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Ação popular e CMVM

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  • A ACO POPULAR E A PROTECO DO INVESTIDOR

    J. Oliveira Asceno

    SUMRIO:

    1. A defesa dos interesses individuais pela aco popular; 2. A cumulao de interesses altrustas e

    egostas; 3. Aco popular e defesa de interesses individuais; 4. Interesses do investidor protegidos

    pela aco popular; 5. O desvio do regime geral; 6. O regime da indemnizao.

    1. A defesa dos interesses individuais pela aco popular

    O art. 31 do Cdigo dos Valores Mobilirios (CVM) regula a aco popular. Esta conferida para a

    proteco de interesses individuais homogneos ou colectivos dos investidores (n. 1). atribuda a:

    investidores no institucionais

    associaes de defesa dos investidores

    fundaes com idntico objecto.

    A aco popular prevista no art. 52/3 da Constituio: conferido a todos.... O instituto tem

    sofrido um empolamento sucessivo. regulado sobretudo na Lei n. 83/95, de 31.VIII, sobre o direito

    de participao procedimental e de aco popular. A aco popular dividida ainda em administrativa

    e civil.

    Hoje, na sociedade da lisonja em que vivemos, torna-se difcil situar a aco popular destinada

    proteco dos interesses dos investidores.

    A Constituio faz um enunciado exemplificativo do objecto possvel da aco popular. Pode destinar-

    se defesa de bens do Estado, das regies autnomas e das autarquias locais (art. 52/3 b): estamos

    ainda prximos da aco popular clssica, pela qual se reagia contra a inrcia dos rgos

    administrativos na defesa dos interesses pblicos a seu cargo. Mas prev-se tambm como objectivo a

    preveno, a cessao ou a perseguio judicial das infraces contra a sade pblica, os

    consumidores, a qualidade de vida, a preservao do ambiente e o patrimnio cultural.

    A aco popular concedida nos casos e termos previstos na lei: isto significa que sempre

    indispensvel uma lei de concretizao. Assim, por exemplo a Lei de Bases do Ambiente representa

    uma fonte concretizadora.

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    Mas o art. 52/3 CRP acrescenta ainda: incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a

    correspondente indemnizao. Isto perturbador. A aco popular pareceria uma aco altrusta.

    Afinal, com a previso (desde logo constitucional) da indemnizao dos lesados individuais, so os

    interesses individuais que se defendem.

    Tentemos no obstante situar esta aco popular no domnio dos valores mobilirios.

    Partimos da referncia proteco dos interesses individuais homogneos ou colectivos dos

    investidores (art. 31/1).

    Mas logo o n. 2 liga fortemente esta matria da indemnizao: a sentena condenatria deve

    indicar a entidade encarregada da recepo e gesto das indemnizaes devidas a titulares no

    individualmente identificados, recaindo a designao, conforme as circunstncias, em fundo de

    garantia, associao de defesa dos investidores ou um ou vrios titulares de indemnizao

    identificados na aco.

    A indemnizao que se prev aqui a individual, pelo menos em primeira linha. Os titulares no

    individualmente identificados so os lesados individualmente que no se apresentaram na aco.

    Confirma-o o n. 3: as indemnizaes que no sejam pagas em consequncia de prescrio ou da

    impossibilidade de identificao dos respectivos titulares revertem para o fundo de garantia. S

    titulares individuais podem ser insusceptveis de identificao.

    Esta matria ainda completada por referncias constantes doutros lugares do CVM. Assim, os arts.

    149 e seguintes regulam a responsabilidade pelo prospecto. Estabelecem a responsabilidade objectiva

    (art. 150), discriminam os responsveis (art. 149), a cessao do direito indemnizao (art. 153)...

    Mas tudo isto respeita s figuras comuns de responsabilidade civil. Como se integra com a aco

    popular? A aco popular existe afinal para a defesa de interesses individuais?

    O art. 31/1 CVM fala em interesses individuais homogneos ou colectivos. Sero tudo interesses

    individuais, que por sua vez poderiam ser homogneos ou colectivos?

    No, porque individual se contrape a colectivo. Os interesses dos investidores contemplados podem

    ser:

    individuais homogneos

    colectivos.

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    No se trata de especificidade do CVM. A contraposio destes interesses aos interesses difusos hoje

    frequente na lei portuguesa.

    Isto significa que a aco popular no serve apenas para a defesa de interesses colectivos. Serve

    tambm para a defesa de interesses individuais, desde que sejam homogneos. Quando so todos da

    mesma ndole, podem ser conjuntamente defendidos pela aco popular.

    Mais ainda: do art. 31/1 CVM, dada a alternativa que estabelece, resulta que a aco popular para

    defesa dos investidores no tem de se basear sempre na defesa de interesses colectivos dos

    investidores. Pode basear-se somente numa defesa de interesses individuais, desde que sejam

    homogneos.

    Este carcter individualista ressalta ainda da justificao contida no n. 9 do Prembulo: Assim se

    facilita a interveno organizada dos investidores em defesa dos seus interesses, em especial no que

    respeita responsabilidade civil.

    Para podermos apreciar melhor esta opo, h que passar em revista a constelao de interesses que

    so relevantes no domnio da aco popular.

    2. A cumulao de interesses altrustas e egostas

    A figura do interesse juridicamente relevante no encontrou ainda uma posio estabilizada no seio da

    cincia jurdica. H por um lado uma tumultuosa evoluo, por outro questes terminolgicas que

    dificultam o entendimento.

    Podemos partir da noo muito geral de interesse que nos dada pela economia ou se quisermos,

    pela teoria geral da realidade. H numerosos tipos de interesses com relevncia jurdica, sem estarem

    todavia consolidados em direitos subjectivos.

    S a categoria recente e ainda indefinida do interesse difuso nos ocupar.

    Trata-se do interesse de todas as pessoas integrantes de uma comunidade, pelo simples facto de o

    serem.

    Esse interesse no fraccionvel nem aproprivel individualmente. Tambm no transmissvel nem

    renuncivel. Adquire-se pela pertena comunidade e perde-se quando essa pertena cessa.

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    Recorrendo a uma categoria geral, podemos caracterizar esse interesse como de mo comum.

    Lembramo-nos do que caracteriza conceitualmente a propriedade de mo comum, como a dos baldios.

    Pois tambm o interesse difuso paira em todos os membros da colectividade, indivisivelmente, e

    propaga-se pelas maneiras prprias de uma situao de mo comum.

    Na medida em que a lei lhe d relevo jurdico, este interesse comunitrio passa a constituir tambm

    uma posio jurdica subjectiva. A esfera jurdica de cada membro integra tambm estes interesses

    difusos.

    Gomes Canotilho define o interesse difuso como a refraco em cada indivduo de interesses

    unitrios da comunidade, global e complexivamente considerada 1. certo, mas parece til

    acrescentar que estes interesses no so apenas os interesses da comunidade nacional, como os

    interesses da defesa, independncia, educao, seno confundiam-se com os interesses gerais ou

    colectivos. Podem ser os interesses de uma comunidade local, restritos aos seus membros 2.

    Cada membro interessado, mas quando actua tambm altrusta: defende o interesse indivisvel de

    todos. As indemnizaes a que eventualmente se tivesse direito seriam da colectividade, e no de cada

    membro individualmente.

    Mas aqui surgem as dificuldades derivadas do regime legal das indemnizaes. A Constituio fala na

    indemnizao do lesado. No se trata pois apenas de reparao colectiva, h tambm a valorao de

    interesses individuais, distintos do interesse colectivo.

    Isto agravado por a Constituio ter passado a especificar no art. 52/3 os direitos dos

    consumidores. H um acento individualstico evidente. Poderia referir-se defesa de interesses gerais

    do consumo, garantia da qualidade dos bens por exemplo, mas a tendncia que aquele acrescento

    revela marca sem dvida o sentido individualstico que se outorga aco popular.

    Aqui os interesses aproximam-se dos de uma classe ou categoria de interessados, os consumidores. Se

    certo que todos somos consumidores, aqui opem-se particularmente os consumidores (finais) aos

    que prestam estes bens ou servios. E falando-se em direitos dos consumidores referem-se posies

    subjectivas consolidadas, e no meros interesses difusos.

    Em todo o caso, poderia falar-se ainda em dois tipos de indemnizao:

    uti singuli

    1 J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 3. ed., Coimbra Editora, 1993, sub art. 52, X (282). 2 At pode haver contradio entre interesses locais e nacionais. Pense-se no que respeita co-incinerao.

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    uti universi.

    Na indemnizao uti singuli estaria em causa o direito concreto de um lesado ao ressarcimento.

    Na indemnizao uti universi estaria em causa o direito global da comunidade a indemnizao.

    Para manter a coerncia do sistema, haveria que partir do princpio que a defesa dos interesses da

    comunidade em si nunca poderia faltar. Caso contrrio no haveria j a proteco de interesses difusos

    pela aco popular. Apenas se aproveitaria a interposio de uma aco destinada a defender interesses

    difusos para reparar simultaneamente danos individualmente sofridos. Isto significaria que, nestas

    aces, ao fim altrusta, sempre indispensvel, se poderia agregar um fim egosta.

    Mas, em termos de indemnizao, a indemnizao egosta, de danos individuais, parece no poder

    fazer parte da indemnizao comunidade. Se no, comprometer-se-ia o significado altrusta desta

    indemnizao global.

    De todo o modo, como se v, h grande dificuldade em conciliar interesses que parecem divergentes.

    3. Aco popular e defesa de interesses individuais

    Muito brevemente, vejamos se por tais linhas que avana neste domnio a Lei n. 83/95, de 31 de

    Agosto, que regula a participao procedimental e a aco popular 3.

    A lei recorre figura da representao. O autor representa automaticamente, em consequncia da sua

    iniciativa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que no tenham exercido o

    direito de auto-excluso (art. 14).

    Quer dizer, tomada por algum a iniciativa de intentar uma aco popular, todos os restantes

    interessados:

    ou intervm nela (art. 15/1)

    ou se auto-excluem (art. 15)

    ou sofrem as consequncias da aco, nomeadamente os efeitos do caso julgado (art. 19).

    A auto-excluso pode ser realizada at ao termo da produo da prova (art. 15/4).

    3 O art. 1/2 desta lei acrescentou o domnio pblico lista do art. 35/3 a da Constituio. Este estaria compreendido na referncia aos bens do Estado e doutros entes pblicos da al. b do art. 35/3 CRP, embora no esgotasse o contedo da previso.

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    duvidoso que se possa falar aqui de uma representao em sentido tcnico, ao menos no plano

    substantivo. Parece haver antes uma legitimao excepcional, que permite ao titular em mo comum

    actuar por todos o interesse difuso. Mas as consequncias ainda so mais graves se essa representao

    se estender tambm reclamao de indemnizao por terem sido feridos direitos subjectivos dos

    outros interessados.

    A matria da responsabilidade civil e penal regulada nos arts. 22 e seguintes da Lei n. 83/95. O art.

    22 regula a responsabilidade civil comum, que a responsabilidade por ilcito. Os titulares de

    interesses identificados tm direito a indemnizao, nos termos gerais (n. 3): no se esclarece se se

    pressupe que intervm na aco.

    Mas o n. 2 prescreve que a indemnizao pela violao de interesses de titulares no individualmente

    identificados fixada globalmente. O n. 4 determina a prescrio em 3 anos do direito

    indemnizao. O n. 5, a reverso dos montantes prescritos ao Ministrio da Justia.

    Tudo isto muito anmalo. O acento posto na defesa de pretenses individuais e no das colectivas.

    Por exemplo, havendo danos ao ambiente, no parece estar em causa a reparao desses danos pela

    reconstituio da situao inicial, o que seria justificado pelo interesse difuso ao ambiente, mas a

    reparao do prejuzo individualmente sofrido por cada interveniente.

    H tambm grandes anomalias, se no na prova dos danos, ao menos na fixao da indemnizao. O

    dano que se repara no o dano real de cada um, como diferena no patrimnio, mas o dano em

    abstracto, bitolado por razes exteriores e est presumido em relao a cada interessado. Criam-se

    direitos a indemnizao sem aferio em concreto de danos, bastando o simples facto de se ser

    partcipe na situao que objectivamente gera a posio de mo comum.

    H ainda a previso da responsabilidade objectiva no art. 23, em termos de grande latitude. Existe

    sempre que das aces ou omisses do agente tenha resultado ofensa de direitos ou interesses

    protegidos nos termos daquela lei e no mbito ou na sequncia de actividade objectivamente perigosa.

    Tornam-se indefinidos os contornos da responsabilidade objectiva. Mas isto menos relevante para o

    aspecto que nos interessa, da determinao do objecto da proteco, como interesse difuso ou interesse

    singular.

    De todo o modo, chocante a ausncia de critrios no que respeita atribuio e distribuio efectiva

    de indemnizaes aos titulares de interesses no individualmente identificados.

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    Que concluir? Parece que h um deslizamento, da justificao por uma ideia altrusta da proteco de

    interesses difusos para uma viso egosta e interesseira de tutela de interesses individuais. Parece no

    levar a um abandono da noo de interesse difuso, como participao sem atribuio de quota num

    interesse comum; mas levou a uma descrio da aco popular como centrada muito mais na defesa

    dos interesses individuais que na dos gerais.

    4. Interesses do investidor protegidos pela aco popular

    Volvamos agora aco popular, tal como prevista no art. 31 CVM. Como dissemos, ela destina-se

    proteco de interesses individuais homogneos ou de interesses colectivos dos investidores (n. 1).

    Qual a relao que isto tem com a categoria dos interesses difusos?

    a seguinte:

    os interesses individuais homogneos so interesses egostas

    os interesses colectivos no so interesses altrustas, logo difusos.

    Com efeito, e comeando pelos interesses individuais homogneos: a lei parte do princpio que haver

    sempre indemnizao. Mas essa indemnizao referida a danos individuais.

    A posio dos investidores facilitada se uma nica aco puder cobrir uma pluralidade de situaes

    individuais homogneas. H aqui vantagem anloga que se obtm em processo com a coligao.

    Mas um feixe de interesses individuais no se transforma por isso em interesse altrusta. Continua a

    ser um interesse egosta, logo, no um interesse difuso.

    Outros efeitos favorveis se regulam, nomeadamente o que respeita reverso para o fundo de

    garantia ou para outras entidades de indemnizaes no pagas. Mas mesmo quando estas so entidades

    de representao colectiva, a indemnizao no deixa de se destinar a reparar danos individuais. Tudo

    o que respeite a interesses individuais homogneos nada tem que ver com os interesses difusos.

    E os interesses colectivos dos investidores podero ser considerados interesses difusos? Pensamos que

    no, e que a prpria lei o confirma depois.

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    Estes interesses no traduzem um interesse duma comunidade e a defesa de interesses gerais.

    Traduzem a defesa de interesses duma classe ou categoria, os investidores. So interesses prprios

    dessa classe, que no coincidiro necessariamente com os interesses gerais.

    H aqui uma progresso em relao ao que vimos j verificar-se com os interesses dos consumidores:

    estes so tambm interesses de categoria, em oposio a outros interesses. Mas aqui d-se

    efectivamente um passo mais, porque estes interesses se referem a uma categoria de actividade,

    contraposta a outras. Poderiam ser chamados interesses sindicais: defendem uma categoria de

    intervenientes na actividade econmica.

    E no aceitvel perante isto falar-se ainda em interesses difusos, com o fundamento de essas

    entidades contriburem para o funcionamento mais perfeito de um sector que tem interesse nacional,

    que so os mercados de capitais. A ser assim, dar-se-ia um sentido inadmissvel a interesse difuso.

    No por uma entidade contribuir para o equilbrio nacional que passa a ser detentora de interesses

    difusos. Doutro modo, as associaes sindicais, as associaes profissionais em geral e tantas outras

    de fins interessados tutelariam interesses difusos.

    Mas por outro lado, embora rejeitando a qualificao como interesses difusos, h algo que temos de

    aceitar: a remisso legal para a aco popular implica a aplicao em princpio do regime que para a

    aco popular foi estabelecido. Portanto, nos pleitos que se suscitarem, mesmo que relativos a

    interesses individuais homogneos ou colectivos dos investidores, o recurso aco popular deve ser

    acatado.

    No se v porm que esta defesa de interesses colectivos implique necessariamente indemnizaes, ao

    contrrio do que pareceria resultar do n. 2. Antes, parece difcil ou marginal que a defesa destes

    interesses se funde em responsabilidade civil.

    De facto, a defesa de interesses colectivos poderia referir-se actividade dos mercados em sentido que

    interesse genericamente aos investidores. Poder estar em causa o horrio de abertura das bolsas, a

    insuficincia dos modos de fornecimento de informao e aspectos de carcter institucional

    semelhante. Nada disto implica por si a existncia de indemnizaes.

    Isto afinal ainda consequncia do afastamento da aco popular da genuna defesa de interesses

    difusos. H antes a defesa dos interesses de uma categoria.

    Poderamos at distinguir os interesses colectivos em:

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    gerais

    categoriais.

    Aqui estaramos perante um interesse categorial antes de mais, o interesse do agregado dos

    investidores. Mas no h a defesa de interesses gerais; o benefcio destes s poder obter-se por

    reflexo.

    Isto significa que em nenhuma das hipteses contempladas no art. 31/1 h uma interveno altrusta.

    No 1. caso porque se defendem interesses individuais, se bem que homogneos; no 2., porque se

    defende o interesse da categoria de que se participa. Pelo que no h afinal proteco de interesses

    difusos.

    No s os interesses colectivos no so interesses difusos, como o recurso aco popular no tem

    que os prosseguir necessariamente. Mas pelo art. 31 CVM a defesa de interesses individuais

    homogneos uma finalidade auto-suficiente da aco. Pode prosseguir apenas esta finalidade, como

    vimos. O que implica que uma aco desta ordem pode ser intentada para a exclusiva defesa de

    interesses individuais.

    Daqui podemos retirar uma concluso. No h uma correspondncia bi-unvoca entre interesse difuso

    e aco popular. O interesse difuso pode ser defendido pela aco popular; mas a aco popular pode

    ser utilizada mesmo quando no est em causa a defesa de interesses difusos 4.

    5. O desvio do regime geral

    O afastamento do sistema do art. 31 CVM da genuna proteco dos interesses difusos no pode deixar

    de ter consequncias.

    Acabamos de ver que o prprio regime geral da aco popular apela hoje muito mais para uma defesa

    de interesses individuais homogneos que de verdadeiros interesses difusos, afinal.

    Mas na base do regime estabelecido est sempre a considerao que o regime contribuir para

    beneficiar um bem colectivo, de que todos os interessados participam em mo comum.

    O regime da aco popular justifica-se pois pela prossecuo de interesses difusos. O acrscimo da

    cumulao possvel com a tutela de interesses egostas no lhe retira aquela caracterstica bsica.

    4 Sobre o interesse difuso cfr. o nosso Direito Civil Teoria Geral, III Relaes e Situaes Jurdicas (no prelo), n.os 49 e seguintes, em que aprofundamos a categoria.

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    Mas, uma vez posto ao servio de interesses que no mximo sero categoriais e no mnimo

    exclusivamente egostas, por fora do art. 31 CVM, obriga a uma ponderao em cada caso. No sero

    aplicveis regras que se justifiquem apenas pelo carcter altrusta da defesa de interesses difusos que a

    Lei n. 83/95 pressupe.

    Ser decisiva uma valorao de cada preceito do CVM, que pode levar a afastar a aplicao de regras

    da Lei n. 83/95 que no sejam compatveis com ele.

    uma pesquisa que no podemos fazer aqui. Fica a advertncia geral: a aplicao do regime da Lei n.

    83/95 no automtica. No podero ser aplicveis regras cujo esprito for incompatvel com a ndole,

    ou categorial, ou at exclusivamente individualstica, dos interesses em causa dos investidores.

    Limitamo-nos a ilustrar com um exemplo.

    O art. 23 da Lei n. 83/95 amplia consideravelmente o mbito da responsabilidade objectiva, como

    vimos.

    Mas isso d-se em caso de ofensa dos direitos ou interesses protegidos por aquela lei.

    Ser admissvel a aplicao daquele preceito proteco dos investidores?

    O mercado de capitais ou os direitos dos investidores no constam da lista dos bens protegidos do art.

    1/2 da Lei n. 83/95. Poder todavia fazer-se a extenso, uma vez que aquela lista no taxativa?

    No pode, porque no h a mesma razo de decidir.

    O regime excepcional e particularmente violento do art. 23 da Lei n. 83/95 justifica-se pelo interesse

    difuso que se destina a tutelar.

    Mas na medida em que, no mximo, se tutelam interesses categoriais, aquela aplicao falece. O CVM

    preocupa-se com os interesses de uma categoria, individual ou colectivamente. Aplica-se a disciplina

    da aco popular, na medida em que adequada para proteger esses interesses individuais ou

    categoriais; mas no j aqueles preceitos que s se justificam por uma considerao do interesse geral

    e do carcter altrusta que levou criao daquela aco.

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    6. O regime da indemnizao

    Acrescentamos um breve apontamento sobre o que resulta do art. 31 CVM quanto ao regime das

    indemnizaes que a so previstas.

    O n. 2 parte da previso duma sentena condenatria. De facto, podem intentar-se outras aces,

    nomeadamente de simples apreciao, mas s a sentena condenatria relevante, por impor o

    pagamento duma indemnizao.

    No de supor um afastamento completo dos princpios gerais. Por isso, a indemnizao

    corresponder a um dano, mesmo em relao a titulares no individualmente identificados. Quando

    muito se admitiria uma presuno de dano. J vimos porm que em relao a estes interessados o dano

    tomado em abstracto.

    O n. 1 indica as entidades legtimas para intentar aco popular. No coincidem porm com as

    entidades encarregadas da recepo e gesto das indemnizaes devidas a titulares no

    individualmente identificados (n. 2). No se atribui essa funo s fundaes, nem a todos os

    investidores no institucionais que participam da aco em geral. Acrescentam-se porm como

    legtimos o fundo de garantia e um ou vrios titulares de indemnizao identificados na aco.

    O direito indemnizao prescritvel; mas o CVM no estabelece prazo. Rege o prazo de 3 anos do

    art. 22/4 da Lei n. 83/95, uma vez que este se aplica directamente ao lesado ou lesados: nenhum

    motivo h para o afastar.

    Pode a indemnizao no vir a ser paga efectivamente aos interessados, por prescrio, ou por

    impossibilidade de identificao dos beneficirios. O remanescente da indemnizao global obtida

    reverte ento para o fundo de garantia relacionado com a actividade em que se insere o facto gerador

    da indemnizao. Aqui h um afastamento da destinao prevista no art. 22/5 da Lei n. 83/95, que

    privilegiava finalidades de interesse geral.

    Esta reverso assinala outro desvio. No fundo, transita-se de uma finalidade ressarcitria para uma

    funo aflitiva. A indemnizao representar sempre uma pena, e s eventualmente uma reparao.

    Aproveita-se ainda para beneficiar com este ganho aleatrio um fundo de garantia de investidores.

    Porm, todo este regime carece de concretizao. Nada se estabelece quanto s funes das entidades

    encarregadas da recepo e gesto das indemnizaes. E aqui no vale o recurso para a Lei n. 83/95,

    pois esta igualmente omissa quanto matria.

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    A atribuio fiduciria de indemnizaes a terceiros grave questo de direito substantivo, que

    deveria constar da lei. Nada se diz sobre as funes dessas entidades e sobretudo sobre os critrios de

    repartio de remuneraes. Se estas so atribuveis em bloco a titulares no individualmente

    determinados, como proceder para calcular a remunerao devida a um titular que surja a reclamar a

    sua parte? Como prevenir por outro lado que a verba global se esgote, havendo ainda interessados a

    satisfazer? So lacunas muito graves, que comprometem gravemente o sistema.

    Podero, com referncia ao mesmo facto violador, correr vrias aces populares? A lei no o diz.

    de supor que em geral isso no seja admitido, doutra maneira frustar-se-ia a finalidade de conseguir

    uma deciso unitria. Mas fica aberta uma lacuna, quanto ao modo de proceder quando se verificar

    que efectivamente correm em paralelo vrias aces.

    Situao diferente a que resulta de haver titulares que se auto-exclurem. No ficam nesse caso

    sujeitos ao caso julgado, por aplicao dos arts. 15/1 e 19 da Lei n. 83/95.

    Se a sentena for absolutria, no esto impedidos de intentar uma nova aco, pois no ficaram

    vinculados.

    E se a sentena for condenatria? A posio deles estar contemplada na indemnizao atribuda a

    titulares de interesses no individualmente identificados? Ou no est, e podero intentar aco

    autnoma de condenao? E neste caso, podero faz-lo ainda no decurso da primeira aco popular?

    Nem a Lei n. 83/95 nem o CVM nos do indicao sobre esta matria. Da circunstncia de aqueles

    interessados no serem atingidos pelo caso julgado resultar porm que no tm de aceitar o valor da

    indemnizao que tiver sido atribuda. Podero pleitear outro valor.

    Sendo assim, a primeira sentena dever exclu-los. A indemnizao que pela primeira sentena for

    atribuda, mesmo global, no dever compreender a parte daqueles interessados. E consequentemente,

    estes tambm no podero quinhoar na indemnizao global.

    Tm o recurso de intentar nova aco. E, como a primeira aco no lhes respeita, no parece haver

    impedimento a que o faam ainda no decurso daquela. As aces subsequentes estaro abertas

    exclusivamente aos interessados que se auto-excluram nas anteriores. Podem assim correr

    paralelamente vrias aces populares assentes na mesma causa de pedir.