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    (...) No podemos esquecer da importncia de garantir a independnciado C.A. de partidos e governos. Mesmo com todas as dificuldades a entidadetem o dever de sempre defender os estudantes da FATEC-SP/Unesp. Todo estu-dante tm o direito de participar e filiar-se a um par tido ou organizao poltica,porm nenhum partido tem o direito de apoderar-se das nossas entidades estu-dantis para manipul-las.

    A luta e resistncia dos estudantes desta faculdade no param por aqui!Nessa gesto que termina podemos nos orgulhar de ter lutado intransigente-mente desde o comeo lutou contra essa reforma universitria exigindo dosgovernos o atendimento das reivindicaes dos estudantes brasileiros! Por issono desertamos do terreno dos estudantes. Fomos aos congressos dos estu-dantes da UNESP, o congresso da Unio Estadual dos Estudantes de So Paulo(UEE-SP) e da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) sempre com a respon-sabilidade de levantar as reivindicaes e brigar pela unio de todos. Semprecolocando os estudantes em primeiro lugar.

    O Centro Acadmico XXIII de Abril existe a 26 anos. Ele foi fundado du-rante uma greve em 1979 pelos fatecanos que reivindicavam a transformaoda FATEC em Faculdade de Engenharia da UNESP e outras melhorias. Somosa continuidade destes mesmos sonhos, preparando a possibilidade para queno futuro outros estudantes tenham os mesmos direitos. Sejam eles nossosirmos, filhos ou simples desconhecidos.

    A diretoria do C.A. eleita por votos diretos dos estudantes e esses tm odireito e o dever de acompanhar de perto as decises desta diretoria. Os dire-tores no so seres iluminados ou especiais, so alunos que tambm estudam,trabalham, tem anseios e desejos, independente da gesto. (...)

    necessrio nos organizarmos em volta desta entidade (...) necessriodefendermos o C.A. XXIII de Abril com unhas e dentes, sua unidade e suaindependncia. Ele o sindicato dos estudantes da nossa faculdade. nossaferramenta para a luta. (...)

    TRECHODAAPRESENTAODA GESTOTODOS PELA FATEC!

    A GREVE

    CENTRO ACADMICO XXIII DE ABRIL DA FATEC-SP/UNESPFliado a UEE-SP e a UNE

    Gesto: TODOS PELA FATEC! (2004-2005)

    Jack London

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    Ttulo original: The Dream of Debs de Jack London

    2 Edio: Centro Acadmico XXIII de Abril - FATEC-SP/UnespGesto TODOS PELA FATEC (2004-2005)

    Nossos agradecimentos aos editores da primeira edio.

    Editor da primeira edio: A. G. Homem (editora Po e Rosas).Traduo: Mnica de Oliveira Giovannetti.

    Copyleft permitida a reproduo parcial ou total desta obrapara fins no comerciais, desde que mantida esta nota.

    FINALIDADES DO CENTRO ACADMICOXXIII DE ABRIL DA FATEC-SP/UNESP

    Fliado a UEE-SP e a UNE

    Defender os interesses dos alunos da FATEC-SP, mantendo aunidade em torno da soluo de seus problemas. Promover a cooperao entre corpo discente (estudantes), corpo docente(professores) e funcionrios.

    Promover e incentivar as relaes entre seus associados (alunos) e demaisentidades estudantis.

    Trabalhar pelo aprimoramento moral, tcnico cientfico desportivo de seusassociados.

    Lutar pelo respeito das liberdade da pessoa humanaigualdade de direitos

    e deveres perante a lei sem distino de cor, raa, posio socila e convicopoltico ou religiosa.

    Cooperar com unio junto com as outras entidades estudantis (CAs, DCEs,UEE-SP e UNE) na soluo problemas dos estudantes.

    Lutar para que todos tenham as mesmas oportunidades e condies de es-tudo

    Lutar pela melhoria do ensino do pas e para que pblico, gratuito e de quali-dade para todos.

    Lutar pela observncia dos princpios de tica assim estipulados:

    a) Estrita probidade na execuo de todos os trabalhos provas escolares.b) Preservar o patrimnio material e moral do C.A.

    c) Submeter os interesses individuais aos da coletividade.

    Texto baseado no estatuto do Centro Acadmico

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    das previses histricas que contm. (...)

    Jack London narra no apenas de maneira criativa o mpeto proporcionadopela Primeira Revoluo Russa (1905) como tambm analisou com coragem, sobas luzes dessa Revoluo, o destino da sociedade capitalista como um todo.

    Precisamente aqueles problemas que o socialismo oficial sua poca con-siderava como definitivamente sepultados: o crescimento da riqueza e do poderde um lado, e da misria e destruio de outro; a acumulao do dio e doressentimento social; e a preparao inexorvel de um cataclismo sangrento.

    Jack London sentia todas essa questes com tamanha intrepidez que nos obriga,perplexos, a perguntar inmeras vezes: quando isso foi escrito? Foi mesmo antesda Primeira Guerra Mundial?

    * * *

    Na primavera de 1913 era o escritor mais famoso e mais bem pago do mundo, assum-indo o lugar que fora de Kipling no princpio do sculo. Quando uma jovem lhe escreveuum pouco antes de sua morte pedindo estmulo, ele respondeu a ela:

    Na minha idade madura, estou convencido de que o jogo da vida vale apena. Tive uma vida muito feliz, mais feliz que milhes de homens da minha ger-ao. Se por um lado sofri muito por outro vivi muito, vi muita coisa, senti muitacoisa que foi negada maioria dos homens. O jogo da vida vale mesmo a pena.

    Como prova disso, os meus amigos me dizem que estou engordando. Pode havermelhor indcio da vitria do esprito?-

    Em 22 de novembro de 1916 Jack London se empanturrou de morfina que tomavapara tratar dos problemas que tinha nos rins e na bexiga. Chegou at a fazer o clculo dequanto necessitava para dar um fim sua vida. Suicidou-se e ps fim a uma fecunda ebrilhante carreira literria, a uma vida que provou de tudo, que passou por muitas aventu-ras. Morreu aos quarenta anos, e apenas dezessete desses foram dedicados literatura.

    Mesmo assim deixou uma obra com centenas de contos e mais de cinqenta livros,como um grande legado humanidade.

    Alexandre Linares e Joo Carlos Ribeiro Junior

    Abril de 2003

    APRESENTAOGESTO TODOS PELA FATEC (2004-2005)

    Enfim chegamos ao final da Gesto TODOS PELA FATEC (2004/2005) do CentroAcadmico XXIII de Abril da FATEC-SP/Unesp. Uma gesto formada aps a greve de trsmeses de 2004 e durante um ms de acampamento na frente da Assemblia Legislativa doEstado de So Paulo. Nesses meses lutamos pelo aumento das verbas para as FATECs/Un-esp e a garantia do ensino publico, gratuito e de qualidade para todos.

    Foi um ano de difceis lutas. Garantir a possibilidade de matricula como alunos es-peciais, a informatizao da biblioteca (projeto que h anos j tinha sido pago e nuncaconcretizado), a luta por um restaurante universitrio subsidiado e acessvel para os estu-dantes, a eterna briga por melhorias e manuteno dos laboratrios e a garantia de cursosde graduao com qualidade.

    Hoje existe a reformulao do curso de Processamentos de Dados que na prtica propea extino deste curso e a formao de um novo curso que corre o risco de ser precrio einferior ao atual. Os cursos de Automao de Escritrio e Secretariado (CAES), Edifcios eSoldagem so os prximos a serem reformulados (e tem representante discente que insisteem no apresentar o projeto aos alunos!).

    Ao mesmo tempo a briga para barrar o absurdo golpe eleitoreiro de expanso de vagasdo Governo Estadual representado pelo governador inimigo da educao Geraldo Alckimin(PSDB). ramos nove FATECs e 14 Escolas Tcnicas Estaduais (ETEs), hoje somos 20FATECs e 108 ETEs! Isto seria perfeito se a verba no continuasse a mesma. Expanso de

    vagas sem aumento de verbas uma verdadeira vergonha!Nossa gesto buscou melhorar a estrutura interna do Centro Acadmico a integrao e aconscientizao dos alunos. Este espao nosso e temos de utiliz-lo da melhor forma pos-svel. Seja batendo um papo com a Tia Bel, nos graduarmos em aulas Sinuca 1 e 2, jogandotnis de mesa e principalmente discutindo a dura realidade da nossa faculdade.

    No podemos esquecer da importncia de garantir a independncia do C.A. de partidose governos. Mesmo com todas as dificuldades a entidade tem o dever de sempre defenderos estudantes da FATEC-SP/Unesp. Todo estudante tm o direito de participar e filiar-se aum partido ou organizao poltica, porm nenhum partido tem o direito de apoderar-se dasnossas entidades estudantis para manipul-las.

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    imperativos histricos das foras econmicas. No seu caderno Jack observouento: Toda histria da humanidade tem sido a Histria das lutas entre explora-dores e explorados; a histria dessas lutas de classe mostra a evoluo da civili-zao econmica da mesma forma que os estudos de Darwin mostram a evoluodo homem. Com o advento da industrializao e da concentrao dos capitaisatingiu-se um estgio social em que os explorados no podem emancipar-se daclasse dirigente sem com isso, e de um vez por todas, emancipar a sociedade emgeral de exploraes futuras, de opresso, de diferenas e lutas de classe.

    Comeou a assistir comcios operrios e se juntou seo local do Partido Socialista.

    Numa tarde, sentiu-se inspirado, trepou num banco e falou em alto e bom som multidode ouvintes, o que pensava sobre o capitalismo. Poucos minutos depois a polcia chegou.Preso e conduzido numa viatura, l foi ele para cadeia, embora protestasse que havia naAmrica liberdade de opinio e que o socialismo no era crime. Os jornais deram espaopara o caso e Jack London ficou conhecido como o menino socialista. Numa entrevistaa um jornal ele sustentou vigorosamente que os servios pblicos deveriam ser proprie-dade municipal. A partir desse momento a imprensa classifica o jovem socialista de 19anos de vermelho, dinamitador, um anarquista....

    Quando decidiu que deveria ingressar na universidade, com 19 anos, volta a freqen-tar o curso ginasial regular afim de conclu-lo, e numa festa de formatura convidadopara ser orador. Irving Stone conta a histria:

    Discursando bem, Jack foi indicado para ser um dos oradores na festa deformatura do Ginsio. claro que o assunto designado estava a mil lguas dedistncia do socialismo. Mas, depois de falar um minuto ou dois, Jack fez umapausa, descansou o corpo na outra perna... e comeou a arrepiar os cabelos doauditrio bem engomado de famlias e amigos de estudantes, com uma oraoque certa expectadora disse ter sido a mais truculenta diatribe socialista queouviu em toda a sua vida. Falava com tal paixo que os ouvintes o sentiram forade si, como se j estivesse apertando a garganta dos inimigos emplena guerra declasses.

    Sua opo no apenas um chavo extico.

    Ele foi militante no sentido mais importante da palavra. A arte era sua ferramentae nunca deixou de escrever o que sentia. Como descreveu Leon Trotsky, lder da Rev-oluo de Outubro e organizador do Exrcito Vermelho, numa carta a Joan London, filhade Jack, aps ao terminar a leitura livro O Taco de Ferro:

    O livro causou-me falo sem nenhum exagero uma profunda impresso.No por causa de suas qualidades artsticas: a forma do romance representa aquiapenas uma couraa para a anlise e prognsticos sociais. O autor, intencional-mente procura ser moderado na utilizao de seus recursos artsticos. Ele prp-rio est menos interessado no destino individual de seus heris do que no destioda humanidade. (...) Eu no pretendo, de maneira nenhuma, menosprezar o valorartstico da obra (...). O livro causou-me surpresa pela audcia e independncia

    A luta e resistncia dos estudantes desta faculdade no param por aqui! Nessa gestoque termina podemos nos orgulhar de ter lutado intransigentemente desde o comeo lutoucontra essa reforma universitria exigindo dos governos o atendimento das reivindicaesdos estudantes brasileiros! Por isso no desertamos do terreno dos estudantes. Fomos aoscongressos dos estudantes da UNESP, o congresso da Unio Estadual dos Estudantes deSo Paulo (UEE-SP) e da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) sempre com a responsa-bilidade de levantar as reivindicaes e brigar pela unio de todos. Sempre colocando osestudantes em primeiro lugar.

    O Centro Acadmico XXIII de Abril existe a 26 anos. Ele foi fundado durante uma

    greve em 1979 pelos fatecanos que reivindicavam a transformao da FATEC em Facul-dade de Engenharia da UNESP e outras melhorias. Somos a continuidade destes mesmossonhos, preparando a possibilidade para que no futuro outros estudantes tenham os mes-mos direitos. Sejam eles nossos irmos, filhos ou simples desconhecidos.

    A diretoria do C.A. eleita por votos diretos dos estudantes e esses tm o direito e odever de acompanhar de perto as decises desta diretoria. Os diretores no so seres ilu-minados ou especiais, so alunos que tambm estudam, trabalham, tem anseios e desejos,independente da gesto.

    necessrio nos organizarmos em volta desta entidade seja como representantes dis-centes (RD) dos departamentos, da congregao ou simplesmente como colaboradores. necessrio defendermos o C.A. XXIII de Abril com unhas e dentes, sua unidade e suaindependncia. Ele o sindicato dos estudantes da nossa faculdade. nossa ferramentapara a luta.

    Este conto, que publicamos como despedida dessa gesto, fala sobre a organizaodos trabalhadores, uma organizao ainda utpica, um conto do escritor socialista norte-americano Jack London. Esperamos que todos que leiam este pequeno livro tirem umalio para a vida. Ou ao menos pensem sobre os nossos dias e as nossas necessidades comoseres humanos completos.

    Agradecemos todos aqueles que colaboraram efetivamente com a gesto at o final:Kelly Brando, Cleytom Yamamoto, Jairo, Edson Nagamine (Projetos); Dbora Caval-heiro (Edifcios); Reinaldo (Obras Hidraulicas); Andr Furlan, Ricardo Sallin, Wellington(PD); Denis Costa, Edna Batista (Soldagem); Juliana Aparecida, Marcelo Simba (CAES);Ely Teixeira (MecPrec); Chuchu(MPCE), Carlo e Gilson (Pavimentao), e todos aquelesque puderam ceder um pouquinho do seu tempo para concretizarmos nossas lutas.

    Agredacemos em especial: Alexandre Linares e Alex Minoru pela colaborao nashoras mais difceis.

    A luta continua!

    FATECANOS UNI-VOS!

    GESTO TODOS PELA FATEC-2004/2005

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    London pagou toda a despesa do enterro. Conseguiu permisso para sepult-la no cemitrio dos brancos e acompanhou o fretro cabisbaixo, com o rostomolhado de lgrimas.

    Antes de baixarem o corpo da infeliz sepultura, London cortou um cachodos cabelos da pobre cantora e guardou-o no bolso. Depois, desapareceu. Torneia v-lo uma nica vez, dois anos mais tarde daquele triste acontecimento.

    Estava envelhecido e muito abatido. Bebia muito e no ligava a coisa algu-ma. Escrevia de vez em quando, mas, no como antigamente. As suas produes

    literrias j no tinham a mesma expresso, a mesma fora dos seus maravil-hosos contos do Alasca, das ilhas do Pacfico, do Japo, que o tornaram um dosmaiores novelistas da Amrica. Nem parecia o mesmo autor de O lobo do mar,O taco de ferro, Martim den, A voz da selva e outras obras primas queainda hoje leio e releio com avidez...

    O marinheiro parou de falar. Aps um longo instante de silncio, convidou-me para tomar alguma coisa. Agradeci, alegando indisposio, e ele dirigiu-separa o bar, meio cambaleando como fazem todos os marinheiros. Duas semanasdepois, desembarquei em Santos, e fixei residncia em So Paulo. Todas as vezesque ia terra de Brs Cubas, visitava os navios que entravam e todos os lugaresfreqentados por marinheiros, na esperana de encontrar o marinheiro sueco,que conheceu Jack London. Intil. O homem desapareceu e creio que para sem-

    pre. A nica lembrana que tenho dele a historia que acabo de contarlhes. Omarinheiro chamava-se Ernst Olsen.

    Seus personagens, como a realidade, experimentam e passam pela provao dos lim-ites da existncia, tal qual foi sua prpria vida. Nunca teve medo de tomar partido, o in-cio de seu conto autobiogrfico Como me tornei Socialista bem interessante: Possodizer que me tornei um socialista de modo bastante semelhante ao dos pagos teutnicosquando se tornaram cristos - isto , a marteladas. Entre operrios e vagabundos es-cutou pela primeira vez as palavras sindicato, socialismo, solidariedade operria. Comoescreveu seu bigrafo Irving Stone:

    Aprendeu ao final que o socialismo moderno no tinha mais do que setentaanos: era um pouco mais velho que Flora (sua me) e considerou uma grandesorte viver numa poca em que tal movimento comeava. E continuava, Estu-dando Babeuf, Saint-Simon, Fourier e Proudhon, Jack ali encontrou os primei-ros ataques contra a propriedade privada e a primeira diferenciao de classeseconmicas.

    (...) Um vagabundo da Estrada, metido a filsofo, falara-lhe de um folhetointitulado Manifesto do Partido Comunista. Jack conseguiu um exemplar, e,lendo-o avidamente teve a impresso de que se articulavam afinal as idias dasua cabea e os sentimentos de seu corao. Rende-se ao ensinamento de KarlMarx, porque nele encontrou o mtodo pelo qual o homem no somente chegariaa construir um Estado socialista, mas seria ainda compelido a realiz-lo sob os

    A GREVE

    A prpria existncia da classecapitalista depende da manutenodo sistema social de explorao.Depende, pois, da sobrevivnciada classe operria. Uma vez que,sem classe operria no h ex-plorao, portanto, no h mais-valia e, portanto, no h lucro. Porisso, em uma dialtica que recordaa do amo e do escravo, a classecapitalista depende, em ltimainstncia, da classe operria.

    Daniel GlucksteinGlobalizao e Luta de Classe

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    para um destino incerto. Estivera j em Buenos Aires, onde no conseguira fic-ar, pois, s no mundo pelo esprito envenenado pela aventura, no podia fixarresidncia em parte alguma.

    Era um homem inteligentssimo, muito falador, e contava sempre histriasmaravilhosas.

    Houve quem afirmasse que ele mentia. Talvez, mentisse mesmo. Narrava,porm, acontecimentos que atraiam tanto que, se no verdadeiros, ainda os pre-firo a casos reais, lacnicos e secos, sem o sabor da fantasia do velho marinheiro,

    cuja palavra era cheia de vida e de aventura...Sim respondeu-me, pensativo estive em todas as ilhas do Pacfico. Vivi

    naquele mundo no sei quantas vidas...E que vidas! Em que poca foi, indaguei,curioso.

    Em vrias: 1900, 1910, 1913. Ia e voltava, de seis em seis meses. No rarasvezes, passava longas temporadas em diversas daquelas ilhas.

    Chegou por acaso, a conhecer Jack London, um escritor norte-americano,que escreveu muito sobre aquelas ilhas?

    O marinheiro arregalou os olhos. O seu rosto mudou de cor. Levantou-seda cadeira de preguia, deu vrias voltas e parou. Por que pergunta isso? ex-clamou o velho marinheiro.

    Porque sou um grande admirador dele. No h duvida comentou aquelehomem possua uma fora atrativa como pouca gente nesse mundo de Deus. Sim,eu o conheci. Primeiro, em So Francisco, depois na China, mais tarde nas ilhasdo Pacfico. Que homem! Jamais encontrei outro parecido, era valente, alegre,brincalho. Bebia muito, lutava com boxeadores reputados, jogava. Acreditavasomente na vida e vivia intensamente A vida que pode ser tudo, menos espln-dida como sempre dizia, e viajava, errando pela terra que toda brutalidade,ainda consoante a sua opinio sobre o mundo...

    Um dia - prosseguiu o marinheiro -- London entrou num dancing numadas ilhas do Pacfico. Uma cantora nativa cantava umadas maravilhosas caneslocais e acompanhava o ritmo da cano com o seu corpo bronzeado semi-nu.

    Era mestia, um demnio feito de mulher, dessas mulheres que nascem uma emcada cem anos, que atraem e dominam os homens mais fortes...

    Ao ver o escritor, apaixonou-se por ele. Era amor primeira vista. E Londoncorrespondeu. No sei quanto tempo se amaram, mas um dia, a voz da aven-tura chamou o seu aventureiro e Jack comunicou-lhe que iria partir. Ela sabiaque nenhuma fora seria capaz de det-lo. Resignada, limitou-se a cantar, comonunca o fizera em sua vida. Depois, veio o desastre. Um dia antes de Jack Londonpartir, encontraram-na morta no portal de sua cabana, numa poa de sangue.Suicidara-se... O velho marinheiro fez uma pausa e prosseguiu:

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    cidade era imensa. Mesmo na juventude, quando se juntou a um grupo de piratas ladresde ostras, sempre se refugiava na biblioteca quando no podia sair para as pilhagens.Isso o tornou um perspicaz autodidata, que dominou desde teorias econmicas clssicas teoria evolucionista de Darwin. Tendo esta o fascinado de tal modo que margeou boaparte de suas histrias.

    Jack London trabalhou em fbricas nas piores situaes possveis. Arrumou empre-gos em que, pelo pouco que ganhava, era obrigado a trabalhar dezoito ou at mesmovinte horas. Livrou-se desse tipo de emprego e tornou-se pirata de ostras com outrosbbados da costa de San Francisco, depois patrulheiro contra a pesca ilegal. Mais tarde,

    como marinheiro, fez grandes viagens ao oriente e quando retornou se viu obrigado avoltar para o ambiente hostil de uma fbrica. Sua me foi quem o incentivou a participarde um concurso literrio pela primeira vez. Jack hesitou, mas os vinte e cinco dlarescomo primeiro prmio o instigaram. Nessa poca ganhava dez centavos por hora de tra-balho. Mesmo jovem ainda - no completara sequer vinte anos de idade - j possua umaboa bagagem de vida intensa e ao narrar um episdio que vivenciou em um navio quandoenfrentou um tufo, ganhou o primeiro prmio e os dlares prometido.

    Passou fcil pela seleo para ingresso na Universidade da Califrnia, mas logo teveque abandonar os estudos pelas dificuldades financeiras que enfrentava. Trabalhavanuma lavanderia cuidando das roupas de seus colegas de classe. Nessa mesma pocaficou sabendo da grande corrida que se fazia ao Alasca, em busca de ouro. No pensouduas vezes. Esse foi um dos perodos mais marcantes de sua vida e o que lhe rendeu al-guns dos seus famosos romances e contos. Tomou rumo para o confim gelado dos EUAe passou por grandes dificuldades por l. Voltou para Califrnia sem uma pepita sequer,nada encontrou, mas sua cabea j estava cheia de personagens e enredos, assim comoseu caderno estava repleto de anotaes daquela experincia.

    Jack London foi traduzido para o mundo inteiro, em pelo menos quarenta idiomas.Uma curiosidade de sua obra que podemos encontrar diversas tradues de um mesmolivro aqui no Brasil. The Call of the Wild, possivelmente sua obra mais famosa, foitraduzida mais de uma dezena de vezes, o livro ganhou vrios ttulos diferentes: Apeloda Selva, Chamado Selvagem ou As Vozes da Floresta.

    Se voc for a algum sebo procurar um livro de Jack London, provavelmente encon-trar vrios deles com lobos na capa. O esprito da natureza selvagem pulsa entre as

    batidas da razo militante.

    * * *

    Na introduo da primeira edio brasileira do livro Ilhas do Pacfico, Nlson Vain-er conta:

    Em 1931, de passagem pelo porto espanhol de La Corunha, a caminho doBrasil, conheci um velho marinheiro sueco, que o Deus Acaso fazia embarcar

    APRESENTAO DA 1 EDIO

    Este conto indito no Brasil. Ele est sendo publicado na esteira de algumas reed-ies de obras do autor.

    Em A Greve, London enfoca o tema com uma humanidade perfeita. No h nada foradas reais medidas da vida. E, no entanto, h uma enorme inventividade literria.

    H uma greve, mas onde esto as descries das passeatas? Onde os piquetes e osclssicos enfrentamentos com a polcia?

    No isso que interessa London retratar. At porque ele no um retratista fiel, danatureza ou dos movimentos sociais. Talvez seja um impressionista, que sai luz do dia,observa ao seu redor, capta a luminosidade que emana da realidade, mas filtra tudo issocom a mente aguada de um criador. o que vemos no papel.

    Ele busca com este conto, fazer compreender. Por isso, no se trata de uma tragdiaoperria somente, com o foco exclusivo nesta classe social. Ele v mais longe, ali ondeoutros olhares poderiam reter somente um drama exclusivamente restrito a uma parcelada sociedade, o escritor faz emergir os dilemas da humanidade.

    filosofia, como Goethe com o seu clebre Doutor Fausto o era. No comeo noera o verbo, era a ao. E assim, na literatura, Goethe procurava exprimir a poca darevoluo industrial, do conhecimento cientfico, do progresso tcnico.

    London exprime com este seu conto A Greve (como j o havia feito em A PragaEscarlate) a encruzilhada a que as elites capitalistas empurram o mundo. Ele exprime asangstias da civilizao. Dos grandes aos pequenos detalhes da organizao social, quemdepende de quem? Os trabalhadores dependem dos capitalistas ou estes que dependem

    para viver at no mais ftil detalhe dos trabalhadores? Do mais elementar caf damanh burgus at o drink no clube, tudo comoventemente atrapalhado pela insolnciados grevistas em paralisar o trabalho.

    este tom dramtico, dado a inoperncia dos capitalistas na vida cotidiana, ondemais parecem crianas dependentes das suas mes, que cria o clima estranho e insl-ito da situao. primeira vista no parece real e crvel, porque entre a realidade e aaparncia h um espesso cortinado de ideologia para encobrir esta situao. No entanto,o brilhantismo de Jack London est em utilizar sua genialidade literria para fazer cor-rer o pano que turva a viso, abrindo a cortina e deixando o olhar entrar. Neste caso, ahiptese da greve geral apenas o meio laboratorial onde ele faz aparecer as condies

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    sociais perfeitas (como nas experincias cientficas onde se criam as condies para osexperimentos) que revelam toda a verdade por detrs da mistificao.

    Jack London, no s um inventor de histrias, mais um esprito livre o suficiente,capaz de captar as contradies da vida moderna e a expor com uma maestria espetacu-lar.

    H os que pensam na sociedade dos Estados Unidos como desprovida de choques, desituaes limites. Imaginam que isso de enfrentamentos de classes sociais, de conflitosde interesses, de maioria oprimida coisa que acontece nos chamados pases do terceiro

    mundo.Nisso London revelador. Brilhantemente revelador. No permite, como um filho do

    proletariado, como um andarilho pelas ruelas, portos, estaes ferrovirias do seu pas edo mundo, que nos enganemos sobre a existncia de apenas um nico sonho americano,o da classe mdia. Existe tambm o sonho de Debbs, lder operrio que empresta seunome ao ttulo original do conto. Como existiu o sonho dos Comunards na Paris de 1871,naquela primeira tentativa de assalto aos cus.

    No temam se emocionar com este conto, assim como no evitem as reflexes queele estimula. Nada mais inumano que querer separar com uma muralha da China a vida ea arte. Nada mais desumano que tentar fugir dos dilemas que colocam em xeque a nossacivilizao.

    London no traz respostas. Semeia indagaes. E s isso j grandioso e visionrio.O resto, de l para c, a histria do sculo XX tratou de colocar-nos mais nitidamentediante dos olhos.

    O EDITOR

    Abril de 2003

    NOTA EXPLICATIVA

    O ttulo original do conto de Jack London The Dream of Debs, ou seja, O sonhode Debs, e foi escrito em janeiro/fevereiro de 1909. Eugene Victor Debs (1855 1926),

    famoso socialista e sindicalista norte-americano, organizador da

    Unio Ferroviria e do sindicato IWW (Industrial Workers of the World) acusado desedio por sua postura contra a guerra, foi encarcerado em 1918. Em 1920, encontran-do-se na Penitenciria, se apresentou como candidato socialista s eleies presidenciaisdos Estados Unidos, recebendo quase um milho de votos. Morto dez anos depois queJack London, sua meno histrica neste relato, junto a outras aluses a acontecimentosreais e inventados, serve para situar a ao no futuro a respeito do tempo em que foi es-crito. Deve-se recordar ainda que o ttulo original deste relato, The Dream of Debs, o mesmo que o do suposto ensaio escrito pelo narrador.

    Posfcio

    AVENTURA, SUBMUNDO,PAIXO E LUTA DE CLASSES:A VIDA DE JACK LONDON

    Deixa-me ver a face da verdade.Dize-me como a face da verdade

    Jack London

    Da cadeia at as Ilhas do Pacfico, da biblioteca de Oakland at a guerra russo-japone-sa passando pelo gelo do Alasca e pelas lutas operrias em Londres, Jack London viucom seus prprios olhos as contradies de seu mundo e de sua poca. Com a palavra emtoda fria, com a vida transbordando de seus livros, London mudou o ritmo da literaturafazendo da realidade a fantasia de sua obra. Sua fico carrega todo tipo de experinciaextremada que seus caminhos lhe proporcionaram.

    Sua existncia atribulada lhe permitiu que sua literatura concisa e direta nos troux-esse histrias vigorosas, em que o fio condutor a luta pela sobrevivncia, as diferenassociais e o desespero da vida na sociedade capitalista.

    Nasceu num bairro operrio de San Francisco, Califrnia, em 12 de fevereiro de1876. O ambiente era cru, spero e rude, como descreve sua infncia no primeiropargrafo do conto autobiogrfico O que a vida significa pra mim. E completa, no finaldo primeiro pargrafo desse conto, Por aqui o corpo e o esprito andavam famintos eatormentados. Apaixonou-se pelos livros logo cedo. No teve a oportunidade de estudarcomo gostaria devido precoce necessidade de contribuir com a renda familiar. Aos onzeanos de idade tornou-se jornaleiro, a primeira das muitas outras ocupaes posteriores,mas isso no impediu sua obsesso pelas letras. Os livros sempre o acompanharam ondequer que ele fosse. Sua reao ao descobrir que existia um lugar em que eram guardadoscentenas de livros e que as pessoas podiam peg-los - a biblioteca pblica de Oakland- foi muito interessante. No acreditava que um lugar daqueles poderia existir, sua feli-

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    E assim acabou a greve geral. No quero voltar a ver nunca outra. Foi pior que umaguerra. A greve geral algo cruel e imoral, e a mente humana deveria ser capaz de operara indstria de uma maneira mais racional. Harrison continua sendo meu motorista. Umadas condies da I.L.W. foi que todos seus filiados fossem reintegrados a seus antigosempregos. Brown nunca voltou, porm o restante dos empregados continua comigo. Notive a coragem de despedi-los. Todos se inscreveram na I.L.W. A tirania das organizaesoperrias est se convertendo em algo humanamente insuportvel. H que se fazer algo.

    Despertei-me pelo menos uma hora antes que o de costume. Isto, por si s, era algoextraordinrio; e permaneci completamente desperto, refletindo sobre isso. Algo se pas-sava, algo no ia bem, embora no soubesse o que. Sentia-me angustiado por um pressen-timento de que alguma coisa terrvel havia ocorrido ou estava a ponto de ocorrer.

    Porm, de que se tratava? Cuidei de orientarme.

    Lembrei que depois do Grande Terremoto de 1906 houve muita gente que assegurouque havia acordado instantes antes da primeira sacudida, e que havia experimentadonaqueles momentos um estranho sentimento de terror. Por acaso San Francisco iria sofrerum novo terremoto?

    Permaneci um longo minuto paralisado e expectante; porm, no se sentia tremerou balanarem- se as paredes, nem nenhum estrondo de desmoronamento de alvenaria.Tudo estava tranqilo. Ou seja, em silncio! No era estranho meu desassossego. O rudodo trfego da grande cidade havia desaparecido misteriosamente. O transporte de super-fcie pela minha rua a esta hora do dia era em mdia de um bonde a cada trs minutos;no entanto, nos dez minutos seguintes, no passou um sequer. Quem sabe tratava-se deuma greve de bonde foi a primeira coisa que pensei; ou talvez houvesse ocorrido umacidente e o abastecimento de energia havia sido interrompido. Porm no, o silncio erapor demais absoluto. No se ouvia nenhum chiado ou estouro de rodas, nem o golpear deferraduras de cavalarias ao subir a rua calada pavimentada de pedras.

    Apertando o boto ao lado de minha cama, tratei de ouvir o som da campainha, mes-mo sabendo que era impossvel, ainda que ela soasse, que o som subisse os trs andares

    que nos separavam.Funcionava, efetivamente, j que, poucos minutos depois entrava Brown com a

    bandeja e o jornal da manh. Ainda que seu rosto se mostrasse impassvel como de cos-tume, observei um brilho de alarme e inquietude em seus olhos. Dei-me conta tambmde que no havia leite na bandeja.

    O leiteiro no veio esta manh explicou , nem o padeiro tampouco.

    Olhei novamente a bandeja. Faltavam os pezinhos redondos e frescos. Em seu lugar,unicamente umas fatias de po preto do dia anterior, o po mais detestvel para meupaladar.

    A GREVE

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    No houve distribuio de nada esta manh, senhor... comeou a explicarBrown em tom de desculpa; mas o interrompi: E o jornal?

    Sim senhor, o trouxeram; mas nico, e a ltima vez tambm. Amanh nohaver jornais.

    o que diz o prprio jornal. Quer que mande pr leite condensado?

    Movi a cabea negativamente, aceitei somente o caf e abri o jornal. As manchetesexplicavam tudo..., at demais, porque os extremos de pessimismo a que chegava o jor-nal beirava ao ridculo.

    Uma greve geral, dizia, havia sido convocada ampla e largamente nos Estados Uni-dos, manifestando deste modo os pressgios mais alarmistas quanto ao abastecimentodas grandes cidades.

    Li rapidamente e por cima enquanto relembrava muitos dos problemas trabalhistasdo passado. Durante uma gerao, a greve geral tinha sido o sonho das organizaessindicais, um sonho que havia surgido originariamente da mente... de Debs, um dosgrandes lderes sindicais de trinta anos atrs. Lembrei-me de como em minha juventudetinha escrito um artigo sobre o tema para uma revista da Universidade o qual intitulei Osonho de Debs. Porm, devo esclarecer que tratei a idia com precauo e de maneiraacadmica, como um sonho e nada mais. O tempo e o mundo haviam seguido seu curso.Gompers e a American Federation of Labor tinham desaparecido, e o mesmo havia ocor-

    rido com Debs e todas as suas descabeladas idias revolucionrias; apesar disso, o sonhohavia persistido, e finalmente era convertido em realidade. Mas, conforme lia, no pudedeixar de rir-me da viso pessimista do jornal.

    Minha opinio era outra. Tinha visto as organizaes sindicais serem derrotadas eminmeros conflitos. O assunto se solucionaria em poucos dias. Isto era uma greve na-cional, e o governo no demoraria muito em acabar com ela.

    Joguei o jornal e comecei a vestir-me. Seria certamente interessante passear pelasruas de San Francisco quando toda a cidade estava de frias foradas e totalmente pri-vada de atividades.

    Perdo, senhor disse Brown, apresentando -- me minha caixa de cigarros ,mas Harmmed quer ver-lhe antes que o senhor parta.

    Faa-o entrar agora respondi.

    Harmmed era o mordomo. Quando entrou, me dei conta do quanto estava alterado,mesmo tratando de dominar-se. Imediatamente foi ao ponto:

    Que devo fazer, senhor? Necessitaremos provises, mas acontece que os en-tregadores esto em greve. E cortaram a eletricidade... Devem estar em greve tam-bm.

    As lojas esto abertas? perguntei.

    Somente as pequenas, senhor. Os empregados do comrcio no trabalham e as

    recendo a todo o mundo com o relato de suas peripcias.

    Quanto a mim, voltando estrada principal, consegui chegar at Belmont, onde trsmilicianos me roubaram a carne que levava. A situao no havia mudado, me disseram,alis, ia de mal a pior.

    Os da I.L.W., no entanto tinham escondidas provises suficientes para resistir meses.Quando consegui alcanar Baden, um grupo de doze homens me roubou o cavalo. Doisdeles eram policiais de San Francisco e os demais eram soldados regulares. Isto era ummau sinal. A situao devia ser extremada para que os regulares comeassem a desertar.

    No tinha feito mais que retomar meu caminho a p, quando j tinham eles uma fogueiraacesa e o ltimo dos cavalos de Dakon jazia no solo morto.

    Quis o destino que eu torcesse um tornozelo e s consegui alcanar a zona sul de SanFrancisco.

    Ali passei a noite, em uma varanda, tiritando de frio e ardendo de febre ao mesmotempo. Dois dias passei estendido naquele lugar, demasiado enfermo para mover-me, eao terceiro, mareado e cambaleante, valendo-me de uma muleta improvisada, me dirigicom passo vacilante at San Francisco.

    Estava debilitado tambm, pois fazia j trs dias que no comia nada. Foi um dia detormento e pesadelo. Como em um sonho, cruzei com centenas de soldados regularesque marchavam sem rumo em direo contrria, e muitos policiais com suas famlias,

    organizados em caravanas para proteger-se mutuamente.Ao entrar na cidade, recordei a casa do operrio na qual havia trocado o jarro de pra-

    ta, e naquela direo me guiou a fome. Estava escurecendo quando cheguei ao local. Deia volta pelo beco e, ao subir de gatinhas os degraus da porta de trs, desabei. Com a ajudada muleta consegui dar uma pancada na porta. Devo ter desmaiado, porque voltei a mim nacozinha. Tinha a cara molhada de gua e um trago de whisky corria por minha garganta.

    Engasguei-me e balbuciei tentando falar.

    Comecei a dizer algo a respeito de que no me restavam jarros de prata, porm quelhes pagaria depois se me dessem algo de comer. A dona da casa me interrompeu:

    Mas homem de Deus! exclamou. No est sabendo? A greve terminou estatarde. Claro que lhe darei algo de comer. E se ps a abrir apressadamente uma lata de

    bacon e a frit-lo.

    D-me um pouco para com-lo agora supliquei; e enquanto comia a carne cruasobre uma fatia de po, o marido me explicou que tinham sido aceitas as reivindicaesda I.L.W.

    Haviam sido abertos os telgrafos pouco depois do meio-dia, e as associaes pa-tronais tinham se rendido em todo o pas. Ainda que no restasse nenhum patro emSan Francisco, o general Folsom havia falado por eles. Os trens e barcos comeariam afuncionar pela manh, e o mesmo ocorreria com tudo o mais to logo se pudesse resta-belecer-se a rede.

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    me sugeria Harmmed, quem se ocupava com as compras cacarejando como uma velhagalinha inquieta.

    O mais extraordinrio daquele primeiro dia de greve foi que ningum compreendeurealmente sua gravidade. Considerou-se ridculo o anncio feito na imprensa matinalpelas organizaes trabalhistas, segundo o qual estavam dispostos a parar um ms ou trsmeses. E sem dvida, naquele mesmo primeiro dia podamos ter suspeitado sua verdadea partir do fato de que a classe trabalhadora no participou praticamente na precipitadacorreria para comprar provises. Claro que no! Durante semanas e meses, com dis-simulao e em segredo, toda a classe operria havia estado armazenando suas provises

    particulares. Esta era a razo pela qual nos era permitido comprar at esgotar os estoquesdas pequenas lojas de seus bairros.

    At minha chegada ao clube naquela tarde, no tinha experimentado os primeiros sin-tomas de alarme. Reinava uma grande confuso; no havia azeitonas para os aperitivose o servio era extremamente deficiente. Os scios em sua maioria estavam furiosos; etodos estavam preocupados. Uma multido de vozes me saudou quando entrei. No salode fumantes, o general Folsom mexia sua grande pana em uma cadeira junto janela,enquanto se defendia de meia dzia de alterados cavalheiros que lhe pediam que fizessealgo.

    Que mais posso fazer alm do que tenho feito? dizia. No h ordens de Wash-ington. Se vocs so capazes de conseguir-me comunicao, eu estou disposto a fazer o

    que me seja ordenado.Porm no vejo o que se possa fazer. A primeira coisa que fiz esta manh ao inteirar-

    me da greve foi chamar as tropas do Presdio: trs mil soldados.

    Esto vigiando os bancos, a casa da moeda, correios e todos os edifcios pblicos.No se tem registrado nenhuma desordem. Os grevistas guardam uma atitude absoluta-mente pacfica. No pretendero que mande disparar contra eles enquanto passeiam pelasruas com suas esposas e filhos todos endomingados!

    Gostaria de saber o que est se passando em Wall Street ouvi dizer JimmyWombold, ao passar junto a ele. Podia imaginar perfeitamente sua preocupao porquesabia que estava metido at o pescoo na grande transao do Consrcio Ocidental.

    Ol, Corf! disse Atkinson, abordandome precipitadamente. Teu carro funcio-na?

    Sim respondi-lhe. Mas o que se passa com o seu?

    Est estragado, e as oficinas esto todas fechadas. Minha esposa ficou bloqueadado outro lado da baa, creio que em algum lugar perto de Truckee. No pude comunicar-me com ela por mais que o tenha tentado. Deveria ter chegado esta tarde. Pode ser queesteja morrendo de fome. Empresta-me teu carro.

    No poders atravessar a baa interveio Halsted. As balsas no funcionam. Maste direi o que podes fazer. Ali est Rollinson..., hei, Rollinson, vem c um momento! At-

    H um modo de fugir que se assemelha a procurar.

    Os Miserveis - Tomo I, Parte Primeira, Livro Terceiro, Cap. II cometidos peloshabitantes dos bairros mais pobres e pelas classes altas. Os membros da I. L. W., comabundncia de vveres, estavam tranqilamente em suas casas da cidade.

    Naquela manh tivemos provas concretas do desespero da situao. nossa direi-ta ouvimos gritos e disparos de rifle. Algumas balas passaram silvando perigosamenteprximas de ns. Ouviu-se um rudo no pasto; em seguida, um magnfico cavalo negrode carruagem atravessou a estrada diante de ns e desapareceu. Apenas nos deu tempo

    de observar que estava manco e ensangentado.Trs soldados iam atrs dele, e a perseguio continuou entre as rvores da esquerda.

    Podamos ouvir os trs soldados chamando-se uns aos outros.

    Um quarto soldado surgiu coxeando pela direita da estrada, sentou-se em uma pedrae enxugou o suor da cara.

    Milcia, sussurrou Dakon. Desertores. O homem nos dirigiu um sorriso e nospediu fogo.

    Quando Dakon perguntou-lhe o que se passava, nos informou que a milcia estavadesertando.

    Acabou-se a comida explicou-nos. Esto dando-a toda aos regulares.

    Por ele fomos informados tambm de que os prisioneiros militares da ilha de Alcatrazhaviam sido postos em liberdade porque j no podiam alimentar-lhes.

    Nunca esquecerei o espetculo que vimos em seguida. Deparamo-nos com eleabruptamente, atrs de uma curva da estrada. As rvores formavam uma abbada nas co-pas, e o sol se filtrava entre suas ramas. As borboletas revoavam ao redor, e dos camposchegava o canto das cotovias.

    Ali no meio havia um potente automvel. E tanto dentro como a seu redor jaziamvrios cadveres.

    A explicao era evidente. Em sua fuga da cidade, os ocupantes haviam sido atacadose saqueados por um bando de criminosos dos bairros pobres.

    O fato havia ocorrido no fazia nem vinte e quatro horas. Latas de carne e de frutasrecm abertas explicavam a razo do ataque. Dakon examinou os corpos.

    Eu o imaginava nos informou. Conheo o carro. Era Pariton... Toda a famlia.Teremos que andar com cuidado de agora em diante.

    Porm, ns no temos comida que lhes incite a atacar-nos -- objetei eu.

    Dakon apontou minha montaria e compreendi.

    Pela manh, o cavalo de Dakon havia perdido uma ferradura. O delicado casco sehavia aberto e, ao meio dia, o animal mancava. Dakon no queria seguir montando-o

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    dida por um turbilho de anseios, sentimentos e emoes. tambm grandioso pelospersonagens intensos e extremados, figuras humanas que como Jean Vayean e o prpriopolicial Javert, perseverante, obstinado e frio, vivem sob a gide inabalvel de princpiose ideais, a ponto de serem quase que sufocados pelas conseqncias emocionais de seusprprios atos.

    * * *

    Os Miserveis, um dos clssicos da literatura francesa, obra de Victor Hugo - dequando ainda estava encarnado -, j inspirou filmes, seriados, musicais e at recente-

    mente uma novela. Na adaptao mais recente para o cinema, Liam Neeson interpretaJean Valjean, um ex-condenado, um homem ignorante, embrutecido pelos anos passadosna priso, sem esperanas, nem oportunidades.

    A histria se passa no interior da Frana, no comeo do sculo dezenove, quandoJean Valjean posto em liberdade, aps ter passado vinte anos preso por ter furtado umpo. Apesar de portar um documento de identidade que o qualifica como perigoso, eleacaba sendo acolhido pelo piedoso Bispo de Digne, Monsenhor Benvindo, o qual o tratade modo fraterno e caridoso.

    No obstante, inicialmente persistir no erro, Jean Valjean acaba sendo tocado pelaconduta crist do bispo, que com seu exemplo de retido moral e de preocupao sincerapara com o prximo, faz com que ele - Jean Valjean - transforme sua maneira de encarara vida e a si prprio.

    Mas nem por isso as dificuldades deixam de existir.

    H um policial obstinado, Javert ( Geoffrey Rush), que o persegue incansavelmentepor acreditar que Valjean uma ameaa sociedade.

    H, ainda, Cosette (Claire Danes), uma rf deixada aos cuidados de Valjean, porFantine (Uma Thurman), uma jovem me-solteira, abandonada prpria sorte, em umasociedade preconceituosa e cruel.

    A trama rica: repleta de notcias histricas da poca e de situaes em que a soluomais cmoda nem sempre a mais correta. So os dilemas enfrentados por Valjean: fazero que certo ou o que mais fcil? Dizer a verdade ou omiti-la? Fugir simplesmente ouenfrentar as adversidades?

    So os dilemas que todos ns enfrentamos na vida.

    Diariamente algo, ou algum, oferece-nos a oportunidade de sermos melhores do quesomos, e de escolhermos quem realmente seremos no futuro. um convite reformantima, transformao moral do ser.

    Muitas vezes a deciso mais acertada a mais difcil de ser tomada, a mais dolo-rosa de ser realizada. Na histria de Valjean, as decises que ele toma so sempre sur-preendentes e emocionantes. um exemplo de coragem e de redeno.

    * * *

    kinson quer passar com um carro ao outro lado da baa. Sua mulher est presa em Truc-kee. No poderia trazer a Lurlette de Tiburon para transportar-lhe o carro ao outro lado?

    A Lurlette era uma escuna de recreio ocenica de duzentas toneladas.

    Rollinson moveu negativamente a cabea:

    No conseguiria nenhum estivador para subir o carro a bordo, ainda no caso depoder trazer a Lurlette a este lado, coisa que nem sequer posso, pois a tripulao pertenceao Sindicato Litoral Marinheiro e esto em greve como os demais.

    Mas minha esposa pode estar morrendo de fome -pude ouvir lamentar-se Atkinsonenquanto eu continuava meu caminho. No outro extremo do salo de fumantes topeicom um grupo de scios furiosos e acalorados em torno de Bertie Messener. E Bertie osestava provocando e cutucando-os com seu cnico e desapaixonado estilo.

    A Bertie no preocupava a greve; a ele, na realidade, nada preocupava muito. Tudolhe era igual..., ao menos todas as coisas agradveis da vida; porque as desagradveis nolhe atraam. Sua fortuna se estimava em vinte milhes, toda em investimentos seguros,e jamais em sua vida havia feito nada de produtivo, pois tinha herdado tudo de seu paie dos tios. Tinha estado em todos os lugares, tinha visto tudo o que se pode ver e haviafeito tudo exceto casar-se, e este ltimo apesar dos resolutos e obstinados ataques de cen-tenas de ambiciosas mes. Durante anos, havia sido a pea mais cobiada; porm at omomento, tinha se esquivado da armadilha. Era um partido escandalosamente desejvel.

    Alm de sua fortuna, era jovem e bonito, e, como disse antes, decente. Era um grandeatleta, um jovem deus ruivo, capaz de realizar qualquer coisa com perfeio, salvo omatrimnio. E tudo lhe deixava indiferente. Carecia de ambies, paixes ou desejos delevar a cabo inclusive o que ele podia fazer melhor que ningum.

    Isto uma sedio! gritava um homem do grupo. Outro o qualificava de rebe-lio e revoluo, enquanto um terceiro o chamava de anarquia.

    Pois eu no vejo assim disse Bertie.

    Estive andando toda a manh pelas ruas. Reina a mais perfeita ordem. Jamais viuma plebe mais respeitosa com a lei. De nada serve insult-la. No nada do que estodizendo. simplesmente o que pretende ser: uma greve geral. E agora, senhores, cabe avocs participar.

    E ns vamos participar ento! exclamou Garfield, um dos milionrios da inds-tria de tratores. Vamos ensinar a essas bestas sujas o lugar que lhes corresponde! Espereque o governo tome p da situao.

    Mas onde est o governo? interrompeu Bertie. Ele bem podia estar no fundo domar, no que diz respeito a vocs. No sabem o que est ocorrendo em Washington. Nosabem sequer se existe governo ou no.

    No te preocupes por isso! saltou Garfield.

    Te asseguro que no estou preocupado respondeu Bertie com languidez .

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    Porm temo que vocs sim esto. Olhe-se no espelho, Garfield. Garfield no obedeceu;mas, se o tivesse feito, teria podido contemplar um cavalheiro extremamente alterado,com o cabelo gris revolto, o rosto inflamado, a boca taciturna e rancorosa e nos olhos umbrilho ameaador.

    Digo-lhes que no est certo disse o pequeno Hanover; e a julgar pelo tom,pensei que o tinha repetido j vrias vezes.

    Agora voc est indo longe demais, Hanover replicou Bertie. Rapazes, vocsme cansam. Esto todos pela contratao de trabalhadores no sindicalizados. Enjoam-

    me com esse sermo constante sobre a liberdade comercial e o direito ao trabalho. Levamanos com a mesma msica. O operariado no est fazendo nada de mal ao declarar estagreve geral. No infringe nenhuma lei divina nem humana. No diga nada, Hanover. Hmuito tempo voc vem predicando o direito divino a trabalhar... ou a no trabalhar; assimvoc no pode escapar ao corolrio. Tudo isto no mais que uma pequena briga suja esrdida. Sempre tiveram o operariado por baixo, e o pisotearam; e agora que eles os tma vocs e os pisoteiam, comeam a chiar.

    Todo o grupo irrompeu em indignados protestos de que alguma vez se tivesse oprim-ido ao operariado.

    No, senhor! gritava Garfield. Temos feito tudo pelo operariado. Longe deoprimir-lhe, temos dado a oportunidade de viver. Temos criado trabalho para ele. Comoestaria agora se no fosse por ns?

    Muito melhor, sem comparao explicou Bertie, zombando. Vocs o tm hu-milhado e pisoteado a cada oportunidade, e at criam as ocasies para isso.

    No, no! responderam em coro.

    Aqui mesmo, em So Francisco, ocorreu a greve de caminhoneiros continu-ou Bertie, imperturbvel. A Associao Patronal foi a que iniciou aquela greve. Vocssabem perfeitamente.

    E tambm sabem que eu o sei, porque aqui mesmo ouvi conversas e informaesconfidenciais sobre o conflito. Primeiro vocs provocaram a greve e logo contrataram oprefeito e o chefe de polcia para que acabassem com ela. Um bonito espetculo, vocsto filantropos, dando uma rasteira nos caminhoneiros e pisando-lhes em cima.

    Um momento! Ainda no acabei. Foi ainda no ano passado, a candidatura op-erria de Colorado elegeu um governador que nunca chegou a tomar posse. Vocs sabemporque. A maneira como o resolveram seus irmos filantropos e capitalistas de Colorado.Foi mais um caso de enganar ao operariado e pisotear-lhe. E o presidente da Unio deAssociaes Mineiras do Sudoeste, vocs o mantiveram trs anos no crcere valendo-sede falsas acusaes de assassinato, e uma vez sado de cena, aproveitaram para desfazera Unio. Reconheceriam que isso se chama oprimir ao operariado. A terceira vez que sedeclarou inconstitucional o impulso gradual foi um ato de opresso. E o mesmo com oprojeto de lei de oito horas que rejeitaram no ltimo congresso.

    Este gesto extremamente nobre do religioso devolve a f que aquele homem amar-gurado tinha perdido.

    Aps nove anos, com o nome de senhor Madeleine, ele se torna prefeito e principalempresrio em uma pequena cidade, mas sua paz acaba quando Javert, um guarda dapriso que segue a lei inflexivelmente, tem praticamente certeza de que o prefeito oex-prisioneiro que nunca se apresentou para cumprir as exigncias do livramento con-dicional.

    A penalidade para esta falta priso perptua, mas ele no consegue provar que o

    prefeito e Jean Valjean so a mesma pessoa.Neste meio tempo uma das empregadas de Valjean (que tem uma filha que cuidada

    por terceiros) despedida, se v obrigada a se prostituir e presa. Seu ex-patro descobreo que acontecera, usa sua autoridade para libert-la e a acolhe em sua casa, pois ela estmuito doente. Sentindo que ela pode morrer ele promete cuidar da filha, Cosette, masantes de pegar a criana sente-se obrigado a revelar sua identidade para evitar que umprisioneiro, que acreditavam ser ele, no fosse preso no seu lugar. Deste momento emdiante Javert volta a persegu-lo, a me da menina morre mas sua filha resgatada porValjean, que foge com a menina enquanto perseguido atravs dos anos pelo implacvelJavert.

    O tempo passa e a menina Cosette se apaixona profundamente por Marius, um joveme carismtico revolucionrio.

    Em plena revoluo de 1832, a busca incansvel de Jean Valjean pela redeno al-cana seu clmax quando ele escolhe sacrificar sua liberdade para salvar o grande amorde Cosette, at que um dia o confronto dos dois inimigos inevitvel, e s ento, atravsda grandeza de seu ato, Jean Valjean se sente verdadeiramente livre da perseguio imp-iedosa do policial Javert. Valjean teve de lutar muito para mostrar que era um homem debem e conseguir viver em paz.

    -------

    Em Os Miserveis o enfoque do autor para as instituies polticas e sociais. Comotodos os personagens centrais de Hugo em sua famosa trilogia (Nossa Senhora de Paris,Os Miserveis e Os Trabalhadores do Mar), Jean Vayean (como o grotesco e sublimeQuasmodo e o abnegado Gilliatt) um paradigma cristo do homem. Mas diferente-

    mente daqueles dois, no se limita a amar uma mulher seno toda a humanidade.. Vayean forte de corpo e esprito, terno, humilde, sensvel, caridoso e piedoso. Sua vida de fu-gitivo constante, com o sabujo encarniado e orgulhoso Javert no seu enlao (Javert rep-resenta a autoridade e o poder civis), um festival de solidariedade humana e combates injustias sociais geradas pelo prprio sistema. Percebe-se que as instituies sociaisno elevam e sequer prestigiam os homens verdadeiramente bons, condenando-os simao sacrifcio. Os Miserveis um romance grandioso no estilo narrativo e descritivo deHugo, que esbanja a elegncia, a riqueza e o fausto do barroco. Mas o romntico Hugotranscende os floreios da linguagem recheando essa estrutura estilstica de um contedorico e psicologicamente profundo: os movimentos dramticos da alma humana sacu-

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    Continuando nosso caminho, atravessamos a rua do Mercado e, pouco mais tarde,cruzvamos os bairros operrios. Aqui as ruas no estavam desertas.

    Apoiados nos portes ou em grupos estavam os operrios da I. L. W. Meninos bemalimentados e contentes se entretinham com seus jogos, enquanto robustas comadrestagarelavam sentadas s portas. Todos sem exceo nos olhavam brincalhes. Algunsgarotos, correndo atrs de nossos cavalos, gritavam:

    Ei, amigo! No tens fome?

    Diga, gordinho, te dou uma comida estupenda em troca de seu cavalo: presunto,

    batatas, gelatina de framboesa, manteiga de lata e dois copos de caf. Te ds conta - me comentou Hanover de que nos ltimos dias no se v nem

    um cachorro perdido pelas ruas?

    Eu havia notado, porm no pensei nisso antes. J era hora de abandonar a infortu-nada cidade.

    Finalmente pudemos alcanar a estrada de San Bruno, pela qual nos dirigimos at osul. Nossa meta era minha casa de campo perto de Menlo.

    Porm em seguida comeamos a descobrir que o campo estava pior e era muito maisperigoso que a cidade. Nesta, os soldados e a I. L. W. guardavam a ordem; no campo, aocontrrio, reinava a anarquia. Duzentas mil pessoas haviam fugido de San Francisco em

    direo ao sul, e ante os olhos tnhamos incontveis provas de que sua fuga teve o efeitode uma praga de gafanhotos. Tinham varrido tudo por sua passagem. Houvera pilhageme violncia. Aqui e ali se viam cadveres na beira da estrada, e runas enegrecidas dasgranjas incendiadas. Os muros haviam sido derrubados eas colheitas pisoteadas pelamultido. As hordas famintas haviam arrancado toda a vegetao das hortas. Todos osfrangos e animais das fazendas haviam sido sacrificados. E o mesmo se podia dizer detodas as estradas principais que partiam de San Francisco. Em alguns locais distantesda estrada, os granjeiros haviam se defendido com escopetas e revlveres, e ainda semantinham vigilantes.

    Advertiram-nos que no nos aproximssemos e se negaram a falar conosco. Todosos atos de violncia e pilhagem haviam sido ma histria comovente de solidariedade eesperana. Entremeado de amor, honra, obsesso e redeno, Os Miserveis um dos

    mais conhecidos romances franceses.No incio do sculo XIX, na Frana, Jean Valjean rouba um pedao de po para os

    sobrinhos famintos e injustamente condenado a priso e a marginalidade.

    Aps cumprir 19 anos de priso com trabalhos forados, Jean Valjean acolhido porum gentil bispo, que lhe d comida e abrigo. Mas havia tanto rancor na sua alma que nomeio da noite ele rouba a prataria e agride seu benfeitor, mas quando Valjean preso pelapolcia com toda aquela prata ele levado at o bispo, que confirma a histria de lhe terdado a prataria e ainda pergunta por qual motivo ele esqueceu os castiais, que devemvaler pelo menos dois mil francos.

    Porm de todos os contnuos atos de opresso imoral o da destruio do princpiode acordo patronal-sindicato foi o cmulo. Sabem perfeitamente como se fez. Vocscompraram Farburg, o ltimo presidente da American Federation of Labour.

    Ele era o homem de vocs..., ou o homem dos monoplios e patronais, que d nomesmo. Aprovaram a greve sobre o grande acordo patronal-sindicato. Farburg traiuessa greve e vocs ganharam, com o que a velha American Federation of Labour sedesmoronou. Vocs a destruram, rapazes; porm, ao faz-lo, buscaram sua prpria runa,porque sobre seus escombros se constituiu a I.L.W., a maior e mais slida organizaooperria que jamais se viu nos Estados Unidos. E vocs so os responsveis de sua ex-

    istncia e desta greve geral de agora. Destroaram as velhas federaes e empurraramo operariado I.L.W., e agora est convocada a greve geral, tratando, todavia de obtero acordo patronal-sindicato. E vocs ainda tm o cinismo de dizer-me cara a cara quenunca humilharam nem oprimiram ao operariado. Arrh.

    Desta vez no houve protestos. Garfield prorrompeu em um tom de auto-defesa:

    No temos feito nada que no nos vssemos obrigados a fazer, se queramos gan-har.

    A respeito disso, eu no digo nada respondeu Bertie. O que me incomoda queesto se queixando agora porque eles os tm feito provar de seu prprio remdio. Quan-tas greves vocs ganharam rendendo o operariado pela fome? Bem, os trabalhadoresidealizaram um plano para render a vocs da mesma maneira. Querem a conveno, e se

    podem obt-la fazendo-lhes passar fome, deixaram-lhes sem comida.

    Pois voc tambm tem aproveitado desses atos de opresso de que est falando-insinuou Brentwood, um dos advogados mais astutos entre ns. O receptador to cul-pado quanto o ladro comentou, zombando. No participa na opresso, porm bemse aproveita dela.

    A questo no essa, Brentwood -respondeu Bertie. Voc comete o mesmo erroque Hanover ao introduzir o elemento moral. Eu no disse que se trata de algo bomou mal. Disse que um jogo lamentvel, e minha nica objeo a que se ponham achiar agora que esto por baixo e os esto pisando. claro que tenho tirado proveito daopresso e, graas a vocs, sem ter sequer que sujar as mos. Vocs tm feito isso pormim...

    Podem crer-me, no porque eu seja mais virtuoso que vocs, seno porque meu bompai e seus irmos me deixaram um monte de dinheiro com o que pagar o trabalho sujo.

    Se pretende insinuar... -comeou a dizer Brentwood vivamente.

    Um momento, no fique to ofendido -- interrompeu-lhe Bertie com insolncia.De nada serve fazer-se hipcrita neste covil de ladres. As palavras grandiloquentesso boas para os jornais, as associaes juvenis e as catequeses: isso faz parte do jogo.Porm, pelo amor de Deus, que aqui todos nos conhecemos. Voc sabe to bem quantoeu as falcatruas que se fizeram na greve da construo no outono passado: quem ps odinheiro, quem fez o trabalho e quem se aproveitou dele -- Brentwood enrubesceu de ira.

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    Porm aqui estamos todos metidos na mesma merda, e o melhor que podemos fazer deixarmos de moralismos. Insisto: h que se jogar a partida, jog-la at o final; porm,por favor, no chorem quando esto a perder.

    Quando abandonei o grupo, Bertie havia comeado um novo argumento, atormentan-do-lhes agora com os aspectos mais srios da situao, assinalando a escassez de supri-mentos que est comeando a deixar-se sentir e perguntando-lhes o que pensavam fazerpara remedi-lo. Pouco mais tarde encontrei-o no vestbulo e o levei para casa em meucarro.

    Tem sido um bom golpe esta greve geral -- disse enquanto rodvamos entre aordeira gente que enchia as ruas. Tem sido um golpe de mestre.

    O operariado nos encontrou cochilando e nos pegou pelo lado mais frgil: o estma-go. Vou-me embora de San Francisco, Corf. Segue meu conselho e vai tambm. Vai parao campo, ou a qualquer lugar.

    Ali haver mais possibilidades. Faz uma boa proviso de vveres e vai para umacabana, ou com uma barraca de acampamento a qualquer lugar. Nesta cidade as pessoascomo ns logo passaro fome.

    Nunca imaginei quanta razo tinha Bertie Messener. Eu decidi que ele era um alarm-ista. De minha parte, estava disposto a ficar para ver a festa.

    Depois de deix-lo, em vez de ir diretamente para casa continuei em busca de mais

    alimentos.Com grande surpresa, me dei conta de que as pequenas lojas onde havia comprado

    pela manh tinham esgotado seus estoques. Estendi minha busca at o Potrero, e ali tivea sorte de encontrar outra caixa de velas, dois sacos de farinha de trigo, dez libras defarinha de trigo integral (que serviriam para a criadagem), uma caixa de latas de milho eduas de tomates enlatados. Parecia que amos atravessar uma temporada de escassez devveres, e me felicitei pela importante proviso deles que havia conseguido.

    Na manh seguinte, tomei o caf na cama como de costume, e, mais que o leite, noteia falta do jornal. A falta de informao sobre o que estava ocorrendo no mundo era omais difcil para mim. No clube poucas notcias havia. Rider havia conseguido atravessardesde Oakland em sua embarcao, e Halsted tinha chegado at San Jos e regressado

    em seu automvel. Foram eles que informaram de que naqueles lugares as condieseram as mesmas que em San Francisco. Tudo estava paralisado pela greve. As classesabastadas haviam esgotado os estoques dos armazns. E reinava uma ordem perfeita.Porm o que estava sucedendo no resto do pas? Em Chicago? Nova York? Washington?O mais provvel era que ocorresse o mesmo que aqui: essa era nossa concluso; pormo fato de no sab-lo com absoluta certeza resultava irritante.

    O general Folsom tinha algumas notcias.

    Havia tentado utilizar telegrafistas do exrcito nas oficinas de telgrafo, porm havi-am cortado os cabos em todas as direes. Aquele era, at aquela data, o nico ato ilegal

    As ruas estavam desertas. Aqui e ali se viam automveis, abandonados no mesmo lugaronde tinham se avariado ou onde se lhes havia acabado a gasolina.

    No se observavam sinais de vida, salvo por algum policial ou grupos de soldadosque vigiavam os bancos e prdios pblicos. Em uma ocasio nos encontramos com umoperrio da I.L.W. dele pegando o ltimo panfleto, e nos detivemos a l-lo.

    Dizia assim:

    Temos mantido uma greve

    disciplinada e manteremos

    a ordem at o final.

    O final chegar quando

    se satisfaam nossas

    reivindicaes, e nossas

    reivindicaes sero

    satisfeitas quando tenhamos

    rendido pela fome a

    nossos patres, do mesmo

    modo que nos renderam a

    ns muitas vezes no passado.

    -- As mesmas palavras de Messener --disse Collins. Eu, por mim, estou disposto arender-me contanto que me dem a oportunidade. Faz um sculo que no como umacomida decente. E me pergunto qual ser o gosto da carne de cavalo.

    Nos detivemos a ler outro panfleto:

    Quando acreditarmos que os

    patres estejam dispostos

    a render-se, abriremos os

    telgrafos e poremos em

    comunicao as associaes

    patronais do pas. Porm unicamente

    se lhes permitir enviar mensagens

    relativas s condies de paz.

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    ficado. Senti-me comovido por sua fidelidade, e quando me dei conta de que no haviacomido nada o dia todo, compartilhei com ele minhas provises.

    Comemos a metade do arroz e a metade do bacon, dividindo-o em partes iguais ereservando a outra metade para o dia seguinte. Fui para cama com fome e no pude con-ciliar o sono durante toda a noite. Pela manh descobri que Brown me havia abandonadoe, para maior desgraa, me havia roubado o que restava do arroz e do bacon.

    O punhado de scios que se reuniu quela manh no clube apresentava um aspectoabatido.

    No havia rastro dos serviais. Todos os empregados haviam desaparecido. Pude ob-servar tambm que a prataria havia desaparecido, e fiquei sabendo para onde tinha ido. Eno foram os empregados que a levaram, pela simples razo, suponho, de que os prpriosscios do clube haviam se antecipado. A maneira de utiliz-lo era simples.

    Ao sul da rua do Mercado, nas residncias dos I.L.W., as donas de casa haviam for-necido comida em abundncia em troca dele. Voltei para casa.

    Efetivamente, toda a prataria havia desaparecido exceto um pesado jarro. Embrulhei-o e me dirigi com ele ao sul do Mercado.

    Depois da comida me senti melhor e regressei ao clube para inteirar-me se tinhahavido alguma mudana. Hanover, Collins e Dakon caminhavam naquele momento. Norestava nada dentro, me disseram, e me convidaram a unir-me a eles.

    Propunham-se a abandonar a cidade utilizando os cavalos de Dakon, e havia um paramim. Dakon possua quatro formosos cavalos de carruagem que queria salvar, pois ogeneral Folsom lhe havia contado que na manh seguinte seriam confiscados os cavalosque restavam na cidade para servirem de alimento. No restavam j muitos porque havi-am soltado milhares e milhares deles pelo campo quando o feno e a cevada se acabaramnos primeiros dias. Recordo que Birdall, que tinha um negcio de transportes, soltoutrezentos cavalos.

    A uma mdia de quinhentos dlares cada um, a cifra havia alcanado os 150.000dlares. A princpio manteve a esperana de recuperar a maioria quando acabasse a greve,porm ao final no recuperou nem um. Foram todos comidos pelas pessoas que fugiramde San Francisco. Neste sentido, os cavalos e mulas do exrcito j haviam comeado a

    ser sacrificados para servir de alimento.Por sorte para Dakon, ele tinha armazenado em seu estbulo feno e cevada em abun-

    dncia.

    Conseguimos quatro selas de montar e encontramos os animais em excelentes con-dies, ainda que no habituados montaria. Enquanto cavalgvamos pelas ruas merecordei do Grande Terremoto de San Francisco; porm o aspecto desta San Franciscoera muito mais lamentvel. Isto no havia sido causado por nenhum cataclismo natural,seno pela tirania das associaes operrias.

    Descemos pela Union Square e passamos pelas zonas de teatros, hotis e comrcios.

    cometido pelos trabalhadores, e o general estava completamente convencido de que setratava de uma ao acordada de antemo. Havia se colocado em contato por rdio com aguarnio de Benicia, j que os soldados patrulhavam ali por todo lado as linhas telegr-ficas at Sacramento. Em uma ocasio, durante um instante, receberam a chamada deSacramento, porm os cabos, em algum lugar, haviam sido cortados de novo. O generalpensava que, em todo o continente, estavam sendo empreendidas tentativas similaresde estabelecer as comunicaes por parte das autoridades, porm mostrou-se evasivoquanto possibilidade de que dessem frutos essas tentativas. O que lhe preocupava erao corte dos cabos, pois isso lhe fazia pensar que se tratava de uma parte importante da

    profunda conspirao operria. Assim mesmo lamentava que o governo no houvesseestabelecido h mais tempo a projetada rede de estaes de rdio.

    Passaram os dias e por algum tempo reinou a rotina. No ocorria nada. A chamado interesse parecia haver-se apagado. As ruas j no estavam to animadas. A classetrabalhadora havia deixado de vir ao centro da cidade para ver como enfrentvamos agreve. E tampouco circulavam tantos automveis. As oficinas mecnicas e as garagensestavam fechadas, de maneira que, quando se avariava um carro, ficava completamenteinutilizado.

    A embreagem do meu se estropiou e no pude conseguir que me consertassem pornenhum meio. Agora, como os demais, tinha que caminhar. San Francisco estava morta,e ignorvamos o que estava se sucedendo no resto do pas. No obstante, a partir do fatomesmo de nossa ignorncia, podamos concluir que tudo estava to morto como aqui.

    De quando em quando, a cidade aparecia cheia de cartazes com as declaraes das or-ganizaes operrias, cartazes impressos com meses de antecipao que evidenciavama meticulosidade com que a I.L.W. havia preparado a greve. Todos os detalhes haviamsido previstos de antemo. No havia ocorrido nenhuma violncia, com a exceo dosdisparos efetuados pelos soldados contra uns indivduos que cortavam cabos; mas as pes-soas dos bairros pobres estavam passando fome, e sua situao pressagiava tumultos.

    Os homens de negcios, os milionrios e a classe profissional convocavam assem-blias e apresentavam propostas, porm no havia manei ra de faz-las pblicas. Nemsequer podiam imprimi-las. Um dos resultados destas assemblias, no obstante, foi o depersuadir ao general Folsom para que o exrcito ocupasse todos os armazns e depsitosde farinha, gros e vveres. J no era sem tempo, o padecimento estava se fazendo sentirnas casas dos ricos, e as filas do po se faziam necessrias.

    Sei que meus criados comeavam a andar acabrunhados, e eram surpreendentes osestragos que faziam em minhas reservas de alimentos. De fato, como deduzi posterior-mente, cada um dos serviais se dedicava a roubar-me para acumular em segredo seuprprio estoque de provises.

    Porm com a criao de filas de po vieram novos conflitos. A reserva de alimentosem San Francisco era limitada e, no melhor dos casos, no podia durar muito. Sabamosque as organizaes operrias tinham seus prprios suprimentos; no entanto, todos osoperrios se puseram s filas. Deste modo, as provises que o general Folsom havia

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    expropriado diminuram com perigosa rapidez.

    Como iam distinguir os soldados entre um modesto indivduo de classe mdia, ummembro da I.L.W. ou algum dos bairros pobres? Tanto os primeiros como os ltimostinham que ser alimentados; porm os soldados no conheciam todos os homens da sin-dical, e muito menos as esposas e filhos e filhas destes. Com a colaborao dos patres,alguns sindicalistas foram retirados das filas; porm isso e nada era a mesma coisa. Parapiorar, as lanchas governamentais que haviam estado carregando alimentos dos depsi-tos do exrcito na Ilha Mare at a Ilha Angel, deram-se conta de que j no havia nadaque transportar. Desde ento, os soldados recebiam suas raes de provises confiscadas,

    e eram eles quem as recebiam em primeiro lugar.O princpio do fim j estava vista. A violncia comeava a mostrar seu terrvel

    semblante.

    A lei e a ordem comeavam a desaparecer; e desapareciam precisamente entre osmais pobres e as classes abastadas. Os operrios organizados continuavam guardandoa mais perfeita ordem. Verdade que tinham meios para isso, pois tinham comida emabundncia. Recordo a tarde em que surpreendi Halsted e Brentwood cochichando emum canto do clube. Aceitaram minha participao na aventura. O carro de Brentwood,todavia funcionava, e tinham a inteno de ir roubar gado.

    Halsted tinha um cutelo de aougueiro e um machado.

    Samos da cidade. Aqui e ali se viam vacas pastando, porm sempre guardadas porseus donos.

    Continuamos nossa busca, circundando a cidade at o leste, e nas colinas prximas Ponta do Caador encontramos uma vaca vigiada por uma garotinha. Junto vaca haviatambm um bezerro.

    No perdemos tempo em contemplaes. A menina escapou correndo enquanto nsmatva mos a vaca. Omito os detalhes por no serem estes muito agradveis. No est-vamos habituados a tais afazeres e fizemos um trabalho lastimoso.

    Mas quando estvamos no meio dele, com a pressa do medo, ouvimos gritos e vimosvir correndo em direo a ns um grupo de homens.

    Abandonando o butim, pusemos os ps em polvorosa. Com grande surpresa de nossa

    parte, no nos perseguiram; porm ao olhar para trs vimos como os homens despedaa-vam o animal. Seu objetivo era o mesmo que o nosso. Decidimos que havia bastante paratodos e voltamos correndo. A cena que seguiu foi indescritvel. Na diviso, disputamose brigamos como selvagens. Recordo que Brentwood se comportou como uma perfeitabesta, rugindo, mostrando os dentes e ameaando matar algum se no levssemos nossaparte.

    E quando estvamos a ponto de consegui-la, uma nova interveno teve lugar nacena. Desta vez se tratava do temido servio de ordem da I.L.W. A garotinha lhes haviatrazido. Vinham armados de cordas e paus, e eram uns vinte. A garota dava saltos de fria

    e, com lgrimas rolando pelas faces, gritava:

    Mostre a eles! Mostre a eles! Esse de culos, foi ele! Parte-lhe a cara!

    O dos culos era eu, e me partiram a cara, por certo, ainda que tivesse a serenidadesuficiente para retirar antes os culos. Caramba! A verdade que nos deram uma boasurra enquanto corramos em debandada.. Brentwood, Halsted e eu corremos em direoao carro. Brentwood sangrava pelo nariz, enquanto Halsted mostrava em seu rosto umcorte escarlate provocado por uma tremenda chicotada.

    E, assim que terminada a perseguio e quando havamos j alcanado o carro, en-

    contramos o assustado bezerro escondido detrs dele.Brentwood nos pediu que vigissemos com cuidado e, como um lobo a um tigre,

    se acercou sigilosamente do animal. Havamos perdido o cutelo e o machado, porm aBrentwood lhe restavam ainda as mos, e rodou vrias vezes pelo solo abraado ao pobrebezerrinho enquanto o estrangulava.

    Arremessamos o animal morto dentro do carro, cobrimos com um casaco e iniciamoso regresso.

    No entanto, nossas desgraas no haviam feito mais que comear. Arrebentou-nosum pneu. No havia maneira de consert-lo e a noite se lanava sobre ns. Abandonamoso veculo. Brentwood caminhava na frente ofegante e cambaleando-se com o bezerrocarregado nos ombros, coberto com o casaco. Nos revezvamos para levar o animal,

    o qual esteve a ponto de acabar conosco. Logo nos perdemos. E, finalmente, depois deandar sem rumo, esgotados, topamos com um bando de desordeiros. No eram da I.L.W.,e suponho que estavam to famintos quanto ns. De todo modo, eles levaram o bezerroe ns ficamos com a surra.

    O resto do caminho, Brentwood veio zangandose feito um louco furioso, coisa queademais parecia, por suas roupas destroadas, seu nariz inchado e os olhos arroxeados.

    Depois daquilo, acabaram-se os roubos de gado. O general Folsom mandou confiscartodo o gado a seus soldados, e estes, ajudados pela milcia nacional, comeram a maiorparte da carne. No entanto a culpa no era do general. Seu dever era manter a lei e aordem, e como os mantinha por meio dos soldados, estava obrigado a alimentar-lhes emprimeiro lugar.

    Foi quando se produziu o grande pnico. Os ricos empreenderam a fuga; logo, oshabitantes dos bairros pobres se contagiaram e fugiram enlouquecidos da cidade. O gen-eral Folsom estava satisfeito.

    Calculava-se que pelo menos duzentas mil almas haviam abandonado San Francisco,e nesta mesma proporo se havia resolvido o problema de aliment-los. Ainda recordoaquele dia. Pela manh tinha comido um resto de po. Havia passado metade da tardede p na fila do po, e regressado para casa de noite cansado e abatido, levando poucomais de um quilo de arroz e um pedao de bacon. Brown me recebeu na porta com gestocansado e assustado. Informou-me que todos os empregados haviam fugido. S ele havia