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CIDADE CONTEMPORÂNEA: A CIDADE DOS EXCLUÍDOS? de Joanna Sultanum Nestor Garcia Canclini afirma em seu livro Consumidores e Cidadãos que: "A maior comunicação e racionalidade da globalização suscita novas formas de exclusão e racismo". Esta afirmação apresenta uma dura realidade para quem vive à margem da sociedade; eles não participam no processo de produção da cidade contemporânea, não têm emprego, dado seu baixo nível de instrução ou não são consumidores, dado o seu orçamento bastante limitado e, portanto, não experimentam a vida urbana. "O ar da cidade torna o homem livre" (GIST, Noel, O homem e a cidade: 2, Editora fundo de cultura, RJ, 1961) torna-se, então, uma afirmação incompleta. É impossível falar sobre exclusão social sem antes falar sobre a distribuição de renda da população, a seu acesso aos serviços públicos e à economia da metrópole. Embora não haja pretensão alguma neste ensaio de aprofundar-me nestes tópicos propriamente ditos, é importante que o leitor se situe em relação a como a cidade se comporta diante da população de baixa renda ou, por assim dizer, de renda alguma. Escreve Tilan Evers, Clarita Muller-Platenberg e Stefanie Spessart no ensaio Movimentos de bairro e Estado: Lutas da esfera da reprodução na América Latina: "São basicamente três as situações de renda (...) que forçam a morar nos bairros pobres: primeiro trata-se da massa de desocupados, ou seja, daquela parte da força de trabalho disponível que, dentro das atuais condições do mercado de trabalho, não encontra comprador. A única via para assegurar ao menos a subsistência física consiste em trabalhar como artesão ou ambulante, ou então prestando serviços simples, conseguindo uma renda mínima, de nenhum modo suficiente para pagar o aluguel de moradia. Inclui também aquela parte da força de trabalho que ainda está empregada (muitas vezes de modo temporário), em geral recebendo salário insuficiente para os custos indispensáveis (...). Ou seja, em muitos países o salário normal cobre apenas a alimentação, o vestuário e o transporte do trabalhador, e nada mais." Esta população de baixa renda, faminta por emprego, qualquer que seja ela, cria um vasto exército de reserva que acaba por banalizar a força de trabalho. "(...) a superpopulação relativa (...) permite dilapidar, através da super exploração do trabalho e da espoliação urbana (friso meu), grande parte da mão de obra na medida em que esta não tiver força política para defender seus níveis salariais e para pressionar o Estado para obter os serviços coletivos básicos à sua reprodução".(KOWARICK, Lucio. "Cidade, Povo e poder" in O Estado, as contradições urbanas e os movimentos sociais, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1981). O Estado mantém, com essa política de governo, a prevalência das classes dominantes e torna ainda mais evidente a concentração de renda. Como exemplo

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CIDADE CONTEMPORÂNEA: A CIDADE DOS EXCLUÍDOS? de Joanna Sultanum

Nestor Garcia Canclini afirma em seu livro Consumidores e Cidadãos que: "A maior comunicação e racionalidade da globalização suscita novas formas de exclusão e racismo".

Esta afirmação apresenta uma dura realidade para quem vive à margem da sociedade; eles não participam no processo de produção da cidade contemporânea, não têm emprego, dado seu baixo nível de instrução ou não são consumidores, dado o seu orçamento bastante limitado e, portanto, não experimentam a vida urbana. "O ar da cidade torna o homem livre" (GIST, Noel, O homem e a cidade: 2, Editora fundo de cultura, RJ, 1961) torna-se, então, uma afirmação incompleta.

É impossível falar sobre exclusão social sem antes falar sobre a distribuição de renda da população, a seu acesso aos serviços públicos e à economia da metrópole. Embora não haja pretensão alguma neste ensaio de aprofundar-me nestes tópicos propriamente ditos, é importante que o leitor se situe em relação a como a cidade se comporta diante da população de baixa renda ou, por assim dizer, de renda alguma. Escreve Tilan Evers, Clarita Muller-Platenberg e Stefanie Spessart no ensaio Movimentos de bairro e Estado: Lutas da esfera da reprodução na América Latina: "São basicamente três as situações de renda (...) que forçam a morar nos bairros pobres: primeiro trata-se da massa de desocupados, ou seja, daquela parte da força de trabalho disponível que, dentro das atuais condições do mercado de trabalho, não encontra comprador. A única via para assegurar ao menos a subsistência física consiste em trabalhar como artesão ou ambulante, ou então prestando serviços simples, conseguindo uma renda mínima, de nenhum modo suficiente para pagar o aluguel de moradia. Inclui também aquela parte da força de trabalho que ainda está empregada (muitas vezes de modo temporário), em geral recebendo salário insuficiente para os custos indispensáveis (...). Ou seja, em muitos países o salário normal cobre apenas a alimentação, o vestuário e o transporte do trabalhador, e nada mais."

Esta população de baixa renda, faminta por emprego, qualquer que seja ela, cria um vasto exército de reserva que acaba por banalizar a força de trabalho. "(...) a superpopulação relativa (...) permite dilapidar, através da super exploração do trabalho e da espoliação urbana (friso meu), grande parte da mão de obra na medida em que esta não tiver força política para defender seus níveis salariais e para pressionar o Estado para obter os serviços coletivos básicos à sua reprodução".(KOWARICK, Lucio. "Cidade, Povo e poder" in O Estado, as contradições urbanas e os movimentos sociais, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1981).

O Estado mantém, com essa política de governo, a prevalência das classes dominantes e torna ainda mais evidente a concentração de renda. Como exemplo

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podemos ter São Paulo, que detém quase 40% do PIB brasileiro (Fonte: CORREIA DE ANDRADE, Manuel. Cidade e campo no Brasil, Brasiliense, São Paulo, 1974). É difícil de entender que somente uma cidade brasileira detenha apenas um pouco menos da metade do produto interno bruto nacional. Pode-se explicar tal acontecimento pela distribuição desigual de recursos que é feita em relação a uma região para outra. A quantidade de capital dispensada à região sudeste é chocantemente maior do que a reservada ao nordeste, embora esta última apresente deficiências mais sérias na sua estrutura econômica e social.

Esta política de concentração de renda acontece não só no Brasil, mas também na América Latina como um todo. Como resultado disso surgiram as periferias, que são lugares precariamente atendidos por serviços públicos e cujos valores imobiliários são suficientemente baixos para a população de baixa renda. Observe o que diz Lucio Kowarick, da Universidade de São Paulo, no livro Cidade, poder e povo:

"(...) são também bastante conhecidas as conseqüências do modelo econômico posto em marcha, que não tem diminuído as enormes disparidades sociais, mas, ao contrário, em muitos aspectos, as tem aumentado. Neste aspecto, basta apontar a questão da distribuição de renda que se concentrou drasticamente em torno dos mais ricos, gerando um grau de desigualdade que na América Latina só se compara com países de economia incipiente".

A cultura tida como urbana é caracterizada principalmente pelo consumo. Consumo este não só de bens materiais, mas também de cultura local, dos serviços públicos. Quem vive realmente a cidade, com seus teatros, shopping centers, empregos e tantas outras experiências, são os que participam da economia local e que recebem uma remuneração que lhes dá certa autonomia para tomar suas escolhas. Ao indivíduo mais pobre não se dá chance de escolha, pois sua remuneração, quando existente, é extremamente baixa e incapaz de atender a todas as suas necessidades básicas.

O desenvolvimento das cidades trouxe muito mais do que somente o progresso. Trouxe as periferias, e com elas a necessidades de uma melhor infra-estrutura para os transportes, saneamento básico e moradia. As reformas e modificações que têm sido feitas no trânsito do Recife, por exemplo, melhoram somente o transporte individual, feito por membros da classe média e alta da cidade. Modificações que atinjam o transporte público não foram levadas em conta e este é, certamente, um dos problemas dentro da cidade. O proletariado precisa se locomover, e rápido. É o povo que vêm da periferia que leva em média 90 minutos para chegar ao trabalho.

A educação também é um fator que influi na crescente diferença de classes dentro da cidade. A educação provida pelo governo é precária e, por isso, os que têm maiores oportunidades dentro do mercado de trabalho são os indivíduos que tiveram condições de pagar por uma educação particular. O ensino público, não só

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no Recife, mas também no Brasil inteiro, não oferece nenhuma competitividade em relação ao ensino particular. Conseqüentemente aqueles que nasceram pobres e que não tiveram acesso a uma boa educação estão quase sempre fadados a manter o seu status de pouco letrado e miserável.

Viver em uma metrópole exige a adequação de novas formas de consumo e um maior acompanhamento do ritmo de vida da cidade. A globalização vem tornando os processos tecnológicos cada vez mais avançados e requer do indivíduo mais e mais formação intelectual. Novamente os que já não ofereciam concorrência antes deste fenômeno agora estão ainda mais excluídos de todo e qualquer processo econômico. A falta de instrução leva estes indivíduos a ocupar cargos cada vez mais subordinados e mal remunerados. As condições de trabalho, na maioria das vezes, são precárias e não existem leis mais efetivas no cumprimento das mínimas necessidades de um trabalhador. As empregadas domésticas, por exemplo, que direito têm dentro da legislação vigente? Embora uma legislação tenha sido criada para este setor específico, elas continuam trabalhando muito e recebendo pouco dinheiro. As horas extras não são pagas, embora elas deixem a casa de seus patrões muitas vezes tarde da noite.

A cidade passou a ser telemática e a falta de acesso à rede de informações globalizada exclui-os dos processos da cidade. "A cultura urbana se assemelha a essa condição mimética quando possibilita a sensação de que se está em toda parte ao mesmo tempo em que não se está realmente em parte alguma. A transparência arquitetônica, por exemplo, transforma os shopping centers numa contínua exibição em que a homogeneidade das vitrines, das escadas, dos elevadores e dos repuxos causa uma perda perceptual, e os consumidores ficam andando a esmo num labirinto (...) o corpo busca a concretude no consumo de alimentos e bens, saturando seus sentidos ao máximo."(OLALQUIAGA, Celeste. Megalópolis . São Paulo: Studio Nobel, 1998.)

Os novos laços entre os habitantes da cidade estão cada vez mais virtuais e rápidos. O individuo atualmente pode estar em seu escritório, em Recife e estar falando com um indivíduo em Nova York, em inglês e ao mesmo tempo estar recebendo um e-mail de outra pessoa que está no Japão. O advento da rede de comunicações suprime o sujeito da necessidade de deslocar-se, basta apertar um botão e todas as tarefas podem ser realizadas instantaneamente. Ângela Prysthon descreve assim a cidade pós-moderna atual em seu ensaio Cidades, cosmopolitismo e comunicação:

"A comunicação faz-se a principal via de acesso à vida urbana. As cidades e sua narrativa resolvem-se através dos telejornais, dos diários impressos, das novelas que eternizam os clichês metropolitanos, que consolidam uma idéia muito peculiar dos diversos núcleos urbanos, através das cidades criadas dentro da rede de computadores, cidades virtuais tão legítimas quanto as reais com suas bibliotecas, seus shoppings, seu underground. Então, a cidade não vai ser apenas representada nesses diversos meios, ela vai ser também esses meios. Ela vai corporificar-se nesses discursos".

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Mesmo que não exista uma lei que separe as classes sociais, isso acontece inevitavelmente. Observando com cuidado podemos constatar que os espetáculos de teatro ao ar livre, shows e festivais promovidos pela prefeitura local são sempre realizados em locais no Recife Antigo ou na zona sul da cidade, o que dificulta bastante o acesso da periferia. Apesar de serem shows abertos ao público, as pessoas que vão a estes shows são geralmente universitários e membros da classe média. Quer dizer, mesmo estas atividades culturais "de graça" não são oferecidas com o intuito de atender às classes mais pobres, pois ela mesma sente-se marginalizada. Nestor Garcia Canclini escreve em seu livro Consumidores e Cidadãos: "O sentido da cidade se constitui no que a cidade dá ou no que não dá, no que os sujeitos podem fazer com sua vida em meio às determinações do habitat e o que as falhas, as faltas, os desenganos com que as estruturas e interações urbanas respondem a suas necessidades e desejos". As pessoas de baixa renda, nesses casos de shows ao ar livre, preferem trabalhar recolhendo latas de bebidas, estacionando carros ou vendendo cachorro-quente do que se divertindo. A sua condição de vida não o dá oportunidade de optar pelo divertimento, pois tais atividades são uma boa ocasião de ganhar algum dinheiro.

É importante, a partir desta observação, notar a nova "moda periférica" que a classe mais alta da cidade tem adotado como estilo. O periférico, alternativo ou até rural deixou de ser uma condição de vida para adquirir forma estética. A classe média alta veste-se como a periferia, ouve as mesmas músicas, embora em locais diferentes e com propósitos completamente diferentes.

O que vem ocorrendo não é uma sensibilização do cidadão cosmopolita em relação à realidade dos excluídos; eles vestem figurinos alternativos, que muitas vezes custam mais do que a remuneração de um indivíduo da periferia, eles ouvem Rap ou qualquer outra forma musical de protesto, embora as reclamações feitas nas letras da música não condizem nem um pouco com a sua realidade, somente pelo fato disto dar a eles um certo status "in". Um exemplo disto eu pude observar em um show do músico "multicultural" Mano Chao. Durante o espetáculo, o cantor levantou a bandeira do Movimento dos Sem Terra e foi aplaudido veemente pela platéia, que era em sua maioria composta por setores da classe média da cidade. Até aí, o leitor que não é familiarizado com o Movimento dos Sem Terra (MST) e toda a sua história de luta pela reforma agrária e pela distribuição justa de terras no país não entenderia o porquê do exemplo.

O MST surgiu em 1984 no Rio Grande do Sul e desde então luta por uma distribuição mais igualitária das terras e pelo fim do latifúndio improdutivo, que há muitos anos predomina no Brasil. Desde então, já adquiriu muitos adeptos; alguns que sonham com um pequeno pedaço de terra para cultivar e tirar o seu sustento, outros pela comida, abrigo e escola que o movimento oferece a seus seguidores e outros somente por interesses próprios de enriquecimento. A sua tática é invadir os latifúndios improdutivos e ocupar as terras com seus acampamentos que muitas vezes chegam a comportar mais de 200 famílias, agilizando, assim, o processo de desapropriação de terras improdutivas. "No Nordeste há uma grande utilização de terra e do trabalho na produção agrícola com uma subtilização do

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fator capital. A utilização daqueles dois fatores é estimulada pela grande disponibilidade de terras e mão de obra, tornando baratas as mesmas. Assim, há no Nordeste uma grande quantidade de terras apropriadas que não são cultivadas, o que permite ao proprietário, que se considera socialmente tão mais importante quanto mais extensas forem as suas propriedades, realizar nas mesmas as rotações de terras que lhe desejar. Também costumam deixar grandes áreas sem utilização, formando reservas de matas ou de campos, enquanto utilizam grandes áreas como pastagens naturais onde pastam animais à procura de alimentos. A esta disponibilidade de terras, nas propriedades já apropriadas, junta-se a grande quantidade de terras não-apropriadas, localizadas em áreas periféricas do Nordeste, ou em áreas centrais pouco povoadas, para onde migram agricultores que abandonam as áreas onde encontram poucas oportunidades de trabalho (...) ". (CORREIA DE ANDRADE, Manuel. Cidade e campo no Brasil, Brasiliense, São Paulo, 1974)".

Desde 1998, o MST tem estendido as invasões às sedes do INCRA no Brasil, ocupando as grandes cidades brasileiras e muitas vezes causando atritos com a polícia. A classe média urbana entra aí. Grande parte da classe média condena o Movimento dos Sem Terra; os acusa de baderneiros e de oportunistas. É de espantar quando um movimento como esse, de alta rejeição por parte da população urbana, seja aplaudido em meio a um show. O que se pode comentar a partir deste fato é que os aplausos arrancados da platéia, a meu ver, não eram genuinamente verdadeiros. Aplaudir a bandeira do movimento não significa ser solidário ao Movimento dos Sem Terra. Significa somente que naquele momento era mais oportuno fingir tal apoio do que se manifestar contrário a ele, até porque dada a situação política brasileira e a falta de popularidade do governo federal, reprovar um movimento social que manifesta-se contra os interesses neo-liberais do governo é motivo de vergonha.

Os cidadãos estão cada vez menos preocupados com o macro urbano, com as questões sociais da cidade como um todo. O isolamento nos seus grupos sociais; famílias, bairros, pessoas da mesma classe é uma forma de evitar o contato com pessoas de outras esferas sociais e conseqüentemente da violência urbana que ronda a cidade do século XXI. Os movimentos sociais que nasceram na cidade ou que foram levados para a cidade, como é o caso do MST, não encontram apoio algum por parte dos habitantes da cidade, pois eles estão mais preocupados com questões que eles acreditam possam atingir-lhes diretamente, como, por exemplo, o aumento da gasolina.

A cidade contemporânea apresenta uma diversa gama de aspectos que somente aparece para reafirmar o que reproduzi no início do meu ensaio. O desenvolvimento da comunicação e o surgimento da globalização criaram novas formas de exclusão. As formas antigas que levavam os indivíduos a serem divididos em blocos de influência dentro da cidade continuam existentes, porém, tomam uma configuração diferente nos novos tempos. O que se pode concluir, após observar a cidade atual e estudar o seu procedimento de inclusão-exclusão, é que as pessoas excluídas do processo da cidade estão integrando cada vez

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menos a idéia de urbano. A periferia foi colocada em espaços que poderíamos chamar de "limbo"; elas estão e ao mesmo tempo não estão na cidade: embora integrem a área geográfica da cidade, não são partes de sua constituição virtual e influem muito pouco nas políticas administrativas do Estado.

A base da pirâmide de classes da cidade (a mais larga e que representa a classe dos que tem menos influência política, isto é, a população de baixa renda) está alargando-se. A tendência de equalização de classes, imaginada por alguns estudiosos da modernidade conseqüência do desenvolvimento tecnológico, era apenas a utopia de uma contemporaneidade mais justa.