradas hoje recebem, no temo cair em exagero filosfico, afirmando resultar da, para os espritos populares, notvel vantagem, em vez de real inconveniente.33

O que se deduz dessa considerao que os letrados da poca estavam influenciados e teriam dificuldades de ingressarem na Escola Positiva. A educao atual no prepara para a vida real e gera uma perturbadora ao social que impede compreender a sociabilidade moderna. Comte, ainda no mesmo captulo diz: A inaptido para a vida real, o desdm pelas profisses vulgares, a incapacidade de convenientemente apreciar qualquer concepo positiva, e a antipatia que da logo resulta, frequentemente os dispe hoje a secundar estril agitao metafsica que inquietas pretenses pessoais, desenvolvidas por essa desastrosa educao. 30

33 Idem.

A anlise sobre a educao decorrente da rejeio havida sobre suas propostas, no que no pudesse ter razo, entretanto preciso assinalar o contexto da crtica, em seqncia ele diz: (...) no tardam a tornar politicamente perturbadora sob a influncia direta de viciosa erudio histrica, que, fazendo prevalecer uma falsa noo do tipo social peculiar antiguidade, comumente impede compreender a sociabilidade moderna. Especifica que a erudio viciosa impedia de compreender a modernidade e diz: Considerando que quase todos os que, a diversos respeitos, dirigem os negcios humanos, foram para tal fim assim preparados, no nos pode causar surpresa a vergonhosa ignorncia que amide manifestam sobre os assuntos mais insignificantes, mesmo materiais. A especializao, segundo Comte, impediria a compreenso por parte daqueles que estavam dirigindo os negcios, e conclui: (...) nem sua freqente disposio a desprezar o fundo pela forma, colocando acima de tudo a arte de bem dizer, por mais contraditria ou perniciosa que se torne a sua aplicao, nem tambm nos pode surpreender a tendncia especial das nossas classes letradas a acolher avidamente todas as aberraes que diariamente surjam de nossa anarquia mental. 34 O povo, outrora, foi dominado pela teologia especialmente catlica, tendo a metafsica apenas deslizado sobre ele. Portanto, s a filosofia positiva poder apoderar-se radicalmente. O povo, sem dvida, est muito mais prximo dessa disposio preparatria para a positividade racional. Segundo Comte, existe uma inclinao natural para a s filosofia das inteligncias populares, resultante do tipo de trabalho e destino social do povo, pois sua condio o aproxima dos filsofos intelectual e moralmente. Os proletrios, povo, so aqueles que tm contato mais direto com a natureza e por isso tem maior facilidade para compreender a cincia real. O prprio Comte afirma: Examinando sob um aspecto mais ntimo e mais duradouro, esta inclinao natural das inteligncias populares para a s filosofia, reconhece-se facilmente que ela deve resultar da solidariedade fundamental que, segundo nossas explicaes anteriores, liga diretamente o verdadeiro esprito filosfico ao bom senso universal, sua primeira fonte necessria. Atribui ao bom senso a proximidade entre o povo e a s filosofia, e continua: Este bom-senso, com efeito, to justamente preconizado por Descartes e por Bacon, deve achar-se hoje mais puro e mais enrgico entre as classes inferiores, em virtude mesmo desta feliz falta de cultura escolstica que as torna menos acessvel aos hbitos vagos ou sofsticos.

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34 Idem.

O bom senso estaria mais nas classes populares, uma vez que estas esto fora da educao escolstica, ou seja, por estarem fora do padro da poca estariam mais preparadas para receber um ensinamento novo, e conclui: (...) mas a esta diferena passageira, que ser gradualmente dissipada por melhor educao das classes letradas, preciso juntar uma outra necessariamente permanente, relativa influncia mental das diversas funes sociais peculiares s duas ordens de inteligncias, conforme o carter respectivo de seus trabalhos habituais. 35 A aproximao dos filsofos com o povo, mostrar harmonias mentais e afinidades morais de grande monta. A sistematizao das relaes gerais entre esses dois extremos da sociedade, que ser estabelecido pela cincia real, trar grande felicidade pessoal. Comte diz, textualmente: H de encontrar a, ao mesmo tempo, afinidades morais no menos preciosas do que estas harmonias mentais, em conseqncia do comum desinteresse material que espontaneamente aproxima nossos proletrios da verdadeira classe contemplativa, pelo menos quando esta houver adquirido enfim os costumes correspondentes ao seu destino social. As classes populares e os positivistas estariam prximos pelo desinteresse material, a constata-se uma pregao religiosa, continua: Esta feliz disposio, to favorvel ordem universal como verdadeira felicidade pessoal, h de granjear um dia grande importncia normal, em virtude da sistematizao das relaes gerais que devem existir entre estes dois elementos extremos da sociedade positiva. Acreditando na sistematizao das relaes dentro da sociedade, entende que encontrou o elo entre duas classes importantes, e diz: Mas desde j ela pode facilitar essencialmente sua unio nascente, aproveitando a pouca folga que as ocupaes dirias deixam aos nossos proletrios para sua instruo especulativa. Prega uma aproximao imediata pela instruo especulativa e continua: Se, em alguns casos excepcionais de extrema sobrecarga, esse contnuo obstculo parece, com efeito, dever impedir todo desenvolvimento mental, ele ordinariamente compensado por este carter de judiciosa imprevidncia que, em cada interrupo natural dos trabalhos obrigatrios, concede ao esprito uma plena disponibilidade. Trabalhar no desestimula a classe popular, ao contrrio, os trabalhos obrigatrios antes disponibilizam o esprito. Analisa na seqncia o porqu disso: O verdadeiro lazer no deve faltar habitualmente seno classe que acredita possu-lo especialmente, porque, em razo mesmo de sua riqueza e de sua oposio, ela se acha comumente preocupada por ativas inquietaes, que jamais comportavam verdadeira calma intelectual e moral. 32

35 Idem.

Ora, a classe popular trabalha mas no precisa afligir seus pensamento, e a diz: Este estado deve ser fcil, ao revs, quer aos pensadores, quer aos operrios, em virtude de sua comum iseno espontnea dos cuidados relativos ao emprego dos capitais, sem falar na regularidade natural da sua vida diria. 36 O ensinamento positivo, quando tiver atuado, sobre os proletrios, povo, gerar condio indispensvel ao termo gradual da renovao filosfica. entre eles que esse estudo poder tornar-se mais puramente especulativo pela ausncia de preconceitos, mais comum entre os letrados. Comte assim se expressa: , pois, entre os proletrios, logo que estas tendncias mentais e morais tiverem convenientemente atuado, que se h de realizar, com mais eficcia, a universal propagao do ensino positivo, condio indispensvel ao termo gradual da renovao filosfica. Os proletrios, aps receberem os ensinamentos positivos, faro a renovao social, e conclui: tambm entre eles que o carter contnuo de semelhante estudo poder tornar-se mais puramente especulativo, porque se achar a mais isento das vistas interessadas que lhe aplicam, mais ou menos diretamente, as classes superiores, quase sempre preocupadas com clculos vidos ou ambiciosos. 37 A cincia real incutir-lhe- um sentimento de felicidade por poderem compreender sua importncia dentro do conjunto humano. Portanto, a sistematizao do conhecimento positivo no gerar ao perturbadora como ocorre com o desastroso ensino atual. A filosofia positiva a nica capaz de possibilitar uma poltica popular. Comte assim se expressa: Apesar da alta importncia dos diversos motivos precedentes, consideraes ainda mais poderosas, oriundas das necessidades coletivas peculiares condio social dos proletrios, ho de determinar as inteligncias populares, movidas pelo seu ardor contnuo relativo universal propagao dos estudos reais, a secundar hoje a ao filosfica da escola positiva. A classe popular que implantar uma poltica popular, e conclui: Semelhantes consideraes podem assim ser resumidas: no pde at aqui existir uma poltica especialmente popular e s a nova filosofia pode constitu-la. 38 O estabelecimento dessa poltica gerar equilbrio social. bom lembrar que o pressuposto da Escola que haja tranqilidade social para ocorrer a evoluo.

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36 Idem. 37 Idem. 38 Idem.

No Discurso, Comte apresenta a Biblioteca do Proletrio. O criador do positivismo entendia que essa classe estava mais apta para receber os ensinamentos reais, uma vez que no estava contaminada pela escolstica. Aps no ter obtido a consagrao, que por certo esperava, dos intelectuais do seu tempo, voltou-se para o proletrio. O sistema universal de leituras, recomendado por Comte, era composto de 150 obras. O primeiro bloco compreende a literatura clssica grega, abrangendo desde os textos de Homero, Ilada & Odissia; ao teatro de squilo; Sfocles; Aristfanes; Pndaro e Tecrito. No que se refere literatura latina, comea com Plauto e Terncio, abrangendo tambm Virglio, Horcio, Ovdio, Lucano, Tbulo e Juvenal. Na maioria dos casos no se trata da obra completa dos autores citados. Comte menciona tambm as tradues de sua preferncia. No caso da Idade Mdia, inclui as fbulas recolhidas por Legrand dAussy, que devia ser um autor conceituado na poca. Alm destas, a obra de Dante. Para dar uma idia da cultura do perodo considerado, recorre tambm a autores posteriores como Lodovico Ariosto e Torquato Tasso, poetas italianos do sculo XVI; e, ainda, ao teatro de Vittorio Alfieri e Petro Metastasio, autores do sculo XVIII. luz as obras relacionadas e que aqui estamos comentando brevemente, infere-se que Comte no atribua maior relevncia ao Renascimento. Na ordem da exposio menciona a obra de Petrarca, Cervantes e a pea Os noivos de Manzone, que de alguma maneira deve t-lo impressionado. Shakespeare est referido depois dos textos adiante indicados. Segue-se um conjunto de autores espanhis e franceses, a saber: a) O Teatro Espanhol, na seleo de Jos Segundo Flores; b) O Romanceiro Espanhol, ambos editados em francs; c) Quanto aos autores franceses, compreende o teatro escolhido de Corneille, teatro completo de Moliere, peas escolhidas de Racine e Voltaire, as fbulas de Lafontaine; Lamott e Florian, conhecida obra de Lesage Gil Blas de Santillana e, ainda, A Princesa de Cleves de Lafayette, Paulo e Virginia, de Saint-Pierre.

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Na parte final deste bloco os autores so predominantemente modernos, com a ressalva antes mencionada de que abrange o teatro completo de Shakespeare.

A relao de Comte inclui: Os mrtires, de Chateaubriand39; O paraso perdido e as poesias lricas, de Milton; Robison Cruso, de Daniel Defoe, e O vigrio de Wakefild, de Oliver Goldsmith40 Tom Jones, de Fielding; as principais obras de Walter Scott, obras escolhidas de Byron e Goethe e, finalmente, As mil e uma noites. No segundo bloco, que est dedicado cincia, Comte adota o partido de indicar os expositores e no os prprios autores. Assim, por exemplo, a sua relao no inclui os Elementos, de Euclides; Os princpios matemticos da filosofia da natureza, de Isaac Newton. A exceo reside nos autores modernos como Lavoisier e Bichat e, dentre os antigos, apenas Hipcrates. Os Livros mencionados so os seguintes: A aritmtica, de Condorcet A lgebra e a geometria, de Clairant A trigonometria, de Lacroix (alternativamente de Legendre) A geometria analtica, de August Comte, precedida da Geometria, de Descartes A esttica, de Poinsot (seguida de todas as memrias sobre a mecnica) Curso de anlise, de Navier (precedido das reflexes sobre o Clculo infinitesimal, de Carnot) A teoria das funes, de Legrange A astronomia popular, de August Come (seguida de Os mundos, de Fontenelle)

39 O ltimo dos abencerrages, de Chateaubriand. O livro de 1826, isto , contemporneo de Comte, devendo t-lo impressionado de alguma maneira a ponto de inclu-lo em sua Biblioteca. De todos os modos, a exemplo de muitos outros ttulos por ele selecionados, no mereceu a aprovao da posteridade. Provavelmente Comte tinha em vista exaltar valores como a coragem, abnegao, perseverana, que a obra de Chateaubriand atribui aos abencerrages (tribo rabe mais importante do Reino de Granada, tendo se notabilizado por sua resistncia, no sculo XV, quando finalmente os mouros so expulsos da Espanha). A obra de Chateaubriand de pura fico e inspira-se na Histoire ds factionss ds Zoguis et ds Abencerrages, elaborada no sculo XVII, por Gines Peres de Hita.

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40 A obra considerada continuava muito popular ainda no fim do sculo XIX. Emile Zola (1840/1902), quando se refugiou na Inglaterra para fugir da condenao (por difamao) pela publicao de JAccuse (1898), escondendo-se no vilarejo de Addleston, no Sarrey, valeu-se de uma edio bilnge deste livro para aprender ingls. O autor Oliver Goldsmith viveu no sculo XVIII (1728/1774), sendo na poca um conhecido poeta e novelista ingls.

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A fsica mecnica, de Fischer (traduzida e anotada por Biot) Manual alfabtico de filosofia prtica, de John Care A qumica, de lavoisier Os elementos da qumica, de James Graham Manual de anatomia, de Meckel Anatomia geral, de Bichat (precedido do seu tratado sobre A vida e a morte) A organizao dos animais, de Blainville (1 volume) Fisiologia, de Richerand (anotada por Berard) Ensaio sistemtico sobre a biologia (de Segond, seguido de seu Tratado de anatomia geral) Novos elementos da cincia do homem, de Barthez (2. ed., 1806) A filosofia zoolgica, de Lamarck Histria natural, de Dumeril Tratado sobre a natureza da circulao sangunea, de Gugilelmini Discurso sobre a natureza dos animais, de Buffon A arte de prolongar a vida humana, de Hufeland, precedido do Tratado, de Hipcrates e do livro Sobre a sobriedade, de Cornaro A histria das inflamaes crnicas dos rgos internos, de Broussais, precedida dos livros Proposies mdicas e Aforismas, de Hipcrates Elogio dos sbios, de Fontenelle e Condorcet

O terceiro bloco, com 60 volumes, est dedicado histria. Refere os principais livros clssicos, de Histria Antiga, que so at hoje, considerados como parte da cultura geral, a exemplo da Histria, de Herdoto; Histria da guerra do Peloponeso, de Tucdides; Vidas paralelas de homens ilustres, de Plutarco; Comentrios sobre a guerra da Glia, de Jlio Csar; Alexandre, de Flvio Arriano; Anais e demais livros histricos, de Tcito. Ainda em relao Histria Antiga, Comte inclui os principais autores modernos, como: Histria da decadncia romana, de Gibbon; Manual da histria antiga, de Heeren, e Histria da arte entre os antigos, de Winckelmann. A Idade Mdia est considerada nestes ttulos: A Europa na Idade Mdia, de Hallam, e Histria eclesistica, de Fleury. Com relao poca moderna, Comte recomenda tanto o Manual de histria moderna, de Heeren, como estudos especficos a exemplo da Histria da Inglaterra, de Hume, a Histria de Carlos V, de Robertson; Resumo de histria da Espanha, de Ascargorta; As revolues 36

da Itlia, de Denina; Resumo da histria da Frana, de Bossuet; Histria das guerras civis na Frana, de Davila; O sculo XIV, de Voltaire; Histria da Revoluo Francesa, de Mignet; afora esses livros que versam inquestionavelmente matria historiogrfica, a biblioteca do proletrio est enriquecida por diversos textos que permitem um conhecimento indireto de certos perodos histricos, como Testamento Poltico, de Richelieu; A vida de Cromwel, de Lamartine; Memrias, de Madame de Motteville; Memrias, de Benvenuto Cellini e Memrias, de Comenius. A par disso, alguns livros que, embora certamente enriquecedores da cultura geral, dificilmente poderiam ser arrolados como tratando de histria, a saber: Resumo de geografia universal, de Malte-Brun; Dicionrio geogrfico, de Rienzi; Viagens, de Cook; Viagens, de Chardin; As viagens de Anachrasis, de Barthlemy; Tratado de pintura, de Leonardo da Vinci, e Memrias sobre a msica, de Gretry. Comte chamou de sntese ao ltimo bloco, que contou com 30 volumes. No seu entendimento, a filosofia seria uma sntese das cincias. Entretanto, no parece ser neste sentido que emprega o termo. O que tem em vista, na realidade, so textos marcantes de nossa histria cultural, misturando religio, moral e filosofia, neste ltimo caso sem concesses metafsica. sintomtico que de Aristteles s tenha includo a Poltica e tica, neste ltimo caso, sem especificar qual dos trs tratados. Ignorou completamente a obra de Plato. Esto considerados os grandes textos religiosos, a comear da Bblia e do Alcoro. Seguem-se: A cidade de Deus e Confisses, de Santo Agostinho; Tratado do amor de Deus, de So Bernardo; Imitao de Cristo, no original e na traduo em versos de Corneille; Catecismo, de Montepellier; precedido da Exposio da doutrina catlica, de Bossuet; seguido do Comentrio sobre o sermo de Jesus Cristo, de Santo Agostinho; Histria das variaes protestantes, de Bossuet. De certa forma, os textos filosficos esto misturados com obras polticas e de outra ndole. Com essa ressalva poder-se-ia agrupar: Pensamentos escolhidos, de Ccero; Epicteto; Marco Aurlio; Pascal e Vauvenargues41, seguidos de Conselho de uma me, de Madame de Lambert, e das Consideraes sobre os costumes, de Duclos. As obras filosficas propriamente ditas so: Discurso do mtodo, de Descartes; Novum organum, de Bacon; Ensaios filosficos, de Hume; Teoria do belo, de Barthez, e Relaes entre o fsico e o moral no homem, de Cabanuis.

41 Luc De Clapiers, marqus De Vauvenargues (1715/1747), considerado como autor que meditou sobre a f e o papel da orao, tendo recolhido o que entendia como sendo o

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essencial dos escritores que a esse assunto se dedicaram. Suas obras completas foram publicadas pela primeira vez em 1746, sendo sucessivamente reeditadas (1747, 1797 e 1806). Aparece depois na coleo dos Prosadores Franceses (1818), com reedio em 1821. Na poca de Comte, considerava-se um clssico dessa problemtica, desde que reuniu grande nmero de paradoxos e dilogos relacionados f e orao.

Contempla os seguintes textos de Diderot: Interpretao da natureza, Dissertao sobre os surdos e os cegos e Ensaios sobre o belo. Ouros textos so tipicamente cientficos ou de histria, como os seguintes: Ensaio sobre a histria da astronomia, de Adam Smith; Tratado sobre as funes do crebro e Cartas sobre os animais, de Georges Leroy; Tratado sobre a imitao e a loucura, de Broussais; Discurso sobre a histria universal, de Bossuet; Esboo histrico, de Condorcet. Este bloco inclui apenas duas obras polticas: Tratado do papa, de De Maistre, e Poltica sagrada, de Bossuet. Encerra-se com a prpria obra de Comte: Filosofia poltica (condensada pela senhorita Martineau) e Poltica positiva (abrangendo o Catecismo positivista e a Sntese subjetiva). A relao est datada de julho de 1854.

3 O apelo ao sentimentoA revoluo de fevereiro de 1848, que mais uma vez derrubou a Monarquia e instaurou a Repblica, deu a Comte uma enorme esperana de que, afinal, seria convidado para dirigir a Grande Reforma. O texto que melhor reflete esse estado de esprito o Discurso sobre o conjunto do positivismo, que aparece em julho daquele ano, isto , cinco meses depois da Revoluo. A doutrina positivista, proclama Comte, veio para regenerar a Europa Ocidental. Essa conquista ser resultado de uma aliana entre os filsofos, os proletrios e as mulheres. A insero das mulheres no projeto decorre da circunstncia de que se trata de uma transformao moral de natureza radical, que somente pode cumprir-se pelo sentimento. Vale dizer: o positivismo uma doutrina intelectual, formulada racionalmente. Mas essa doutrina no constitui apenas mais um ramo do saber cientfico. Destina-se a orientar os acontecimentos, isto , envolve a ao. E aqui entra a emoo. Semelhante postulao corresponde, na verdade, ao primeiro patamar do que Comte viria a denominar de Religio da Humanidade, que fornece uma nova orientao ao positivismo e, ao mesmo tempo, o coroa. Esse coroamento ser objeto do prximo tpico. Neste, vamos tratar de evidenciar como, ao lado da 38

vertente batizada de positivismo pedaggico, insinua-se uma nova dimenso. Vejamos pois, como se desdobra a proposta, ao nvel do mencionado Discurso sobre o conjunto do positivismo (julho, 1848). No prembulo geral, assim apresenta o positivismo e a misso que lhe est reservada: O positivismo compe-se essencialmente de uma filosofia e de uma poltica, que so necessariamente inseparveis, constituindo uma a base e outra o objetivo de um mesmo sistema universal, onde a inteligncia e a sociabilidade acham-se intimamente combinadas. De uma parte, com efeito, a cincia social no apenas a mais importante de todas; alm disto, fornece sobretudo o nico elo, ao mesmo tempo lgico e cientfico, que comporta doravante o conjunto de nossas contemplaes reais. Comte inicia mais uma etapa do seu pensamento incorporando ao saber uma mstica, e diz: Ora, esta cincia final, mais que cada uma das cincias preliminares, no pode desenvolver seu verdadeiro carter sem uma exata harmonia geral com a arte correspondente. Porm, graas a uma coincidncia que longe est de ser fortuita, sua fundao terica encontra ao mesmo tempo imensa destinao prtica, a fim de presidir em nossos dias a inteira regenerao da Europa Ocidental . Sua pregao agora mostra que ele pretende um lugar, custe o que custar, conclui: Pois, de uma parte, na medida que o curso natural dos acontecimentos caracteriza a grande crise moderna, a reorganizao poltica apresenta-se cada vez mais como necessariamente impossvel sem uma reconstruo prvia das opinies e dos costumes.42 Quer dizer, o curso at ento empreendido pelo positivismo, sendo essencial e imprescindvel, no entretanto suficiente. preciso mudar os costumes. Pode alcan-lo a simples educao tomando por modelo a Biblioteca do Proletrio, estudada precedentemente, ou se faz mister recorrer a outros expedientes? No desdobrar do seu raciocnio Comte revela, pela primeira vez, a necessidade de instituir-se um poder temporal e equiparvel ao existente na Idade Mdia. Mas no refere, ainda, a Religio da Humanidade. certamente um passo na sua direo mas, como se indicar, exigente de certa intermediao. Escreve Comte: O cumprimento gradual desta vasta elaborao filosfica far surgir espontaneamente em todo o Ocidente uma nova autoridade moral, cuja inevitvel ascenso instaurar a base direta da reorganizao final, ligando todas as populaes avanadas pela educao geral idntica, que fornecer em toda parte, tanto na vida pblica como na privada, princpios fixos de julgamento e conduta. O sentido religioso aparece com clareza, e continua: assim que o movimento intelectual e a comoo social, sempre mais solidrios, conduziro doravante a elite da humanidade ao advento decisivo de um verdadeiro poder espiritual, ao mesmo tempo mais consistente e mais 39

progressista do que aquele de que a Idade Mdia tentou, prematuramente, admirvel esboo.4342 Ser reproduzido no Primeiro Tomo do Sistema de poltica positiva, aparecido em 1851. Systeme de Politique Positive, Auguste Comte, Paris. M. Giard x E. Brire, 1912. 43 Idem.

Resumindo, apresenta esta frmula: tal pois a misso fundamental do positivismo, generalizar pela cincia real e sistematizar a arte social. Parece claro, portanto, que o coroamento do processo cientfico representado pela obra anterior de Augusto Comte j que no se trata apenas de mais uma cincia, mas de promover a regenerao da humanidade, comeando pela sua parcela mais avanada, a Europa Ocidental, requer algo mais que o simples processo educativo. Como se ver, no basta educar o proletariado. Comte reitera o seu convencimento quanto impossibilidade de alcanar o apoio das elites dirigentes. Afirma taxativamente: A indispensvel adeso, que o positivismo deve alcanar de seus pontos de apoio, no proviria, atualmente, salvo preciosas excees individuais, de nenhuma das classes dirigentes. Estas acham-se em maior ou menor medida dominadas pelo empirismo metafsico e pelo egosmo aristocrtico.44 Seu projeto rene-se em prolongar indefinidamente a situao revolucionria, mantendo acesa a disputa v entre os destroos do regime teolgico e militar, sem jamais conduzir a uma verdadeira renovao. possvel que Comte, nas condies francesas, identificasse Igreja Catlica e estado teolgico, que, como se sabe, corresponde ao primeiro estgio de evoluo da humanidade e quele adicionasse o adjetivo militar para singularizar uma situao resultante da Revoluo Francesa, quando esta classe assume papel destacado na vida o pas. O chefe da revoluo de 1848, embora no fosse militar de carreira, era sobrinho de Napoleo (Lus Napoleo Bonaparte, 1808/1873). Na altura em que Comte redige o Discurso, ora considerado, a revoluo ainda no havia definido seus rumos, isto , no se podia prever que a Frana iniciava um perodo que culminaria com a restaurao monrquica. Reitera tambm o papel do proletariado mas, a seu lado, coloca, pela primeira vez, as mulheres. Deste modo, escreve: A natureza intelectual do positivismo e sua destinao social, somente lhe permite um sucesso verdadeiramente decisivo num meio onde o bom senso, livre de uma cultura viciosa, deixa de forma mais adequada prevalecer as vises de conjunto, e onde os sentimentos gerais so mais 40

expansivos. O sentimento colocado e a mulher o representa, diz ainda: Com esta dupla caracterstica, os proletrios e as mulheres constituem necessariamente os auxiliadores essenciais da nova doutrina geral que, embora destinada a todas as classes modernas, somente alcanar uma verdadeira ascendncia nas classes superiores quando estas estiverem submetidas quela liderana.4544 Idem. 45 Idem.

O carter fundamental da aliana entre os filsofos e os proletrios enfatizada. Somente dela provir um impulso decisivo na direo do que viria a ser o estado positivo. interessante a afirmativa adiante, que de certa forma coloca essa aliana num nvel extremamente alto: aplicando-se a retificar e desenvolver as tendncias populares, o positivismo muito aperfeioar e consolidar sua prpria natureza, mesmo intelectual.46 Contudo, o decisivo mesmo o que as mulheres podero proporcionar no plano do sentimento: De todos os modos, esta doutrina no revelar toda a sua potncia orgnica nem manifestar plenamente seu verdadeiro carter seno alcanando o apoio menos previsto como o prmio de sua aptido necessria a regular e melhorar a condio social das mulheres. E mais: Somente o ponto de vista feminino permite filosofia positiva alcanar o verdadeiro conjunto da existncia humana, ao mesmo tempo individual e coletiva. Pois esta existncia no pode ser dignamente sistematizada seno tomando por base a subordinao contnua da inteligncia sociabilidade, diretamente representada pela verdadeira natureza, pessoal e social, da mulher.47 A declarao no podia ser mais enftica. A inteligncia, o saber positivo, pode muito pouco sem o sentimento que as mulheres expressam melhor que qualquer outro grupo social. Na viso de Comte, o positivismo mesmo mais apropriado que o catolicismo no propsito de utilizar as tendncias espontneas do povo e das mulheres na instituio final do poder espiritual. Esse poder espiritual necessrio no apenas para permitir o ingresso no estado positivo como, sobretudo, para consolid-lo e mant-lo. O Discurso sobre o conjunto do positivismo contm ainda uma apreciao crtica do socialismo e do comunismo, provavelmente devido circunstncia de que, no bojo da revoluo de 1848, essas doutrinas so amplamente difundidas. O socialista Louis Branqui (1805/1881) viria a alcanar grande proeminncia na fase inicial da revoluo, ao atribuir ao Estado a responsabilidade pela oferta de trabalho quelas camadas desprotegidas, mesmo quando esse trabalho no viesse a ter maior utilidade social. Para alcanar o apoio do 41

proletariado e das mulheres o positivismo deve dissipar radicalmente as diversas utopias anrquicas que ameaam cada vez mais a existncia domstica e social.

46 Idem. 47 Idem.

Comte considera que tanto o socialismo como o comunismo no passam de utopias. Contudo, reconhece que despertam sentimentos altrusticos no proletariado, o que estabelece ponto de contato com o positivismo. Ao enfatizar o carter social da propriedade, abrem outro canal de comunicao. No obstante, param a as aproximaes. Tanto socialismo como comunismo atuam apenas no plano poltico, quando a questo de base moral. A esse propsito escreve: Aceitando o enunciado comunista e mesmo ampliando-o, os positivistas descartam radicalmente uma soluo no apenas insuficiente como subversiva. Naquilo em que os substitumos, distinguimo-nos sobretudo pela introduo de meios morais em lugar de meios polticos. No ao comunismo e distino moral e poltica dos dois iderios, continua: Assim, a principal diferena social entre o positivismo e o comunismo relaciona-se finalmente a esta separao normal das duas potncias elementares, que, desconhecidas at aqui em todas as concepes renovadoras, encontram-se sempre no fundo de cada grande problema moderno, como a nica sada final para a humanidade. O positivismo a nica alternativa para os problemas sociais, e diz: Caracterizando melhor a aberrao comunista, esta apreciao tambm a desculpa, a partir de sua semelhana essencial com todas as outras doutrinas at ento acreditadas. Quando todos os espritos cultivados desconhecem o princpio fundamental da poltica moderna, poder-se-ia condenar o esprito popular de ter experimentado at agora esta influncia universal do empirismo revolucionrio? 48 Socialismo e comunismo somente podem sustentar-se se a doutrina positivista no for difundida do modo adequado. Para tanto no basta educar o proletariado. Urge igualmente mobilizar os seus melhores sentimentos. A prevalncia destes no esprito feminino mostra como tornar-se- possvel acelerar o advento do estado positivo. As esperanas de Comte, de que a revoluo reconheceria a sua capacidade de promover a to almejada regenerao, no se confirmou. O positivismo era portanto, instado a dar novos passos,

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a que Comte no se furtaria, como teremos oportunidade de evidenciar no ttulo subseqente.

48 Idem.

4 Religio da humanidadeO Discurso sobre o conjunto do positivismo apareceu com a data de julho de 1848 mas, na verdade, corresponde elaborao efetivada no ano anterior revoluo de fevereiro. Esta acendeu no esprito de Comte a esperana de que, afinal, seria chamado a empreender a necessria reforma social. Talvez devido a essa circunstncia, a obra desse ano caracteriza-se sobretudo pelo lanamento de apelos, manifestos e documentos dessa ndole. Em maro cria a Sociedade Positivista, instituindo em seguida o subsdio positivista. Objetou-se que a opo de Comte pela Religio da Humanidade cindiria o seu sistema de forma irrecupervel. Tanto assim que se estruturou uma faco positivista recusando-a. Na Viso de Henri Gouhier, contudo, no existe tal incoerncia. A esse propsito, escreve: No h unidade perfeita sobre o plano objetivo: cada uma das cincias fundamentais um feixe de leis que talvez se aproxime de uma lei superior, que as unifique, mas sem alcan-la; com mais forte razo intil procurar o axioma universal que sustentaria todas as leis do universo. O axioma de Comte no poderia existir, continua Gouhier: Augusto Comte, alm disto, elabora uma filosofia do esprito e no uma filosofia da natureza. Se nos oferece um sistema, no ser um sistema de mundo. Ora, a filosofia do esprito que conhece no faculta seno uma unidade metodolgica: as cincias fundamentais somente se ligam entre si por sua participao no mesmo esprito positivo e suas conexes tcnicas. A sociedade racional impossvel, e a conclui: A filosofia do esprito religioso as introduz na unidade de um fim e to-s esta finalidade em a virtude de elevar o positivismo dignidade de sistema.49 De todos os modos, o entendimento que Com