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ABUSO DE AUTORIDADE Antonio Carlos Santoro Filho Publicação de 22 de maio de 2020 ABUSO DE AUTORIDADE Conceito, sujeito ativo, dolo e hermenêutica ABUSO DE AUTORIDADE – Conceito, sujeito ativo, dolo e hermenêutica 1 - Conceito de abuso de autoridade Ocorre abuso de poder – em sentido lato - quando o agente público exerce o poder que lhe foi conferido com excesso (o agente atua além de sua competência legal) ou com desvio de finalidade (atua com o objetivo distinto daquele para o qual foi conferido). Caio Tácito bem explica que “o abuso de poder surge com a violação da legalidade, pela qual se rompe o equilíbrio da ordem jurídica. Tanto da legalidade externa do ato administrativo (competência, forma prevista ou não proibida em lei, objeto lícito) como da legalidade interna (existência dos motivos,

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

ABUSO DE AUTORIDADE

Conceito, sujeito ativo, dolo e hermenêutica

ABUSO DE AUTORIDADE – Conceito, sujeito ativo, dolo e hermenêutica

1 - Conceito de abuso de autoridade

Ocorre abuso de poder – em sentido lato - quando o agente público exerce o

poder que lhe foi conferido com excesso (o agente atua além de sua competência

legal) ou com desvio de finalidade (atua com o objetivo distinto daquele para o

qual foi conferido).

Caio Tácito bem explica que “o abuso de poder surge com a violação da

legalidade, pela qual se rompe o equilíbrio da ordem jurídica. Tanto da

legalidade externa do ato administrativo (competência, forma prevista ou não

proibida em lei, objeto lícito) como da legalidade interna (existência dos motivos,

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finalidade). A cada um dêsses elementos de legalidade corresponde uma causa

de nulidade do ato administrativo. São vícios de legalidade externa a

incompetência (em cujo conceito se inclui a usurpação de poder) o vício de forma

e a ilicitude do objeto. São vícios de legalidade interna a inexistência material ou

jurídica dos motivos e o desvio de poder”[1] .

O crime de abuso de autoridade, no entanto, para a sua verificação, exige

a conjugação da ilegalidade externa, bem como interna do ato: para configurar o

delito a ação deve ser não apenas formal e materialmente ilegal – típica -, mas

também dotada de desvio de finalidade, isto é, do dolo de abuso,

da finalidade de prejudicar ou para satisfação de interesse, sentimento pessoal ou

capricho.

Trata-se, portanto, da violação de direitos ou garantias individuais de outrem,

com a vontade consciente de tal violação e com finalidade distinta do estrito

cumprimento do dever legal, isto é, de prejudicar o ofendido ou de satisfação

pessoal.

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2 - Sujeito Ativo

Embora se trate o abuso de autoridade de crime próprio, a Lei n. 13.896/2019

fornece um conceito ampliado de agente público, passível de incursão nos tipos

penais da nova legislação.

À semelhança do disposto no art. 327, do Código Penal – conceito de funcionário

público para fins penais -, dispõe que, além de membros dos Poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário – detentores de poder -, podem ser sujeitos ativos dos

crimes de abuso de autoridade os membros do Ministério Público, dos Tribunais

ou Conselhos de contas, servidores públicos e militares e agentes da

administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União,

dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, isto é, todo

aquele que exerce, nesses entes, ainda que transitoriamente ou sem remuneração,

por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de

investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função.

Como bem sintetiza Rui Stoco: “em síntese, para efeitos penais, consideram-se

funcionários públicos, independentemente da forma de admissão, regime

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jurídico ou remuneração (ainda que não haja remuneração por parte da

Administração direta ou indireta), as pessoas físicas que exerçam cargos ou

funções, em caráter permanente ou transitório, na Administração Direta, Indireta

(autarquias, entidades paraestatais – de que são espécies a empresa pública, a

sociedade de economia mista e serviços sociais autônomos) e fundacional da

União, Estado e Município e, ainda, os empregados de empresas privadas,

permissionárias ou concessionárias, prestadores de serviços contratados ou

participantes de convênios, para a execução de atividade típica da Administração

Pública”[2].

Portanto, para fins penais – e para encerrar legitimidade para figurar como

sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade – a lei acolhe um

conceito amplo de agente público, no qual se incluem os agentes propriamente

dotados de poder, mas também servidores e funcionários, terceirizados e,

inclusive, estagiários, conforme jurisprudência já pacificada pelos Tribunais

Superiores. A título de ilustração:

RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA A

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. FUNCIONÁRIO

PÚBLICO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA (CP, ART. 327, §

2º). ENTIDADES PARAESTATAIS (CP, ART. 327, § 1º).

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AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO

PARA FINS PENAIS. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA (LEIS

6.799/1980 E 9.983/2000). OCUPANTES DE CARGO EM

COMISSÃO E ASSESSORAMENTO EM AUTARQUIAS.

INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA. PENA

PROPORCIONAL. DESFALQUE EM FUNDO DE

PREVIDÊNCIA. ATENDIMENTO À VONTADE DA NORMA.

(PRECEDENTES DO STF).

1. No Direito Penal prevaleceu, por meio de uma interpretação

integradora, um conceito de funcionário público mais

abrangente do que aquele definido pelo Direito Administrativo,

que, a par do que já dizia o caput do artigo 327 do CP, tanto

englobou o rol reproduzido no § 2º deste dispositivo, como os

próprios entes autárquicos.

2. A própria causa de aumento de pena (CP, art. 327, § 2º)

reforçou o entendimento daqueles que compreendiam as

entidades paraestatais de maneira mais ampla, o que, por via de

consequência, elasteceu o conceito de funcionário público

disposto no § 1º do art. 327 do Código Penal.

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3. A interpretação construída pela doutrina e jurisprudência,

necessária que foi para a conformação do aludido conceito no

âmbito penal, não pode ser agora olvidada mediante a

literalidade estanque da majorante, para afastar o devido alcance

do § 2º do art. 327 do CP a todos que a norma quis abarcar como

funcionário público, sob pena de negar-se o claro objetivo do

conjunto normativo. Vale dizer, por força da compreensão

erigida, à imagem e semelhança da equiparação ao conceito de

funcionário público, tal qual os moldes do disposto ao art. 327 do

CP - com contribuição, repisa-se, do próprio § 2º -, admite-se, em

matéria penal, em casos estritamente necessários, uma

interpretação que corresponda ao espírito da norma.

4. Releva-se notar que não resvala em analogia in malam partem

o recrudescimento da pena àqueles que desempenham seu ofício

nos entes autárquicos, que, em razão do posto de alta

responsabilidade, locupletaram-se às custas da Administração,

porquanto ocupantes de cargo em comissão ou de chefia ou

assessoramento, quando a eles - e sobretudo a eles - cabiam zelar

pela coisa pública. E isso constata-se não só a partir da evolução

legislativa adrede trazida, mas também pelos inúmeros

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instrumentos normativos de combate à corrupção de que o

Estado lança à mão, ano após ano, e cuja busca permanente na

defesa do erário, bem como no proporcional apenamento desses

agentes que mancham a carreira pública, devem ser levados em

consideração pelo magistrado na interpretação da norma penal,

quando da apuração dessas condutas que, infelizmente, ainda

grassam em nosso país.

5. O abandono à interpretação literal - e em tudo isolada - da

norma penal guarda sua necessidade para hipótese como a dos

autos, em que a ora recorrida, quando ocupava cargo de chefia e

de direção, em concurso com outras três pessoas, durante 12

anos, desviou, por 78 vezes, a vultosa quantia de R$ 1.649.143,05,

do fundo do Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE,

numerário que se torna mais significativo quando se constata o

rombo de fundo previdenciário, cujo desfalque tem reflexos

diretos na aposentadoria e na saúde de seus beneficiários.

6. Recurso especial provido, para restabelecer a pena cominada

em 1º grau, com a causa de aumento do § 2º do art. 327 do Código

Penal. (REsp 1385916/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE

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ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI

CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/02/2014, DJe

04/09/2014)

"O advogado que, por força de convênio celebrado com o Poder

Público, atua de forma remunerada em defesa dos agraciados

com o benefício da Justiça Pública, enquadra-se no conceito de

funcionário público para fins penais (Precedentes)" (REsp. n.

902.037/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado

em 17/4/2007, DJ de 4/6/2007). Precedentes. Sendo equiparado

a funcionário público, possível a adequação típica aos crimes

previstos nos artigos 312 e 317 do Código Penal (STJ - HC

264.459/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA,

QUINTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 16/03/2016)

A teor do disposto no art. 327 do Código Penal, considera-se,

para fins penais, o estagiário de autarquia funcionário público,

seja como sujeito ativo ou passivo do crime. (Precedente do

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Pretório Excelso) (STJ - HC 52.989/AC, Rel. Ministro FELIX

FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/05/2006, DJ

01/08/2006, p. 484)

Ementa: HABEAS CORPUS. CRIME DE CONCUSSÃO.

EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO PARA REALIZAÇÃO DE

CIRURGIA DE URGÊNCIA. CONCEITO PENAL DE

FUNCIONÁRIO PÚBLICO. MÉDICO CREDENCIADO PELO

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TELEOLOGIA DO CAPUT DO

ART. 327 DO CÓDIGO PENAL. ORDEM DENEGADA. 1. A

saúde é constitucionalmente definida como atividade

mistamente pública e privada. Se prestada pelo setor público,

seu regime jurídico é igualmente público; se prestada pela

iniciativa privada, é atividade privada, porém sob o timbre da

relevância pública. 2. O hospital privado que, mediante

convênio, se credencia para exercer atividade de relevância

pública, recebendo, em contrapartida, remuneração dos cofres

públicos, passa a desempenhar o múnus público. O mesmo

acontecendo com o profissional da medicina que, diretamente,

se obriga com o SUS. 3. O médico particular, em atendimento

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pelo SUS, equipara-se, para fins penais, a funcionário público.

Isso por efeito da regra que se lê no caput do art. 327 do Código

Penal. 4. Recurso ordinário a que se nega provimento. (RHC

90523, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma,

julgado em 19/04/2011, DJe-201 DIVULG 18-10-2011 PUBLIC

19-10-2011 EMENT VOL-02610-01 PP-00024 RT v. 101, n. 917,

2012, p. 572-583)

EMENTA AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS.

FUNCIONÁRIO PÚBLICO POR EQUIPARAÇÃO. DIRIGENTE

DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL. CRIME CONTRA A

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 1. Associação civil qualificada

como Organização Social é considerada entidade paraestatal

para os fins do disposto no § 1º do artigo 327 do Código Penal, o

que torna legítima a qualificação de seus dirigentes, para efeitos

penais, como funcionários públicos por equiparação. 2. O

Instituto Candango de Solidariedade - ICS, enquanto ostentou a

condição de Organização Social, constituiu entidade paraestatal,

enquadrando-se no disposto no § 1º do artigo 327 do Código

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Penal. 3. Os ocupantes de cargo, emprego ou função no Instituto

em referência respondem pela prática de crimes contra a

Administração Pública. 4. Agravo regimental conhecido e não

provido. (HC 131672 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER,

Primeira Turma, julgado em 05/10/2018, PROCESSO

ELETRÔNICO DJe-220 DIVULG 15-10-2018 PUBLIC 16-10-2018)

3 – Crime doloso

Os crimes de abuso de autoridade somente admitem a configuração na forma

dolosa, ou seja, com a vontade – direta – de sua realização.

Mas de quê se trata a vontade?

Vontade, para nós, é o querer consciente a realização da ação, a tomada de uma

decisão após uma escolha.

Para a configuração da vontade, portanto, não basta aquele querer “cego” dos

animais, sendo indispensável a consciência da ação.

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A vontade requer uma repercussão, se exterioriza na ação e se serve do

mecanismo psicofísico para se exercer, para realizar o que se quer.[3] A

motivação, portanto, é o conjunto de vivências da pessoa, uma totalidade de

sentido vivenciada e compreensível, uma resposta às questões que lhe são

colocadas pela vida, que não se confunde com a mera reação a estímulos –

condicionamento – ou obediência a impulsos[4]. Esta plenitude de sentido

distingue a motivação da causalidade psíquica, pois a essência do querer é que

seja motivado por um sentimento. “De aí que um querer imotivado é um

absurdo, não é pensável um sujeito da índole que seja que queira algo que não

esteja ante os seus olhos como valioso”.[5]

De fato, a consciência humana, esta rede de intenções significativas, representa um

“centro de indeterminação”, ou melhor, de autodeterminação do ser capaz

de ação própria, no qual as forças físicas, em vez de atravessarem o corpo físico,

nele desencadeando respostas automáticas – e, por isso, absolutamente

previsíveis -, se amortecem e implicam a formação de uma zona de ações

possíveis.[6] Enquanto a relação causal conecta as coisas naturais na condição de

existentes em si mesmas, a relação de motivação somente se efetiva pela

intermediação da consciência.[7]

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A vontade, nestes termos, ao contrário dos processos causais, empreende

necessariamente um determinado sentido à conduta, que enseja uma valoração –

positiva ou negativa.

A ação animada pela vontade é sempre intencional, pois representa a consecução

de um projeto anterior, a busca por um desígnio ou finalidade. Jürgen

Habermas[8], ao tratar da ação intencional, esclarece que “a ação consiste então

na organização dos meios que resultam aptos para produzir o estado

“apetecido”. Chamamos intenção neste esquema de ação teleológica o propósito,

vontade ou desígnio que tem o agente de realizar um fim”, o qual está sempre

dirigido, orientado a algo no mundo.

Diante do conceito de vontade aqui acolhido, o dolo, para nós, ao contrário do

que sustenta Welzel[9], não é apenas o dolo natural, a pura vontade de realização,

desprovida de conteúdo valorativo, mas sim a vontade de realização dos

elementos objetivos do tipo aliada a um “sentimento” – móvel -, à intenção no

sentido de diminuição, de contrariedade, de menosprezo ao valor – bem jurídico –

tutelado pelo tipo penal[10]; ou, como bem expressado por Thomasius, o “desejo

do coração [móvel] sempre unido ao pensamento da inteligência

[motivos]”.[11] A consciência apta a gerar responsabilidade, pois, pode ser definida

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como a capacidade – inteligência – humana de conhecer e julgar o valor ou

desvalor dos próprios atos e de a eles imprimir um determinado sentido.

Isto porque a conduta humana tem por essência um caráter valorativo[12]. Ao

agir, o ser humano opta por um sentido à sua ação, não querendo apenas o

resultado, mas, especialmente, o valor ou desvalor que este representa.

“Exatamente porque os valores possuem um sentido é que são determinantes da

conduta”[13], isto é, são motivos sob um novo ângulo, pois exigem uma tomada

de posição da vontade e a atuação correspondente.[14]

Se a consciência é sempre referida a algo no mundo, o ato consciente também tem

como referência o seu destino intencional, que não se limita – por não ser apenas

dele constituído – ao “objeto material”, mas também inclui o “objeto jurídico”,

o valor que lhe é imanente.

Os fatos, isoladamente considerados e descontextualizados são apenas fatos; o que

lhes confere sentido no mundo e os transforma em fenômenos são as condutas

humanas que os precedem, a orientação dos comportamentos e

os valores[15] envolvidos nas relações intersubjetivas.

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Em razão da intencionalidade que caracteriza a ação consciente, conclui-se que

os valores são transcendentes, pois não estão na consciência, mas constituem o seu

correlato. Os valores – como objetos ideais - estão na realidade, nas relações

intersubjetivas e na sociedade, e não em cada ser humano.[16]

Embora não estejam na consciência, é certo que os valores têm uma fonte subjetiva,

consistente na busca do espírito humano pela felicidade – cuja forma varia de

acordo com o tempo e o espaço – e pela realização de sua dignidade.

Nem por isso, entretanto, os valores são forjados apenas pelas atitudes internas

do homem, exteriorizadas pelas condutas. Ao contrário, na formação histórica

dos valores há, também, uma fonte objetiva, representada pelas relações sociais

e pela busca da coletividade ou da comunidade pelo aprimoramento da vida em

comum.

Deste “justo meio termo”, como dizia Aristóteles, embora em outro sentido, da

tensão e ao mesmo tempo conciliação entre o querer individual e o social, nascem

a cultura e seus valores. E os valores – como observa Paulo Ferreira da Cunha –

são algo de específico do homem, da excelência da natureza humana,

precisamente livre, e capaz de conduzir a sua vida não por meros instintos, mas

por horizontes de possibilidades.[17]

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Assim, admitido o conceito valorativo, ou melhor, englobante do dolo, podemos

asseverar que na prática de um crime de furto (art. 155, do CP) o agente não quer

apenas a coisa, o objeto móvel, mas, principalmente, o valor patrimonial dele

decorrente e, em consequência, a lesão ao valor patrimônio do ofendido.

Nos tipos penais de homicídio e de lesão corporal, o sujeito não busca apenas os

“processos biológicos” que os caracterizam, mas a morte ou danos à integridade

física de outrem, isto é, sua ação não é referida apenas ao material, mas

aos valores – vida e integridade corporal – que lhes são subjacentes.

Esta desvaloração ínsita à conduta típica é bem percebida nos delitos que a

doutrina considera providos de dolo específico – entre os quais, agora, os crimes

de abuso de autoridade.

De fato, no crime de calúnia (art. 138 do CP) o sujeito não

pretende apenas imputar falsamente a terceiro fato definido como crime,

mas lesar a honra objetiva do ofendido; seu ato tem por intencionalidade, além da

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expressão de palavras – objeto material -, a violação – menosprezo – ao valor

tutelado pela norma penal.

Também no crime de desacato (art. 331, do CP), o “algo no mundo” ao qual a

ação é orientada não se esgota no comportamento em si, na expressão, gesto ou

palavra proferida, mas principalmente ao menosprezo à função pública em razão

do qual é praticada a conduta.

Na mesma esteira, conforme art. 1º, § 1º, da Lei n. 13.896 de 05 de setembro de

2019 – Le de Abuso de Autoridade -, somente haverá de se falar em dolo de abuso

de autoridade se a ação for praticada com a finalidade específica de prejudicar outrem

ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

A ação dolosa, portanto, é aquela orientada em função de um desvalor social – a

tomada de uma posição nesta direção -, isto é, no sentido de diminuição ou

menosprezo a um valor penalmente tutelado. Se a ação não for motivada por este

menosprezo, mas em função de um valor socialmente relevante – positivo -,

estará excluído o dolo da conduta.[18]

Assim, para que esteja configurado o dolo de dano (art. 163 do CP), ao destruir,

inutilizar ou deteriorar coisa alheia é indispensável que atue o agente em função

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de diminuição do valor tutelado pelo tipo, com menosprezo ao bem

jurídico patrimônio.

Se a destruição, por exemplo, se der em prestação de serviço de demolição,

contratado pelo dono da coisa, não haverá de se falar em dolo, pois orientada a

ação no sentido de um resultado socialmente relevante e positivo.

Da mesma forma, no delito de lesão corporal, a verificação do dolo depende de

um sentido de negação, na conduta do agente, da integridade física do ofendido

como um valor. Realiza-se o comportamento em função desse desvalor.

Mais, ainda, nos crimes de abuso de autoridade, à verificação do dolo

indispensável a caracterização, no comportamento do agente, de um menosprezo

aos direitos e garantias individuais da pessoa, ou seja, a conduta deve ter por

escopo específico – reitere-se - prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro,

ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Neste contexto fica manifesto o equívoco cometido ao se conferir ao dolo um

puro sentido natural, desprovido de qualquer conteúdo valorativo.

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A finalidade típica, então, pertence ao dolo e dele não pode ser dissociada ou

tratada como elemento subjetivo especial, sob pena de transformá-lo em

elemento incapaz de revelar a vontade típica do agente.

O mesmo ocorre em relação aos crimes de abuso de autoridade.

Para a sua configuração se faz necessária a prova de que o agente público agiu

com extrapolação de poder, por sentimento pessoal, capricho, vingança ou

maldade, com o consciente propósito de praticar perseguições e injustiças,

inclusive em benefício próprio ou de terceiro. Sem tal motivação não restará

caracterizado o delito de abuso de autoridade, mas – dirigida a ação na

consecução do seu mister -, quando muito, o erro ou infração meramente

administrativa, sujeitos a sanções disciplinares da mesma natureza, mas não

penais.

Sentimento ou satisfação pessoal é o sentir de ordem emocional (afeto, ódio, inveja

etc.) e não racional, isto é, sem substrato na ordem de caráter objetiva que deve

imperar nas ações dos agentes públicos, em obediência ao princípio da

legalidade.

Com ensina Nelson Hungria, em interessante julgado sobre a imputação de crime

de prevaricação: “Interesse pessoal é o interesse privado, econômico ou moral, e

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sentimento pessoal é a afeição, o ódio, o espírito de vingança, a parcialidade, a

obsequiosidade, a benevolência, o favoritismo, etc. Assim se resumiam, em

outros tempos, os motivos do crime que hoje se chama prevaricação: cupiditas,

amor, odium, obsequium. Dizer-se que o propósito do Sr. ministro da Fazenda de

salvaguardar a sua autoridade, por entender que não está sujeito, na espécie, à

jurisdição de juízes de primeira instância, traduz ou revela o “sentimento

‘pessoal’ a que se refere a lei, é confundir sentimento com entendimento,

o affectus com o raciocínio lógico, para interpretar aberrantemente o art. 319 do

Código Penal”[19]

No que se refere à expressão “Capricho”, anote-se que tem origem no

italiano capriccio, e traz o significado de “inconstância, volubilidade”. Constitui a

vontade súbita que aparece sem razão alguma; birra, teimosia. Obstinação

injustificada em relação a alguma coisa.

Portanto, para caracterização dos crimes de abuso de autoridade, indispensável

que a conduta seja praticada, conforme conceitos acima, de forma dolosa, com a

finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda,

por mero capricho ou satisfação pessoal, requisito que, por técnica e economia

legislativa, foi inserido no § 1º, do art. 1º, da Lei, mas que, na realidade, deve

ser acrescido a cada um dos tipos penais da nova lei.

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

4 - Crime de Hermenêutica?

O parágrafo segundo da Lei n. 13.896/2019 busca afastar a possibilidade da

caracterização do “Crime de Hermenêutica”, ao dispor que a divergência na

interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só,

abuso de autoridade.

Trata-se de verdadeira causa de exclusão da tipicidade penal, que, por técnica e

economia legislativa, foi inserida em dispositivo em separado, mas que, para fins

de subsunção das condutas aos tipos penais previstos pela lei, a eles se integra,

constituindo seu elemento - negativo.

Rui Barbosa, precursor no tratamento do tema há mais de um século, advertiu:

“Aí está onde naufraga a ingenuidade dos que supõem ter, por esse

manifestamente, delimitado com a precisão de uma raia inequívoca a linha entre

o exercício correto e o exercício incorreto do poder confiado aos juízes, para

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

joeirarem a constitucionalidade e a inconstitucionalidade na crítica das leis. O

que é manifesto a um espírito, pode ser duvidoso ao critério de outros, ainda

figurando que estes e aqueles ocupem nível superior, emparelhando, ao mesmo

tempo, no talento e no desinteresse. Não se descobriu, até hoje, a pedra de toque,

para discernir com certeza absoluta o oiro falso do verdadeiro na interpretação

dos textos. E, quando estes são os de uma constituição, lei política, lei das leis,

isto é, lei condensadíssima na expressão e no intento amplíssima, os juristas mais

eminentes, os magistrados mais retos podem conscienciosamente divergir

quanto ao alcance de uma frase, de uma fórmula, de um enunciado, ligando-lhe

pensamentos diversos, ou limitando-lhe extensões desiguais. A consequência é

que a mesma lei, conferida pelo mesmo padrão constitucional, acontecerá ser

contraditoriamente julgada válida e nula, sem que de uma e outra parte haja

quebra na competência, ou na sinceridade (...) Só determina responsabilidade

penal, portanto, a interpretação errônea, quando atentatória de disposições

literais. Se a disposição não for literal, a matéria é opinativa: pertence ao domínio

de fenômenos intelectuais, que não toleram coação, ou repressão; pode ser

conscienciosamente objeto de soluções diferentes, ou contraditórias, submetida à

apreciação de juízes distintos. Se em Direito penal a hermenêutica é restrita, não

será lícito ao intérprete classificar de delito, sob o rótulo de excesso de poder, atos

judiciários não condenados em provisão literal, quando só aos atentados contra

disposição literal, e sob um qualificativo diverso, o de prevaricação, alude o

legislador”[20].

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

Qualquer pessoa que tenha apreço à democracia e ao Estado de Direito não pode

tolerar, por razões utilitaristas – por mais bem intencionadas que sejam -,

o abuso do poder e a violação indevida dos direitos e garantias individuais.

Há de se observar, contudo, a grande distância existente entre o abuso de poder

– ou de autoridade – e a mera divergência de interpretação das normas ou o

regular exercício de atividade, ainda que infrutífera, ou mesmo o erro de

procedimento, sem o propósito de extrapolar os limites do poder. Se o abuso de

autoridade é nefasto, não menos indesejável é a subtração do exercício regular da

atividade pública por receio de indevida responsabilização – o que também

pode caracterizar o comportamento criminoso de prevaricação.

A responsabilização penal dos agentes públicos por abuso de autoridade,

nessas circunstâncias, deve ser reservada às hipóteses de violação

claramente indevida dos direitos e garantias individuais - o que resguarda a

função de ultima ratio do direito penal -, sem margem para imputações

sediciosas às autoridades públicas, que, no seu mister, confrontam a corrupção

ou o crime organizado.

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

Anote-se, outrossim, que em relação à Magistratura, a Lei Orgânica respectiva

(Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979) dispõe, em seu artigo 41, que o

magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar

ou pelo teor das decisões que proferir, salvo nas hipóteses de impropriedade ou

excesso de linguagem.

Tratando-se de norma de superior hierarquia e de natureza especial, pois regula

de modo específico a atividade da magistratura, evidentemente prevalece sobre

norma de hierarquia inferior e de caráter geral, de forma a afastar a

criminalização do exercício da jurisdição – regular – por mera divergência de

interpretação jurídica ou análise dos fatos e questões que lhe são submetidas.

Em sentido semelhante, a Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n. 8.625 de 12

de fevereiro de 1993) reza, em seu artigo 41, inciso V, que constitui prerrogativa

dos membros do MP “gozar de inviolabilidade pelas opiniões que externar ou

pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua

independência funcional”.

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

[1] O abuso do poder administrativo no Brasil - conceito e remédios, p. 12. Rio de

Janeiro: DASP/IBCA, 1959.

[2] Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial, Editora Revista dos Tribunais,

7ª edição, Vol. 2, pág. 3929/3932.

[3] Sobre el problema de la empatia, p. 73.

[4] FRANKL, Viktor E. Um sentido para a vida, 13ª ed., p. 23. O citado autor, na

mesma obra, ensina que as causas são representadas por processos de

condicionamento ou pelas pulsões e instintos. As pulsões e os instintos

impulsionam, mas as razões e os significados atraem (p. 47).

[5] STEIN, Edith. Sobre el problema de la empatia, pp. 114-115.

[6] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Estrutura do Comportamento, p. 253.

[7] FERRER, Urbano. Que significa ser persona?, p. 36.

[8] Teoria de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos, p. 264.

[9] Derecho Penal Alemán, pp. 77 e ss.

[10] Neste sentido: REALE JR., Miguel, Antijuridicidade Concreta, pp. 40 e ss.

Sustenta este autor, a nosso ver com inteira razão, que o homem “age

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

finalisticamente, porém, fundado em uma escolha de conteúdo valorativo. Não

só o fato oriundo da ação materialmente falando, é objeto da atividade subjetiva

do agente, mas também o valor que subsiste no aspecto naturalista do agir

humano (...). Todo o agir humano se alicerça em uma opção realizada segundo

critérios valorativos. Todas as ações são fruto de uma decisão, oriunda de uma

coloração valorativa”. Esta tomada de posição – de menosprezo consciente ao

bem jurídico tutelado pelo tipo – constitui a essência do dolo e o que permite

reunir, sob uma mesma categoria, comportamentos distintos, como os providos

por dolo direto e eventual. Posicionamento próximo é adotado por Elio Morselli

(La Función del comportamiento interior em la estrutura del delito, passim). Para este

autor, contudo, o conteúdo valorativo do dolo não se restringe – ou se esgota –

ao menosprezo ao bem jurídico, mas é constituído pela “Gesinnung” antissocial,

isto é, pelo animus nocendi de caráter agressivo-destrutivo. Este entendimento,

entretanto, parece-nos extremado, pois, embora explique o dolo direto e a ele seja

bem aplicável, não se compatibiliza com o dolo eventual, no qual o agente, apesar

de atuar com desprezo ao valor tutelado pela norma, não tem a sua conduta

“animada” por - ou seja, não a realiza em função - essa consequência destrutiva.

O dolo eventual é fruto de uma opção “egoísta” do agente, que busca o fim

almejado independentemente das consequências dos meios escolhidos para

atingi-lo, o que caracteriza o menosprezo para com o bem jurídico violado.

[11] Apud CUNHA, Paulo Ferreira da. O Ponto de Arquimedes, p. 51.

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

[12] Carlos Aldamyr Condeixa da Costa bem explica que “A conduta é liberdade

metafísica fenomenalizada. Toda conduta tem um sentido de valor. Conduta sem

valor não pode ser. A realização de uma conduta contém sempre um valor de

paz, de cooperação, de segurança, de justiça, etc. [ou o desvalor respectivo].

Evidente, que os valores imanentes na conduta humana decorrem

existencialmente, de que o ser enquanto tal, deduz-se num “eu” responsável pela

autonomia ética do ser humano, cujo “um” em “si mesmo” é com os outros”

(Pressupostos Existenciais do Crime, p. 160).

[13] REALE, Miguel. Introdução à Filosofia, 3ª ed., p. 144. A mesma orientação,

embora em outro campo das ciências humanas, é adotada por Mauro Martins

Amatuzzi: “o homem é essencialmente um gesto, em sua presença ou em sua

existência. Ele é um atribuidor de sentido, e é assim que ele constitui um mundo

e se constitui a si mesmo na relação com o mundo (...). O mundo das ciências

humanas não é o mundo em si, mas o mundo tal como experimenciado pelo

homem e, portanto, carregado de significados. Não é natureza, mas é mundo

(mundo é natureza mais significado humano). Em vez de fatos, temos fenômenos”

(Por uma Psicologia Humana, pp. 21 e 47). E nesta linha pode-se dizer que “o

principal atributo do mundo é o fato de ele ser comum a nós, uma vez que este

mundo a que nos referimos não é a natureza, mas uma rede de relações

significativas. O mundo comum a todos nós é a trama significativa dos modos de

como se vive e de como se relaciona com as coisas que, nesse mundo, são

admitidas” (CRITELLI, Dulce Mára. Analítica do Sentido, 2ª ed., p. 91.

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Publicação de 22 de maio de 2020

[14] STEIN, Edith. La Estructura de la Persona Humana, p. 98.

[15] Conforme adverte Viktor E. Frankl, “tanto os valores éticos como os estéticos

requerem, assim como os objetos do conhecimento, atos adequados à respectiva

captação; entretanto, tais atos implicam a transcendência dos referidos objetos;

quer dizer: estes objetos são transcendentes em relação aos atos que para

eles intendem, verificando-se, portanto, a sua objetividade (...). O que porventura

ocorre é que todo dever-ser é dado ao homem com caráter concreto, na

concretização do que “deve” fazer, “aqui e agora”. Os valores redundam, assim,

em exigências do dia e em missões pessoais; ao que parece, só através destas

missões é que se pode intender para os valores que por trás delas se escondem”

(Psicoterapia e sentido da vida: Fundamentos da Logoterapia e análise existencial, 4ª ed.,

pp. 74-75).

[16] Jean-Paul Sartre ensina que o valor é afetado pelo duplo caráter de “ser

incondicionalmente e de não ser. Enquanto valor, com efeito, o valor tem de ser;

mas este existente normativo, enquanto realidade, não tem exatamente ser. Seu

ser é ser valor, quer dizer, não ser ser. Assim, o ser do valor, enquanto valor, é o

ser daquilo que não tem ser. O valor, portanto, parece incaptável” (O Ser e o Nada,

p. 144). Cremos, contudo, que os valores podem ser alcançados pelas vivências e

pelas exemplificações concretas – intuitivamente, como reconhece o próprio Sartre

-, de forma que é a partir da realidade humana que o valor aparece, surge no

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ABUSO DE AUTORIDADE

Antonio Carlos Santoro Filho

Publicação de 22 de maio de 2020

mundo. Portanto, ainda que de maneira mediata, o valor é passível de

ser apreendido e, por isso, aprendido.

[17] O Ponto de Arquimedes, p. 56.

[18] Orientação próxima, no campo da Fenomenologia, é adotada por Ângela

Ales Bello: “Por que, no âmbito dos valores, o amor é positivo, e o ódio, negativo?

Porque o amor quer que todos cresçam, que os outros cresçam. O ódio é a

negação do outro como alter ego; quero eliminá-lo” (Fenomenologia e Ciências

Humanas, p. 194). Se substituirmos as

expressões amor por respeito e ódio por menosprezo, tendo por referencial os bens

jurídicos tutelados, chegaremos ao mesmo conceito de dolo aqui proposto, isto é,

de que se trata da negação do valor como algo digno de tutela.

[19] Memória jurisprudencial : Ministro Nelson Hungria . Luciano Felício Fuck. --

Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2012, p. 185

[20] Obras Completas de Rui Barbosa. V. XXIII, tomo III, pp. 235 e 278: Rio de

Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa.