Abordagem Introdutória à Filosofia e Ao Filosofar

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  • ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFAR

    Captulo 1. O que a filosofia?, 15

    Captulo 2. Quais so as questes da filosofia?, 35

    Captulo 3. A dimenso discursiva do trabalho filosfico, 39

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    A Morte de Scrates, de Jacques-Louis David (1748-1825). Scrates (469-399 a. C.)foi um dos mais influentes filsofos gregos. Condenado morte por impiedade e porcorromper os jovens, o quadro representa o momento, narrado no Fdon de Plato, emque Scrates se prepara para beber a taa do veneno, ao mesmo tempo que prossegueserenamente a sua discusso sobre o problema da vida depois da morte.

  • Captulo 1

    O que a filosofia?

    Seces

    1. Um pouco de histria, 15

    2. Os elementos da filosofia, 18

    3. Uma caracterizao da filosofia, 22

    4. Para que serve a filosofia?, 31

    Textos

    1. Filosofia: A Crtica das Nossas Crenas, 27Jerome Stolnitz

    2. Aprender a Pensar, 29 Immanuel Kant

    Objectivos

    Identificar os elementos da filosofia.

    Compreender algumas caractersticas dafilosofia.

    Compreender o que significa tomar posioem filosofia.

    Ter uma noo do valor da filosofia.

    Conceitos

    Problema, teoria, tese, conceito.

    Extenso/intenso, definio, definioimplcita.

    Definio explcita, caracterizao.

    Dogmtico/crtico, crena, opinio.

    A priori/a posteriori.

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    1. Um pouco de histriaO que a filosofia? Ser muito mais fcil responder

    a esta pergunta no final do ano lectivo, tal como maisfcil saber o que a biologia depois de a ter estudado.Mas importante saber desde j alguma coisa sobre afilosofia. Para isso, vamos comear por percorrer rapi-damente a sua histria.

    Filosofia antiga

    A filosofia surgiu na Grcia antiga h cerca de 2500anos, no sc. VI a. C. Os primeiros filsofos foram Talesde Mileto (c. 624-546 a. C.) e Pitgoras (c. 580-500 a. C.),sendo ambos igualmente os fundadores do que hojechamamos cincia (que eles no distinguiam da filo-sofia).

    A prpria palavra filosofia foi inventada pelos gre-gos, e significa literalmente amor da sabedoria. Comesta designao, os filsofos gregos marcaram umadiferena importante relativamente s autoridades reli-giosas, cujos sbios declaravam j ter alcanado a sa-bedoria. Em contraste, os filsofos tinham uma atitudecrtica, procurando a verdade das coisas com o apoio daargumentao. Por isso, em vez de se chamarem s-bios, chamavam-se filsofos: o sbio j tem o que pensaque verdade, ao passo que o filsofo argumenta (ouseja, discute ideias) para tentar descobrir se o que pen-sa que verdade mesmo verdade.

  • Os primeiros filsofos so conhecidos como pr-socrticos e dedicaram uma espe-cial ateno cosmologia (que hoje uma disciplina cientfica), isto , ao estudo da origeme natureza ltima do universo. Parmnides (sc. V a. C.), Heraclito (c. 535-475 a. C), Emp-docles (c. 490-430 a. C.) e Demcrito (c. 460-370 a. C.) foram alguns dos mais importan-tes filsofos deste perodo.

    Scrates (c. 470-399 a. C.) e Plato (c. 427-347 a. C.) dedicaram depois uma atenoespecial a problemas ticos e polticos, fazendo da procura de definies explcitas deconceitos bsicos como beleza, justia e conhecimento a sua actividade principal.Aristteles (384-322 a. C.) desenvolveu praticamente todas as reas da filosofia e da cin-cia, e estabeleceu firmemente o estudo sistemtico de problemas filosficos e cientficos.

    Depois de Aristteles floresceram vrias escolas dedicadas ao estudo da filosofia esurgiram vrios filsofos muitssimo influentes, como Epicuro (306-271 a. C.) e Zeno deCtio (c. 336-264). Estes foram os filsofos que mais influenciaram a vida e o pensamentodo Imprio Romano.

    Filosofia na Idade Mdia

    Na Idade Mdia (sculos V a XV) a filosofia foi estudada num contexto sobretudo reli-gioso. Muitos filsofos deste perodo foram extraordinariamente perspicazes, tendo de-senvolvido algumas ideias e argumentos hoje considerados centrais em filosofia, no sna filosofia da religio e na metafsica, mas tambm na tica, filosofia da linguagem e lgi-ca (no Captulo 2 veremos brevemente o que so algumas destas disciplinas).

    Alguns dos debates mais importantes da poca incluem o problema dos universais, asprovas da existncia de Deus e a compatibilidade entre a prescincia divina (a capacidadepara saber de antemo o que vai acontecer) e o livre-arbtrio humano.

    Alguns dos mais destacados filsofos ocidentais do perodo medieval foram SantoAgostinho (354-430), Santo Anselmo (1033-1109), Abelardo (1079-1142), S. Toms de Aqui-no (1225-74), Duns Escoto (c. 1265-1308) e Guilherme de Ockham (c. 1287-1347). A rigor,Santo Agostinho morreu ainda antes de se entrar na Idade Mdia, mas costuma ser consi-derado o primeiro dos filsofos medievais, e no o ltimo dos antigos.

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

    Filos(amor, amizade)

    Filosofia

    Sofia(sabedoria)

  • Filosofia na Idade Moderna

    Na Idade Moderna (sculos XVI, XVII e XVIII), a teoria do conhecimento foi consi-derada por muitos filsofos o ponto de partida da filosofia. Descartes (1596-1650)tornou-se um dos mais influentes filsofos de sempre. Neste perodo, a oposioentre empirismo e racionalismo tornou-se central. Os empiristas defendiam quetodo o conhecimento resultava fundamentalmente dos sentidos, ao passo que osracionalistas defendiam que algum conhecimento resultava fundamentalmente darazo. Do lado racionalista, juntamente com Descartes, esto filsofos como Espi-nosa (1632-77) e Leibniz (1646-1716). Do lado empirista, filsofos como Hobbes(1588-1679), Locke (1632-1704), Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-76). Hobbes,Locke, Hume e Espinosa deram uma ateno especial tica e filosofia poltica,que tinham sido negligenciadas por Descartes.

    Outros filsofos importantes deste perodo foram Voltaire (1694-1778) e Jean--Jacques Rousseau (1712-78). Kant (1724-1804) prossegue o trabalho dos filsofosracionalistas e empiristas, ocupando-se sobretudo de tica, epistemologia e meta-fsica. A sua obra foi uma das mais influentes de sempre. Os seus sucessoresalemes, Fichte (1762-1814) e Hegel, adoptaram o idealismo: a doutrina de que arealidade tem uma natureza mental.

    Schopenhauer (1788-1860) adoptou a filosofia de Kant, mas desenvolveu umafilosofia pessimista, muito influente nos scs. XIX e XX, segundo a qual a existncia humana completamente desprovida de sentido. Jeremy Bentham (1748-1832) desenvolveu o utilitarismo, umadas mais importantes teorias ticas e polticas, e a principal rival da tica de Kant e da filosofia polticade Marx (1818-83).

    Filosofia contempornea

    No sc. XIX, e sobretudo a partir do sc. XX, a filosofia conheceu uma vitalidade e diversidade queultrapassou qualquer perodo histrico anterior. Alguns filsofos alemes e franceses fundaram

    correntes como o existencialismo, a fenomenologia e a hermenutica;nestas reas, destacaram-se filsofos como Husserl (1859-1938),Heidegger (1889-1976) e Sartre (1905-80). Alguns filsofos ingleses eamericanos deixaram-se influenciar decisivamente pelo trabalho deFrege (18481925), Russell (1872-1970) e Wittgenstein (1889-1951).

    Depois da segunda guerra mundial (1939-45), floresceram disciplinasnegligenciadas nos sculos XIX e XX, como a metafsica, a filosofia dareligio, a filosofia da arte, a tica (incluindo a tica aplicada) e a filosofiapoltica. A filosofia da cincia e a epistemologia atingiram resultados degrande importncia, assim como a filosofia da linguagem e a lgica.

    A filosofia, tal como as artes e as cincias, entrou no sc. XXI comum grau de sofisticao, pertinncia e alcance nunca antes atingido.

    esta disciplina, que tem uma histria to rica, que vamos estudarao longo do ano. Mas que tipo de coisa se estuda em filosofia? E comose estuda tal coisa? isso que vamos ver j de seguida.

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    O que a filosofia? Captulo 1

    Georg WilhelmFriedrich Hegel(1770-1831). Filso-fo alemo, foi umdos mais importan-tes pensadores doseu tempo.

    Saul Kripke (n. 1940).Lgico e filsofo ameri-cano, revolucionou a filo-sofia a partir dos anos se-tenta do sc. XX.

  • 2. Os elementos da filosofiaPerguntar que tipo de coisa a filosofia estuda perguntar pelo objecto de estudo da filo-

    sofia. E perguntar como se estuda tal coisa perguntar pelo mtodo da filosofia.

    O objecto de estudo de uma disciplina aquilo que a disciplina estuda.

    O mtodo de uma disciplina o modo como leva a cabo esse estudo.

    Define-se muitas vezes as cincias em termos de objecto e mtodo. Por exemplo:

    A aritmtica elementar estuda as principais propriedades da adio, da subtraco,etc. O seu mtodo o clculo.

    A biologia estuda as propriedades dos organismos vivos. O seu mtodo a obser-vao e a elaborao de teorias que depois so testadas, por vezes em laboratrios.

    A economia estuda as relaes econmicas. O seu mtodo a anlise de dadosestatsticos e a tentativa de produzir teorias ou modelos que expliquem as relaeseconmicas.

    Tambm a filosofia tem um objecto e um mtodo de estudo:

    A filosofia tem como objecto de estudo problemas fundamentais acerca da natu-reza da realidade, do conhecimento e do valor.

    O mtodo da filosofia a discusso crtica.

    A filosofia tem por objecto de estudo um certo tipo de problemas ou questes. Asrespostas a esses problemas so aquilo a que se chama teorias ou teses. Estas teoriasso, por sua vez, defendidas por meio de argumentos ou raciocnios. Mas que tipo de pro-blemas so filosficos? isso que vamos ver j de seguida.

    Problemas, teorias e argumentos

    Tal como as cincias, as artes e as religies, a filosofia uma manifestao natural danossa inteligncia. No algo que s surge quando vamos escola ou quando lemos livrosde filsofos. Os problemas a que a filosofia procura dar resposta no so artificialismosescolares; so problemas reais, que nos intrigam e fascinam. Muitas pessoas comeam afazer perguntas de carcter filosfico por volta dos 13 ou 14 anos, ou at na infncia.

    Claro que nem todos os problemas so filosficos; tambm h problemas cientficos,literrios, quotidianos e religiosos, entre outros. Como podemos ento distinguir os proble-mas que so filosficos dos que no so filosficos? Uma maneira de o fazer consideraralguns exemplos de problemas centrais da filosofia, como os seguintes:

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

  • Ser que a vida tem sentido?

    O que o conhecimento?

    Os animais tm direitos?

    Haver justificao para a autoridade do estado?

    Como podemos saber que o mundo no uma iluso?

    Ser que tudo relativo?

    Outros problemas filosficos surgem da nossa reflexo sobre as cincias, as religies eas artes. Eis alguns exemplos:

    O que a arte?

    O que so os nmeros?

    Ser a existncia de Deus compatvel com o sofrimento?

    O que uma lei da fsica?

    Como veremos, os problemas filosficos no podem ser resolvidos recorrendo experi-mentao cientfica, observao, autoridade ou ao clculo matemtico. Para tentarresolver os problemas filosficos, recorremos exclusivamente ao pensamento. Por isso, osseguintes problemas no so filosficos:

    Ser que os crentes so mais felizes do que os ateus? (Sociologia) Qual o significado de A Tabacaria, de lvaro de Campos? (Crtica literria) Ser um pecado tomar a plula? (Religio) Ser o ltimo Teorema de Fermat verdadeiro? (Matemtica) Qual a composio da atmosfera de Jpiter? (Astrofsica)

    Os problemas da sociologia, por exemplo, no so filosficos porque no podem serresolvidos recorrendo exclusivamente ao pensamento; para os resolver, temos de recorrera metodologias empricas, ou seja, metodologias baseadas na observao, como estats-ticas e inquritos, por exemplo.

    Para que um problema seja filosfico, tem de poder ser resolvido ou estudado recor-rendo exclusivamente ao pensamento, apesar de podermos usar informao emprica obti-da pelas cincias. Para garantir que um determinado problema genuinamente filosfico,temos de ser muito rigorosos ao formular a pergunta que o exprime. Por exemplo, apergunta Ser que Deus existe? filosfica; mas a pergunta Ser que os crentes somais felizes do que os ateus? no filosfica sociolgica. A mesma rea genrica deproblemas ou fenmenos pode ser estudada por diferentes disciplinas. Nem todas essasdisciplinas so filosficas. Por exemplo, tanto a sociologia, como a psicologia como a hist-ria estudam a religio mas nenhuma destas disciplinas estuda os problemas filosficosda religio.

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    O que a filosofia? Captulo 1

  • muito importante formular com rigor as perguntas filosficastambm por outra razo. Perguntas que parecem apenas ligeira-mente diferentes podem de facto ser muitssimo diferentes. Porexemplo, perguntar O que justifica a autoridade do estado? pres-supe que a autoridade do estado tem justificao. Mas algunsfilsofos defendem que nada justifica a autoridade do estado. Porisso, esta pergunta tendenciosa. Assim, mais correcto perguntarSer que o estado tem justificao? Se tem, qual ?.

    Nem todas as respostas aos problemas filosficos so filosfi-cas. Para que sejam filosficas, as respostas aos problemas filosfi-cos tm de estar fundamentadas. Isto significa que no basta terrespostas pessoais sobre os problemas filosficos; preciso quetais respostas sejam publicamente justificveis. Fundamentar oujustificar publicamente uma resposta oferecer os melhores argu-mentos ou razes que conseguirmos imaginar a seu favor e permi-tir que as outras pessoas os avaliem criticamente.

    Quando se estuda filosofia, aprendemos a formular e discutir,com clareza e rigor, os seus problemas, teorias e argumentos.

    Conceitos

    semelhana do que acontece noutras reas do conhecimento,como a fsica ou a sociologia, os conceitos desempenham um papelmuito importante na filosofia. Em fsica, por exemplo, o conceito demassa muito importante; em filosofia, por exemplo, o conceito deconhecimento muito importante. Mas o que exactamente umconceito?

    Gramaticalmente, um conceito uma noo ou ideia geral, como estado, planeta,gene, beleza, verdade, etc.

    Neste sentido, no se pode falar dos conceitos de Scrates, Matosinhos ou da Revolu-o Francesa. Mas podemos falar dos conceitos de ser humano, cidade ou revoluo.Contudo, num sentido mais filosfico, um conceito tudo o que pode fazer parte de umaafirmao. Nesse caso, podemos falar, por exemplo, do conceito de Deus (que no umaideia geral). O prprio conceito de conceito objecto de estudo em filosofia, precisamenteporque muito difcil definir satisfatoriamente esta noo.

    Distingue-se a extenso de um conceito da sua intenso (com s; no confundir cominteno).

    A extenso de um conceito as coisas a que esse conceito se aplica.

    A intenso de um conceito a propriedade (ou propriedades) que determina a ex-tenso do conceito.

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

    Auto-retrato, de Amedeo Modi-gliani (1884-1920). A filosofia faz-nosreflectir sobre ns prprios e sobre omundo que nos rodeia.

  • Por exemplo, a extenso do conceito de mulher so as mulheres todas. A intenso aspropriedades que distinguem as mulheres de todas as outras coisas, nomeadamente asseguintes: ser membro da espcie Homo sapiens e ser do sexo feminino.

    Como acontece noutras reas do conhecimento, em filosofia precisamos de definir, oupelo menos caracterizar com muita preciso, alguns conceitos centrais relacionados comos problemas que queremos discutir. Por exemplo, quando perguntamos se Deus existe,que conceito de Deus temos em mente? Diferentes religies tm diferentes conceitos deDeus. Os argumentos que tentam provar a existncia de Deus, concebido de um certomodo, podem no ser adequados para provar a sua existncia, se Deus for concebido deoutro modo; por isso, temos de esclarecer cuidadosamente que conceito de Deus est emcausa.

    Alm disso, a filosofia ocupa-se de problemas fundamentais que exprimimos atravs deconceitos como os de realidade, conhecimento, valor, beleza, justia, arte, bem moral, etc.Por isso se diz, por vezes, que a filosofia se ocupa desses conceitos como se pode dizerque a fsica se ocupa dos conceitos de tempo, espao, luz, etc. Mas o que est em causano estudo filosfico do conceito de arte, por exemplo, o esclarecimento da natureza daprpria arte. Isto porque a nica maneira de esclarecer o conceito de arte compreendermelhor a prpria arte.

    Reviso

    1. Qual o objecto e o mtodo da filosofia?

    2. Explique o que distingue os problemas filosficos dos outros problemas.

    3. Explique por que razo nem todas as respostas aos problemas filosficos sofilosficas.

    4. Explique qual a relao entre os problemas, as teorias e os argumentos dafilosofia.

    5. O que se aprende a fazer quando se estuda filosofia?

    6. Explique a importncia dos conceitos em filosofia.

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    O que a filosofia? Captulo 1

    Problemas Teorias

    Conceitos

    Elementos de filosofia

    Argumentos

  • 3. Uma caracterizao da filosofiaImagine-se que uma criana de 7 anos pergunta o que a gua. Recordando as aulas

    de Qumica, podemos responder: A gua H2O. Esta resposta est correcta. umadefinio explcita de gua. Mas ser que a criana ficou a perceber melhor o que agua? Muito provavelmente, no. Ela no tem um conhecimento suficiente de qumica parapoder compreender a informao. Por vezes, as definies explcitas no so informativas.

    Em vez de definir a gua deste modo, poderamos mostrar criana vrios exemplos degua: um copo de gua, um rio ou um lago. Esta resposta tambm est correcta. umadefinio implcita de gua. Mas provvel que esta definio no seja muito informativapara a criana. Muito provavelmente, ela j viu gua vrias vezes. O que ela queria era saberqualquer coisa informativa sobre a natureza da gua.

    Seria por isso melhor dizer criana que a gua um lquido incolor, que serve paramatar a sede, enche os lagos, os rios e os oceanos, e o que cai do cu quando chove.Podemos ainda dizer-lhe que a gua indispensvel vida das plantas e dos animais. Aofazer isto, estamos a caracterizar a gua. Caracterizar a gua apresentar algumas pro-priedades informativas da gua; mas estas propriedades no a definem. Contudo, a crianaficar a compreender melhor o que a gua. Uma boa caracterizao da gua pode serextremamente informativa para a criana.

    Em vez de definir a filosofia, vamos caracteriz-la. Para isso, apresentaremos trs dosseus aspectos importantes: o seu carcter crtico, o facto de exigir uma tomada de posioe de ser um estudo a priori.

    A filosofia uma actividade crtica

    A filosofia uma actividade crtica porque consiste em procurar boas razes (ou seja,bons argumentos) para aceitar ou recusar ideias sobre os seus problemas.

    Mas ser crtico no dizer mal. Ser crtico avaliar cuidadosamente todas as ideias(sejam nossas, dos nossos colegas ou de filsofos famosos) para tentar saber se so verda-deiras (ou, pelo menos, plausveis). Para fazer isso, temos de estudar essas ideias comimparcialidade.

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

    Explcita

    Definio

    Implcita

    O que X ?

    Caracterizao

  • Ser crtico analisar cuidadosa e imparcialmente as ideias para procurar determinarse so verdadeiras ou falsas.

    Ser crtico tambm no ser extravagante. Uma pessoa pode perfeitamente ser crticae seguir as convices da maioria. Ser crtico no dizer no s para marcar a diferena.Ser crtico dizer sim, no, ou at talvez, mas s depois de pensar por si e com baseem bons argumentos.

    A atitude crtica ope-se atitude dogmtica.

    Ser dogmtico recusar-se a analisar cuidadosa e imparcialmente as ideias, decla-rando-as verdadeiras ou falsas sem boas razes para isso.

    Uma pessoa dogmtica recusa-se a avaliar cri-ticamente as suas ideias preferidas; ou finge que ofaz mas s aceita argumentos a seu favor ou contraas posies de que no gosta.

    A filosofia ope-se ao dogmatismo. uma activi-dade crtica e por isso dialogante: consiste em dis-cutir ideias. Mas discutir ideias filosoficamente no a mesma coisa que uma gritaria dogmtica. Em filo-sofia, discutimos criticamente para chegar verdadedas coisas, independentemente de saber quem ga-nha a discusso; numa gritaria dogmtica cada quals quer ganhar a discusso, independentementede saber de que lado est a verdade.

    Porque a filosofia uma actividade crtica, fazerfilosofia implica avaliar cuidadosamente os nossospreconceitos mais bsicos. Isto faz da filosofia umaactividade um pouco melindrosa. Em geral, temostendncia para nos agarrarmos acriticamente aosnossos preconceitos, porque organizam a maneiracomo vemos o mundo e vivemos a vida, dando-nosuma certa sensao de segurana. A filosofia, pelocontrrio, exige abertura de esprito e disponibilidadepara pensar livremente, pondo muitas vezes emcausa os nossos preconceitos mais queridos. Mas oque um preconceito?

    Um preconceito uma ideia que tomamoscomo verdadeira sem razes para tal.

    Por exemplo, muitos de ns pensamos que a es-cravatura est errada. Mas nunca pensmos seria-mente porqu. Apenas crescemos convencidos disso.Eis outro exemplo: muitos de ns pensamos que o

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    O que a filosofia? Captulo 1

    O Mercado de Escravos, de Jean-Lon Grme(1824-1904). A filosofia avalia criticamente os nossos pre-conceitos, mas tanto podemos concluir que tnhamos ra-zo, como que estvamos enganados.

  • tempo perfeitamente real, apesar de ser impalpvel e muito difcil de definir. Mas nuncapensmos seriamente nas razes que temos para pensar que o tempo real.

    Tanto no caso da escravatura como no caso do tempo, temos preconceitos acerca des-tes assuntos. Depois de estudar cuidadosamente os nossos preconceitos, tanto podemosdescobrir que eram falsos, como que eram verdadeiros. O que faz de uma ideia um precon-ceito no a sua falsidade, mas sim o facto de nunca termos pensado criticamente nas ra-zes a favor e contra essa ideia.

    Reviso

    1. Por que razo a filosofia uma actividade crtica?

    2. O que o dogmatismo? Explique e d exemplos.

    3. O que um preconceito? D alguns exemplos, explicando por que razo sopreconceitos.

    4. Diga se as seguintes afirmaes so verdadeiras ou falsas e justifique a suaresposta:1) Todos os preconceitos so ideias falsas.2) Alguns preconceitos so ideias falsas.3) Ser crtico dizer mal dos outros.4) A filosofia ope-se ao dogmatismo.

    A filosofia exige uma tomada de posio

    O facto de a filosofia ser uma actividade crtica coloca-nos numa posio muito dife-rente daquela que nos exigida nas outras disciplinas. Em filosofia, temos de tomar posi-o. Tanto podemos defender que Deus existe como que no existe; tanto podemos de-fender que o aborto deve ser permitido como que no o deve ser. At podemos defenderque a filosofia intil e absurda.

    Talvez seja surpreendente descobrir que em filosofia temos de tomar posio, no setratando apenas de compreender e explicar o que pensam os filsofos. S que temos decompreender bem que tipo de posio se exige em filosofia. Temos a liberdade de defen-der qualquer posio em filosofia, mas as nossas posies tm de obedecer a duas condi-es:

    1. Tm de se apoiar em bons argumentos.

    2. Tm de se apoiar num conhecimento adequado dos problemas, teorias e argumen-tos da filosofia.

    Para que a nossa posio seja filosfica, temos de ter bons argumentos a seu favor econtra as posies contrrias. E temos de conhecer as posies e argumentos de pelomenos alguns dos mais importantes filsofos antigos e contemporneos que se ocupa-

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

  • ram do tema. No seria sensato ter uma posio sobre um deter-minado tema filosfico sem conhecer adequadamente o que osmais importantes especialistas da rea pensam sobre isso.

    As posies que temos sobre temas filosficos antes de es-tudar filosofia so to irrelevantes como as opinies do padeiroque nada sabe de medicina sobre a gripe. Queremos ter uma po-sio pessoal sobre os problemas filosficos, mas que resulte danossa reflexo cuidadosa e metdica, e de um conhecimento ade-quado das teorias e argumentos relevantes. O nosso objectivo aprender a pouco e pouco a ter posies verdadeiramente filosfi-cas sobre os problemas da filosofia.

    Para que as nossas posies sobre os problemas da filosofiasejam filosficas temos de conhecer a histria da filosofia. Masestudar filosofia muito diferente de estudar histria da filosofia.Na histria da filosofia, estuda-se o que os filsofos dizem para secompreender melhor o que pensam. Na filosofia, queremos com-preender melhor o que os filsofos pensam para discutir as suasideias. Estudar filosofia como estudar msica e estudar histriada filosofia como estudar histria da msica. Num caso, apren-demos a pouco e pouco a tocar um instrumento ou a compor pe-as musicais; no outro, aprendemos apenas a apreciar a msicado passado. Em filosofia, aprendemos a pouco e pouco a filosofar;em histria da filosofia, aprendemos apenas a compreender eformular as ideias dos filsofos.

    A filosofia um estudo a priori

    Os problemas da filosofia provocam alguma perplexidade porque so bastante diferen-tes quer dos problemas de cincias como a biologia ou a histria, quer dos problemas damatemtica. Como vimos, tentamos resolver os problemas da filosofia recorrendo exclusi-vamente ao pensamento. Mas o que quer isto dizer?

    Imagine-se que queremos saber se h vida em Marte. No possvel resolver este pro-blema unicamente atravs do pensamento. preciso dispor dos dados enviados pelassondas que foram para Marte, fazer observaes e medies, etc. Todas essas coisas fa-zem parte da experincia emprica: so maneiras de recolher informao acerca do mundo.

    Imagine-se agora que queremos saber qual o resultado de multiplicar 25 por 4. Nestecaso, basta pensar para saber o resultado. Claro que podemos contar pelos dedos, se noconseguirmos fazer a multiplicao de cabea. Mas isso irrelevante, pois os dedos someros auxiliares do pensamento; no usamos os dedos como usamos o telescpio, porexemplo, para ver qual a dimenso relativa do maior vale da Lua.

    A filosofia , em parte, como a matemtica, pois ocupa-se de problemas que no sepodem resolver recorrendo experincia emprica temos de os resolver recorrendo aopensamento. Por exemplo, no podemos decidir se os animais tm direitos ou no limi-tando-nos a recolher informao do mundo. por isso que dizemos que a filosofia um

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    O que a filosofia? Captulo 1

    Busto de Immanuel Kant, deFriedrich Hagemann (1773-1806). Kantdefendeu que no se aprende filosofia;aprende-se a filosofar: O que o alunorealmente procura proficincia nomtodo de reflectir e fazer infernciaspor si.

  • estudo a priori. Queremos dizer que a filosofia se faz unicamentecom o pensamento. Mas, ao contrrio da matemtica, no h na fi-losofia mtodos formais de prova.

    Conhecemos algo a priori quando o conhecemos sem re-correr experincia.

    Conhecemos algo a posteriori quando o conhecemos recor-rendo experincia.

    Por vezes, chama-se tambm racional ao conhecimento a priorie emprico ao conhecimento a posteriori.

    Em filosofia, o termo a priori no significa anterior nem an-terior experincia; no se deve confundir a priori com inato.Por isso, dizer que a filosofia a priori no dizer que a filosofia sefaz antes de se ter qualquer experincia das coisas. Pelo contrrio,geralmente depois de as pessoas terem tido algumas experin-cias que descobrem alguns problemas filosficos.

    Apesar de a filosofia ser um estudo a priori, para discutir certosproblemas filosficos preciso usar conhecimentos a posteriori.Por exemplo, no podemos discutir certos aspectos da filosofia dareligio sem nada saber de religio; nem podemos discutir certosaspectos da filosofia da arte sem nada saber de arte.

    Apesar disso, a filosofia a priori, por duas razes. Em primeirolugar, porque no compete filosofia recolher essas informaesempricas: isso feito pelas outras disciplinas, nomeadamente pelahistria das religies, por exemplo, ou pela histria da arte. Em se-

    gundo lugar, porque essas informaes empricas no permitem, por si, resolver osproblemas da filosofia: preciso pensar cuidadosamente. Podemos saber imensas coisassobre arte, por exemplo, mas essa informao no responde, s por si, ao problema desaber o que a arte; para isso, temos de pensar intensamente.

    Apesar de a filosofia ser um estudo a priori, o seu objecto de estudo a realidade: emfilosofia estuda-se a cincia, a religio, as artes, o bem, a liberdade, a justia, etc. Dizerque a filosofia a priori significa apenas que a filosofia estuda os problemas no empricosdestas realidades. Por exemplo, um problema emprico da realidade saber se os animaisno humanos sentem dor ou no; um problema no emprico da realidade saber se osanimais no humanos tm direitos.

    Imagine-se que a Ana pensa que os problemas da filosofia resultam de meras confu-ses ou fantasias, precisamente porque no se podem resolver recorrendo experincianem matemtica. Pode-se defender esta ideia e houve at filsofos que a defenderam,por estranho que isso possa parecer. Mas como podemos saber que no poderemossaber coisa alguma em filosofia? Se a Ana comear a pensar nas razes que a podem levara pensar que em filosofia nunca se poder saber coisa alguma, estar a fazer filosofia. por isso que a actividade filosfica inevitvel. inevitvel porque no mais do que aprocura sistemtica de justificaes sensatas para as nossas ideias mais bsicas mesmoas nossas ideias acerca da prpria filosofia.

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

    Meditao, de Charles Amable Lenoir(1860-1926). A filosofia uma reflexointensa sobre problemas insusceptveisde resoluo emprica ou matemtica.

  • Reviso

    1. O que significa dizer que a filosofia um estudo a priori?

    2. Diga se as seguintes afirmaes so verdadeiras ou falsas e justifique a suaresposta:1) Uma vez que a filosofia a priori, no precisamos de informao emprica

    para fazer filosofia.2) Dado que tanto a filosofia como a matemtica so a priori, no h diferena

    entre as duas.3) Se sabemos algo a priori, sabemo-lo sem recorrer aos dados dos sentidos.4) Se sabemos algo a posteriori, sabemo-lo pelo pensamento apenas.5) O conhecimento de que a neve branca a priori.6) O conhecimento de que os objectos brancos so coloridos a posteriori.

    3. Apresente dois exemplos de problemas a priori e dois exemplos de problemasa posteriori.

    4. Explique por que razo a filosofia inevitvel.

    Texto 1

    Filosofia: A Crtica das nossas CrenasJerome Stolnitz

    O que significa, especificamente, dizer que a filosofia faz a crtica das nossas crenas?Para comear, admitamos que a maior parte das nossas crenas sobre questes vitais comoa religio e a moralidade so manifestamente acrticas. Faz uma pausa para avaliar as tuascrenas sobre estas questes, perguntando-te por que razo vieste a ter as crenas que tens.Na maior parte dos casos, podemos afirmar com segurana, irs descobrir que no viestea ter tais crenas em resultado de uma reflexo prolongada e sria sobre elas. Pelocontrrio, aceitaste-as com base em alguma autoridade, isto , um indivduo qualquer, ouinstituio, que te transmitiu essas crenas. A autoridade pode ser os teus pais, professores,Igreja ou amigos. Muitas das nossas crenas so impostas pelo que chamamos vagamentesociedade ou opinio pblica. Estas autoridades, regra geral, no te impem as suasconvices. Ao invs, absorveste essas crenas a partir do clima de opinio no qual tedesenvolveste. Assim, a maior parte das tuas crenas sobre questes como a existncia deDeus ou sobre se por vezes correcto mentir so artigos intelectuais em segunda mo.

    Mas isto no significa, claro, que essas crenas sejam necessariamente falsas ou que nosejam slidas. Podem perfeitamente ser slidas. Os artigos em segunda mo por vezes somuito bons. O que est em causa, contudo, isto: uma crena no verdadeira simples-mente porque uma autoridade qualquer diz que o . Supe que, perante uma certa crena,eu te perguntava: Como sabes que isso verdade? Certamente que no seria satisfatrio

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    O que a filosofia? Captulo 1

  • responder Porque os meus pais (professores, amigos, etc.) me disseram. Isto, em si, nogarante a verdade da crena, porque tais autoridades se enganaram muitas vezes. Verificou--se que muitas das crenas sobre medicina dos nossos antepassados, que eles transmitirams geraes posteriores, eram falsas. E desde que se fundaram as primeiras escolas que osestudantes graas aos cus encontraram erros no que os seus professores diziam etentaram encontrar por si crenas mais slidas. Por outras palavras, a verdade de umacrena tem de depender dos seus prprios mritos. Se os teus pais te ensinaram que desastroso abusar de mas verdes, ento a assero deles verdadeira no porque odisseram, mas porque certos factos (muito desagradveis) mostram que verdadeira. Seaceitares uma lei cientfica que leste num manual, essa lei deve ser aceite no porque estescrita num manual, mas porque se baseia em provas experimentais e no raciocniomatemtico. Temos justificao para aceitar uma crena unicamente quando esta susten-tada por provas experimentais e argumentos slidos. Mas, como tenho vindo a insistir, amaior parte de ns nunca testa as nossas crenas desse modo.

    aqui que entra a actividade crtica da filosofia.A filosofia recusa-se a aceitar qualquer crena que asprovas experimentais e o raciocnio no mostrem que verdadeira. Uma crena que no possa ser estabe-lecida por este meio no digna da nossa fidelidadeintelectual e habitualmente um guia incerto daaco. A filosofia dedica-se, portanto, ao exame minu-cioso das crenas que aceitmos acriticamente devrias autoridades. Temos de nos libertar dos precon-ceitos e emoes que muitas vezes obscurecem as nos-sas crenas. A filosofia no permitir que crenaalguma passe a inspeco s porque tem sido veneradapela tradio ou porque as pessoas acham que emo-cionalmente compensador aceitar essa crena. A filo-sofia no aceitar uma crena s porque se pensa que simples senso comum ou porque foi proclamadapor homens sbios. A filosofia tenta nada tomar comogarantido e nada aceitar por f. Dedica-se inves-tigao persistente e de esprito aberto, para descobrirse as nossas crenas so justificadas, e at que ponto oso. Deste modo, a filosofia impede-nos de nos afun-darmos na complacncia mental e no dogmatismo emque todos os seres humanos tm tendncia para cair.

    Jerome Stolnitz, Esttica e Filosofia da Crtica de Arte, 1960,trad. de Desidrio Murcho, pp. 3-6

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

    Cabea, de Pavel Filonov (1883-1941). Te-mos a cabea cheia de crenas, mas rara-mente as analisamos criticamente e comcuidado. A filosofia d-nos precisamenteesse olhar crtico sobre as nossas prpriascrenas.

  • Contextualizao

    Em filosofia, usa-se o termo crena (e por vezes opinio) de forma abrangente.Inclui no apenas as crenas religiosas, mas tudo o que pensamos que ver-dade, seja ou no verdade. Por exemplo, todos temos a crena de que 2 umnmero par, que a relva verde ou que no h vida na Lua.

    Jerome Stolnitz um filsofo norte-americano contemporneo que se desta-cou na filosofia da arte. Nesta rea, defendeu uma posio inspirada em Kant,fazendo da experincia esttica o elemento mais importante para compreendera arte. A esttica ser estudada opcionalmente na Parte 5.

    Interpretao1. O que uma crena acrtica?

    2. Explique qual , segundo o autor, a origem da maior parte das nossas crenas.

    3. Uma crena no verdadeira simplesmente porque uma autoridade qualquerdiz que o , afirma o autor. Que quer isto dizer?

    4. A filosofia impede-nos de nos afundarmos na complacncia mental e nodogmatismo em que todos os seres humanos tm tendncia para cair, afirmao autor. Porqu?

    Discusso5. prefervel viver de acordo com as crenas que nos foram transmitidas pela

    tradio, em vez de as avaliar criticamente. Concorda? Porqu?

    Texto 2

    Aprender a PensarImmanuel Kant

    O jovem que completou a sua instruo escolar habituou-se a aprender. Agora pensaque vai aprender filosofia. Mas isso impossvel, pois agora deve aprender a filosofar. []Para que pudesse aprender filosofia teria de comear por j haver uma filosofia. Teria de serpossvel apresentar um livro e dizer: Veja-se, aqui h sabedoria, aqui h conhecimento emque podemos confiar. Se aprenderem a entend-lo e a compreend-lo, se fizerem dele asvossas fundaes e se construrem com base nele daqui para a frente, sero filsofos. Atme mostrarem tal livro de filosofia, um livro a que eu possa apelar, [] permito-me fazero seguinte comentrio: estaramos a trair a confiana que o pblico nos dispensa se, em vez

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    O que a filosofia? Captulo 1

  • de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado e em vezde os educar de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva prpria maisamadurecida, se em vez disso os enganssemos com uma filosofia alegadamente j acabadae cogitada por outras pessoas em seu benefcio. Tal pretenso criaria a iluso de cincia.Essa iluso s em certos lugares e entre certas pessoas aceite como moeda legtima. Con-tudo, em todos os outros lugares rejeitada como moeda falsa. O mtodo de instruo pr-prio da filosofia zettico, como o disseram alguns filsofos da antiguidade (de ).Por outras palavras, o mtodo da filosofia o mtodo da investigao. S quando a razo jadquiriu mais prtica, e apenas em algumas reas, que este mtodo se torna [] decisivo.Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a nossa instruo no deve ser considerado oparadigma do juzo. Ao invs, deve ser encarado como uma ocasio para cada um de nsformar um juzo sobre ele, e at mesmo, na verdade, contra ele. O que o aluno realmenteprocura proficincia no mtodo de reflectir e fazer inferncias por si. E s essaproficincia lhe pode ser til. Quanto ao conhecimento positivo que ele poder talvez vir aadquirir ao mesmo tempo isso ter de ser considerado uma consequncia acidental. Paraque a colheita de tal conhecimento seja abundante, basta que o aluno semeie em si asfecundas razes deste mtodo.

    Immanuel Kant, Anncio do Programa do Semestre de Inverno de 1765-1766,trad. de Desidrio Murcho, pp. 2:306-307

    Contextualizao Procure numa enciclopdia o significado do termo zettica.

    Interpretao1. Segundo o autor, impossvel aprender filosofia. Porqu?

    2. Qual o objectivo do estudo da filosofia, segundo o autor?

    3. Qual o mtodo prprio do ensino da filosofia? Explique o seu significado.

    4. Para o autor aprender filosofia diferente de aprender a filosofar. Qual a dife-rena?

    5. Explique quais so as diferenas fundamentais entre o mtodo decisivo e omtodo zettico de ensino.

    Discusso6. O objectivo do estudo da filosofia saber o que os filsofos disseram e nada

    mais. Concorda? Porqu?

    7. Se em filosofia no h conhecimentos estabelecidos, como em fsica ou emhistria, que possam ser ensinados, ento a filosofia no deve ser ensinada.Concorda? Porqu?

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1

  • 4. Para que serve a filosofia?Uma das mais importantes crticas que se faz filosofia a seguinte:

    Depois de 2500 anos de discusses filo-sficas, o que se conseguiu efectivamentedescobrir? A biologia, a matemtica ou ahistria tm produzido ao longo dos sculosresultados slidos. Mas a filosofia no apre-senta resultados. Hoje, como h 2500 anos,a filosofia no conseguiu estabelecer seexiste Deus, se temos livre-arbtrio, o que a arte ou se h alguma justificao para aautoridade do estado. Por isso, a filosofiano serve para nada.

    Esta objeco baseia-se na confuso entreas cincias e os seus resultados. Se ao longo desculos no se tivesse procurado saber o queat ento parecia impossvel saber, no haveriahoje resultados em biologia, por exemplo. Se de-sistirmos de descobrir a verdade das coisas por-que at hoje ningum descobriu tal coisa, torna-remos impossvel qualquer descoberta dadoque, por definio, o que se descobre no setinha descoberto antes. Se no procurarmosdescobrir o que no se sabe, no ser possvelproduzir resultados.

    Alm disso, as cincias no so importantesapenas por causa dos seus resultados. So im-portantes tambm pelo que ajudam a esclare-cer, mesmo quando no produzem resultados.Nunca poderemos saber com certeza, porexemplo, por que razo se extinguiram os di-nossurios. Mas o que aprendemos ao inves-tigar este problema muitssimo enriquecedor, ainda que no seja definitivo. Do mesmomodo, podemos no saber se temos livre-arbtrio; mas o que aprendemos ao investigareste problema muitssimo enriquecedor. Por isso, tal como as outras reas do conheci-mento, a filosofia importante porque alarga a nossa compreenso das coisas.

    Acresce que a filosofia consiste, em grande parte, em discutir ideias com argumentosrigorosos. Por isso, d-nos uma capacidade acrescida para avaliar e discutir ideias, argu-mentos e problemas. Do mesmo modo que quem estuda pintura fica com um olhar maissensvel s cores e formas, quem estuda filosofia fica mais sensvel ao modo como funda-mentamos as nossas convices e decises. Assim, a filosofia importante tambm por-que nos ensina a pensar melhor.

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    O que a filosofia? Captulo 1

    Olhos Fechados, de Odilon Redon (1840-1916). Recusar re-flectir sobre os problemas para os quais no h solues comorecusar abrir os olhos para tentar ver o que nunca ningum viuantes.

  • Estudo complementar

    Almeida, Aires e Murcho, Desidrio (2006) Introduo para Estudantes in Textose Problemas de Filosofia. Lisboa: Pltano.

    Kolak, Daniel e Martin, Raymond (2002) Sabedoria Sem Respostas. Trad. de CliaTeixeira. Lisboa: Temas e Debates, 2004.

    Nagel, Thomas (1987) Que Quer Dizer Tudo Isto? Trad. de Teresa Marques. Lisboa:Gradiva, 1995.

    Warburton, Nigel (1995) Elementos Bsicos de Filosofia. Trad. de Desidrio Murcho.Lisboa: Gradiva, 1998.

    Creel, Richard E. (2001) A Filosofia no Adversarial. Trad. de DesidrioMurcho, in A Arte de Pensar, http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_ pensar/leit_adversarial.html.

    Russell, Bertrand (1912) O Valor da Filosofia. Trad. de lvaro Nunes, in Crtica,http://criticanarede.com/html/fil_valordafil.html.

    Warburton, Nigel (s.d.) O que Estudar Filosofia?. Trad. de Desidrio Murcho, inA Arte de Pensar, http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_pensar/leit_warburton.html.

    Warnock, Mary (1996) O que um Filsofo?. Trad. de Desidrio Murcho, inA Arte de Pensar, http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_pensar/leit_warnock.html.

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    ABORDAGEM INTRODUTRIA FILOSOFIA E AO FILOSOFARPARTE 1