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ANÁLISE DA REDE GEOGRÁFICA E DA PERDA DE DENSIDADE DA ASSOCIAÇÃO DE MULHERES RURAIS DO MUNICÍPIO DE ESPERA FELIZ – MG Fernanda Aparecida Chambela Mestranda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense Elzira Lúcia de Oliveira Professora adjunta Universidade Federal Fluminanse RESUMO Esse artigo discute as questões que envolvem articulação, conexão, fluxo e movimento, que estruturam e estabelecem interações espaciais materializadas e não materializadas dentro de uma determinada rede. Considerando a rede formada pela Associação de Mulheres Rurais do município de Espera Feliz – Minas Gerais – Brasil, desde a década de 1980, analisou-se a atuação da mulher em busca de seu empoderamento e ao mesmo tempo a atrição entre seus elos ao longo dos anos. Tendo como referencial teórico a literatura sobre redes e a participação da mulher rural na sociedade considerando uma abordagem de gênero, o trabalho tem como objetivo analisar a rede geográfica formada por essa Associação de Mulheres, bem como os motivos que levaram à perda de densidade ao longo de sua existência. Para alcançar tal objetivo buscou-se, por meio de técnicas qualitativas, identificar os agentes sociais envolvidos na rede, compreender a integração articulada pelos grupos de mulheres, as escalas de atuação da associação, a participação dos envolvidos, e entender como a espacialidade desses grupos vem se alterando ao longo do tempo. Além disso, tal como aponta a dinamização das redes e a constante tensão entre as configurações que a mesma comporta, percebe-se uma crescente atrição entre os nós da Associação, ocasionada entre outros motivos por diferenças de opiniões entre os agentes e busca por novas oportunidades no espaço urbano. A associação proporcionou maior integração entre as pessoas, formando laços de afinidade e fortalecendo uma rede social dentro das comunidades e entre elas, pois acabavam por envolver familiares, amigos, profissionais da área de saúde, instituições governamentais e religiosas, além de atividades econômicas desenvolvidas através do artesanato. A maioria das mulheres ativas nos grupos da associação tem renda própria,

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ANÁLISE DA REDE GEOGRÁFICA E DA PERDA DE DENSIDADE DA ASSOCIAÇÃO DE MULHERES RURAIS DO MUNICÍPIO DE ESPERA FELIZ – MG

Fernanda Aparecida ChambelaMestranda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense

Elzira Lúcia de OliveiraProfessora adjunta Universidade Federal Fluminanse

RESUMO

Esse artigo discute as questões que envolvem articulação, conexão, fluxo e movimento, que estruturam e estabelecem interações espaciais materializadas e não materializadas dentro de uma determinada rede. Considerando a rede formada pela Associação de Mulheres Rurais do município de Espera Feliz – Minas Gerais – Brasil, desde a década de 1980, analisou-se a atuação da mulher em busca de seu empoderamento e ao mesmo tempo a atrição entre seus elos ao longo dos anos. Tendo como referencial teórico a literatura sobre redes e a participação da mulher rural na sociedade considerando uma abordagem de gênero, o trabalho tem como objetivo analisar a rede geográfica formada por essa Associação de Mulheres, bem como os motivos que levaram à perda de densidade ao longo de sua existência. Para alcançar tal objetivo buscou-se, por meio de técnicas qualitativas, identificar os agentes sociais envolvidos na rede, compreender a integração articulada pelos grupos de mulheres, as escalas de atuação da associação, a participação dos envolvidos, e entender como a espacialidade desses grupos vem se alterando ao longo do tempo. Além disso, tal como aponta a dinamização das redes e a constante tensão entre as configurações que a mesma comporta, percebe-se uma crescente atrição entre os nós da Associação, ocasionada entre outros motivos por diferenças de opiniões entre os agentes e busca por novas oportunidades no espaço urbano. A associação proporcionou maior integração entre as pessoas, formando laços de afinidade e fortalecendo uma rede social dentro das comunidades e entre elas, pois acabavam por envolver familiares, amigos, profissionais da área de saúde, instituições governamentais e religiosas, além de atividades econômicas desenvolvidas através do artesanato. A maioria das mulheres ativas nos grupos da associação tem renda própria, exercem cargos de liderança nas Pastorais da igreja católica, organizam seus próprios passeios e viagens, e atribuem todas essas questões aos exemplos e experiências que vivenciaram ao longo dos anos enquanto participantes da associação, que segundo as mesmas, lhes proporcionaram espaço, vez e voz.

Palavras-chave: Rede. Conexão. Associação. Território. Atrição.

Introdução

Uma rede é uma comunidade em uma dinâmica territorial e, como tal pressupõe identidades a serem descobertas pelo coletivo; por isso, participar envolve algo mais do que apenas trocar informações a respeito dos trabalhos que um grupo de pessoas realiza, mas, estar em rede, significa realizar conjuntamente ações concretas que transforme o meio e se chegue mais rapidamente a seus objetivos.

Em se tratando da rede formada pela Associação de Mulheres Rurais do município de Espera Feliz, observa-se a atuação da mulher em busca de seu empoderamento que vai além do ensino e produção de artesanato para complementação da renda familiar. A organização das mesmas desempenha, sobretudo, um trabalho social que se estabelece por meio da colaboração, da vontade e da afinidade de suas integrantes, caracterizando assim uma significativa estrutura organizacional, tanto nas relações pessoais quanto nas questões sociais.

O município de Espera Feliz localiza-se no extremo leste da Zona da Mata no estado de Minas Gerais, Brasil, fazendo fronteira com o estado do Espírito Santo e, segundo dados do IBGE (2010), compreende uma área territorial de aproximadamente 317,638 km², com população de 24.641 habitantes sendo a maioria residente na zona urbana do município (Figura 1). Apresenta uma economia baseada na agropecuária (lavouras permanentes de café e criação de bovinos) e no artesanato (bordados em tecidos), sendo este importante elemento econômico para a Associação de mulheres rurais, sujeito desta pesquisa.

Figura 1- Localização do município de Espera Feliz - Minas Gerais - Brasil

Fonte: Elaborado por Fabiano Eduardo de Souza (2017).

O estudo sobre sua rede permite conhecer os impactos, as mudanças, os benefícios e resultados que a associação produziu para as mulheres; bem como os fatores que influenciam sua dimensão territorial. A rede, objeto de estudo deste trabalho, não é restrita apenas aos seus membros, já que existe a relação com outras instituições durante seu desenvolvimento, mas também se refere ao processo de aquisição dos direitos à cidadania por parte da mulher rural, evidenciado em movimentos sociais, filiação a sindicatos, partidos políticos e associações.

Sendo assim, compreender os diversos significados de redes e o empoderamento da mulher rural nos espaços públicos e privados, que assumem diferentes formas de manifestações, torna-se cada vez mais relevante para a análise geográfica do mundo atual, e este trabalho contribuirá para o avanço do conhecimento científico e debates sobre o tema.

Metodologia

A área de estudo abrangida é a Zona Rural do Município de Espera Feliz-MG, local de formação dos grupos de mulheres filiados à associação. Por meio de uma abordagem qualitativa buscou-se compreender por meio de investigação teórica e empírica o comportamento social, econômico e cultural que refletem o modo de ser e de agir da mulher rural dentro do seu espaço, e de seu empoderamento como membro da rede geográfica da associação de mulheres.

A estratégia metodológica contou com pesquisa bibliográfica e documental visando o embasamento teórico, além do estudo de campo implementado por meio das técnicas de entrevistas em profundidade e grupo focal junto ao público estudado (sócias ativas e inativas da associação), além da participação da pesquisadora em reuniões dos grupos ativos da associação que possibilitou constatar aspectos vividos pelos mesmos.

O trabalho de campo desenvolvido nessa pesquisa consiste num procedimento metodológico em que as informações não são simplesmente obtidas, mas sim produzidas por meio da relação que o pesquisador estabelece com os sujeitos que integram sua investigação. Santos (1999, p. 117) ressalta que:

O trabalho de campo vai além da coleta de dados para desenvolvermos uma pesquisa comprometida com a realidade das populações, visto que também será um esforço acurado do pesquisador em lapidar esse diamante, que é a memória das populações em relação ao vivido.

As entrevistas foram gravadas em áudio sendo transcritas posteriormente, procurando categorizar e incluir o assunto abordado na discussão do trabalho, além de relacioná-los com os temas pesquisados. O trabalho de campo se deu entre os meses de fevereiro a julho de 2016, ocorrendo sempre aos sábados nos dias das reuniões dos grupos ativos e nos dias de maior disponibilidade por parte das mulheres rurais que foram entrevistadas individualmente.

O tipo de investigação mencionado mostrou-se adequado para a reconstrução histórica da fundação da associação e também para o entendimento da dinâmica atual da mesma e o processo de esvaziamento de seus agentes. A utilização de tais procedimentos metodológicos viabilizou uma aproximação conceitual para analisar os fatos do ponto de vista empírico e teórico, para assim confrontar com a realidade da temática proposta.

Redes e seus significados

A palavra rede é bem antiga e vem do latim retis, significando entrelaçamento de fios com aberturas regulares que formam uma espécie de tecido. A partir da noção de entrelaçamento, o termo vem ganhando novos significados ao longo do tempo, passando a ser empregada em diferentes situações. Segundo nos expressa Raffestin, “uma rede é um sistema de linhas que desenham tramas. Nesse sentido, as redes representam não só uma forma de mobilização, como também uma estratégia de organização e de ação” (RAFFESTIN apud TRINDADE JUNIOR, 1998, p. 33). Assim, o conceito de rede transforma-se em alternativas práticas de organização, possibilitando processos capazes de responder às demandas de flexibilidade, atuação e articulação social, pois são sistemas que reúnem indivíduos, empresas e instituições que, muitas vezes, buscam objetivos comuns.

A constante transformação do espaço geográfico pode ser plenamente caracterizada pelos processos socioespaciais, pelas práticas de organização espacial e pela revolução de sistemas, sejam eles técnicos ou produtivos, que acabam por redefinir os territórios. Tais sistemas e redefinições também podem ser caracterizados pelo surgimento de diferentes tipos de redes geográficas que dinamizam em várias escalas a transformação do espaço, originando novas possibilidades aos fluxos materiais (mercadorias e pessoas) e fluxos imateriais (informação e comunicação).

Através de um conjunto de pontos fixos interligados por meio de fluxos constroem-se e articulam-se diversos tipos de redes, como as redes de transporte, de comunicação, redes urbanas e também as redes sociais. Como definição mais abrangente, pode-se entender redes geográficas como um conjunto de locais da superfície terrestre conectados ou interligados entre si, mesmo que isso ocorra de maneira heterogênea de um lugar para outro. Logo, além do espaço físico, observa-se a questão do tempo e da organização entre seus elementos. CORRÊA (2011, p. 205) destaca que:

Três dimensões básicas e independentes entre si, cada uma delas incluindo temas pertinentes para análises específicas, podem descrever a complexidade da rede geográfica: a organizacional, a temporal e a espacial, envolvendo a estrutura interna, o tempo e o espaço.

Os estudos e abordagens relacionados ao tema constatam a importância de se reconhecer e analisar as redes geográficas em toda sua complexidade, hierarquização, configuração, uso e expansão, compreendendo suas articulações e possíveis atrições, como é o caso da associação de mulheres rurais do município de Espera Feliz-MG. O conjunto e o estudo desses fatores levaram Castells (1999) a reconhecer a sociedade como “a sociedade em rede” e o espaço como um “espaço de fluxos”.

A organização espacial muitas vezes se revela a partir de elementos fixos, constituídos como resultado do trabalho social, e a interação entre eles muitas vezes é garantida pelos fluxos. Portanto, fixos e fluxos dão origem às redes. Nas relações sociais, os fluxos precisam dos fixos para realizarem-se e vice-versa. Santos (2004, p. 262), afirma:

Mas o que é uma rede? As definições e conceituações se multiplicam, mas pode-se admitir que se enquadram em duas grandes matrizes: a que apenas considera o seu aspecto, a sua realidade material, e uma outra, onde é também levado em conta o dado social.

Desse modo, a rede ganha expressão e legitimidade na medida em que suscita o interesse dos integrantes e de novos agentes em participar e contribuir para o seu desenvolvimento. E para que a interatividade se estabeleça, são necessários alguns princípios, como a criação de equipes ou grupos de trabalho, conexão entre os nós, fluidez de informação, fluxos materiais ou não materiais.

No entanto, percebe-se também nas diferentes redes geográficas existentes que, a constituição de “nós” pode apresentar tamanhos e proporções diferentes estabelecendo maior fluidez por parte de uns do que de outros. Tal sistematização não sendo homogênea acaba por nem sempre atender aos interesses de todos os agentes, se fazendo restritas algumas ações e funções de articulação entre seus integrantes ou grupos. Sobre esse aspecto Santos (2004) diz que mesmo que a conexão não se realize do mesmo modo para todos e em todos os lugares, a proliferação das redes surge como algo imprescindível.

Raffestin (1993) classifica as redes em basicamente dois tipos: redes de circulação e redes de comunicação, sendo a primeira baseada no fluxo material e a segunda no fluxo imaterial. As redes geográficas em toda sua complexidade se mostra como redes que, transportam produtos, informações, estabelecem conexão e compartilham posicionamentos políticos entre diferentes pontos do espaço geográfico, através da ação e pela ação de agentes, grupos ou instituições.

Levando em consideração as condições abordadas pelos autores (circulação, comunicação, fluxo de informação e interação entre os agentes), pode-se destacar também os aspectos organizacionais de uma rede fundamentada pela capacidade de colaboração e estruturação entre seus elos. As redes que se baseiam na afinidade, solidariedade e cooperação tem maior probabilidade de realizar ações conjuntas e buscar recursos para alcançar objetivos comuns. As redes de cooperação constituem, portanto, um fenômeno presente da teoria organizacional e, por isso, têm sido reiteradamente estudadas a partir de diferentes abordagens teóricas (GRANDORI e SODA, 1995).

Participar se traduz em uma motivação construída dentro de uma lógica não associada a fins instrumentais, o que pode indicar o bem estar de fazer parte de grupos constituídos por laços de afinidade, fortalecendo as relações de confiança formadas a partir dos elos. Além da satisfação pessoal, outras motivações como a autoestima revelam o desejo de se sentir importante enquanto elo de uma rede. Ou ainda, a busca pelo acesso a benefícios sociais se constituem também, em elementos propulsores para as mulheres se inserirem em espaços de ação coletiva redefinindo seu território na configuração de uma rede geográfica.

A questão de gênero e a mulher rural

A consolidação teórico-conceitual de gênero consiste na análise de variadas formas como mulheres e homens, enquanto agentes sociais, desenvolvem estratégias para transformar os papéis, as relações e os processos existentes em seu próprio benefício ou em benefício de outros. Para muitos pesquisadores trata-se dos comportamentos, valores e atitudes que a sociedade define como sendo próprios de homens ou de mulheres.

Enquanto as diferenças de sexo são biológicas, as de gênero são culturais e dinâmicas, podendo se transformar de acordo com o desenvolvimento específico de cada sociedade. Para distinguir a questão de sexo e gênero André (1993, p. 331) salienta que “o gênero corresponde a uma categoria sociológica e sexo a uma categoria biológica”. Silva (2003, p. 36), abordando as mesmas implicações também considera que:

Não são as diferenças dos corpos de homens e mulheres que os posicionam em diferentes âmbitos e hierarquias, mas sim a simbolização que a sociedade faz delas. Assim, gênero é o conjunto de ideias que uma cultura constrói do que é ‘ser mulher’ e ‘ser homem’ e tal conjunto é resultado de lutas sociais na vivência cotidiana.

Na literatura pertinente, o termo “gênero” começou a ser utilizado em meados do século vinte como um conceito capaz de enfatizar o caráter social entre as diferenças baseadas no sexo dos indivíduos. Este conceito rejeita a ênfase biológica caracterizada nos termos de “sexo” ou “diferença sexual” e enfatiza a construção social que é subjacente à distinção entre homens e mulheres. Tal ideia é assegurada conforme palavras de Scoot (1995, p. 10), quando afirma:

No seu uso mais recente, o “gênero” parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”.

Sobre os movimentos feministas que surgiram sob influência do iluminismo, de revoluções como a Francesa e outras, Costa (2005) define que a principio, sua principal característica era a busca por direitos sociais e políticos. Para Conceição (2009, p. 739) o movimento feminista almejava desconstruir as oposições binárias entre sexo e gênero, pois este era visto pela autora como “um agrupamento com uma dimensão teórica e política e que não apresenta explicações e interpretações fechadas sobre a realidade e relações de gênero”.

Nesse contexto, as discussões sobre equidade de gênero vêm ganhando espaço nos estudos acadêmicos trazendo em suas bases a participação feminina em movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos, abordando configurações nas relações de poder nos espaços públicos e privados. Segundo Scott (1995, p. 88), o conceito de gênero deve ser analisado desde uma perspectiva integradora, ressaltando que seu conceito parte do pressuposto que “o gênero é a forma primária de dar significado às relações de poder”.

As relações de gênero produzem uma desigual distribuição do poder, privilégios e prestígios, hierarquias, conforme os sexos das pessoas, por isso diz-se que as relações de gênero são relações de poder (BOURDIEU, 2011).

Essas relações de poder acabam se estendendo para as áreas do trabalho e consequentemente para as relações sociais e, ainda se fazem presentes, sobretudo no meio rural. O sistema de valores produzido pela sociedade e reproduzido nas relações familiares afirma a situação de discriminação da força de trabalho feminino. Bourdieu (2011) ressalta que é na família que se dá, em primeira instância, a dominação masculina, pois é nela que há a precoce experiência da divisão sexual do trabalho.

Ao se referir à mulher rural, a perspectiva proposta pelos trabalhos acadêmicos nos permite analisar o papel que ela representa em seu meio. A situação de opressão e subordinação passa pela naturalização do homem e da mulher, que está relacionada a uma hierarquia dentro das famílias rurais, cuja base é a divisão sexual do trabalho.

Apesar dos progressos alcançados com os movimentos sociais e participação nas mais variadas esferas políticas, as mulheres continuam a enfrentar discriminação e exclusão, ainda que a igualdade entre homens e mulheres seja um preceito universal, um direito humano fundamental e inviolável. Para muitos, considera-se que a igualdade de gênero não tem espaço na estrutura do sistema capitalista, uma vez que isso significa construir novos valores, cultura e uma educação radicalmente oposta à qual vivemos.

Desigualdades de gênero no campo

Ao averiguar a situação atual das trabalhadoras rurais, percebe-se que o problema da discriminação de gênero atravessa décadas e muitas vezes manifesta-se independente do contexto histórico e socioeconômico. Não objetivando dar exclusividade somente ao Brasil, nota-se que a mulher que trabalha e sobrevive do campo e ainda tem baixa renda e baixo nível de escolaridade sofre dificuldades em relação ao acesso a benefícios sociais, retratando desse modo uma problemática proveniente das relações de gênero.

A questão cultural vivenciada no passado ainda deixa resquícios no que tange a divisão sexual do trabalho, em que se dividem tarefas como sendo exclusivamente das

mulheres e outras inerentes aos homens. À mulher ainda são delegadas as maiores responsabilidades privadas no que se refere aos serviços domésticos e cuidados com os filhos, e aos homens cabem as responsabilidades no espaço público. Tal fato se deve ao ideário de família existente no meio rural, com papéis bem definidos entre os membros do grupo familiar, que faz do homem o chefe da família (MEDEIROS, 2008).

Brumer (2004) explica que apesar das mulheres estarem diretamente imbricadas na produção e armazenamento dos alimentos, os homens são considerados responsáveis pelo provimento da família. E a autora ainda destaca que mesmo sendo o trabalho das mulheres em maior tempo na roça, esta aparece somente como “ajuda” na produção. O técnico da EMATER de Espera Feliz/MG confirma tal consideração quando diz:

Muitos não viam a mulher do campo como trabalhadora rural, pois para tanto deveria realizar o serviço braçal. Porém, elas são responsáveis por cuidar de todo um contexto que faz parte da produção rural (lavar roupa, cozinhar, levar as ferramentas de colheita para a lavoura). O papel da mulher envolve todo o trabalho rural (Álvaro, 63 anos – Entrevista em 01 de abril de 2016).

Muitos estudos e pesquisas mencionam o fato de a mulher do campo trabalhar mais tempo que os homens durante todo o dia, uma vez que além da lavoura, muitas cuidam de pequenos roçados, costuram e preparam o alimento da família, participando efetivamente da renda familiar. Esse contexto de posição submissa em que muitas ainda se encontram acaba por dificultar o reconhecimento da mulher como trabalhadora rural, refletindo a desvalorização da mesma perante a sociedade e as políticas públicas.

No campo e principalmente na agricultura familiar é muito comum que as próprias mulheres não se identifiquem como trabalhadoras (SILIPRANDI, 2004). Este é um fator decorrente da opinião das próprias mulheres que não atribuem suas atividades como profissão de trabalhadora rural, e se declaram domésticas ou “do lar” reforçando a invisibilidade do trabalho feminino no campo. A desigualdade de gênero no meio rural viola direitos fundamentais à cidadania e aos objetivos de uma sociedade democrática, tornando-se cada vez mais necessárias reflexões e abordagens sobre a invisibilidade do trabalho da mulher no campo e suas consequências.

Os desafios e a superação da mulher do campo: empoderamento

Sem isentar demais situações desse contexto, observa-se que é especificamente no meio rural que as desigualdades entre homens e mulheres são maiores. Tanto que no ano 2012 a ONU se sensibilizou com a discriminação de gênero persistente na sociedade rural e, intitulou como tema oficial para o dia internacional da mulher – 08/03/2012 – o seguinte assunto: “Empoderar as mulheres rurais para acabar com a fome e a pobreza”.

Contra a desigualdade de gênero e a opressão vivida por muitas mulheres, surgem cada vez mais movimentos organizacionais em forma de grupos ou associações que tem por objetivo liderar ideais e projetos, que possam externar novas reflexões e experiências antes não vividas. Tendo como exemplo a associação de mulheres rurais, ora aqui analisada, o técnico da EMATER de Espera Feliz relata:

Os grupos de mulheres queriam um poder maior. Elas buscavam o crescimento enquanto indivíduo, pois tudo era conforme opinião e imposição do marido, inclusive o voto. Mas com a associação, elas conquistaram o poder de discussão e decisão em casa, construindo conhecimento, criando penugem, para a asa crescer e poder voar (Álvaro, 63 anos – Entrevista em 01 de abril de 2016).

As reivindicações pela cidadania no campo não abarcam apenas o direito ao trabalho, mas, também, os direitos sociais relacionados a ele, pois além de cumprir as atividades relacionadas ao plantio e a colheita, as mulheres também acumulam o trabalho doméstico relativo ao preparo dos alimentos, limpeza da casa, da roupa e cuidado dos filhos. Nessa lógica, o reconhecimento da mulher como agricultora e seu acesso a benefícios sociais como licença-maternidade, auxílio-doença e aposentadoria se constituem em um grande marco da inclusão social previdenciária da trabalhadora rural.

A sindicalização se destaca também como forma de garantir sua inclusão nos direitos trabalhistas previstos na legislação brasileira, direitos esses conquistados mediante regularização e registros documentais por parte das mulheres. A ausência de documentação por muito tempo foi um grande empecilho para o acesso das trabalhadoras a um conjunto de políticas públicas.

Estudos sobre o tema abordam que a concessão do benefício tem um enorme valor simbólico na emancipação social da mulher, pois na maioria das vezes a mulher do campo nunca havia recebido remuneração pelos trabalhos realizados. Desta forma, o valor recebido do beneficio, seja da previdência ou de programas sociais, permite que ela adquira poder de gerência e administração, aumentando seu poder pessoal que nem sempre exercia, concedendo-lhe, sobretudo autonomia.

Associação de mulheres rurais do município de Espera Feliz/MG

Na década de 1980 acontecia no Paraíso, comunidade rural do município de Espera Feliz/MG, um encontro mensal de mães no Posto de Saúde local onde as mesmas eram orientadas por uma enfermeira a respeito de remédios caseiros, plantio de ervas, higiene pessoal e cuidados com recém-nascidos. Essas mães com o passar dos anos se tornaram voluntárias no trabalho de doação de alimentos para famílias desfavorecidas e na transmissão das informações recebidas nos encontros para tais famílias.

O objetivo da união das mães era a busca pelo bem estar da mulher, em todos os sentidos: físicos, emocionais e familiares. Muitas na época não tinham noção básica de higiene, então aquelas um pouco mais instruídas tentavam ensinar e ajudar na limpeza da casa, de roupas, como forma de apoio às famílias mais necessitadas (Graça, 72 anos – Entrevista em 23 de abril de 2016).

Nesse período, iniciou-se por essas mães a organização estrutural de uma equipe que pudesse liderar ideias e trabalhos a serem realizados pelas mulheres da região. Com a formação dessa equipe, elas se reuniam mais vezes no intuito de decidirem quais procedimentos seriam adotados para iniciarem a produção de artesanato referente a bordados em tecidos, costura e tricó.

Nota-se, a partir desse momento, a importância da organização do grupo inicial para a reafirmação do papel da mulher rural. A formação dessa equipe despertava não só o convívio social, mas também resultaria na geração de renda que auxiliaria no complemento familiar, melhorando a qualidade de vida da família, e aumentando assim, a autoestima das mulheres, visto que perante a sociedade não eram valorizadas.

Além da autonomia financeira que almejavam, as mulheres começaram a adquirir gradativamente a autonomia em relação à tomada de decisões. A frequência nos encontros retratava que as mesmas se interessavam pelos assuntos discutidos e pelas decisões a serem tomadas concernentes ao andamento do projeto.

A Associação de Mulheres Rurais do Município de Espera Feliz-MG foi fundada em 23 de agosto de 1988 e seu Estatuto traz entre outros itens as seguintes finalidades, conforme capítulo I, art. 2°: congregar todos os grupos de mulheres para defender seus interesses; servir de ligação entre a população da comunidade rural e a população urbana; realizar encontros com grupos de outros municípios; reivindicar perante as entidades públicas melhorias para as comunidades rurais; conscientizar os grupos da importância da mulher na sociedade; celebrar convênios e filiar-se a outras entidades; produção de artesanato (crochê, tricô, ponto em cruz, pintura e outros).

Demais comunidades rurais passaram a formar seus grupos de mulheres e filiar-se a esta associação. Para associar-se ao grupo de sua comunidade, as mulheres deveriam ter a idade mínima de quinze anos e residir na zona rural, esses eram os principais requisitos. Os grupos são compostos por mulheres jovens e idosas (idades entre 16 a 91 anos), solteiras, casadas, divorciadas e viúvas, e seu trabalho está voltado para a perpetuação, a consolidação e o desenvolvimento das atividades de seus membros. A maioria das mulheres rurais associadas apresentava baixo nível de escolaridade, que por muitas vezes dificultava a redação das Atas e também a elaboração de projetos para obtenção de recursos financeiros.

Assim, o perfil da Associação é caracterizado por mulheres que se interligam, se inter-relacionam, formando grupos em um determinado território, unindo ideias e recursos em torno de interesses compartilhados, que abrange questões culturais (artesanato), questões sociais (participação em eventos e movimentos locais, priorização da saúde feminina, valorização da mulher e dos anseios em busca do conhecimento) e questões econômicas (geração de renda para as associadas e suas famílias através das vendas do artesanato) que têm configurado o território em que essas mulheres vivem.

Aspectos socioeconômicos

Após a fundação e regularização dos documentos da associação, o objetivo inicial das mulheres era produção e venda de artesanato para beneficio da renda familiar. Como o bordado em tecidos não era habilidade de muitas se fazia necessário um pequeno curso de aprendizagem, onde as que sabiam o ofício ensinavam para as demais. Esses encontros de troca e transferência de conhecimento aconteciam uma vez por semana à noite para que mais mulheres aprendessem o artesanato.

Inicialmente a exposição do artesanato das mulheres se realizava em pequenos eventos como festas nas comunidades rurais e comemoração nas escolas. Em pouco tempo já estavam expondo em eventos de maiores proporções na região além de participarem de uma feira livre que acontecia semanalmente na área central da cidade.

Nas reuniões, além de discutirem sobre produção e qualidade do artesanato, as mulheres buscavam sempre algo que lhes proporcionasse aquisição de novos conhecimentos e a participação efetiva em sociedade. Isso se dava inicialmente através de atividades e projetos desenvolvidos pelas mesmas com o apoio das instituições (governo municipal, clubes, sindicatos) com as quais estabeleciam relações.

Além dos cursos direcionados ao artesanato, a associação sempre buscava palestras sobre os seguintes assuntos1: saúde da mulher (ginecologistas, geriatras e

1 É importante ressaltar que tais palestras ocorrem conforme a disponibilidade dos profissionais solicitados, sendo o agendamento feito pela coordenadora do grupo durante os meses do ano.

enfermeiras), violência doméstica (psicólogos e policiais); e palestras motivacionais sobre o valor da mulher rural (autoridades religiosas e políticas).

Em se tratando de questões religiosas, os grupos participam ativamente das celebrações de suas comunidades, sendo responsáveis pela liturgia, missas e orações na capela do santuário, frequentemente são membros de pastorais da igreja católica e sempre estão engajadas nas Campanhas da Fraternidade.

Por vezes a associação teve a oportunidade de trocar experiências e demonstrar seu trabalho em outras localidades como a cidade de Viçosa, Eugenópolis e Belo Horizonte, localizadas no estado de Minas Gerais, por meio de contatos realizados entre o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Espera Feliz e o STR dessas cidades.

Aspectos relacionados ao empoderamento da mulher rural

Analisando a trajetória de formação e fundação da associação de mulheres rurais de Espera Feliz observa-se que seu desenvolvimento ocorreu primeiramente através do agrupamento voluntário que se baseava em laços de amizade, de afinidade e de compartilhamento de ideais que edificaram atividades econômicas e também o acesso das mulheres a espaços antes não ocupados por elas, surgindo assim a capacidade de agir conjuntamente numa perspectiva de mudanças econômicas, sociais e políticas. E tais mudanças começariam no próprio ambiente familiar como relata uma entrevistada:

A gente só tinha dinheiro se o marido desse, e isso era raro. As mulheres viram a necessidade de aprender algo a mais além de cuidar da casa e criar filhos, sentiu a necessidade de fazer algo diferente, de fazer algo novo que motivasse sua vida simples e sofrida, daí surgiu a ideia de se reunir em grupos e mostrar a nossa cara na comunidade (Luzia, 68 anos - Entrevista em 02 de abril de 2016).

Um fator importante conquistado com a ajuda da associação deve-se à organização dos documentos pessoais. A maioria da população feminina da zona rural só tinha certidão de nascimento ou casamento, fato que as impossibilitava de votar, ter o nome no contrato rural de parceria agrícola do cônjuge e principalmente de conquistar benefícios previdenciários, uma vez que seu trabalho no campo não era considerado. Após a confecção dos documentos como CPF, carteira de identidade e título de eleitor, as mulheres conseguem sua inclusão nos contratos rurais, provando dessa maneira que também eram trabalhadoras rurais. Esse importante momento foi uma conquista para a mulher rural, alcançada com a iniciativa das próprias mulheres e o apoio da associação. Uma sócia faz a seguinte afirmação sobre o papel da associação em sua vida:

A associação trouxe libertação pra gente, pois os maridos não aceitavam nada, nem que a gente saísse de casa. Foi através dos grupos que a gente mostrou pra eles o nosso potencial. Foram anos de tentativa. Se a gente falasse em fazer título, o marido brigava, dizendo que mulher não mexia com essas coisas. A gente não recebia beneficio do INSS, quando uma de nós machucava ou acidentava, as vizinhas ou mulheres do grupo que ajudava a gente no serviço doméstico e com as crianças (Elza, 86 anos - Entrevista em 09 de abril de 2016).

Engajadas em questões socioeconômicas do município, a associação buscava transmitir todo tipo de informação e conhecimento que demonstrasse relevância para as mulheres. A interação dos grupos, organizados nas comunidades rurais, permitia a troca de experiências, de conhecimentos e ações que constituem mecanismos de aproximação das mulheres em direção a objetivos comuns, além de contribuir para o seu

desenvolvimento e descoberta de capacidades individuais, do aumento da autoestima e de um papel mais ativo na sociedade.

Pensando dessa maneira e almejando conquistar novos horizontes as mulheres da associação começaram a se interessar por questões políticas do país, da região e também do próprio município para assim exercitar melhor seu papel de cidadã. A década de 2000 é marcada por transformações na vida das associadas que começam a interagir com órgãos e projetos importantes relacionados a questões sociais e políticas.

Como nem sempre as reivindicações das mulheres rurais eram atendidas por parte do governo municipal, surgiu a iniciativa de uma sócia se candidatar ao cargo de vereadora no ano de 2000 no intuito de representar a mulher rural na câmara de vereadores. Era a primeira vez que a associação se engajava em campanhas eleitorais. Foi um momento importante para as mulheres que ficaram esperançosas com a possibilidade de serem representadas em um cargo político, mas a candidata não foi eleita.

Mesmo não conseguindo eleger nenhuma mulher rural, a associação mostrava interesse em se engajar mesmo que indiretamente nas questões políticas de sua região, por isso no ano de 2001 procuraram se informar, através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, sobre o abaixo assinado que representava uma ação popular em nível nacional, que pretendia com um número significativo de assinaturas contestar o decreto aprovado pelo governo federal no ano de 2000, que atribuía ao trabalhador rural valores de contribuição previdenciária, caso este assinasse contrato de pareceria agrícola sendo pequeno proprietário.

Em setembro de 2002 a presidente da associação participou de um encontro realizado pela Comunidade Eclesial de Base (CEB) discutindo-se sobre os seguintes assuntos: Área de Livre Comércio das Américas (ALCA); eleições presidenciais; a importância do voto feminino; e sobre a flexibilização da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o que possibilitou a oportunidade das mulheres rurais estarem recebendo informações antes desconhecidas por elas, como exemplo, ALCA e a CLT.

Um fator importante a ser destacado é a participação da mulher rural em espaços públicos, que alcança conquistas significativas quando lhes é garantida a atuação em sindicatos, organizações e associações entre outros, pois a possibilidade de atividade fora de casa e de tomada de decisões contribui para fortalecer a condição de agente por parte das mulheres, originando seu empoderamento econômico, social e político.

Outro momento político importante das mulheres rurais se refere à participação na Marcha das Margaridas2 em Brasília nos anos de 2003 e 2007, onde mulheres de todo o Brasil reivindicavam saúde, educação e direitos previdenciários. Nos momentos citados duas sócias representaram a associação de Espera Feliz. Uma das entrevistadas comenta:

Nunca tinha saído pra tão longe, nem tinha viajado tantas horas assim. Conheci gente de vários lugares. Sem contar que conheci Brasília né [...] Se pudesse eu iria toda vez, me senti orgulhosa de está lá representando as outras mulheres, minhas companheiras (Luzia, 68 anos - Entrevista em 02 de abril de 2016).

As mulheres entrevistadas demonstram orgulho ao mencionar o caminho que trilharam e as conquistas que alcançaram na busca por seu espaço e por seu empoderamento.

2 - Em agosto de 1983, Margarida Maria Alves, presidente do Sindicato de Trabalhadores rurais de Alagoa Grande/PB, foi assassinada por um pistoleiro. Margarida foi uma das pioneiras das lutas pelos direitos dos trabalhadores rurais no Brasil. Após sua morte tornou-se um símbolo das trabalhadoras rurais, que deram seu nome ao evento emblemático que realizam em Brasília. Fonte: http://www.contag.org.br/hotsites/margaridas/interna.php. Acesso em 01/07/2016.

A atrição da rede e a desarticulação da associação

Pode-se perceber que os objetivos das redes não são necessariamente os mesmos, mas o que a identifica é o fato de serem constituídas por nós, e que os fluxos nada mais são que a circulação de mercadorias e/ou informações no interior das redes. Assim, verifica-se que a Associação de Mulheres ora estudada, consta de um trabalho que vai além da produção (artesanato) que auxilia na renda familiar, mas também está ligado a um trabalho social, pois entre as informações que circulam na rede, estão àquelas voltadas à saúde, política e aos direitos da mulher.

Logo, observa-se a rede geográfica que essas mulheres conseguiram traçar no território em que vivem, através de contatos e relações estabelecidas em ações que as mesmas promoveram e articularam, mas que, ao mesmo tempo, levantam questões sobre a densidade e abrangência territorial dessa rede nos últimos anos e também sobre os fatores que interferiram na organização da mesma atualmente (Figura 2).

Figura 2- Mapeamento das interações espaciais da rede ao longo do tempo

Fonte: Elaborado por Fabiano Eduardo de Souza (2017).

“A estabilidade de uma dada rede [...] pode ser submetida a transformações mais ou menos intensas ou não, alterando o número de centros, seus padrões locacionais, o número de seus habitantes, suas funções e suas interações, internas e externas à rede [...]” (CORRÊA, 2001, p. 214).

O quadro 1 demonstra numericamente a perda de densidade na rede da Associação, demonstrando desde sua fundação em 1988 chegando ao final da década de 1990 com vinte e três grupos ativos num somatório de aproximadamente oitocentas associadas, até o ano de 2016 contando apenas com seis comunidades ativas que não ultrapassam o número de cento e dez mulheres. O quadro também descreve quais comunidades rurais deixaram de integrar e quais permanecem na associação ao longo das últimas décadas.

Quadro 1 - Comunidades rurais participantes da Associação desde a fundação até 2016Comunidades 1988-1997 1998-2003 2004-2010 2011-2016Vargem Alegre X X X -

Comunidade Fátima X X X XSão Jose da Pedra Menina X X X X

Paraíso X X X XChave X X X -Quicé X X X X

Limoeiro X X X XTabuleiro X X X -São Felipe X X X -

Boa Esperança X X X -São João da Farinha X X X -

Taboão X X X XVentania X - - -

São Gonçalo X X - -São Sebastião da Barra X - - -

São Domingos X - - -Forquilha do Rio X - - -Água Espalhada X X - -

Angola X X - -Pedra Negra X - - -

Areal X - - -Cruzeiro X X - -

Comunidade de São Paulo X X - -Total de comunidades/grupos 23 17 12 06

N° de sócias (aproximado) 810 410 204 102Fonte: Elaboração da autora – 2016.

Destaca-se que não foi apenas na quantidade de grupos que houve diminuição, mas também no quantitativo de sócias em cada comunidade, mesmo naquelas que permanecem ativas. Ao analisar a segunda coluna, verifica-se que a média de participantes por grupo prevalecia entre 30 a 35 mulheres. Já na terceira coluna que compreende o período de 1998 a 2003 observa-se uma queda nesse número que varia entre 20 a 24 sócias por grupo. Nas duas últimas colunas que compreendem os anos de 2004 a 2010 e os anos de 2011 a 2016, a média de mulheres participantes decresceu para 17. Ressalta-se que são resultados em aproximação, pois os números de sócias podem variar de uma comunidade rural para outra e também de um ano para outro.

O meio rural nas últimas décadas vem passando por uma série de mudanças significativas no que se refere aos meios de comunicação e à era digital que alcançou o espaço do campo levando às famílias rurais muito mais informação e conhecimento além do rádio e da TV. Mesmo assim, tal fato não trouxe ao meio rural novas condições de trabalho e maiores oportunidades de renda.

O trabalho rural nessa região que muitas vezes ainda depende da força braçal não tem sido um atrativo para as novas gerações, além do motivo de por vezes não disponibilizar terra, trabalho e renda o suficiente para todos da família quando nessa cresce o número de membros. É notável, por meio das entrevistas, que muitos jovens têm buscado emprego e rendimentos fixos na cidade, tanto o homem quanto a mulher, se esquivando do esforço físico que a zona rural lhes exige.

Até as famílias que permanecem no campo por serem proprietárias de suas terras, se veem no esforço de angariar remuneração fixa que contribua mensalmente na renda familiar. Quanto ás filhas das associadas, que normalmente herdavam das mães a tradição do artesanato, estão cada vez mais almejando outros interesses, como o estudo superior e novas oportunidades de trabalho. A falta de acesso aos espaços de decisão em casa e o domínio patriarcal principalmente sobre as filhas também são apontados como motivos para a saída das jovens do meio rural em busca de escolaridade superior e emprego, revelando mais um sinal de perspectiva de empoderamento.

Diferenças de opiniões e particularidades

É fato que a ação coletiva trás inúmeros benefícios e transformações para a sociedade de uma maneira geral, como também é fato que a tecnologia, a inovação nas comunicações e na era digital deixaram as pessoas mais individualizadas em busca de mais tempo para desfrutar dos avanços tecnológicos. Assim, alteram-se os costumes, os hábitos e também a maneira de pensar, conforme relatos da maioria das entrevistadas quando questionadas sobre o motivo da atrição da rede:

Hoje, reclamam de tudo, da falta de tempo, da falta de transporte, e se esquecem do principal: o valor de estar junto e aprendendo sempre junto algo diferente (Maria da Conceição, 68 anos – Entrevista em 19 de março de 2016).

Na opinião das fundadoras entrevistadas na pesquisa, a associação não deveria ter se expandido tanto, devido à distância e principalmente devido às ideias diferentes de cada indivíduo e de cada grupo. Segundo as mesmas, o objetivo de aumentar o número de nós acabou por desarticular toda a rede.

A maioria das entrevistadas inativas pensa em visitar os grupos ativos e narrar todas as dificuldades e conquistas que enfrentaram durante a fundação da associação, relatando suas estratégias de organização e ação numa época em que a mulher rural não era valorizada e nem tinha oportunidade de expressão. A percepção das entrevistadas sobre a associação baseia-se num processo significativo vivido por elas, não deixando de ser um recurso organizacional na busca por objetivos comuns ligados a aspectos culturais, econômicos, políticos e sociais, fundamentos importantes na sobrevivência de uma rede.

Considerações finais

Pesquisar as atividades desempenhadas pelas mulheres da associação de Espera Feliz-MG permitiu observar a dinâmica dos grupos nas comunidades rurais, onde as reuniões eram um ponto de encontro, e onde as mulheres se integravam. A convivência no grupo vinculada à organização dessas reuniões e demais atividades favoreceu a instituição de práticas coletivas entre as mulheres rurais. A ênfase na associação de mulheres rurais em um pequeno município do estado de Minas Gerais apresenta-se na busca pela percepção da própria mulher rural inserida neste contexto. Do ponto de vista pessoal, a realização dessa pesquisa significa compreender o trabalho de articulação em rede desenvolvido pelos grupos e os resultados que dele obtiveram.

Com o presente trabalho, constatou-se a territorialidade das mulheres rurais integrantes da associação de Espera Feliz/MG, externada pelo envolvimento e desenvolvimento de práticas espaciais na busca por seu empoderamento social e econômico, apesar da perda de densidade ocasionada por diferenças de opiniões e

comportamentos. Assim, cabe salientar que os estudos sobre as implicações, configurações e territorialidades das redes não se encerram com este estudo, apenas abrem caminhos para novas e futuras capacidades de compreensão e consolidação do campo de estudos sobre o tema.

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