AFINAL, POROUE OSCONSCRITÕS NÃOVOTAM?

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.. NATALIA SOUZA DOS SANTOS pelo tempo devido. Ou seja, conscrito será a pessoa incor- porada às Forças Armadas, enquanto durar essa situação. Durante esse período, lhe serão vedados tanto o alistamento eleitoral quanto o voto, e, como consequência lógica, sua elegibilidade para qualquer cargo eletivo no País. 2 Dois últimos detalhes relativos ao conceito exposto dizem respeito aos demais integrantes das Forças Armadas, os quais guardam seus direitos políticos ativos, devendo ser observadas as normas específicas quanto à possibilidade de exercício de direitos políticos em sua esfera passiva 3 , bem como à interpretação dada ao termo "conscrito" pelo Tribunal Superior Eleitoral, que na Consulta nO 10.471/89, formulada pelo então Ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, o qual questionava a abrangência da expressão segundo os termos insculpidos no § 2° do art. 14 da Cons- tituição Federal, consignou estarem incluídos no conceito os convocados à prestação de serviço militar obrigatório, os alunos matriculados em órgãos de formação de reservas e os médicos, dentistas, farmacêuticos e veterinários 4 No que pertine à ANC de 87/88, deve-se dizer que o tema em análise foi debatido de forma calorosa em alguns momentos, abarcando constituintes simpatizantes a uma e outra posição, quais sejam, à manutenção de vedação dos AFINAL, POR OUE OS CONSCRITÕS NÃO VOTAM? "NaAssembleia Nacional Constituinte de 8 7/8 8, prevaleceu o entendimento da maioria, que julgou correto que os militares conscritos estivessem prontos para defender a população (e por que não a própria democracia?) caso fosse preciso utilizar sua força ante qualquer uma das normas que legitimam a sua propositura:' O impedimento de conscritos exercerem o direito-dever de votar encontra -se no § 2° do art. 14da Constituição Federal de 1988e merece análise sob o ponto de vista da Assembleia Nacional Constituinte de 87/88, momento mais expressivo dos debates em torno da questão. A partir das discussões tecidas pelos constituintes é possível entender o motivo pelo qual mantiveram o postulado já levantado em outras consti- tuições brasileiras!, reproduzindo com letra fria a restrição, ao invés de promoverem a abertura democrática, que era o maior anseio da população brasileira. O serviço militar obrigatório é retratado em nossas Constituições desde a Carta de 1824, que já trazia, em seu art. 145, esse imperativo. O alistamento, que já se deu de diversas formas, inclusive por sorteio, atualmente é reali- zado em etapas, e o número de jovens selecionados a servir é sempre proporcional à população do País no ano de cada recrutamento. Antes de tratar do tema propriamente dito, necessário se faz traçar o conceito da expressão "conscrito", que, segundo Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, é o recrutado para servir o Exército, não o integrando na condição de pro- fissional, mas sim na condição de cidadão em cumprimento com o ônus constitucional de prestação de serviço militar

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..NATALIA SOUZA DOS SANTOS

pelo tempo devido. Ou seja, conscrito será a pessoa incor-porada às Forças Armadas, enquanto durar essa situação.Durante esse período, lhe serão vedados tanto o alistamentoeleitoral quanto o voto, e, como consequência lógica, suaelegibilidade para qualquer cargo eletivo no País.2

Dois últimos detalhes relativos ao conceito exposto dizemrespeito aos demais integrantes das Forças Armadas, osquais guardam seus direitos políticos ativos, devendo serobservadas as normas específicas quanto à possibilidadede exercício de direitos políticos em sua esfera passiva3,

bem como à interpretação dada ao termo "conscrito" peloTribunal Superior Eleitoral, que na Consulta nO10.471/89,formulada pelo então Ministro do Exército Leônidas PiresGonçalves, o qual questionava a abrangência da expressãosegundo os termos insculpidos no §2° do art. 14 da Cons-tituição Federal, consignou estarem incluídos no conceitoos convocados à prestação de serviço militar obrigatório, osalunos matriculados em órgãos de formação de reservas e osmédicos, dentistas, farmacêuticos e veterinários4•

No que pertine à ANC de 87/88, deve-se dizer que otema em análise foi debatido de forma calorosa em algunsmomentos, abarcando constituintes simpatizantes a uma eoutra posição, quais sejam, à manutenção de vedação dos

AFINAL, POR OUEOS CONSCRITÕS NÃO VOTAM?"NaAssembleia Nacional Constituinte de 8 7/8 8, prevaleceu oentendimento da maioria,que julgou correto que os militares conscritos estivessem prontos para defender apopulação (e por que não a própria democracia?) caso fosse preciso utilizar sua forçaante qualquer uma das normas que legitimam a sua propositura:'

O impedimento de conscritos exercerem o direito-deverde votar encontra -se no §2°do art. 14da Constituição Federalde 1988e merece análise sob o ponto de vista da AssembleiaNacional Constituinte de 87/88, momento mais expressivodos debates em torno da questão. A partir das discussõestecidas pelos constituintes é possível entender o motivo peloqual mantiveram o postulado já levantado em outras consti-tuições brasileiras!, reproduzindo com letra fria a restrição,ao invés de promoverem a abertura democrática, que era omaior anseio da população brasileira.

O serviço militar obrigatório é retratado em nossasConstituições desde a Carta de 1824, que já trazia, em seuart. 145, esse imperativo. O alistamento, que já se deu dediversas formas, inclusive por sorteio, atualmente é reali-zado em etapas, e o número de jovens selecionados a serviré sempre proporcional à população do País no ano de cadarecrutamento.

Antes de tratar do tema propriamente dito, necessário sefaz traçar o conceito da expressão "conscrito", que, segundoCelso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, é o recrutadopara servir o Exército, não o integrando na condição de pro-fissional, mas sim na condição de cidadão em cumprimentocom o ônus constitucional de prestação de serviço militar

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votos dos conscritos e à desnecessidade de tal limitação,fazendo com que essa norma imperativa, constante deConstituições passadas, fosse superada.

Exemplo de debate pode ser trazido com a fala de Moza-rildo Cavalcanti (PFL-RR), o primeiro a externar a questãodurante a ANC, tendo levantado o tema mesmo antes de avotação do Regimento Interno da Constituinte ter sido con-cluída. Em 17 de fevereiro de 1987, o constituinte assumiua tribuna para discursar sua tese favorável à permissão dosvotos dos conscritos, sustentando ser uma afronta ao direitode igualdade a permanência infundada de tal proibição, nointuito de que a Constituição que estava por vir efetivassea verdadeira democracia.

Farabulini Júnior (PTB-SP), em 12 de março de 1987,juntou-se à causa, demonstrando simpatia à tese de per-missão do voto dos conscritos. Depois foi a vez de MendesRibeiro (PMDB-RS)se pronunciar a favor do voto dos cons-critos, fazendo com que sua posição constasse dos anaisda Constituinte, em 10 de abril de 1987. Na mesma data,Gonzaga Patriota (PMDB-PE) apresentou proposta emPlenário bastante interessante, e que fazia crer cumprir osanseios da população da época.

Propôs o nobre constituinte que os militares seriamalistáveis, independentemente do posto que ocupassem.Nesses termos, trazia ao exercício da democracia indiretaum contingente imenso de pessoas privadas de exercer ademocracia por meio do voto. Gonzaga Patriota afirmou,em sua justificativa, não entender o motivo pelo qual oscabos e soldados não podiam exercer o direito do voto, jáque esta é a forma de se exercer a cidadania, e ser cidadãoera uma das exigências para que a pessoa pudesse desem-penhar o ofício de cabo ou soldado. Por esta razão, entendiaque a restrição constitucional ao direito de voto seria, nomínimo, incongruente.

Em 7 de maio de 1987,Michel Temer (PMDB-SP)assumiua tribuna e, com breves palavras, comunicou a apresentaçãode projeto que estendia aos conscritos o direito de votar,o que legitimaria o exercício da cidadania, argumentandoque as normas que restringem tal exercício devem ser,sempre, excepcionais.

A proposta do constituinte Paulo Delgado (PT-MG),submetida à votação no dia 3 de março de 1988, trazia apossibilidade de os conscritos votarem, conferindo-lheso exercício democrático indireto. Após ser submetida àvotação em Plenário, no entanto, do total de 434 consti-tuintes, contando apenas dez abstenções dentre o total devotantes, 295 foram contrários à proposta, negando aos

conscritos o exercício do direito de vàto durante o períodode serviço militar obrigatório.

Tal emenda deu-se por encerrada em virtude da teselevantada de que cabe aos militares conscritos a manu-tenção e a promoção da paz e da ordem no caso de haveralguma manifestação no dia das eleições. Outra tese quefundamentou a decisão tomada pela ANC defendia quenão chegariam informações necessárias ao exercício dovoto aos jovens conscritos, já que estes estariam incomu-nicáveis, ou seja, distantes de quaisquer informações sobreos candidatos a cargos eletivos. O constituinte Del BoscoAmaral (PMDB-SP) foi à tribuna antes de a emenda sersubmetida à votação e discursou nesse sentido, para queo Plenário rejeitasse "a emenda que é bem-intencionada,é democrática, mas virá mais adiante, quando nós purifi-carmos o sistema do serviço militar obrigatório".

Nesse ponto, faz-se necessário dizer que, embora fossemnítidos os anseios dos constituintes, e aqui incluímos osanseios da população como um todo, já que esta teve partici-pação direta no processo, a proposta que daria aos militaresconscritos o direito de exercer seu voto e, por conseguinte,a sua cidadania não foi aprovada em virtude de a maioriados constituintes entenderem por bem recusar tal emenda,embora ela fosse necessária ao correto exercício da demo-cracia. O País buscava, naquele momento, desvencilhar-sede todo e qualquer resquício ditatorial e que não assegurasseo exercício correto e pleno da democracia, por isso auto-rizar o voto de tais militares seria a medida mais ajustadapara que a máxima participação popular fosse observada.

No entanto, podemos dizer que o que imperou, naquelaocasião, foi o bom-senso geral, já que os constituintesvisaram salvaguardar, em última instância, a integridadefísica da população. Prevaleceu o entendimento da maioria,que julgou correto que os militares conscritos estivessemprontos para defender a população (e por que não a pró-pria democracia?) caso fosse preciso utilizar sua força antequalquer uma das normas que legitimam a sua propositura.

Nesse sentido, embora grande parte das pessoas, aindahoje, ou talvez mais ainda hoje, julgue o §2° do art. 14 daConstituição Federal norma descabida e sem razão de existir,já que há muito tempo não enfrentamos traços ditatoriaisno sistema, e que a informação poderia chegar aos militaresconscritos sem que existisse clara influência alheia, devemospensar que a ordem democrática deve ser salvaguardada poralguém, e que os militares impedidos de votar podem seressenciais ao exercício democrático cumprindo seu papelfrente à sociedade e ao Estado Democrático de Direito. 11

NOTAS1 As Constituições anteriores à de 1988 (como as de 1946, 1967 e 1969) impediam também o alistamento de praças, cabos e soldados.2 BASTOS,Celso Ribeiro; MARTINS,Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. 3. ed. V. 11. São Paulo: Saraiva,2004, p. 583.3 Entende-se por direitos políticos ativos aqueles que incluem a capacidade eleitoral ativa, qual seja,a de exercer o voto; ser alistável, por-

tanto. A capacidade eleitoral passiva compreende o direito de ser votado, ou seja, a elegibilidade.4 A Lei n° 5.292/67 dispõe sobre a prestação do serviço militar obrigatório por estudantes e profissionais das áreas de Medicina, Odonto-

logia, Farmácia e Medicina Veterinária.

Esta coluna é de responsabilidade do Instituto Brasiliense de Direito Público.

NATALIA SOUZA DOS SANTOS é graduanda em Direito e compõe o subgrupo Direitos Políticos do grupo de pesquisa Reconstrução Histórico da Canstituinte doInstituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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