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É natural que as pessoas experimentem vários sistemas de crenças, para ver se têm valia. E, se estamos bastante desesperados, logo nos dispomos a abandonar o que pode ser visto como a pesada carga do ceticismo. A pseudociência fala às necessidades emocionais poderosas que a ciência freqüentemente deixa de satisfazer. Nutre as fantasias sobre poderes pessoais que não temos e desejamos ter (como aqueles atribuídos aos super heróis das histórias de quadrinhos modernas e, no passado, aos deuses). Em algumas de suas manifestações, oferece satisfação para a fome espiritual, curas para as doenças, promessas de que a morte não é o fim. Renova nossa confiança na centralidade e importância cósmica do homem. Concede que estamos presos, ligados ao Universo.* Às vezes parece uma parada no meio do caminho entre a antiga religião e a nova ciência, inspirando desconfiança em ambas. No âmago de algumas pseudociências (e também de algumas religiões, da Nova e da Antiga Era) reside a idéia de que é o ato de desejar que dá forma aos acontecimentos. Como seria agradável se pudéssemos, à semelhança do folclore e das histórias infantis, satisfazer os desejos de nosso coração pelo simples ato de desejar. Como é sedutora essa noção, especialmente quando comparada com o trabalho duro e a boa sorte geralmente necessários para concretizar nossas esperanças. O peixe encantado ou o gênio da lâmpada nos concedem três desejos . o que quisermos, exceto aumentar o número de desejos. Quem já não pensou . só por segurança, só para o caso de encontrarmos e acidentalmente esfregarmos uma velha e atarracada lâmpada de latão . no que pedir? Pode-se afirmar que a pseudociência é adotada na mesma proporção em que a verdadeira ciência é mal compreendida . a não ser que a linguagem (*) Embora eu ache difícil encontrar uma conexão cósmica mais profunda do que as descobertas espantosas da moderna astrofísica nuclear; à exceção do hidrogênio, todos os átomos que compõem cada um de nós . o ferro no sangue, o cálcio nos ossos, o carbono no cérebro . foram fabricados em estrelas vermelhas gigantes a milhares de anosluz no espaço e a bilhões de anos no tempo. Somos feitos, como gosto de dizer, de matéria estelar. falhe nesse ponto. Se alguém nunca ouviu falar de ciência (muito menos de como ela funciona), dificilmente pode ter consciência de estar abraçando a pseudociência. Está apenas adotando uma das maneiras de pensar que os seres humanos sempre empregaram. As religiões são freqüentemente escolas de pseudociência que têm proteção do Estado, embora não haja razão que as obrigue a desempenhar esse papel. De certo modo, é um artefato de tempos muito remotos. Em alguns países, quase todo mundo acredita em astrologia e precognição, inclusive os líderes do governo. Mas isso não lhes é simplesmente incutido pela religião; é tirado da cultura circundante em que todos se sentem à vontade com essas práticas, e encontram-se provas disso por toda parte.

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Não é apenas nas casas dos camponeses, mas também nos arranha-céus das cidades, que o século XIII vive ao lado do XX. Cem milhões de pessoas usam a eletricidade e ainda acreditam nos poderes mágicos de sinais e exorcismos. [...] As estrelas de cinema procuram médiuns. Os aviadores que pilotam mecanismos milagrosos criados pelo gênio do homem usam amuletos em seus suéteres. Como são inesgotáveis as suas reservas de trevas, ignorância e selvageria! A ANTICIÊNCIA

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É natural que as pessoas experimentem vários sistemas de crenças, para ver se têm valia. E, se

estamos bastante desesperados, logo nos dispomos a abandonar o que pode ser visto como a

pesada carga do ceticismo. A pseudociência fala às necessidades emocionais poderosas que a

ciência freqüentemente deixa de satisfazer. Nutre as fantasias sobre poderes pessoais que não

temos e desejamos ter (como aqueles atribuídos aos super heróis das histórias de quadrinhos

modernas e, no passado, aos deuses). Em algumas de suas manifestações, oferece satisfação

para a fome espiritual, curas para as doenças, promessas de que a morte não é o fim. Renova

nossa confiança na centralidade e importância cósmica do homem. Concede que estamos

presos, ligados ao Universo.* Às vezes parece uma parada no meio do caminho entre a antiga

religião e a nova ciência, inspirando desconfiança em ambas.

No âmago de algumas pseudociências (e também de algumas religiões, da Nova e da Antiga

Era) reside a idéia de que é o ato de desejar que dá forma aos acontecimentos. Como seria

agradável se pudéssemos, à semelhança do folclore e das histórias infantis, satisfazer os

desejos de nosso coração pelo simples ato de desejar. Como é sedutora essa noção,

especialmente quando comparada com o trabalho duro e a boa sorte geralmente necessários

para concretizar nossas esperanças. O peixe encantado ou o gênio da lâmpada nos concedem

três desejos . o que quisermos, exceto aumentar o número de desejos. Quem já não pensou .

só por segurança, só para o caso de encontrarmos e acidentalmente esfregarmos uma velha e

atarracada lâmpada de latão . no que pedir?

Pode-se afirmar que a pseudociência é adotada na mesma proporção em que a verdadeira

ciência é mal compreendida . a não ser que a linguagem

(*) Embora eu ache difícil encontrar uma conexão cósmica mais profunda do que as

descobertas espantosas da moderna astrofísica nuclear; à exceção do hidrogênio, todos os

átomos que compõem cada um de nós . o ferro no sangue, o cálcio nos ossos, o carbono no

cérebro . foram fabricados em estrelas vermelhas gigantes a milhares de anosluz no espaço e a

bilhões de anos no tempo. Somos feitos, como gosto de dizer, de matéria estelar. falhe nesse

ponto. Se alguém nunca ouviu falar de ciência (muito menos de como ela funciona),

dificilmente pode ter consciência de estar abraçando a pseudociência. Está apenas adotando

uma das maneiras de pensar que os seres humanos sempre empregaram. As religiões são

freqüentemente escolas de pseudociência que têm proteção do Estado, embora não haja

razão que as obrigue a desempenhar esse papel. De certo modo, é um artefato de tempos

muito remotos. Em alguns países, quase todo mundo acredita em astrologia e precognição,

inclusive os líderes do governo. Mas isso não lhes é simplesmente incutido pela religião; é

tirado da cultura circundante em que todos se sentem à vontade com essas práticas, e

encontram-se provas disso por toda parte.

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Não é apenas nas casas dos camponeses, mas também nos arranha-céus das cidades, que o

século XIII vive ao lado do XX. Cem milhões de pessoas usam a eletricidade e ainda acreditam

nos poderes mágicos de sinais e exorcismos. [...] As estrelas de cinema procuram médiuns. Os

aviadores que pilotam mecanismos milagrosos criados pelo gênio do homem usam amuletos

em seus suéteres. Como são inesgotáveis as suas reservas de trevas, ignorância e selvageria!

A ciência nos convida a acolher os fatos, mesmo quando eles não se ajustam às nossas

preconcepções. Aconselha-nos a guardar hipóteses alternativas em nossas mentes, para ver

qual se adapta melhor à realidade. Impõe-nos um equilíbrio delicado entre uma abertura sem

barreiras para idéias novas, por mais heréticas que sejam, e o exame cético mais rigoroso de

tudo . das novas idéias e do conhecimento estabelecido. Esse tipo de pensamento é também

uma ferramenta essencial para a democracia numa era de mudanças. Uma das razões para o

seu sucesso é que a ciência tem um mecanismo de correção de erros embutido em seu próprio

âmago. Alguns talvez considerem essa caracterização demasiado ampla, mas para mim, toda

vez que fazemos autocrítica, toda vez que testamos nossas idéias no mundo exterior, estamos

fazendo ciência. Quando somos indulgentes conosco mesmos e pouco críticos, quando

confundimos esperanças e fatos, escorregamos para a pseudociência e a superstição.

Toda vez que um artigo científico apresenta alguns dados, eles vêm acompanhados por uma

margem de erro . um lembrete silencioso, mas insistente, de que nenhum conhecimento é

completo ou perfeito. É uma calibração de nosso grau de confiança naquilo que pensamos

conhecer. Se as margens de erro são pequenas, a acuidade de nosso conhecimento empírico é

elevada; se são grandes, então é também enorme a incerteza de nosso conhecimento. Exceto

na matemática pura (e, na verdade, nem mesmo nesse caso), não há certezas no

conhecimento.

Além disso, os cientistas têm em geral o cuidado de caracterizar o status verídico de suas

tentativas de compreender o mundo . que vão desde conjeturas e hipóteses, que são

altamente experimentais, até as leis da Natureza, que são repetida e sistematicamente

confirmadas por muitas pesquisas sobre o funcionamento do mundo. Mas até as leis da

Natureza não são absolutamente certas. Pode haver novas circunstâncias nunca antes

examinadas . dentro de buracos negros, por exemplo, ou dentro do elétron, ou perto da

velocidade da luz . em que até as nossas alardeadas leis da Natureza caem por terra e, por

mais válidas que possam ser em circunstâncias comuns, necessitam de correção.

A ANTICIÊNCIA

Não há verdade objetiva. Nós criamos nossa própria verdade. Não há realidade objetiva. Nós criamos

nossa própria realidade. Há formas de conhecimento interiores, místicas ou espirituais que são

superiores às nossas formas comuns de conhecimento. Se uma experiência parece real, ela é real. Se

uma idéia nos parece correta, ela é correta. Somos incapazes de adquirir o conhecimento da verdadeira

natureza da realidade. A própria ciência é irracional ou mística. É apenas outro credo, outro sistema de

crença ou outro mito, e não tem mais justificação do que qualquer um dos outros. Não importa se as

convicções são verdadeiras ou não, desde que elas façam sentido para você.