APOSTILA TEOLOGIA Zootecnia e Biologia FIT 1500-A04...

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0 APOSTILA TEOLOGIA Z Z o o o o t t e e c c n n i i a a e e B B i i o o l l o o g g i i a a FIT 1500-A04 2 2 0 0 1 1 7 7 / / 1 1 CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................................................... 1 A FÉ QUE FAZ BEM À SAÚDE ..................................................................................................................... 2 FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................................................................... 7 EXPERIÊNCIA RELIGIOSA - O QUE É? COMO SE DÁ? ....................................................................... 7 MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?........................................................................................... 9 FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS .................................................................................. 10 RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA ................................................................................................... 13 SOBREVIVÊNCIA E SAGRADO NAS SOCIEDADES TRIBAIS.......................................................... 13 NATUREZA E RELIGIÃO NO FEUDALISMO ...................................................................................... 15 A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE............................................................................ 17 A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA EM MEIO À PÓS-MODERNIDADE ................................................... 18 RELIGIÃO E CONSUMISMO: OS DEUSES NA VITRINE DA PÓS-MODERNIDADE .................. 20 Para a morte ser vista com naturalidade .......................................................................................................... 22 O jogo existencial e a ritualização da morte (texto parcial)............................................................................. 24 ESTADO E RELIGIÃO: RELAÇÕES PERIGOSAS ..................................................................................... 29 RELIGIÃO E POLÍTICA EM GOIÁS .......................................................................................................... 32 RAÍZES e INFLUÊNICAS RELIGIOSAS ..................................................................................................... 37 FÉ CEGA, FACA AMOLADA ....................................................................................................................... 38 MARX E A Religião ........................................................................................................................................ 41 Profa. Sandra Chaves [email protected]

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APOSTILA TEOLOGIA ZZZoooooottteeecccnnniiiaaa eee BBBiiiooolllooogggiiiaaa

FIT 1500-A04 222000111777///111

CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................................................... 1

A FÉ QUE FAZ BEM À SAÚDE ..................................................................................................................... 2

FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................................................................... 7

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA - O QUE É? COMO SE DÁ? ....................................................................... 7

MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?........................................................................................... 9

FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS .................................................................................. 10

RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA ................................................................................................... 13

SOBREVIVÊNCIA E SAGRADO NAS SOCIEDADES TRIBAIS .......................................................... 13

NATUREZA E RELIGIÃO NO FEUDALISMO ...................................................................................... 15

A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE ............................................................................ 17

A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA EM MEIO À PÓS-MODERNIDADE ................................................... 18

RELIGIÃO E CONSUMISMO: OS DEUSES NA VITRINE DA PÓS-MODERNIDADE .................. 20

Para a morte ser vista com naturalidade .......................................................................................................... 22

O jogo existencial e a ritualização da morte (texto parcial) ............................................................................. 24

ESTADO E RELIGIÃO: RELAÇÕES PERIGOSAS ..................................................................................... 29

RELIGIÃO E POLÍTICA EM GOIÁS .......................................................................................................... 32

RAÍZES e INFLUÊNICAS RELIGIOSAS ..................................................................................................... 37

FÉ CEGA, FACA AMOLADA ....................................................................................................................... 38

MARX E A Religião ........................................................................................................................................ 41

Profa. Sandra Chaves [email protected]

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CCOONNCCEEIITTOOSS BBÁÁSSIICCOOSS 1. TEOLOGIA

Etimologia/histórico: A palavra é de origem grega (Teo = Deus; Logia = estudo): o estudo de Deus. Os filósofos gregos utilizavam a palavra, mas restrita ao campo de articulação das idéias filosóficas. Pode ser: 1.1. Olhar interno: Esse aspecto estuda os textos sagrados e suas inplicações/interpretações. Este estudo é realizado pelo praticante da própria fé professada, ou seja, é o muçulmano estudando a Teologia do Corão, é o judeu estudando a Teologia da Torá, etc. No Cristianismo é a reflexão sobre o ser humano, à luz do projeto de Jesus Cristo, para orientar o crente a viver humanamente neste mundo em direção à plenitude da vida. 1.2. Olhar externo: É uma reflexão sistemática, organizada, metódica, que parte da fé e a ela pretende voltar. Sob esse olhar a Teologia se propõe a estudar toda e qualquer expressão religiosa a partir do olhar do crente, ou seja, não questiona ‘se’ tal fenômeno é possível ou não. Tal questionamento é dispensável. A partir do fenômeno apresentado, a teologia utiliza instrumentos de investigação como a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a História e a Antropologia da religião.

2. RELIGIÃO Vem do latim ‘religar’, ‘atar’ o sagrado com o profano. A religião é um sistema qualquer de idéias que envolve fé e cultos. Consiste em crenças e práticas organizadas, formando algum sistema privado ou coletivo, mediante o qual uma pessoa ou um grupo de pessoas são influenciados.

Pode-se encontrar muitas crenças e filosofias diferentes. As diversas religiões do mundo são de fato muito diferentes entre si. Porém ainda assim é possível estabelecer uma característica em comum entre todas elas. É fato que toda religião possui um sistema de crenças no sobrenatural, geralmente envolvendo divindades ou deuses. As religiões costumam também possuir relatos sobre a origem do ‘Universo’, da ‘Terra’ e do ‘Ser Humano’, e o que acontece após a morte. A maior parte crê na vida após a morte.

A religião não é apenas um fenômeno individual, mas também um fenômeno social. Institucionalização da fé.

3. RELIGIOSIDADE A ‘atitude particular’ de uma consciência transformada pela experiência do numinoso. Fé praticada por meio

daquele que acredita. É a crença propriamente dita, vivida no cotidiano. Na forma confessional (em cada denominação religiosa), a experiência não é direta, mas mediada pelo sistema

simbólico de uma determinada religião, que fornece significados coletivos e relativamente fixos para a vivência do numinoso; a mediação pressupõe a crença, ou fé, pois que se dá através do estabelecimento de dogmas. Nos primórdios dos tempos o ser humano admite tanto as forças e atividades naturais como as sobrenaturais e procura usar ambas em seu próprio benefício. Mas agarra-se à magia sempre que tem de reconhecer a impotência do seu conhecimento e da sua técnica racional.

SAGRADO PROFANO NO SENTIDO SOCIOLÓGICO

Domínio da magia/religião Domínio da ciência e vivência do cotidiano, da vida civil. Reverência, temor, crença em forças sobrenaturais.

Força da razão, rudimentos da ciência inventando técnicas da caça, pesca, agricultura.

Relação religião e as ciências:

CIÊNCIA RELIGIÃO Nasce da experiência É construída através da tradição É norteada pela razão e corrigida pela observação Imune a ambas vive numa atmosfera de misticismo Está aberta a todos É oculta Assenta na concepção de forças naturais Desponta da idéia de um poder místico e impessoal.

REFERÊNCIAS http://www.alternex.com.br/~pilar/col-celso.htm#Ini01 acesso em: 20 abr 2001. http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o acesso em: 21 maio 2005. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. JUNG, C. G. Psicologia e religião. In Obras completas de C. G. Jung, (Vol. 11i). Petrópolis: Vozes, 1990. MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Ed. 70, 1988. OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Bernardo Campo: Imprensa Metodista, 1985.

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AA FFÉÉ QQUUEE FFAAZZ BBEEMM ÀÀ SSAAÚÚDDEE Novos estudos mostram que o cérebro é ‘programado’ para acreditar em Deus – e que

isso nos ajuda a viver mais e melhor Letícia Sorg A capacidade inata de procurar a explicação de um fenômeno é uma das diferenças entre o ser humano e outros animais. O homem primitivo não tinha como entender eventos mais complexos, como a erupção de um vulcão, um eclipse ou um raio. A busca de explicações sobrenaturais pode ser considerada natural. Mas por

que ela desembocou na fé e no surgimento das religiões? Cientistas de diferentes áreas se debruçaram sobre a questão nos últimos anos e chegaram a conclusões surpreendentes. Não só a fé parece estar programada em nosso cérebro, como teria benefícios para a saúde.

Com sua intuição genial, Charles Darwin, criador da teoria da evolução há 150 anos, já havia registrado ideia semelhante no livro A descendência do homem, em 1871: “Uma crença em agentes espirituais onipresentes parece ser universal”. “Somos predispostos biologicamente a ter crenças, entre elas a religiosa”, diz Jordan Grafman, chefe do departamento de neurociência cognitiva do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame (leia a entrevista). Grafman é o autor de uma das pesquisas mais recentes sobre o tema, publicada neste mês na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences. Em seu estudo, Grafman analisou o cérebro de 40 pessoas – religiosas e não religiosas – enquanto liam frases que confirmavam ou confrontavam a crença em Deus. Usando imagens de ressonância magnética funcional – que mede a oxigenação do cérebro –, o neurocientista descobriu que as partes ativadas durante a leitura de frases relacionadas à fé eram quase as mesmas usadas para entender as emoções e as intenções de outras pessoas. Isso quer dizer, segundo Grafman, que a capacidade de crer em um ser ou ordem superior possivelmente surgiu ao mesmo tempo que a habilidade de prever o comportamento de outra pessoa – fundamental para a sobrevivência da espécie e a formação da sociedade. E para estabelecer relações de causa e efeito. A interferência de um ser muito poderoso seria uma explicação eficiente para aplacar a necessidade de entender o que não se consegue explicar com o conhecimento comum. Mas o que levaria o ser humano, dotado de razão, a acreditar que um velhinho de barba branca, em cima de uma nuvem, atira raios sobre a Terra? Ou que 72

virgens aguardam os fiéis no Paraíso? “Tendemos a atribuir características humanas às coisas, inclusive ao ser divino”, diz Andrew Newberg, neurocientista da Universidade da Pensilvânia (leia a entrevista), autor de outro importante estudo sobre o poder da meditação e da oração. “A crença religiosa surgiu como um efeito colateral da maneira como nossa mente é organizada, da maneira como ela funciona naturalmente”, diz Justin Barrett, antropólogo e professor da Universidade de Oxford. Para Barrett, autor do livro Why would anyone believe in God? (“Por que alguém acreditaria em Deus?”), há evidências de que os sistemas religiosos ajudam a manter comunidades unidas – a dividir, a confiar, a construir redes sociais mais fortes. Barrett afirma que a mente das crianças é um exemplo de como a fé se manifesta precocemente. Em uma das experiências, pesquisadores mostraram uma caixa de biscoitos às crianças e perguntaram a elas o que havia dentro. Como não são bobas, as crianças responderam: “Biscoitos”. Ao abrir a caixa, o que encontravam eram pedras. Então, os cientistas perguntaram às mesmas crianças o que suas mães achariam que havia dentro da lata e o que Deus diria se visse a lata. As crianças de 3 anos disseram que as mães, assim como Deus, diriam que havia pedras. A partir dos 5 anos, elas responderam que a mãe diria “biscoitos”, mas que Deus responderia “pedras”. Já se chegou a pensar que uma espécie de curto-circuito na parte lateral do cérebro pudesse gerar casos de religiosidade extrema. Ficou famosa uma experiência do neurocientista americano Michael Persinger, batizada “O Capacete de Deus”: um capacete que estimulava eletricamente o cérebro do usuário. Segundo Persinger, oito em cada dez pessoas, qualquer que fosse a confissão religiosa, diziam experimentar um “sentimento religioso” ao vestir o aparato. Mas a maioria dos estudos científicos recentes – sejam eles baseados em imagens do cérebro ou no comportamento humano – afastou a hipótese de que a experiência religiosa seja o mero efeito de estímulos eletromagnéticos em uma parte específica do cérebro. O biólogo evolucionista pop e “ateu militante” Richard Dawkins chegou a usar o capacete para um documentário da BBC britânica. Não conseguiu “encontrar Deus” – só desconforto para respirar e mexer-se. Hoje, Persinger se defende das críticas a seu estudo. “A ‘estimulação religiosa’ reduz a ansiedade e pode ser útil para melhorar a cooperação social”, disse.

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Em 2004, o cientista americano Dean Hamer chegou a divulgar que havia descoberto um gene ligado à fé. Publicou o livro O gene de Deus. Batizado vmat2, seria responsável pelo transporte de mensageiros cerebrais, entre eles a serotonina, além de gerar o pensamento religioso. Polêmico na academia desde que anunciou a descoberta de um “gene gay”, supostamente responsável pela homossexualidade masculina, Hamer e seu livro foram acolhidos com ceticismo. Para Jordan Grafman, explicações únicas são insuficientes para elucidar a origem da fé em algo divino. A imprensa batizou seu estudo de “God spot” (o “ponto de Deus”), um trocadilho com o suposto “ponto G”, responsável pelo orgasmo feminino. “O ‘ponto de Deus’ é tão mítico quanto o ponto G”, diz Grafman, irônico. Andrew Newberg também descarta explicações simplistas. Vários estudos demonstraram uma relação entre experiências religiosas e certos tipos de desordem cerebral. “Mas essas associações não podem ser a única resposta”, diz Newberg. Apenas uma pequena porcentagem das pessoas que sofrem de epilepsia no lobo temporal tem esse tipo de experiência.

Newberg, que estuda as manifestações cerebrais da fé há pelo menos 15 anos, descobriu que as práticas religiosas acionam, entre outras regiões do cérebro, os lobos frontais, responsáveis pela capacidade de concentração, e os parietais, que nos dão a consciência de nós mesmos e do mundo. Em seu novo livro,

How God changes the brain (“Como Deus muda seu cérebro”), que será lançado nesta semana nos Estados Unidos, Newberg explora os efeitos da fé sobre o cérebro e a vida das pessoas. Segundo o neurocientista, os estudos anteriores olhavam para os efeitos de curto prazo de práticas

como a meditação e a oração. Agora, ele e seu grupo encararam a difícil tarefa de responder à questão: o que acontecerá se você adotar, com frequência, uma prática como a meditação ou a prece?

FÉ UNIVERSAL No sentido horário, a partir do alto à esquerda, budistas, cristãos ortodoxos, muçulmanos e judeus oram e meditam. Darwin já notara a universalidade da crença religiosa O grupo de Newberg analisou o cérebro de pessoas que meditam e oram

rotineiramente e notou os resultados dessas práticas para o cérebro e para as pessoas. No livro, ele lista nove técnicas de meditação (leia o quadro) que podem ser adotadas por crentes ou ateus. Numa delas, a pessoa se concentra em um tipo de diálogo interno. “Descobrimos que

essa prática ajuda as pessoas a criar intimidade, a interagir com as outras e a se comunicar com quem elas conhecem ou não”, diz Newberg.

Ainda estão sendo feitos estudos para compreender melhor a meditação e a prece, mas a pesquisa de Newberg mostra que, durante essas atividades, o lobo frontal fica mais ativo, e o lobo parietal menos. Como essa parte do cérebro é responsável pela noção de tempo e espaço, “desligá-la” geraria a sensação de imersão no mundo e a de ausência de passado e futuro muitas vezes relatadas por religiosos. A maior atividade do lobo frontal, além de melhorar a memória, segundo vários estudos também estaria ligada à diminuição da ansiedade. “Quando a pessoa volta sua atenção para o momento presente, não há riscos porque não há futuro”, diz Paulo de Tarso Lima, médico especializado em medicina integrativa e complementar e responsável pela implantação da especialidade dentro do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O simples fato de acreditar em um ser superior – seja ele qual for – reduziria a ansiedade. Grafman nega ter descoberto um “ponto de Deus”: “É um mito, como o ponto G”

Dois estudos canadenses publicados neste mês mostram que quem crê em Deus tende a lidar melhor com os erros. O grupo de pesquisa, liderado pelo professor de psicologia Michael Inzlicht, da Universidade de Toronto, pediu a pessoas de várias orientações religiosas e também àquelas que não creem em Deus que elas dissessem os nomes das cores que apareciam a sua frente. Quando elas cometiam

um erro, uma área do cérebro chamada “córtex cingulado anterior” era ativada.

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“Quanto mais forte a religiosidade e a crença em Deus dos participantes, menor era a resposta dessa região ao erro”, diz Inzlicht. Isso seria uma evidência de que as pessoas religiosas ficam mais calmas diante de um erro. “Suspeitamos que a crença religiosa protege contra a ansiedade porque dá um sentido para as pessoas. Ajuda-as a saber como agir e, com isso, reduz a incerteza e o estresse”, afirma Inzlicht. MENTE ATIVA Um monge budista é submetido a um eletroencefalograma. Nos últimos anos, vários estudos analisaram a atividade cerebral de quem ora ou medita A influência da crença em Deus na redução do estresse já é quase um consenso entre os médicos. “As doenças relacionadas ao estresse, especialmente as cardiovasculares, como a hipertensão, o infarto do miocárdio e o derrame, parecem ser as que mais se beneficiam dos efeitos de uma espiritualidade bem desenvolvida”, afirma Marcelo Saad, outro médico do Albert Einstein. Doutor em reabilitação, Saad é especializado em acupuntura e faz parte do programa de medicina integrativa e complementar do hospital. Para ser benéfica, a fé em Deus teria de ser associada à prática religiosa? Várias pesquisas mostram que participar de um grupo religioso estruturado – seja ele católico, budista, judeu, evangélico, umbandista – traz benefícios por aumentar o suporte social à pessoa. “Esse apoio social é algo extremamente valioso para a saúde física, inclusive para a sobrevivência e a longevidade”, diz o psicólogo americano Michael McCullough, professor da Universidade de Miami que estuda a maneira como a religião molda a personalidade e influencia hábitos saudáveis e relacionamentos sociais. Ao realizar um “metaestudo” de 42 pesquisas diferentes, o psicólogo descobriu que as pessoas altamente religiosas tinham 29% a mais de chance de estar vivas, em determinado momento do futuro, que as demais. A religiosidade tornaria mais fácil resistir a tentações nocivas à saúde, como o álcool e o fumo. “Para pessoas que acreditam na vida após a morte, pode ser uma decisão racional postergar os prazeres de curto prazo em nome da recompensa eterna”, afirma McCullough.

Robert Hummer, sociólogo e professor da Universidade do Texas, acompanha um grupo de pessoas desde 1992 para tentar esclarecer, entre outras questões, a relação entre a religião e a saúde. Segundo sua pesquisa, quem nunca

praticou uma religião tem um risco duas vezes maior de morrer nos próximos oito anos do que alguém que a pratica uma vez por semana. “As evidências da influência da fé na saúde são promissoras e mais que justificam o investimento em outros estudos”, afirma o neurologista brasileiro Jorge Moll, diretor do Centro de Neurociência da Rede Labs-D’Or, rede de laboratórios particular do Rio de Janeiro. Para Moll, o desafio é quantificar a influência da fé e tentar compará-la com o efeito de outras práticas sem conotação religiosa. “A prece e a meditação podem ter vários benefícios. Mas será que a ioga não tem o mesmo resultado?”, diz Moll, que colaborou com Jordan Grafman em vários estudos sobre o funcionamento do cérebro na tomada de decisões morais.

Como trazer isso para dentro dos consultórios e hospitais? Os pacientes não esperam que médicos conversem sobre a fé. Marcelo Saad, do Albert Einstein, reconhece que os profissionais de saúde não são treinados para discutir esse assunto, mas que podem iniciar o diálogo fazendo perguntas simples, como: “Quão importante é a fé em sua vida?” ou “Você gostaria de discutir assuntos religiosos?”. Conforme a resposta, o médico pode sugerir que ele retome a prática religiosa de sua preferência. “Não tem sentido negar a influência da religião na vida das pessoas, especialmente no Brasil, onde 99% da população acredita em Deus”, afirma o médico Paulo de Tarso Lima, que classifica como um desserviço não acolher esse elemento nos consultórios e nos hospitais. Isso significa que todos devem adotar a fé em nome da saúde, assim como se pratica esporte ou se faz dieta? Para quem crê, talvez a resposta seja sim. Mas, para as pessoas que não creem em uma força superior, não necessariamente. “Parece que os benefícios sobre a saúde são incidentais”, diz o psicólogo Michael McCullough. “Ironicamente, ser religioso em busca dos efeitos benéficos para a saúde não dá a ninguém a certeza de que isso vai surtir o efeito esperado.”

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Como o cérebro reage à meditação e à oração

O neurocientista Andrew Newberg usou uma técnica especial de tomografia em pessoas orando e meditando para avaliar a atividade cerebral. Nas imagens abaixo, quanto mais próxima do vermelho, maior a atividade naquela área do cérebro

O neurocientista fala sobre seu livro Como Deus muda seu cérebro

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ÉPOCA – Como Deus pode mudar a estrutura cerebral das pessoas? Andrew Newberg – Os nossos estudos usando imagens do cérebro mostram que, no longo prazo, há alterações no lobo frontal (relacionado à memória e à regulação das emoções) e no sistema límbico (ligado às emoções). As pessoas tendem a conseguir controlar mais suas emoções e expressá-las. A meditação e a oração ajudam a melhorar a relação consigo mesmo e com os outros. Também especulamos que essas práticas alteram, inclusive, a química cerebral, como os níveis de serotonina e dopamina, que regulam nosso humor, nossa memória e o funcionamento geral de nosso corpo, mas ainda não temos provas disso. ÉPOCA – Em seu livro, o senhor fala bastante da meditação, uma prática tradicionalmente ligada às religiões orientais. Existe alguma diferença entre, por exemplo, o catolicismo e o budismo? Newberg – Não olhamos exatamente para as diferenças entre as religiões, mas para as diferentes práticas. A forma como você pratica a religião é mais importante que as ideias religiosas em si. ÉPOCA – Há um consenso entre os cientistas de que a fé pode ajudar na manutenção da saúde? Newberg – Muitos cientistas acreditam que a espiritualidade tem um papel na saúde. A pergunta é quem vai administrar isso e como os profissionais de saúde vão lidar com a espiritualidade de uma maneira apropriada e benéfica. Essas questões ainda não foram respondidas. ÉPOCA – Há alguma diferença neurológica entre aqueles que creem e os que não creem em Deus? Newberg – Encontramos algumas diferenças, sim, e também notamos diferenças dependendo do tipo de prática religiosa. O problema é que nunca sabemos se aquelas mudanças estão lá porque a pessoa é religiosa há muito tempo ou se ela nasceu daquela maneira e, por causa disso, procurou um tipo de religião ou meditação.

Jordan Grafman - “A crença é necessária” O neurocientista diz que o pensamento religioso nasceu junto com o cérebro humano ÉPOCA – O senhor diria que a religião é um produto acidental de nosso processo evolutivo? Jordan Grafman – Eu não diria acidental. Existe uma tendência para nós pensarmos de certa maneira, e essa maneira, de alguma forma, envolve a necessidade de ter um sistema de crenças. E esse sistema guia nosso comportamento social. Acredito que estamos constantemente criando novos tipos de sistema de crença e é muito provável que os primeiros tenham sido baseados em autoridades religiosas.

ÉPOCA – Somos biologicamente predispostos à religião? Grafman – Eu diria que somos predispostos biologicamente a ter crenças, e a religiosa é uma delas, mas não a única. Classificaria a religião como uma forma primitiva de crença porque se baseia muito no que é desconhecido. Algumas das regras éticas vieram por meio da religião, mas só se estabeleceram porque ajudaram a ordenar a sociedade. Então, muitas regras tiveram sentido. A religião nasceu claramente de nossa necessidade de entender o que estávamos vendo. A crença religiosa surgiu no cérebro antes de outras crenças, segundo pesquisas

ÉPOCA – Seu estudo comparou as áreas do cérebro envolvidas nas crenças religiosas e nas crenças políticas. Do ponto de vista neurológico, quais as diferenças entre o pensamento religioso e o político? Grafman – Ainda não temos uma resposta definitiva a essa pergunta, mas há fortes indicações de que as crenças políticas estão sempre ligadas ao “aqui e agora”, a nossa vida, enquanto as crenças religiosas não necessariamente. Há diferenças em comportamento e também nas áreas do cérebro ativadas. No caso das crenças políticas, usamos as estruturas do cérebro que surgiram por último na evolução humana, enquanto no caso das crenças religiosas usamos áreas anteriores no desenvolvimento da espécie. Nossa hipótese é que a crença religiosa seja a primeira forma de sistema de crenças, que surgiu antes das outras. Nossos estudos mostram que as duas usam partes parecidas do cérebro, mas também que a religião veio antes da política.

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FFEENNÔÔMMEENNOO RREELLIIGGIIOOSSOO EXPERIÊNCIA RELIGIOSA - O QUE É? COMO SE DÁ?

A experiência religiosa possibilita à pessoa identificar a hierofania (manifestação do sagrado) e declarar um objeto, um lugar ou um tempo como sagrados. A experiência religiosa é a própria relação da pessoa com o sagrado que ela identifica e/ou reconhece como tal. Segundo Eliade "a essência de qualquer religião é a experiência de uma realidade outra, que se manifesta na consciência do crente antes mesmo de ser incorporada nos ritos e nos mitos, e preservada por um grupo de especialistas". Se aceitarmos esta idéia, necessitamos concluir que, para um evento se tornar experiência religiosa, deve ocorrer a fusão entre a expressão cultural e o sagrado que a ela se acrescenta.

Podemos ver, através de um exemplo, como as pessoas fazem este cruzamento. No caso dos rituais de cura nos meios populares, o/a curandeiro/a conhece uma porção de chás que podem curar muitas doenças. Esta parte seria a cultura. No entanto, as pessoas não a procuram somente para fazer chás, mas também pelos rituais que ele/a realiza. Muitos/as curandeiros/as afirmam ter aprendido seus conhecimentos religiosos diretamente de Deus. Este é o elemento sagrado que, em fusão com a expressão cultural (conhecer os chás), faz com que suas práticas sejam uma experiência religiosa. Neste caso, tanto o/a curandeiro/a como as pessoas que o/a procuram estão realizando experiências religiosas: "A experiência religiosa se define, antes de tudo, como uma relação interior com a realidade transcendente, isto é, a partir da experiência do sagrado vivida interiormente...".

Este outro exemplo, observado em uma comunidade rural do interior do Paraná, ilustra o processo em que se dá o cruzamento entre experiência religiosa e outras expressões culturais. Trata-se do ritual usado para curar queimaduras. As palavras do ritual são as seguintes: "Santa Sofia tinha três filhas: uma fiava, outra cozia e a outra caiu no fogo e se queimou. Santa Sofia perguntou à Virgem Maria com que curaria. Virgem Maria respondeu: cuspa três vezes e reze três ave-marias". Ao pronunciar estas palavras, a benzedeira o faz em tom de oração, utiliza um ramo de chá molhado em água fresca e vai fazendo cruz com este ramo; e, ao terminar cada ave-maria, cospe três vezes sobre a queimadura.

Esta história pode muito bem ter acontecido em qualquer família. A saliva, o ramo de chá e a água são refrescantes e auxiliam na cura da queimadura. Isto pode ser aprendido em qualquer espaço em que a medicina popular seja praticada. No entanto, acrescenta-se o elemento sagrado à história e cria-se um rito. A família passa a ser a de Santa Sofia, a medicina natural passa a ser ensinada pela Virgem Maria. Um procedimento de medicina natural passa a ser um ritual religioso e é imputado ao sagrado a cura do mal.

É muito difícil descrever como se dá a experiência religiosa, uma vez que elementos objetivos e subjetivos se fazem presentes no processo da mesma. Otto a descreve como a relação com o sagrado, como um reconhecimento e apelo a seres superiores e transcendentes, como a experiência de uma realidade outra que se manifesta na consciência do crente. Esta experiência pode ser incorporada nos mitos e ritos e preservada por um grupo de especialistas (igrejas).

Na experiência religiosa vivida, um poder estranho, totalmente diferente, insere-se na vida da pessoa. Diante dela, a atitude da pessoa é primeiro de espanto, depois, de fé. A experiência religiosa não consiste apenas de afirmações racionais e de princípios morais; há no divino um aspecto inefável, percebido pelo sentimento como realidade sagrada, como mistério terrível e fascinante: "eu tenho medo dele e ao mesmo tempo ardo por ele" (Sto. Agostinho). A relação com o sagrado desperta no crente múltiplos sentimentos. Estes sentimentos não são produzidos pela consciência, mas são o efeito subjetivo da presença, no eu, de uma realidade diferente do próprio eu: o numinoso.

Segundo Otto, o numinoso é a absoluta potência e alteridade, o majestas, diante dele o crente se sente pó e cinza; é um mistério escondido, extraordinário, percebido pelo sentimento religioso, não pela razão; é um mistério tremendo: desperta sentimentos de temor e tremor, é a ira ou indignação de Javé, é a base para o conceito de justiça divina; é um mistério em que se manifesta uma absoluta energia, vitalidade, paixão; é um mistério fascinante, atrai porque é amor,

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misericórdia, piedade, conforto. A manifestação do numinoso pode despertar sentimentos de maravilha, estupor, surpresa, descontentamento, faz ficar sem palavras; é inquietante. O numinoso é Augustum, impõe respeito racional.

A experiência religiosa é um encontro com este "numinoso", com o "mysterium tremendum". Quando a alma se põe em contato com este, experiência um sentimento de ser criatura. Sentimento este que é a sombra do sentimento de medo, pelo fato de o "numinoso" ser um objeto que está fora da pessoa e dele emanar uma superioridade esmagadora de poder. O "numinoso" é de tal natureza que cativa e emudece a alma humana que o experimenta.

Na experiência religiosa ocorre o seguinte processo: sentimento de terror, terror que a manifestação do sagrado inspira, terror dos deuses: deus é um deus que castiga, vigia para ver seu procedimento, pune; sentimento de devoção: desencadeia um comportamento moral e de compromisso com o que a divindade espera do crente; adoração: o crente fica em êxtase diante da divindade e, como resposta, coloca-se em relação de amor com todas as criaturas. As pessoas, em suas experiências religiosas, podem se situar em qualquer uma destas fazes.

Muitas pessoas remetem as causas dos seus males, tais como: doenças ou qualquer situação difícil a alguma entidade sagrada. Esta prática faz com que as pessoas se sintam liberadas da necessidade de enfrentar suas próprias fragilidades. Se não são elas as responsáveis pelas calamidades que atingem suas vidas, mas a origem do bem e do mal está no sagrado, também será este sagrado que deverá solucionar seus problemas. O "Espírito mau" pode ser a origem do mal, enquanto o "que é de Deus", o "Espírito bom", pode ser a origem do bem e da solução do mal.

É na experiência do sagrado que se pode encontrar sentido para a vida, com seus males e seus bens. Este fator faz com que as pessoas, ao não querer ou não poder enfrentar suas fragilidades e responsabilizar-se para resolvê-Ias, possam também culpar o sagrado pelos seus fracassos. Isto Ihes permite permanecer de cabeça erguida mesmo nas situações mais difíceis.

Através da experiência religiosa, o sagrado se incorpora nas coisas, nas pessoas ou nas situações, tornando-as também sagradas. Uma vez que coisas, pessoas e situações pertencem ao âmbito do sagrado, ninguém é responsável por elas, pois o sagrado foge ao controle e não se deve interferir em seu curso normal. A partir desta concepção, a experiência religiosa pode legitimar a manutenção de uma situação de opressão (é Deus quem quer assim). Mas pode também legitimar a luta por mudanças sociais (esta situação não está conforme a vontade de Deus, portanto deve ser mudada).

BIBLIOGRAFIA

ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre a secularização e a dessecularização. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista & Ciências da Religião, 1985.

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MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?

A concepção de sagrado muitas vezes é traduzida através de mitos; e a forma de relações entre a pessoa e o sagrado normalmente é favorecida pelos diferentes ritos.

Segundo Eliade (1972, p.7-23), o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

O mito fala apenas do que "realmente" ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos primórdios.

Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade, ou simplesmente a "sobrenaturalidade" de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado ou do sobrenatural no mundo. E mais, é em razão da intervenção dos Entes Sobrenaturais que o ser humano é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.

O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades que estão sendo vivenciadas pelas pessoas. O mito cosmogônico é verdadeiro, porque a existência do mundo aí está para comprová-Io; o mito da origem da morte é igualmente verdadeiro, porque é provado pela mortalidade humana, e assim por diante.

Pelo fato de relatar as "gesta" dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes sagrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.

Conhecendo o mito, conhecemos a origem das coisas, chegando-se conseqüentemente a dominá-Ias e a manipulá-Ias à vontade; não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação.

Viver os mitos implica, pois, uma experiência religiosa, pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana. Nessa experiência, deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral, impregnado dos Entes Sobrenaturais. Os mitos revelam que o mundo, as pessoas e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar.

Outra definição interessante de mitos que encontramos é a de Malinowski (1984, p.224-230). Este autor, ao tentar demonstrar a natureza e a função dos mitos nas sociedades primitivas, afirma que o mito é uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz as profundas necessidades religiosas, aspirações morais, as pressões e imperativos de ordem social, e mesmo as exigências práticas.

Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação humana. Mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana. Longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.

BIBLIOGRAFIA DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. S.P.: Paulinas, 1989. ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. S.P.: Martins Fontes, 1992. MALlNOWSKI, Bronislaw Kasper. Argonautas do Pacífico Ocidental. Trad. Anton P. Carr e Ligia Aparecida Cardieri Mendonça. São Paulo: Abril Cultural, 38 ed., 1984. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista, 1985.

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COMPARAÇÃO ENTRE MITO – SÍMBOLO – RITO

mitos símbolos ritos origem realidade humana

realidade social Há uma realidade humana e social cheias de interrogações, injustiças sofrimentos e

angústias; uma forma de dar sentido a elas é deixá-las em contato ou vinculá-las ao sagrado, assim deixa-se de precisar procurar os ‘porques’. Sendo assim, cria-se uma estória relacionada com a origem, ligada com uma entidade sagrada � mitos. Estes são gerados por um lento e amplo processo cultural e quando gestados são legitimados pelas questões colocadas pela própria cultura (presente com valores, sentidos e questões que a sociedade quer para si, isso a legitima). O mito é uma narração que por si só leva sua mensagem, se precisar dar explicações sobre o conteúdo do mito ou ele não está mais explicitando a realidade da sociedade ou a sociedade perdeu vínculo com ele. Quando se estuda os mitos, existem duas perguntas a serem respondidas: ‘qual a realidade social humana presente?’ e ‘qual o recado/mensagem que ele devolve para a sociedade?’

Símbolo vai invocar: Rito - o significado do mito - uma imagem - um sentimento - uma realidade humana e social - pode falar por ele mesmo, exemplo: o presépio evoca a história de Jesus

- através da ação, revive o conteúdo do mito; - atualiza, faz acontecer novamente o evento; - e junto com isso a realidade humana (� atualização � eficácia) e dá sentido a esta realidade

FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS

As pessoas, nas diferentes comunidades, elegem um local privilegiado onde o sagrado se concentra. Pode ser uma pessoa, um lugar, uma árvore, um rio, um objeto ou outro símbolo qualquer que evoque uma experiência religiosa primordial, e onde as pessoas crêem que o sagrado ali permanece. É nesses locais que o sagrado se manifesta, se revela, onde ocorre a hierofania.

A hierofania pode ir desde a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore, até a hierofania suprema para um cristão, que é a encarnação de Deus em Jesus Cristo. As almas, os deuses e os demônios, isto é, os poderes sobrenaturais na maioria das vezes são concebidos desta forma.

A regulação entre estes seres sobrenaturais e as pessoas humanas é que constitui o domínio da ação religiosa, surgindo então o que denominamos como o fenômeno religioso. A palavra fenômeno vem do grego "tà phainàmenon", significa "aquilo que aparece", "aquilo que se mostra". Portanto, fenômeno religioso significa um sagrado que se mostra, que se revela.

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Ao conjunto de concepções do sagrado, dos mitos que explicitam como se dá a presença do sagrado no mundo e dos rituais criados para favorecer as relações das pessoas com o sagrado é que se denomina "religião" Muitas pessoas: benzedeiras, pajés, curandeiros, pais e mães de santo, pregadores populares, puxadores de rezas etc. acreditam ser eles próprios os objetos da hierofania. A compreensão de que Deus se serve deles para se manifestar Ihes dá a certeza de legitimidade e de exclusividade ao realizar sua missão.

Uma vez entendendo-se como objetos da hierofania, as pessoas passam a desenvolver formas de conduzir outras pessoas a fazer parte de seu sistema de crenças. Para isto, criam uma série de gestos, palavras e objetos sagrados, ou seja, criam ritos que possam favorecer a experiência religiosa das outras pessoas e levá-Ias a alcançar as graças esperadas.

Muitas vezes estas pessoas que se acreditam como objetos da hierofania e criam ritos para favorecer a experiência religiosa de outras pessoas acabam por criar novas religiões. Weber denomina estas pessoas como carismáticas, ou seja, pessoa dotada de carisma. Segundo Weber (1991, 158-167), carisma se refere a qualidade pessoal, considerada extracotidiana, em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, poderes extracotidianos específicos, ou então se a toma como enviada de Deus, como exemplar, portanto, como líder. O reconhecimento de uma pessoa como carismática pode resultar em uma entrega crente e inteiramente pessoal, nascida do entusiasmo ou da miséria e esperança da pessoa que o reconhece como tal.

Weber (1991, 158-167) afirma ainda que, em sua forma genuína, a relação entre a pessoa carismática e seus seguidores é de caráter especificamente extracotidiano. É uma relação estritamente pessoal, ligada à validade carismática de determinadas qualidades pessoais do carismático e à prova destas. Quando esta relação assume o caráter de uma relação permanente, formando uma comunidade de correligionários, é necessária uma modificação substancial: institucionaliza-se o carisma.

A institucionalização do carisma se torna necessária, uma vez que há um interesse ideal e material dos seguidores, em continuar a existência da relação. A continuidade do exercício do carisma exige que este seja colocado sobre fundamentos cotidianos duradouros: organizado juridicamente e economicamente.

Esta necessidade se torna mais nítida quando desaparece a pessoa portadora do carisma e surge a necessidade da sucessão. O resultado da rotinização do carisma pode desembocar em instituições de tipo igrejas. Ou seja, os discípulos do carismático institucionalizam o carisma: criam um corpo doutrinal, práticas cultuais e uma organização sacerdotal, isto é, uma igreja.

A doutrina se distingue do mito por ser mais orgânica, argumentativa e racional, além de estar voltada para a interpretação da realidade. A passagem de mito à doutrina segue vários estágios: coletas dos mitos espalhados num único ciclo, formação de ciclos de mitos homogêneos, consolidação de um verdadeiro e próprio corpo doutrinal: a teologia.

Este discurso racional sobre o divino, a teologia, é guardada em livros sagrados. Os sacerdotes têm a função tanto de compor o discurso racional sobre a divindade como a de guardiões da tradição teológica. Os textos sagrados passam por um processo de interpretação e comentários, a fim de se tornarem mais compreensíveis mesmo nas mudanças de condições históricas.

Este processo de interpretações e comentários dos textos sagrados é realizado por diversas escolas teológicas, às vezes em forte conflito devido à preferência dada a uma ou outra das três questões principais da teologia:

Deus, o mundo e o homem. Este fator muitas vezes gera rupturas e a formação de outras igrejas.

Quanto as formas organizadas de ação na sociedade, as organizações religiosas se compõem em: Igreja, seita e misticismo.

As igrejas se caracterizam mais por uma atitude de tolerância para com as estruturas do mundo que são "conseqüências do pecado", por tentativas de remediá-Ias, sem, contudo, deixar de rejeitá-Ias intimamente. As igrejas tendem à universalidade, isto é, ter a mesma extensão da sociedade; acolhem todas as pessoas e Ihes distribui os meios da graça. Esta função integradora das igrejas exige que estas mantenham um compromisso com as diversas formas de

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comportamento existentes numa dada sociedade e a aceitar os principais elementos presentes na estrutura social existentes. As igrejas caracterizam-se ainda por uma estruturação hierárquica interna.

As seitas apresentam-se como grupos que adotam atitudes de intransigências para com o "mundo", isto é, rejeitam comportamentos e instituições das sociedades às quais pertencem, julgando-os corruptos. Os membros das seitas se propõem à obediência literal dos textos sagrados, desprezando as adaptações aceitas pelas igrejas. Por não aceitarem compromissos com o mundo, chegam a se isolarem da sociedade, permanecendo na expectativa do iminente reino de Deus. Os membros da seita visam à perfeição individual e ao ascetismo. A seita é hostil ou indiferente ao Estado e contrária à ordem eclesiástica.

O Misticismo representa o polo da religiosidade de tipo individual; designa a procura de uma experiência religiosa de tipo íntimo que acontece freqüentemente em grupos bem pequenos, os quais se distanciam abertamente, bem mais que a seita, da tradição religiosa eclesial. O misticismo é a tradição individual do protesto contra a redução da experiência religiosa a formalismos nos ritos, a racionalismos nas doutrinas, a burocracias na organização eclesial.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sergio Miceli et aI. São Paulo: Perspectiva, 1974. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1989. ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre a secularização e a dessecularização. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista & Ciências da Religião, 1985. WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Barbosa. Brasilia: Universidade de Brasília, 1991.

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RREELLIIGGIIÃÃOO:: CCAAMMIINNHHOO PPEELLAA HHIISSTTÓÓRRIIAA SOBREVIVÊNCIA E SAGRADO NAS SOCIEDADES TRIBAIS

Sociedades tribais: organização do trabalho (caça, pesca e coleta). Esta forma de produção exige um rígido controle do equilíbrio entre a densidade demográfica e a extensão de território disponível para extrair o alimento necessário à sobrevivência.

O principal meio de produção é a florestas, as águas e a terra. Tem como base um sistema de trocas regulado pelas relações de parentesco.

Organização social em famílias ou aldeias e clãs. O clã representa o espaço social, estruturado por um sistema de parentesco, que constitui a entidade social de referência à qual se identificam os indivíduos ou grupos.

É no nível do clã que se situa a instância da autoridade, que gera o uso do principal meio de produção (a terra), que resolve os conflitos importantes e ordena as atividades comuns ao conjunto dos grupos familiares. É no seio dos clãs que se dão os intercâmbios de mulheres.

As extensas famílias que compõem o clã possuem grande autonomia em relação à organização da vida material, de tal forma que se constituem em unidades auto-suficientes tanto no plano da organização da produção como no plano da distribuição do produto social.

As sociedades tribais são os primeiros sistemas em que aparecem as conotações religiosas como explicadoras e legitimadoras das relações sociais. As significações religiosas são de dois tipos: as que se elaboram em torno dos fenômenos da natureza e as ligadas às expressões sociais do grupo.

As representações religiosas elaboradas em torno das relações da pessoa humana com a natureza apresentam uma analogia. As forças da natureza são personificadas nos seres, tornando-os bons ou maus ou até mesmo ambivalentes.

Alguns clãs do sul da índia representavam as forças da natureza sob a forma de uma multidão de espíritos organizados por um chefe e dotados de uma vontade e uma inteligência superiores às das pessoas humanas.

Estes espíritos, ao seu bel-prazer, também eram eventualmente capazes de fazer o mal. Tratava-se sempre de espíritos ambivalentes, que podiam ser bons ou maus. O bem não era o contrário do mal, mas apenas sua ausência.

Desse modo a natureza apresentava-se como uma realidade boa em si mesma, que era perturbada por esses gênios na intenção de fazer o mal, não somente aos humanos, mas também aos animais e vegetais e a tudo aquilo que tem vida.

Por este motivo as pessoas procuravam se proteger de sua maldade, desenvolvendo práticas que visavam agradar ou afastar os perturbadores. Algumas vezes ofereciam alimentos a tais espíritos ou então, os criadores de gado imolavam uma vítima, na esperança de poupar outras.

Quando se tratava de preservar vidas humanas (em casos de doenças) intervinha no ritual um mediador capaz de entender e interpretar os sinais pelos quais a divindade (desta vez era a divindade e não os espíritos) comunicava o tratamento a ser seguido.

As religiões dos povos tribalistas são de caráter animista. Não procuram desvendar a relação entre causa e efeito que está na base da ordem das coisas.

Suas construções simbólicas têm a função de agir simplesmente ao nível dos efeitos. Neste sentido, o animismo corresponde às necessidades de sobrevivência imediata dos indivíduos e dos grupos. Trata-se de uma função de proteção desempenhada pela religião.

A vontade da pessoa humana pode influenciar as forças da natureza por meio de práticas rituais de natureza mágica. O objetivo destas práticas é o de neutralizar as forças adversas agindo direta e eficazmente sobre elas, o que geralmente exige a intervenção de um agente religioso, o feiticeiro, como mediador.

Atribuindo um sentido à natureza, a construção religiosa reduz a contradição que o grupo experimenta em sua vida cotidiana, dotando o próprio grupo de um meio para conjurar os efeitos de fenômenos cujas causas objetivas ele não domina. Assim, a religião preenche a função social de proteção e de reguladora das relações sociais de parentesco.

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As representações religiosas ligadas às expressões sociais do grupo têm como base o totem. O totem é um significante que remete a vários significados: representa o grupo enquanto unidade social; e, sendo o lugar de residência do divino, torna-se o meio através do qual é transmitida a vida cósmica ao grupo e a cada um de seus membros, na medida em que a ele se associam.

Como o totem é um elemento natural (planta ou animal), também constitui o ponto de encontro entre a ordem transcendental e a ordem da natureza: A vida (transcendental) permanece inatingível, e é representada pelo deus sem nome, na Tanzânia, ou pela floresta, pelos pigmeus. Mas encontrava em Cheyon (um totem) uma mediação eficaz, já que este se encontrava na fonte da vida concreta. O medium na transmissão da vida era a árvore totem, pois a divindade nela habitava.

Quando o clã é sedentário, o totem constitui também o lugar em que se articulam o passado e o presente: a presença dos antepassados do clã é simbolizada em torno do totem. É à unidade do clã que é concedido o sentido reproduzido em todas as linhagens pela mediação das práticas religiosas.

O intercâmbio de mulheres, prática necessária à sobrevivência das tribos, criava situações muito complicadas, uma vez que estes intercâmbios envolviam o acesso aos meios de produção ou a divisão destes. A unidade do clã, mesmo com o intercâmbio de mulheres com outros clãs, é indispensável para a sobrevivência do grupo.

É precisamente para superar as contradições criadas por ocasião dos intercâmbios de mulheres que intervém a produção simbólica. Esta construção se dá através do conceito de vida.

No caso dos Kuravas, da índia, a construção simbólica fazia o divino aparecer como catalisador da vida cósmica. Esta vida era transmitida pela mediação de um símbolo, o totem, que era o ponto de encontro entre o cosmos, a ordem social e a natureza.

É o conjunto do clã que recebe a vida; cada grupo familiar ou cada indivíduo só participa desse dom na medida em que pertença a essa totalidade.

Há, portanto, uma inter-relação entre a necessidade de sobrevivência dos clãs e a necessidade de sobrevivência de cada família ou indivíduo. Se um deles perecer, os outros também não sobreviverão.

Pode-se perceber, assim, a incidência do modo de organização social e a predominância do sistema de parentesco sobre a produção simbólica. A organização simbólica, por sua vez, também desempenha a função de acentuar o caráter harmonizador das relações sociais, desenvolvendo nos grupos familiares e nos indivíduos o sentimento de pertença à totalidade do clã.

Ela também expressa valores que correspondem à necessidade de sobrevivência do grupo (fecundidade e solidariedade). O sistema de crenças ao mesmo tempo em que vem criar e reforçar a unidade do grupo, também é reforçado por ela.

BIBLIOGRAFIA

HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1982.

Sugestão de atividade complementar Leia individualmente o texto referente a esta aula e responda por escrito: 1. Quais eram as características das sociedades tribais? 2. Quais eram os principais problemas que enfrentavam e como os resolviam? Em grupo, escolha uma das

seguintes dificuldades enfrentadas pelas sociedades tribais e faça uma encenação sobre a forma como resolviam este problema com o auxílio da religião (máximo 4 minutos para cada grupo):

a) organização de uma saída para caçar, pescar ou coletar alimentos; b) escassez de alimentos; c) sobra de uns alimentos e falta de outros; d) desavenças no clã; e) clã muito grande; f) necessidades de arranjos matrimoniais; g) doença em um membro do clã.

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NATUREZA E RELIGIÃO NO FEUDALISMO

O feudalismo é semelhante ao modo de produção tributário. Isto porque é ainda o poder político que organiza a economia e se apropria de um tributo em espécie e em serviço. Estas taxas são fixadas sobre a produção dos grupos de base.

No entanto, diferencia-se também do sistema tributário. A diferença se dá pelo fato de que a arrecadação do tributo apresenta-se como um direito, uma vez que os meios de produção pertencem às instâncias de poder (rei ou senhor feudal) e não mais às bases produtoras (camponeses).

O senhor é o proprietário do meio de produção (terra). O produtor possui os instrumentos de trabalho e o direito de uso dos meios de produção, mas que deve prestar serviços ao senhor.

As relações trabalhistas não têm mais como centro as aldeias, mas os indivíduos: senhor/camponês. No entanto, as aldeias continuam sendo quem organiza o trabalho, constituindo grupos nos quais se forjam as solidariedades.

O poder político-econômico não é exercido diretamente do rei ou senhor feudal para seus súditos. Existe uma hierarquia de delegação de poderes. O rei ou senhor feudal delega a função de oferecer favores ou punir seus dependentes a uma escala de intermediários. Esta escala vai desde o chefe do grande feudo, passa pelos chefes das federações de vilas, aos chefes de clãs, etc.

No feudalismo existe uma contradição que não encontra sua justificação ao nível da produção material do grupo; ou seja, uma vez que o grupo produz o necessário para sua sobrevivência sem o auxílio do senhor feudal, nada justifica que tenha a obrigação de repassar todo excedente para o dono do feudo.

Nas sociedades feudais, a cobrança do tributo não é justificada pela contrapartida de uma proteção, como nas sociedades tributárias. Assim, é preciso uma poderosa produção ideológica para que os servos o admitam como natural e necessário à sobrevivência da ordem social global.

Para conseguir justificativa para seu funcionamento, a sociedade feudal buscou a religião como um de seus apoios ideológicos. Os dirigentes buscavam a explicação e legitimação de sua própria excelência, enquanto os dominados encontravam razões para aceitar sua condição, na esperança de uma compensação de natureza pós-histórica.

Uma das formas de legitimar religiosamente o sistema feudal foi criar a idéia de panteão de deuses, organizados hierarquicamente. Neste sistema, a divindade principal normalmente tinha o poder de conceder favores ou fornecer castigos a seus fiéis. Este poder da divindade principal coincidia com os poderes que o rei ou o senhor feudal detinham sobre seus subordinados.

No caso de feudalismo Kandyano, do século XVII, no Sri Lanka, houve a formação de um sincretismo entre as religiões budista e hinduísta. O panteão criado neste sincretismo apresentava uma verdadeira pirâmide divina. No ápice da pirâmide estava Buda, considerado como ser sobrenatural, do qual não se podia esperar favores espirituais e materiais; mas abaixo de Buda podia-se encontrar as divindades.

Em primeiro lugar, Sakra, protetor do universo budista (a Sansana), que delega seus poderes a Saman. Este, juntamente com Vichnu, Skandha, Nata e Pattini, fazem parte do Hatara Varan Deiyo (panteão das divindades nacionais), encarregado de defender a fé e proteger o reino. Estes são deuses no sentido convencional do termo: podem conceder favores e punir pecados. Abaixo dessas divindades nacionais, encontram-se as divindades locais, correspondentes aos Patus (grupos de aldeias) ou às aldeias (que são so Bandara Deiyo ou deuses senhores) que protegem as comunidades locais.

No nível mais baixo da escala colocam-se os demônios, os pretas, espíritos maus dos ancestrais pecadores, punidos por causa do seu mau Karma. Eles são as causas de todos os males, considerados como punições não racionais. Entretanto, eles necessitam dos homens para serem resgatados. Essa hierarquia celeste é homóloga à hierarquia existente ao nível sócio-político, pois reproduz a estrutura do poder. As divindades do templo são representadas em uma posição idêntica àquelas que os homens são obrigados a guardar nas cerimônias de juramento aos reis ou aos senhores. O status da divindade corresponde ao seu nível moral, atingido pela acumulação de bens espirituais (seus méritos, adquiridos no curso de cada vida temporal).

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Se a divindade obtém seu status por seus méritos, subentende-se que os reis ou senhores feudais também. Por este motivo, assim como as divindades merecem respeito, consideração e oferendas, também os reis e senhores feudais merecem, pois fizeram o mesmo caminho que a divindade.

Desta forma, o rei ou senhor feudal continua sendo um homem, mas um homem especial, que depende diretamente das divindades protetoras: os reis são vistos como deuses e os deuses são vistos como reis.

Esta escala "moral" inclui não apenas as divindades, mas também o conjunto dos homens. Cada qual ocupa uma posição nesse espaço temporal-espiritual em função de seu Karma em uma vida anterior.

Nos países europeus, a legitimação do sistema feudal se deu via cristianismo. A lógica teológica criada no cristianismo não difere muito da fornecida pelo sincretismo budista e hinduísta. No período feudal europeu foi estabelecido a hierarquia celeste cristã que conhecemos até hoje.

Na hierarquia celeste cristã, acima de todos está o grande Deus, formado por três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Estas três pessoas compõem uma única divindade que é, ao mesmo tempo, onipresente, onisciente e onipotente (tal como o rei ou o senhor feudal). Esta divindade tem o poder tanto de conceder favores espirituais e materiais como de punir os pecados da humanidade.

Embora não havendo divindades menores na teologia cristã, há no entanto, no âmbito do sagrado, entidades menores (anjos e santos). Estas têm a função de proteger a humanidade e interceder junto à divindade maior, visando obter seus favores ou acalmá-Ia para que não venha a punir seus fiéis.

Além dessas entidades intermediárias, existem outras entidades muito mais próximas das pessoas comuns, com as mesmas funções dos anjos e santos. Estas entidades próximas, por sua vez, também organizam-se de forma hierárquica. São os diferentes representantes da divindade aqui na terra, atuando concretamente na instituição Igreja: Papa, Cardeais, Arcebispos, Bispos, Padres, Religiosos/as (monges, freiras).

Por último, nesta hierarquia, encontram-se os simples mortais, que dependem da hierarquia divina para "ir bem" tanto nesta vida como em um tempo vindouro (pós-morte). Para conseguir estas graças, devem servir a todos os outros que se colocam acima deles na hierarquia divina.

Embora não haja no cristianismo a noção de Karma, há a noção de pecado/castigo. Se estou em uma posição inferior na sociedade é porque cometi (ou alguém de minha família cometeu) algum ato que desagradou a Deus, por isto estou sendo punido.

BIBLIOGRAFIA

HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo: Paulinas, 1982.

Sugestão de atividade complementar :Veja a letra do hino a seguir. 1. Compare a proposta de relações sociais contida nele com as relações sociais acima descrita. 2. Compare a concepção de religião presente no hino com a concepção de religião acima descrita.

Utopia 1-Quando o dia da paz renascer, quando o Sol da esperança brilhar, eu vou cantar... Quando o povo nas ruas sorrir e a roseira de novo florir, eu vou cantar... / Quando as cercas caírem no chão, Quando as massas se encherem de pão, eu vou cantar, Quando os muros que cercam os jardins forem destruidos, Então os jasmins vão perfumar... / Vai ser tão bonito se ouvir a canção Cantada de novo

No olhar do homem a certeza do irmão, Reinado do povo (bis) 2-Quando as armas da destruição, destruídas em cada nação, eu vou sonhar. E o decreto que encerra a opressão, assinado só no coração, vai triunfar / Quando a voz da verdade se ouvir, / E a mentira não mais existir, será enfim. / Tempo novo de eterna justiça, sem mais ódio, nem sangue, cobiça, Vai ser assim.

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A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE

Escrito por Cláudia Sales de Alcântara[1]

[EXTRATO] [...] III – A MODERNIDADE E A SECULARIZAÇÃO DA SOC IEDADE A religião institucionalizada não conseguiu tornar a sociedade mais justa, livre e igualitária e nem conseguiu responder às questões existenciais da humanidade, fazendo com que o ser humano, insatisfeito com as imposições feitas pela igreja, buscasse encontrar explicações concretas para o que antes era explicado de forma abstrata. O aumento do comércio e, por conseguinte, o surgimento do capitalismo, o descobrimento de novos “mundos”, o aparecimento da imprensa (século XV) e de novas tecnologias, abalaram de vez o sistema feudal. A fragmentada sociedade feudal da Idade Média transforma-se então, em uma sociedade dominada, progressivamente, por instituições políticas centralizadas, com uma economia urbana e mercantil. Estas novas mudanças foram aos poucos modificando a mentalidade teocêntrica da humanidade; a célebre frase de René Descartes, "Cogito, ergo sum" (Penso, logo existo), resume o resultado dessas transformações. O Renascimento (século XIV) e o Iluminismo (século XVIII), a Reforma Protestante (século XVI) e a Revolução Industrial (século XVIII), consolidaram de vez o novo sistema que substituiria o antigo regime feudal: o Capitalismo. No campo do pensamento, o mito e a religião foram aos poucos substituídos pelo mito do progresso científico e tecnológico (positivismo de Comte). A ascensão da burguesia e de sua ideologia (Iluminismo) levou a humanidade a utilizar-se da razão não somente para descobrir o mundo, mas também, para entenderem a si mesmos no contexto da sociedade; surgia uma cultura laica, ou seja, sem a interferência da igreja. O homem agora voltaria a ser a medida de todas as coisas. Estas concepções, contudo, estavam carregadas de esperança, com a responsabilidade de propor novas cosmovisões em substituição as antigas representações religiosas.

A desmistificação dos dogmas pelo racionalismo, proporcionando a possibilidade de uma interpretação pessoal dos textos sagrados, e a necessidade de uma nova moral religiosa que atendesse aos interesses econômicos da burguesia em ascensão (já que a Igreja Católica condenava a usura, a avareza, a cobiça, e defendia a doutrina do "justo preço", o que contrariava o ideal burguês de obtenção do maior lucro possível), possibilitou a chamada Reforma Protestante.

A ética protestante, ao contrário da católica, valorizava a competitividade e a busca do lucro, ajustando-se, portanto, aos ideais burgueses daquele momento histórico em que se desenvolvia o capitalismo, como afirma Max Weber:

"Mas o que era ainda mais importante: a avaliação religiosa do infatigável, constante e sistemático labor vocacional secular, como o mais alto instrumento de ascese, e ao mesmo tempo, como o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem, deve ter sido presumivelmente a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida que aqui apontamos como espírito do capitalismo". (WEBER, 1989, p. 123).

Por este motivo, aos poucos, a Igreja Católica Romana precisou rever suas concepções e

adequar-se a essa nova estrutura social, política e econômica com uma nova mentalidade, cada vez mais distante da medieval (Contra Reforma). Estas mudanças caracterizaram-se por um movimento de reafirmação dos princípios da doutrina e da estrutura da Igreja, corrigindo, desde o seio da Igreja, as fontes de descontentamento que alimentavam a Reforma Protestante. As instituições religiosas, contudo, perdem o poder de dar “as cartas” no mundo moderno; já não possuem a hegemonia da cultura, do Estado e das instâncias reguladoras do cotidiano. Nesta nova realidade, não era mais a religião que dava sentido ordenador da realidade social, com suas mediações, mas a própria interdependência de escolha racional centrada no ser humano. Deus estava agora presente na natureza, portanto no próprio homem, que poderia agora descobri-lo através da razão. Para encontrar Deus, bastaria levar uma vida piedosa e virtuosa (moral kantiana); a Igreja torna-se dispensável.

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A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA EM MEIO À PÓS-MODERNIDADE

Mircea Eliade em seu livro, O sagrado e o Profano, a essência das religiões, afirma que “seja qual for o grau de dessacralização que o mundo tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso” (Mircea Eliade, 2001, p. 27).

A moderna humanidade que passou por um grande processo de dessacralização e secularização, não conseguiu proporcionar um mundo mais justo através da razão. O avanço teológico e a ciência, em vez de proporcionarem a solução de todos os males da sociedade, mostraram-se incapazes de superar as contradições da convivência social. O desenvolvimento do capitalismo “selvagem”, as duas grandes guerras mundiais, a utilização da bomba atômica, os riscos da industrialização para a ecologia, entre outros, mostrou a ineficácia da razão como “salvadora da pátria”, fez-se então necessário um retorno aos antigos referenciais que tinham sido ignorados na modernidade; é neste contexto que nasce o que chamamos de pós-modernismo, como afirma Eduardo Subirats:

“Em torno de todo jargão do Pós-moderno desenvolvem-se atitudes culturais de signo regressivo. Assim se passa com o nacionalismo que se ampara por detrás dos historicismos nostálgicos ou dos diferentes regionalismos; assim, a busca de valores substanciais, de uma ordem ética ou estética transcendente, através da reivindicação do tradicional, do retorno a formas de pensamento religioso e da defesa de uma autonomia de princípios morais também de signo transcendente”. (SUBIRATS, 1991)

As igrejas tinham encastelado Deus a tal ponto que ele se tornou impotente diante das necessidades do mundo. Este período é então caracterizado pelo aumento da insegurança (pois todas as certezas em que estava embasada a sociedade “caíram por terra”), do relativismo de qualquer conhecimento (negação de verdades universais da racionalidade), da globalização e da retomada do interesse pelas concepções religiosas, como uma tentativa de “achar um sentido do mundo acessível à compreensão humana” (Max Weber 1982, p. 625). O retorno da religião (sentimento religioso) neste aspecto pode ser visto como um fenômeno periódico que se utiliza à religião em função de exigências de natureza social, como afirma Franco Crespi:

“De fato, a religião se apresenta como uma forma de mediação especifica, que leva em conta o caráter ilimitado do desejo humano e explica o mundo finito, colocando-o em relação com o horizonte infinito de um além-mundo, que assim se torna parte constitutiva da própria vida terrena”. (CRESPI, 1999, p. 15).

Embora as instituições religiosas, neste momento, continuassem não possuindo poder de regular o universo cultural, social e pessoal, os indivíduos continuaram a viver dimensões do sagrado de formas bem particulares (subjetividade), podendo ser estas dimensões observadas nas atitudes políticas, esportivas e culturais, ganhando assim uma nova dinâmica fora das Igrejas, tornando-se mais presente do que nunca na sociedade contemporânea ( nas Ong’s, manifestações culturais, associações comunitárias, no Greenpeace, nos clubes esportivos, etc.). Esta dimensão do sagrado é fortemente caracterizada por um retorno ao sentimento religioso (mostrado na primeira parte deste artigo), ou seja, um retorno às experiências emocionais, mesmo que o individuo não seja consciente do fato, como podemos observar na colocação de Mircea Eliade:

“Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente diferente dos outros: a paisagem natal ou sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude (...) são os “lugares sagrados” do seu universo privado (...)” (Mircea Eliade, 2001, p. 28).

Com o enfraquecimento da religião institucional, já pré-anunciada pelos teólogos da morte de Deus, o ser humano sente-se agora livre para buscar, de forma autônoma, seu próprio universo de significações em um mundo fragmentado (sincretismo). “Assim, o pluralismo religioso torna-se, simultaneamente, fator e resultado da secularização” (PIERUCCI, 1997, p. 115), abrindo caminho para a concorrência entre diversas instituições religiosas que se lançam em uma competitividade, utilizando-se das mesmas operações da economia de mercado capitalista e fazendo com que a religião, que no período medieval moldava o mundo, seja moldada pelo “gosto do freguês”. O que resta na sociedade pós-modernista é a presença simultânea de várias instituições religiosas (cristãs ou não), convivendo entre si, não mais influenciando o todo social, pois os

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seres humanos não se identificam mais com discursos universais, mas atuando de maneira coadjuvante, influindo, ainda que em menor escala, os fundamentos da sociedade.

São nesses momentos de “morte” institucional que a experiência religiosa ganha novos sabores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como foi dito, a religião continua a existir na pós-modernidade nos ritos, crenças e atividades, grupos e projetos não explicitamente religiosos. As tradições continuam atuando conforme a subjetividade de cada indivíduo. A religião passa a existir na intimidade, produto da construção pessoal subjetiva e autônoma que não necessita prestar contas a uma instituição. É o fim da religião totalizante da sociedade, contudo, não significa o fim da religião na particularidade de cada indivíduo. BIBLIOGRAFIA CRESPI, Franco. A Experiência Religiosa na Pós-Modernidade. Bauru, SP: EDUSC, 1999. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PIERUCCI, Antônio Flávio. Reencantamento e dessecularização. A propósito do auto-engano em sociologia da religião. In: Novos Estudos Cebrap, n. 49, nov., 1997. SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. 4. ed. São Paulo: Nobel, 1991. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1989. NOTAS [1] Arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Federal do Ceará – UFC, teologa pelo Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos – ICEC/ Fortaleza e mestranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. [10] A secularização de uma sociedade, em seu sentido radical, pode ser entendida como um processo pelo qual a religião deixa de ser a forma de integração da cultura, particularizando-se. Ela faz com que tal sociedade já não esteja mais determinada pela religião, mas restrita a um âmbito particularíssimo do ser humano. [11] René Descartes (1596 - 1650), também conhecido como Cartesius, foi um filósofo, um físico e matemático francês. Notabilizou-se sobre tudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do Cálculo moderno. [12] A filosofia positiva de Comte nega que a explicação dos fenômenos naturais, assim como sociais, provenha de um só princípio. A visão positiva dos factos abandona a consideração das causas dos fenômenos (Deus ou natureza) e torna-se pesquisa de suas leis, vistas como relações abstratas e constantes entre fenômenos observáveis. [13] Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798 - 1857) foi um filósofo francês e o pai da Sociologia. [14] Ele foi, juntamente com Karl Marx e Emile Durkheim, um dos modernos fundadores da Sociologia. É conhecido, sobretudo pelo seu trabalho sobre a Sociologia da religião. Escreveu a Ética protestante e o espírito do Capitalismo, nesse seu trabalho ele tinha a intenção de examinar as implicações das orientações religiosas na conduta econômica dos homens, procurando avaliar a contribuição da ética protestante, em especial o calvinismo, na promoção do moderno sistema econômico. [15] A dessacralização do mundo é uma característica fundamental da Modernidade, já que impulsiona o processo de secularização. [16] Nos anos 60 surgiu nos Estados Unidos uma formulação teológica conhecida exatamente como “teologia da morte de Deus”. A frase “Deus está morto”, aponta para uma constatação, a saber, a morte de valores absolutos na sociedade. [17] Sincretismo - Palavra originada do grego; significa sistema que consiste em conciliar os princípios de várias doutrinas ou filosofias. http://www.ftl.org.br/index.php?view=article&catid=35%3Aartigos-online&id=81%3Aa-instituicao-religiosa-na-posmodernidade&option=com_content&Itemid=75#_ftn14 acessado em 16 set 2010

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RELIGIÃO E CONSUMISMO: OS DEUSES NA VITRINE DA PÓS-MODERNIDADE

http://www.eternoretorno.com/2008/10/14/religiao-e-consumismo-os-deuses-nas-vitrines-da-pos-modernidade/ acessado 16 set10

No livro “Mal-estar na pós-modernidade“, Zygmunt Bauman, sociólogo polonês contemporâneo, irá discorrer sobre vários aspectos que marcam o período atual que vivemos, chamado por ele de “pós-modernidade“. Vale lembrar que este termo não é um consenso para designar a contemporaneidade, embora seja o mais usual. Como ponto de partida, Bauman faz uma releitura da clássica obra de Freud, “O mal-estar na civilização“. Freud, analisando o surgimento das primeiras civilizações, irá dizer que o homem trocou um quinhão de liberdade por um quinhão de segurança; já Bauman, olhando para o homem pós-moderno irá dizer que

este trocou um quinhão da segurança por um quinhão de felicidade. “Quinhão” aqui é uma forma de dizer, pois a busca pela felicidade não é quantificável, é uma profusa

característica marcante das pessoas nesse atual momento. Não que antes as pessoas não buscassem a felicidade, mas é que a felicidade inventada pelo modernismo, isto é, uma espécie de panacéia, torna-se peremptoriamente uma necessidade que deve ser buscada a qualquer custo por homens e mulheres pós-modernos. A dinâmica constante desse movimento se dá pelo fato da felicidade não ter um ponto de chegada, pelo contrário, a chegada parece guarnecer o cheiro do horror. Dessarte, o prazer é justamente a incessante e infrutífera busca: a ordem é obter as benesses da felicidade, mas marcada com a eterna – pelo menos no plano terreno – sensação de insatisfação, um dos principais espectros do pós-modernismo.

Consumismo e religião na pós-modernidade

Entre as várias faces da sociedade, analisadas por Bauman, que vêm passando por transformações, tais como a arte, a política, a cultura, entre outras, que perpassam sobretudo as relações humanas, também encontramos a religião. As novas organizações eclesiásticas também passam por reformulações, ou pelo menos a transformação de dogmas em eufemismos. Seus “clientes”, agora, são norteados pela necessidade de felicidade que implica em uma constante busca de “autos” realizações em vários dos aspectos “espirituais”, é possível verificar uma interessante semelhança entre o consumismo e a religião nas análises de Bauman.

Homens e mulheres pós-modernos, marcados pela crise da identidade, não precisam mais das promessas celestiais nem se importam com os castigos do fogo do inferno no mundo do além, estes já estão no plano concreto, tangível pelas capacidades de consumo de cada um. Porém, a busca pela felicidade duelando com as crises de identidade implicam em um rol de produtos de consumo para que os homens possam “curar suas personalidades”, de modo a estarem altamente capazes de beliscar as promessas de encanto que o capital oferece. Bauman nos diz que:

“A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de “auto-afirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”.

Nesse sentido, homens e mulheres pós-modernos não precisam mais de padres, pastores e sacerdotes tradicionais que falam das fraquezas do homem, eles já estão fartos de suas fraquezas e precisam de “auto-afirmação”, e mais do que isso, precisam de uma “receita” breve, rápida, curta e para o agora de como podem resolver seus males e conseguir suas satisfações. (Nesse ponto quero fazer uma nota irresistível: a difusão dos blogs também se deve aos escatológicos títulos que o internauta deve bem conhecer, tais como “Saiba como…”, “Tudo sobre…”, “Os 10 melhores/maiores…”, “Descubra aqui como…”, essas breves notas despontam acenando aos desesperados que buscam consolo na leve virtualidade)

A efígie fluida do homem pós-moderno, isto é, a busca incessante pelo acúmulo de sensações de prazer, que se produz na teia das incertezas onde o paraíso e o inferno se entrelaçam no cotidiano, cria condições para uma procura crescente por “mestres”, “gurus”, “autoridades”, ou “deuses humanos” capazes de “vender” produtos que possam intensificar as sensações de prazer. Isso não implica que as “casas divinas” fechem suas portas, mas em novas diretrizes de adaptação a essa ordem do consumo para que não se tornem obsoletas. As instituições religiosas são, antes de tudo, empresas que se confrontam com as leis – agora humanas – da economia liberal na difícil competição do mercado, competem por almas potenciais que, em troca do “conselho” para se dar bem na trama social, oferecem o que podem no momento.

A religião não desaparece do cenário, pelo contrário, intensifica-se em múltiplas religiões. Multiplicam-se os sabores da experiência com algum plano espiritual que deixa de falar o tempo todo das fraquezas humanas e passa a fomentar um indivíduo capaz de vencer os dissabores sociais. Os discursos da penitência e das autoflagelações estão fora de moda, até o Vaticano tratou de escamotear seus discursos, e já apresenta em seu rol, alusões à juventude e à diversidade de crenças e culturas. Os fiéis exigem líderes capazes de fornecer pequenos – e fáceis – conselhos. Procuram antes de tudo um “guia espiritual” capaz de satisfazer questões que a vida cotidiana vai sufocando. O sujeito busca sua sobrevivência em um emprego, mantém uma rotina mais ou menos fixa: acordar, ir ao trabalho, voltar para

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casa, bater continência a rede Globo e dormir, por vezes um pequeno lazer no fim de semana antes de iniciar a repetição; só sobram então, questões que vão remoendo em angústias e, da mesma forma que se compra um medicamento para cefaléia, homens e mulheres pós-modernos saem em busca de “consumir” especialistas espirituais que tenham a oferecer, não mais um consolo espiritual, mas uma espécie de “produto” espiritual que possibilitará uma visão mais clara e segura para que os frutos da felicidade sejam colhidos em seu melhor momento.

Percebe-se, dentro desse viés de Bauman, uma ordem do consumo norteando as religiões. As religiões perdem aquela autoridade quanto a uma ordem fundamental que mais ou menos direcionavam a vida dos indivíduos como o foi na Idade Média; céu e inferno não deixam de prevalecer enquanto dogmas, mas a necessidade é falar menos dos horrores como forma de manutenção; devem-se exaltar, agora, as qualidades humanas, ou angariar elementos, mesmo que sejam de “outro mundo”, que possibilitem a “performance” espiritual, como se fosse o “essencial” que falta para dar o sentido de completude humana.

Por outro lado, aquelas “experiências máximas” que a religião tradicional prometia, isto é, a oferenda de uma vida eterna paradisíaca além da possibilidade de superação das abjeções da vida terrena, sai de cena dos palcos sagrados e vão desfilar nas alegorias privadas das empresas de todo e qualquer tipo de produto material. A “experiência completa”, o êxtase intenso, é agora deslocado para o plano da mercadoria; um carro zero de luxo é o suficiente para superar qualquer promessa obsoleta de vida eterna. A vida eterna permanece, é claro, nas idiossincrasias de cada um, mas deixa de ser uma questão elementar quanto o é um bem material. Marx já alertava no século XIX sobre a supremacia das mercadorias escravizando a vida dos homens, hoje elas destoam graciosamente definindo as identidades pessoais.

Bauman nos diz que a cultura pós-moderna, ao alcance de todo indivíduo, desde que ele possua a moeda de

troca, exige uma vida devotada ao consumismo. Longe de discursar sobre as fraquezas humanas e seus pecados, as mercadorias discursam sobre o aumento das potencialidades humanas em suas múltiplas formas e conteúdos.

Torna-se máxima das vitrines do paraíso na terra, atiçar a fragilidade dos homens e mulheres pós-modernos através de mensagens como “Você pode fazer isso”, “Todo o mundo pode fazê-lo”, “Cabe somente a você decidir”, “Se você deixa de fazê-lo, só tem de botar a culpa em você mesmo”. É fundamental no consumismo afastar qualquer projeção que não seja a ubíqua felicidade felicitando na vida terrena. Os novos profetas, diz Bauman, são aqueles recrutados da aristocracia do consumismo, que conseguiram transformar a vida numa obra de arte da acumulação e intensificação das sensações, dos bens materiais, da riqueza na terra. É desnecessário apresentações desses profetas, temos vários que estão no palco, em geral, com seus livros autobiográficos que mostram a trajetória da miséria à luxúria.

Considerações finais Aparentemente opostas, as intenções religiosas e consumistas se encontram e se abraçam num horizonte onde

os atores em busca da “experiência máxima” estão em constantes aventuras, espirituais e materiais, na eterna busca daquilo que um dia irá preenchê-los em totalidade psicofísica.

Se a religião tradicional oferecia a “experiência máxima” à custa de uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna da religião concilia os dogmas com a ordem liberal do consumo. Seus seguidores, embora não abandonem os dogmas, sabem muito bem que as ofertas de algum paraíso ou de um submundo de trevas já não os convencem mais a ponto de sacrificarem suas felicidades. São aceitáveis os elementos recrutados do mundo supra-sensível, como Deus, Jesus Cristo, santos e outros personagens, desde que eles sirvam para aumentar os potenciais psicológicos e físicos para conseguir acumular mais sensações de prazer oferecidas na vida terrena. Deuses e heróis mágicos perderam seu poder de sedução frente às mercadorias e à “religião do consumo”, estas sim, únicas e eficientes para promoverem a “experiência máxima” do prazer, mesmo que seja momentânea, a ponto do término de abrir uma embalagem, verificar o conteúdo, sentir o perfume do “novo” e se embriagar novamente em busca da próxima oferenda…

Assistir homens e mulheres pós-modernos em busca da felicidade é como assistir um burro correndo atrás de um alimento que vai a sua frente, bamboleando, de acordo com o trotar que afeta o montador que, em sua perniciosa astúcia, vai segurando o pedúnculo.

Referências: BAUMAN, Z. O mal-estar na pós-modernidade. São Paulo: Jorge Zahar, 1998. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). 1ª edição, Rio de Janeiro, Imago, 1974

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PPaarraa aa mmoorrttee sseerr vviissttaa ccoomm nnaattuurraalliiddaaddee Clayton Levy

Otto Lara Resende disse, certa vez, que a morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável. De fato, ninguém consegue ludibriá-la. Morrer é inegociável. Trata-se de um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. Entretanto, a maneira como esse fato inevitável é encarado varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Em geral, a idéia da finitude aterroriza o ser humano. Não é por acaso, portanto, que nos últimos anos inúmeros trabalhos científicos vêm sendo publicados na tentativa de desmitificar a morte. Entre os autores que atuam no Brasil, um dos destaques é o psicanalista Roosevelt Cassorla, professor titular colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Considerado um dos maiores especialistas em tanatologia do país, ele diz que na Unicamp têm sido efetuadas pesquisas sobre o tema e também sobre suicídio. Parte delas está reunida nos livro “Da morte: estudos brasileiros” e “Do suicídio: estudos brasileiros”, ambos assinados por Cassorla e publicados pela Editora Papirus. Segundo ele, falar sobre a morte talvez seja um bom começo para que o tema seja tratado com mais naturalidade. É isso que o Jornal da Unicamp pretendeu ao ouvir Cassorla, na entrevista que segue.

Jornal da Unicamp — Por que a morte ainda é um tabu para a maior parte das pessoas?

Roosevelt Cassorla – A morte se constitui no fato mais assustador da vida, certamente o maior deles frente ao qual não temos controle, previsão e qualquer compreensão. Mesmo as compreensões religiosas não são necessariamente suficientes para nossa mente inconsciente. Frente ao pavor da morte, seja lá o que ela for, nossa mente usa mecanismos inconscientes, sendo o que se chama cisão e projeção desse pavor o mais importante. Graças a ele, a morte, ou melhor, o pavor da morte, é projetado (colocado fora da mente) e identificado com perseguidores externos. Dessa forma, podemos “proteger-nos” dela evitando ou atacando esses supostos perseguidores. Em termos sociais e culturais, a morte pode ser produto dos deuses ou demônios, fruto de transgressões que efetuamos (como o pecado original), resultado da inveja de outros, de feitiços, quebras de tabus, de inimigos, etc. Enfim, temos que encontrar alguma explicação. Não suportamos o “não saber”. À medida que a ciência destrona as crenças e a religião, o indivíduo tem que se defrontar com esse pavor, com esse não saber, e poderemos identificar dois mecanismos. Primeiro, a negação: trata-se de um mecanismo psicológico em que não percebemos a realidade. É como se ficássemos cegos a ela. A negação da morte faz parte de nossa cultura atual. Por isso nos afastamos dela, ou quando nos defrontamos com ela, nossa mente faz o possível para que nada sintamos e nos esqueçamos logo do assunto. Curiosamente, o fato de sermos bombardeados constantemente por notícias de morte, numa sociedade violenta, faz com que também nos anestesiemos para evitar contato com a realidade, e a projetamos nos outros. Isto é, os outros morrem, eu não. O segundo mecanismo é a medicalização: a explicação da morte passa a ser a doença. Todos morremos hoje, por doenças. Espera-se que o sistema médico e de saúde dê conta disso. A impossibilidade ou dificuldade de aceitar a morte faz com que o sistema de saúde seja constantemente acusado por mortes, mesmo que inevitáveis. Procuram-se tratamentos para rejuvenescer. Por outro lado, quando ocorre a morte, evita-se ao máximo o contato com o morto e os sentimentos envolvidos. Os rituais, necessários para a elaboração de um luto, são abandonados ou feitos em forma mecânica. Aos poucos, cria-se uma “industrialização” da morte, em que empresas maquiam o morto, preparam cerimônias artificiais e todos retomam sua vida rapidamente, como se nada tivesse ocorrido. Diz-se que, atualmente, a morte substituiu a sexualidade, como algo sujo, que deve ser evitado. Enfim, foge-se da morte, na medida em que ela nos assusta e não temos meios psicossociais para lidar com ela do ponto de vista emocional. Certamente a atual cultura da não-reflexão e do prazer imediato, do não suportar a frustração, contribui para tudo isso.

JU — A sociedade moderna ainda prefere ignorar a morte do que falar abertamente sobre o tema. Esse comportamento traz alguma conseqüência do ponto de vista social e psicológico?

Roosevelt Cassorla – O não-poder lidar com a morte dificulta o trabalho de luto. Chamamos trabalho de luto ao esforço que nossa mente deve fazer, inconscientemente, para aprender a viver com a realidade, com as perdas, todas elas, inclusive a morte. Esse processo é bastante conhecido pelos psicanalistas e implica num isolamento, ruminações sobre o morto, lembranças, culpas, remorsos, tristeza, depressão e após

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algumas semanas é como se a imagem do morto tivesse sido “encaixada” no mundo interno. Dizemos que o luto foi “elaborado”, isto é, que o indivíduo pôde colocar todas as lembranças, fantasias, culpas, expectativas, em relação à perda, na sua rede simbólica, enriquecendo sua possibilidade de pensar, e podendo retomar a vida. Sem esquecer-se do morto, e enriquecido pelas lembranças boas, e sem que o morto o incomode dentro de sua mente. Para que o trabalho de luto se processe adequadamente, o indivíduo deve ter a oportunidade de falar sobre sua perda, de receber acolhimento familiar e social, de poder entristecer-se, desesperar-se, culpar-se, etc., a sociedade aceitando isso como algo natural. Rituais religiosos e culturais facilitam isso. Se a sociedade não fornece esse espaço, exigindo que o indivíduo não sinta, ou que vê esses sentimentos como vergonhosos, o processo de luto é dificultado. Os resultados serão processos melancólicos, somatizações, dificuldades em retomar a vida, risco suicida, desistência da vida, sentimentos de culpa etc. Isso pode perseguir o indivíduo por toda a vida, e pode espalhar-se por gerações, através de identificações patológicas. Possivelmente grande parte do sofrimento mental atual decorre de bloqueios no trabalho de luto, por fatores sociais, e aqui temos não somente o luto por morte, mas por outras perdas, como oportunidades, trabalho, afeto, respeito, etc. JU — A diversidade cultural resultou numa variedade enorme de significados para a morte. Para alguns é algo terrível, enquanto para outros é algo natural. De que maneira essa mistura de significados contribui para a aversão que o homem contemporâneo tem em relação à morte? Roosevelt Cassorla – A morte antes fazia parte do dia-a-dia. Ela atingia jovens e crianças, e muitas pessoas doentes tinham menos chances de sobreviver. As pessoas morriam em casa, cercadas por seus familiares e conhecidos. Crianças vivenciavam o processo de morte dos adultos e velhos e a convivência com essa realidade se tornava mais fácil. Rituais culturais e religiosos eram efetuados pela comunidade, antes e após a morte. Enfim, a morte fazia parte da vida. Com os avanços do saneamento, da medicina, etc, pessoas passam a viver mais tempo. Mudanças culturais, como as assinaladas nas respostas acima, fazem com que se negue a morte. Isso é facilitado pela medicalização: a pessoa morre no hospital, sozinha, comumente no meio de aparelhos, sedada. Não pode despedir-se dos seus, resolver suas pendências emocionais e práticas, não pode escolher sequer como quer morrer. Não pode fazer o luto por sua própria vida, o que permitiria uma morte mais tranqüila. Os estudos atuais pregam o direito a uma morte digna, a escolha – se a pessoa tiver condições para tal – do tipo e local de morte, o envolvimento afetivo com familiares, etc. Enfim, a desmedicalização da morte, que passa a ser um direito reconquistado. A humanização da Medicina caminha nessa direção. JU — Falar sobre a morte com um paciente terminal ajuda ou atrapalha? Por quê? Roosevelt Cassorla – O paciente terminal deve ser compreendido e, para isso, o profissional de saúde tem que saber identificar seus sentimentos e emoções, principalmente aquelas não visíveis. O profissional deve identificar quais são as ansiedades e medos que subjazem ao sofrimento ou ao eventual silêncio. O paciente precisa saber que pode contar com uma presença humana, próxima. Isso é básico nos momentos de crise e de passagem. O falar ou não sobre a morte dependerá da necessidade e desejo do paciente. O profissional de saúde sensível, assim como o familiar, o amigo, ou o religioso, devem dar espaço para que o paciente comunique sobre o que quer falar, como se deve falar e o quanto se deve falar. Para tudo isso é necessário um vínculo emocional forte, de confiança. Os profissionais têm que ser treinados a aprender a escutar, não somente palavras, mas mensagens emocionais. JU – Em sua opinião, os profissionais da saúde estão preparados para enfrentar a morte de um paciente da mesma maneira que estão treinados para salvar sua vida? Roosevelt Cassorla – Em geral são despreparados para lidar com aspectos emocionais de forma geral. Mais despreparados ainda frente à morte. Alguns profissionais particularmente intuitivos se saem bem. Há necessidade de preparo e é isso que fazemos nos cursos do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e em outros cursos e grupos de reflexão sobre Aspectos Emocionais na Prática Médica. De minha experiência, o maior problema do profissional é sua dificuldade em entrar em contato com suas próprias emoções.

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OO jjooggoo eexxiisstteenncciiaall ee aa rriittuuaalliizzaaççããoo ddaa mmoorrttee ((tteexxttoo ppaarrcciiaall)) Bellato Roseney, Carvalho Emília Campos de. The existential game and the ritualization of death. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2005 Feb [cited 2006 Nov 28]; 13(1): 99-104. Roseney BellatoI; Emília Campos de CarvalhoII

Escamotear a morte é o mesmo que se recusar a crer que a trazemos em nós, não como enfermidade ou punição, mas como lei necessária da vida da qual ela assume a riqueza e a renovação.

Nós, humanos, como todos os seres vivos marcados pela temporalidade da vida, lutamos contra a ideia de nossa finitude, sendo que temos buscado o alívio possível para o paradoxo existencial que se apresenta frente ao dualismo vida e morte. Tal paradoxo tem sido marcante na cultura ocidental e agudiza, sobremaneira, essa angústia, tornando mais difícil o seu enfrentamento, visto que colocamos em situação de oposição esses dois momentos de uma mesma realidade: a de sermos seres vivos e que, portanto, iremos morrer um dia. Nossa incapacidade de dar àqueles que morrem a ajuda e afeição de que mais que nunca precisam, quando se despedem dos outros seres humanos, se dá exatamente porque a morte do outro é uma lembrança de nossa própria morte. A visão da pessoa que vivencia seu processo de morte e de morrer abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem como uma muralha contra a ideia de sua própria morte(1). Assim, entender tais mecanismos defensivos se torna de grande importância para os profissionais da saúde e da enfermagem, de maneira que possam compreender os sentimentos e atender as necessidades daquele que vivencia o seu processo de morte e de morrer, proporcionando-lhe o conforto que a sensação de pertencimento e a afeição podem oferecer.

O medo da morte e o seu enfrentamento pelo ser humano através dos tempos

As sociedades primitivas

O jogo existencial do ser humano, do qual vida e morte se fazem parceiras inseparáveis, é um problema dos

vivos e, apenas e tão somente, dos vivos humanos, pois, embora compartilhem o nascimento, a doença, a

juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas os seres humanos, dentre todos os seres

vivos, sabem que morrerão. Assim, a imagem da morte tem acompanhado o existir humano desde seu

alvorecer, abrindo enorme vazio diante da vida, representado por um aterrorizante não-ser inominável.

Dentro dessa perspectiva, a ritualização mítica da morte tem tido a função de transcender o sofrimento pela

finitude do ser humano, pois, desde tempos imemoriais, o dado primeiro, fundamental e universal da morte

humana é a sepultura, mostrando assim que é isso o que nos assegura nossa 'humanidade' em relação aos

demais animais. A morte sempre suscitou emoções que se socializaram em práticas fúnebres, e o não-

abandono dos mortos implica uma crença na sua sobrevivência, não existindo praticamente qualquer grupo,

por muito 'primitivo' que seja, que abandone os seus mortos ou que os abandone sem ritos. Esses ritos

trazem a imagem de 'passagem' para um outro estágio, sempre como metáfora de prolongamento da vida,

seja ela através de um sono, uma viagem, um nascimento, uma doença, seja através de uma entrada para a

morada dos antepassados. Projeta-se, assim, a vida para um tempo indefinido, mas não necessariamente

eterno.

Com isso o morto ganha status especial, pois reconhece-se que ele já não é um vivo vulgar. Essa mudança

de estado do morto, no entanto, não deixa de provocar profundas perturbações no círculo dos vivos, que

serão ritualizadas, coletivamente, nas cerimônias fúnebres. Os rituais fúnebres têm também a função de

fazer o morto completar a viagem para o seu território definitivo, protegendo, dessa forma, a comunidade

contra o seu retorno(5).

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No entanto, a morte nas sociedades primitivas não era personalizada, ou seja, dava-se como resultado de

uma intervenção maléfica externa, que poderia ser um feitiço ou obra de um ancestral que voltou para buscar

um membro da comunidade. A presença obsessiva da morte e do morto na mentalidade de povos primitivos

se mostra pela presença dos "espíritos", isto é, dos mortos, em toda a vida quotidiana, regendo a caça, a

guerra, as colheitas, as chuvas, etc.(4).

Também o horror da decomposição do cadáver suscita rituais para abrandá-lo e, na pré-história, foram

criadas algumas práticas que visavam apressar a decomposição (cremação e canibalismo), evitá-la

(embalsamento) ou afastá-la do convívio com os vivos (sepultamento, transporte do corpo para um local

ritualístico). Se essa presença pútrida do morto sempre foi sentida como contagiosa, muitas das práticas

funerárias e pós-funerárias visam proteger os vivos do espectro maléfico ligado ao cadáver que apodrece. Os

rituais do luto têm o sentido da purificação, sendo seu período correspondente à duração da decomposição. É

preciso lembrar ainda que a impureza trazida pela putrefação afeta também os parentes do morto, sendo eles

obrigados a se cobrirem com um sinal distintivo ou esconder-se, durante o período no qual grassa o

'contágio da morte'(4).

É preciso lembrar que o 'horror da morte', esse fantasma que sempre acompanhou o ser humano, e que se

traduz pela dor do funeral, pelo terror da decomposição do cadáver e pela obsessão da morte, tem por

denominador comum a 'perda da individualidade'. Essa dor pela perda será tanto maior quanto mais próximo

ou significativo for o morto para a família ou a comunidade. Portanto, não é o fenômeno da putrefação em si

que traz o terror, mas a emoção, o sentimento ou a consciência da perda da individualidade, quando o morto

não está individualizado, isto é, não reconhecido como ser humano, tal como o inimigo ou o traidor privados

de sepultura, existe, diante da podridão, apenas indiferença e simples mal cheiro(4). E a revelação da morte

do outro, causada pela presença dos "restos" (o cadáver), faz com que o ser humano apreenda a essência da

existência mortal, ou seja, a noção da sua finitude, pois a morte ganha corpo e rosto, ela se encarna na carne

do cadáver(3).

O 'complexo da perda da individualidade' é um complexo traumático, levando ao 'traumatismo da morte',

isto é, "toda distância que separa a consciência da morte da aspiração à imortalidade, toda a contradição que

opõe o fato brutal da morte à afirmação da sobrevivência"(4). Daí deriva que a violência do traumatismo

provocado por aquilo que nega a individualidade implica em afirmação não menos intensa da

individualidade, quer seja a nossa própria morte quer seja a do ente querido ou próximo. A individualidade

que se revolta contra a morte é uma individualidade que se afirma sobre a morte, ou seja, que concebe a sua

própria imortalidade. Essa 'consciência humana da morte', no entanto, não se baseia no desconhecimento da

realidade biológica, mas no seu reconhecimento, assim como não significa cegueira ante a morte, mas a sua

lucidez. Essa lucidez não é, porém, tomada de consciência do conhecimento específico, mas sim um

conhecimento propriamente individual: uma apropriação da consciência, visto que a consciência da morte

não é algo inato, antes um produto de uma consciência que compreende o real(4).

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Ao mudar de status, passando de pessoa viva para ancestral morto, esse perde sua individualidade,

ganhando, porém, sua reidentificação dentro de uma categoria arquetípica. Chega-se, assim, à crença na

imortalidade, que seria a dialética resultante da consciência da morte e do traumatismo da morte, que se

reforçam mutuamente(6). É preciso salientar que, em todas as sociedades, desde as mais primitivas até a

atualidade, o ser humano sempre teve, efetivamente, dois tipos de morte: uma biológica, que representa o

fim do organismo humano, e uma morte social, que representa o fim da identidade social do indivíduo. Essa

última ocorre em um processo que compreende uma série de cerimônias, incluindo aí o funeral, no qual a

sociedade oficializa e ritualiza a despedida de um dos seus e reafirma sua continuidade sem ele(7).

É essa compreensão, característica própria do humano e implícita desde a pré-história que, longe de se

refletir em aceitação, leva o ser humano a revoltar-se contra sua inelutável finitude, ávido de uma

imortalidade que desejaria realizar. Se não buscasse alguma forma de adaptação à morte, o ser humano

"morreria de morrer"(4), visto que, a ideia obsedante da morte como fim último e sem qualquer termo de

continuação posterior, lhe seria mortal. O paradoxo adaptação/inadaptação à morte é expresso nos rituais

funerais e de luto, ou seja, o luto expressa socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo

tempo, é o processo de adaptação social que tende a fazer cicatrizar a ferida dos indivíduos que

sobrevivem(4).

Mas, para onde vão os mortos após a morte? Também aí impera o paradoxo humano de querer o morto,

agora transformado em espírito, ao mesmo tempo perto e longe dos vivos. Desde as camadas mais antigas

das crenças, os mortos habitam o espaço próximo do grupo a que pertenciam. Mesmo nas civilizações que,

por temor dos mortos, afastaram um pouco as tumbas das habitações dos vivos, continuam aí localizados,

quer seja por meio de uma ossada simbólica (o crânio, por exemplo), quer por meio de um substitutivo

figurativo (bonecos de madeira ou, nos casos atuais, fotografias dos ausentes queridos). Com essa forma de

agir conciliam-se os contraditórios desejos dos vivos: conservar o morto (para que não se irrite e para que os

proteja) e, ao mesmo tempo, evitar sua presença macabra(4).

Dentro da perspectiva de um tempo linear, a morte é tida como perda, ruptura, ausência. Porém, a lógica da

vida é afirmação de continuação e de plenitude. Há, pois, que se ultrapassar a dialética da cisão vida-morte,

buscando vencer o horror da finitude, inventando, para além da racionalidade, correspondências entre o

mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Essa correspondência, aparentemente mais eficaz em outros

tempos, era vivida coletivamente, não constituindo, portanto, um drama pessoal, mas sendo largamente

negociada no seio da sociedade. Assim, a ampla ritualização da morte que essas sociedades empreendiam,

consistia numa estratégia global do ser humano contra a Natureza, procurando domar sua selvageria e

violência(8). E se o ser humano de antigamente temia a morte, angustiava-se diante dela, no entanto, tal

temor e angústia eram tranqüilamente traduzidos em palavras e canalizados para ritos familiares e sociais.

Justamente por isso, a morte não passava o limite do indizível, do inexprimível, a ponto de o ser humano

dela se afastar, de fugir, de proceder como se ela não existisse, ou de falsificar sua aparência.

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Vale ressaltar que nessas sociedades primitivas morria-se sempre em público, pois nunca se estava só,

fisicamente, no momento da morte. Elas construíam, portanto, sistemas de defesa contra a angústia da morte,

embasados em ritos e crenças que buscavam dar ao ser humano ilusão de perenidade e, por não se apoiarem

na individualização e sim na participação da pessoa no seio do grupo, não concebiam a morte como ausência

ou separação irreparáveis(9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos aqui traçar, a largos passos, a história do enfrentamento do medo da morte que o ser humano vem

empreendendo ao longo dos tempos, tendo por foco a civilização ocidental. Esse enfrentamento tem se

transfigurado em escamoteamento, da negação: o velório, feito em ambiente próprio e não mais em casa, se

apresenta como um momento pouco compartilhado socialmente, onde as manifestações de tristeza e choro

são contidas para não constranger os presentes, os cemitérios mais se parecem com jardins, o período de luto

se resume a poucos dias, sendo que logo a vida da família do morto 'volta ao normal'.

Mesmo no hospital, territorialidade permitida para a morte, morre-se às escondidas, o morto parte na ponta

dos pés. A equipe de saúde procura dissimular a presença da morte impedindo que as pessoas tenham acesso

ao quarto daquele que morre, ainda que sejam parentes próximos, procurando fazer rapidamente o preparo

do corpo e legalizando o novo status social do morto através da emissão do atestado de óbito. Até mesmo as

palavras são denunciadoras dessa ocultação: evita-se dizer que alguém morreu, usando, em seu lugar, a

expressão impessoal, e por isso mesmo menos angustiante, "foi a óbito".

É necessário compreender, no entanto, que nossa formação como enfermeiros e profissionais integrantes da

equipe de saúde tem se dado no sentido de estarmos preparados, essencialmente, para a promoção e

preservação da vida e, nesse contexto, entendemos a morte como algo contrário e não como parte intrínseca

dela. A obstinação terapêutica leva até as últimas consequências a tentativa de afastar a morte e, nessa

tentativa de afastamento indefinido, o doente não morre mais na sua hora, mas naquela da equipe de saúde.

Como consequência última desse processo, temos a desumanização do atendimento àquele que morre, pois

"a técnica matou a morte natural e o morrer dissolveu-se em um contexto sócio-organizacional no qual o

funcional substituiu o humano. Por fim, a escamoteação da morte se faz expropriação e destituição, pois é

tudo previsto para que o moribundo deixe de estar no centro de seu trespasse"(13).

Resgatar o humano dentro do processo de morte e do morrer, embora essencial à perspectiva do cuidado à

pessoa e não apenas ao corpo biológico, não se apresenta como tarefa fácil, visto que nossa humanidade de

"profissionais da saúde" e, portanto, da vida, se ressente desse enfrentamento, temendo olhar-se no espelho

da própria finitude.

Iniciamos, porém, os primeiros passos nessa direção, embora ainda muito nos falte para caminhar. Temos

visto numerosos estudos de enfermeiros que buscam questionar, já desde a formação, o posicionamento

profissional frente ao ser humano que vivencia seu processo de morte e de morrer, assim como aos seus

familiares. Nesse buscar por restituir a humanidade à morte, o espaço doméstico volta a ser pensado como

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local próprio para a vivência dessa experiência íntima e única na vida de cada ser humano, ainda que

acompanhada do cuidado profissional. Tem sido objeto de reflexão também, sob diversos enfoques

filosóficos, se o prolongamento biológico da vida de maneira artificial e indefinida é eticamente aceitável.

Indagações são feitas, por fim, sobre como podemos enfrentar o nosso próprio medo da morte e, assim, nos

colocarmos de maneira mais próxima diante do outro ser humano que enfrenta a experiência única de estar

findando sua existência física.

Tais questões, de profundo cunho antropológico, envolvem um reposicionamento do ser humano diante da

morte e, por serem os aspectos aqui apresentados resultado da construção histórico-sociocultural própria do

Ocidente, precisam ser debatidas no seio da sociedade e não apenas na internalidade de um segmento

profissional. No entanto, para que nós, profissionais da enfermagem, que lidamos quotidianamente com o

processo de morte e do morrer do outro, possamos apreender o que esse processo significa, faz-se necessário

caminharmos em direção à nossa própria humanidade e procuramos entender o que ela traz em seu bojo para

então, e só então, postarmo-nos humanamente como profissionais que cuidam. Talvez isso nos leve à

compreensão de que a morte em si, na maioria das vezes, não é o grande problema para aquele que morre,

mas sim o sentimento de desesperança, de desamparo e de isolamento que a acompanha, nascido do medo

que as outras pessoas têm de enfrentar a certeza da sua própria morte(14).

Nossa atitude diante daquele que enfrenta seu processo de morte e de morrer tem sido, paradoxalmente, a de

abandoná-lo à sua angustiante solidão ou a de nos esforçarmos, ao máximo, por prolongar indefinidamente

sua situação dúbia de quase-vivo ou de quase-morto, graças ao aparato tecnológico hoje disponível na área

da saúde. No entanto, em ambas as posições o aspecto humano do morrer corre o risco de ser ocultado ou

remetido para um segundo plano, juntamente com a pessoa que o vivencia. Essa reflexão se torna

fundamental para a nossa própria 'condição humana', visto precisarmos assegurar àquele que morre seu justo

lugar nesse processo. É necessário lembrar, por fim, que a morte não é um elemento puramente empírico de

nossa experiência; a orientação para a morte é essencialmente implicada na experiência de toda a vida e de

nossa própria vida(13).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Elias N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar; 2001. 2. Baudrillard J. As trocas simbólicas e a morte. São Paulo (SP): Loyola; 1996. 3. Thomas L-V. Antrhopologie de la mort. Paris (FR): Payot; 1975. 4. Morin E. O homem e a morte. Portugal (PT): Biblioteca Universitária; 1978. 5. Zaidhaft S. Morte e formação médica. Rio de Janeiro (RJ): Francisco Alves; 1990. 6. Eliade M. Mito do eterno retorno. São Paulo (SP): Mercuryo; 1992. 7. Helman CG. Saúde, cultura e doença. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1994. 8. Thomas L-V. Mort et vie quotidienne. Cahiers Internationaux de Sociologie 1983 jun; 75:83-96. 9. Ariès P. O homem perante a morte. Portugal (PT): Biblioteca Universitária; 1979. 10. Ariès P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro (RJ): Francisco Alves; 1977. 11. Foucault M. O nascimento da clínica. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense-Universitária; 1998. 12. Simmel G. La tragedie de la culture et autre essais. Paris (FR): Rivage; 1988. 13. Thomas L-V. Les chairs de la mort. Paris (FR): Sanofi-Sinthélabo; 2000. 14. Kubler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 8ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2000.

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8 de Fevereiro de 2010 - 0h15

ESTADO E RELIGIÃO: RELAÇÕES PERIGOSAS Carlos Pompe *

No último dia 26, uma comissão parlamentar francesa recomendou o banimento da burca e do nicab, duas vestes muçulmanas que ocultam o rosto ou o corpo das mulheres, nos serviços governamentais franceses

(edifícios e transporte). Caso as mulheres mantenham o rosto coberto, não poderão ser atendidas. (foto: Francesas mulçumanas trajando nicab) Mesmo direitista, o presidente Nicolas Sarkozy considerou: "A burca não é bem-vinda em território francês", pois torna as muçulmanas "prisioneiras por detrás de uma grade de tecido". Desde 2004, uma outra lei proíbe o uso nas escolas públicas de quaisquer símbolos religiosos – burcas, nicabs, solidéus ou crucifixos. A comissão parlamentar foi resultado de uma iniciativa do membro do Partido Comunista e prefeito Andre Gerin, de

Venissieux, um subúrbio de Lyon. Em sua região vivem muitos muçulmanos do Norte da África. No final de junho, ele deu início a uma moção, assinada por 57 outros legisladores, pedindo a instauração dessa comissão. Justificou: "É hora de assumir uma posição a respeito dessa questão que envolve milhares de cidadãos que estão preocupados ao ver mulheres totalmente cobertas com véu, aprisionadas". Ainda em janeiro deste ano, em terras brasileiras, quando se discutiu o banimento de símbolos religiosos das repartições públicas, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Dimas Lara Barbosa, indignou-se: "Daqui a pouco vamos ter que demolir a estátua do Cristo Redentor, no morro do Corcovado, que ultrapassou a questão religiosa e virou símbolo de uma cidade. Impedir a presença desses símbolos é uma intolerância muito grande. É desconhecer o espírito cristão e religioso da tradição brasileira. Direitos humanos é ter liberdade religiosa." Indignou-se e deixou-nos, a nós que defendemos a separação entre o Estado e as crenças, indignados. Uma coisa é garantir que as repartições públicas não favoreçam nenhuma seita – católica, islâmica, judaica, umbandista etc. Outra, que nos leva a desconfiar da boa-fé do dirigente da CNBB, é confundir isso com a negação dos direitos humanos ou da liberdade religiosa. Na verdade, o papista obra em causa própria: o que prevalece nas repartições públicas brasileiras é a simbologia cristã e, ao defender a “liberdade religiosa”, o que ele pretende mesmo é manter crucifixos nas sedes dos Três Poderes, nos hospitais, escolas públicas, penitenciárias etc. Uma agressão aos que professam outras (ou nenhuma) crenças e aos que analisam a natureza e a sociedade com os pressupostos materialistas. Muito se fala dos erros cometidos pelos Estados – mesmo os burgueses (a atual recomendação francesa vem sendo acusada de agressão ao direito da mulher ser submissa aos preconceitos religiosos e ao domínio de seus maridos machistas) – no tratamento da questão religiosa. Mas poucos analisam as atrocidades que os Estados perpetram em nome da religião ou do acobertamento que os poderes públicos dão a criminosos, quando estes integram alguma instituição religiosa. É de notar-se, por exemplo, como no Brasil os pedófilos que trajam batina, em vez da punição pelo crime que comentem, no mais das vezes são simplesmente transferidos pela sua instituição de uma região para outra, escapando dos tribunais.

* Jornalista e curioso do mundo. http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=2902&id_coluna=2

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ALGO DE NOVO NA RELIGIÃO? O novo diretor da Administração Estatal para os Assuntos Religiosos da China, Wang Zuoan, anunciou, dia 14 de janeiro: “O Partido Comunista Chinês (PCC) começou a encarar a religião numa perspectiva mais positiva”.

Disse que o país aprendeu com os erros da antiga União Soviética e dos países que formavam o Pacto de Varsóvia. Não disse, ou o Global Times (jornal do grupo Diário do Povo, órgão oficial do PCC), que divulgou sua entrevista, não informou quais foram esses erros e nem o que mudou na religião para que seja encarada mais positivamente. Segundo Wang Zuoan, “a influência da cultura ocidental na China, incluindo o cristianismo, aumentou muito” e “é normal que a religião se desenvolva durante o

processo de modernização”. A religião com mais adeptos naquele país é o budismo, seguida do islamismo (juntas, 60 milhões de seguidores) e do cristianismo (cerca de 20 milhões, dos quais dois terços protestantes). As informações que nos chegaram são muito resumidas. O tratamento dado à religião pelos governos que se propunham a construção do socialismo foi diferenciado e muito variado ao longo dos anos. A política dos soviéticos para o setor não era a mesma dos albaneses, que não coincidia com a dos cubanos, com a dos vietnamitas ou com a dos coreanos (a informação do Global Times não faz referências a Cuba, Vietnã ou Coreia do Norte). O dirigente chinês considera normal o desenvolvimento da religião “durante o processo de modernização”. Não é esse o pensamento esposado pelos marxistas. Para Marx, Engels, Lenin e seus seguidores materialistas dialéticos, a religião é uma forma histórica de consciência social que vai se tornando desnecessária conforme evoluem os conhecimentos científicos e progride a civilização. Na sociedade dividida em classes antagônicas, a religião é, no geral, utilizada como instrumento da classe opressora para a defesa da mansidão das massas diante das injustiças sociais e de remetimento da solução de seus problemas, sociais ou naturais (como um terremoto), para forças sobre-humanas. A existência de setores progressistas organizados nas religiões institucionais e a atuação progressista e, mesmo, revolucionária de alguns religiosos são impotentes para mudar as características essenciais da religião. Do ponto de vista filosófico (Wang Zuoan é formado em filosofia), continuam válidas estas palavras leninistas do Materialismo e empiriocriticismo: “Se existe uma verdade objetiva (como pensam os materialistas), se as ciências da natureza, refletindo o mundo exterior na ‘experiência’ humana, são as únicas capazes de nos dar a verdade objetiva, qualquer fideísmo é absolutamente refutado. Mas, se não há verdade objetiva, se a verdade (incluindo a verdade científica) é apenas uma forma organizadora da experiência humana, reconhece-se deste modo a premissa fundamental do clericalismo, abre-se-lhe a porta, arranja-se lugar para as ‘formas organizadoras’ da experiência religiosa”. Os dirigentes chineses encontraram alguma mudança significativa na relação da religião com a política? Pelas notícias que a nós chegam, o dalai-lama continua, financiado pelo governo estadunidense, querendo retomar o poder no Tibete e tirar a região da influência chinesa. Líderes religiosos islâmicos incentivam atos assassinos de seus seguidores mais fanáticos. Sionistas mantêm a crença de ser um povo eleito, autorizado por Javé a cometer as maiores atrocidades contra palestinos e demais góis. Seguidores do papa Bento XVI são proibidos de recorrer ao aborto, usar contraceptivos (inclusive os protetores de doenças sexualmente transmissíveis, como a camisinha), e de realizar pesquisas com células-tronco, dentre outras desumanidades. Mal Wang Zuoan anunciou sua visão da religião com uma “perspectiva mais positiva”, ocorreram, no dia 16, enfrentamentos entre cristãos e mulçumanos na cidade nigeriana de Khos, resultando na morte de quase 30 pessoas e 300 feridos. Os confrontos seriam o resultado da revolta de cristãos devido à construção de uma mesquita no bairro de Nassarawa Gwom. Parece que as palavras de Lucrécio, escritas no livro Da Natureza, ainda antes de Cristo e de Maomé, continuam válidas: “Tão grandes males a religião persuadiu o homem a cometer”. Em Vitória da contrarrevolução em Viena, Karl Marx pontuou ser tarefa dos comunistas “extrair as lições corretas das lutas passadas, expô-las perante o povo, em primeiro lugar perante os operários, e levá-las na devida consideração nas lutas que estão por vir”. Seguido estas orientações o dirigente chinês talvez nos elucidasse sobre quais as transformações positivas que as religiões experimentaram recentemente, o que nos levaria a uma reavaliação da abordagem marxista do tema. Mas creio que isso ele não fará. Nem com reza brava. http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=2861&id_coluna=2

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Manifesto de Cristãos e cristãs evangélicos/as e católicos/as em favor da vida e da Vida em Abundância! (antes eleição Dilma)

Somos homens e mulheres, ministros, ministras, agentes de pastoral, teólogos/as, padres, pastores e pastoras, intelectuais e militantes sociais, membros de diferentes Igrejas cristãs, movidos/as pela fidelidade à verdade, vimos a público declarar: 1. Nestes dias, circulam pela internet, pela imprensa e dentro de algumas de nossas igrejas, manifestações de líderes cristãos que, em nome da fé, pedem ao povo que não vote em Dilma Rousseff sob o pretexto de que ela seria favorável ao aborto, ao casamento gay e a outras medidas tidas como “contrárias à moral”. A própria candidata negou a veracidade destas afirmações e, ao contrário, se reuniu com lideranças das Igrejas em um diálogo positivo e aberto. Apesar disso, estes boatos e mentiras continuam sendo espalhados. Diante destas posturas autoritárias e mentirosas, disfarçadas sob o uso da boa moral e da fé, nos sentimos obrigados a atualizar a palavra de Jesus, afirmando, agora, diante de todo o Brasil: “se nos calarmos, até as pedras gritarão!” (Lc 19, 40). 2. Não aceitamos que se use da fé para condenar alguma candidatura. Por isso, fazemos esta declaração como cristãos, ligando nossa fé à vida concreta, a partir de uma análise social e política da realidade e não apenas por motivos religiosos ou doutrinais. Em nome do nosso compromisso com o povo brasileiro, declaramos publicamente o nosso voto em Dilma Rousseff e as razões que nos levam a tomar esta atitude: 3. Consideramos que, para o projeto de um Brasil justo e igualitário, a eleição de Dilma para presidente da República representará um passo maior do que a eventualidade de uma vitória do Serra, que, segundo nossa análise, nos levaria a recuar em várias conquistas populares e efetivos ganhos sócio-culturais e econômicos que se destacam na melhoria de vida da população brasileira. 4. Consideramos que o direito à Vida seja a mais profunda e bela das manifestações das pessoas que acreditam em Deus, pois somos à sua Imagem e Semelhança. Portanto, defender a vida é oferecer condições de saúde, educação, moradia, terra, trabalho, lazer, cultura e dignidade para todas as pessoas, particularmente as que mais precisam. Por isso, um governo justo oferece sua opção preferencial às pessoas empobrecidas, injustiçadas, perseguidas e caluniadas, conforme a proclamação de Jesus na montanha (Cf. Mt 5, 1- 12). 5. Acreditamos que o projeto divino para este mundo foi anunciado através das palavras e ações de Jesus Cristo. Este projeto não se esgota em nenhum regime de governo e não se reduz apenas a uma melhor organização social e política da sociedade. Entretanto, quando oramos “venha o teu reino”, cremos que ele virá, não apenas de forma espiritualista e restrito aos corações, mas, principalmente na transformação das estruturas sociais e políticas deste mundo. 6. Sabemos que as grandes transformações da sociedade se darão principalmente através das conquistas sociais, políticas e ecológicas, feitas pelo povo organizado e não apenas pelo beneplácito de um governante mais aberto/a ou mais sensível ao povo. Temos críticas a alguns aspectos e algumas políticas do governo atual que Dilma promete continuar. Motivo do voto alternativo de muitos companheiros e companheiras Entretanto, por experiência, constatamos: não é a mesma coisa ter no governo uma pessoa que respeite os movimentos populares e dialogue com os segmentos mais pobres da sociedade, ou ter alguém que, diante de uma manifestação popular, mande a polícia reprimir. Neste sentido, tanto no governo federal, como nos estados, as gestões tucanas têm se caracterizado sempre pela arrogância do seu apego às políticas neoliberais e pela insensibilidade para com as grandes questões sociais do povo mais empobrecido. 7. Sabemos de pessoas que se dizem religiosas, e que cometem atrocidades contra crianças, por isso, ter um candidato religioso não é necessariamente parâmetro para se ter um governante justo, por isso, não nos interessa se tal candidato/a é religioso ou não. Como Jesus, cremos que o importante não é tanto dizer “Senhor, Senhor”, mas realizar a vontade de Deus, ou seja, o projeto divino. Esperamos que Dilma continue a feliz política externa do presidente Lula, principalmente no projeto da nossa fundamental integração com os países irmãos da América Latina e na solidariedade aos países africanos, com os quais o Brasil tem uma grande dívida moral e uma longa história em comum. A integração com os movimentos populares emergentes em vários países do continente nos levará a caminharmos para novos e decisivos passos de justiça, igualdade social e cuidado com a natureza, em todas as suas dimensões. Entendemos que um país com sustentabilidade e desenvolvimento humano – como Marina Silva defende – só pode ser construído resgatando já a enorme dívida social com o seu povo mais empobrecido. No momento atual, Dilma Rousseff representa este projeto que, mesmo com obstáculos, foi iniciado nos oito anos de mandato do presidente Lula. É isto que está em jogo neste segundo turno das eleições de 2010. SIGNATÁRIOS (169 assinaturas)

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RREELLIIGGIIÃÃOO EE PPOOLLÍÍTTIICCAA EEMM GGOOIIÁÁSS Elisa Signates Cintra de Freitas

Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás e participante do NER/UFG (Núcleo de estudos de

religião) RESUMO Trata esse trabalho da atividade política de deputados estaduais que se identificaram como evangélicos na Assembleia Legislativa do estado de Goiás: Fábio Sousa (PSDB), Lincoln Tejota (PSD) e Luís Carlos do Carmo (PMDB). Nesses casos, a observação feita foi a se a prática política desses deputados que se assumiram publicamente como religiosos foi uma prática religiosa ou uma prática laica, ou seja, sem ligação com religião ou dogmas religiosos. Palavras-chave: religião, política, Goiás e Assembleia Legislativa do estado de Goiás.

ABSTRACT This work is about a political activity of state representatives who identify themselves as evangelicals on Assembleia Legislativa do estado de Goiás: Fábio Sousa (PSDB), Lincoln Tejota (PSD) and Luís Carlos do Carmo (PMDB). In these cases, an observation was if the politics pratices was religious or secular, without relation with religion or religious dogmas. Key-words: religion, politics, Goiás, Assemleia Legisltaiva do estado de Goiás.

INTRODUÇÃO

Esse artigo trata da relação entre religião e política. Parte-se do pressuposto de que religião e

política podem se intercalar e que não seria democrático se essa relação não fosse permitida. Dessa forma,

percebeu-se que o fato de existirem atores políticos evangélicos na política goiana se trata de uma

questão de representação, mais do que laicidade, separação específica entre instituições religiosas e

Estado. Apesar disso, é importante tratar da laicidade para direcionar a discussão sobre a opinião dos

atores políticos evangélicos em casas legislativas brasileiras, no caso específico, na Assembleia

Legislativa do estado de Goiás para considerar até que ponto esses atores atrapalham os preceitos de

tolerância e liberdade religiosa que compõem na laicidade.

Dessa forma, esse artigo se dividira em três partes: uma primeira parte tratando da discussão

teórica sobre política e religião, secularização e laicidade. Em seguida, será apresentada a parte prática

da pesquisa, o estudo feito com os três atores políticos que se identificaram como religiosos na

Assembleia Legislativa do estado de Goiás no período de 2011 a 2014. E, por fim, as considerações finais

com breves conclusões sobre a análise da atividade política desses atores no período referido.

Assim, discutir-se-á a relação entre religião e política, baseando principalmente em Casanova

(2006) e Mouffe (2006), e depois de laicidade, focando nos princípios de tolerância e liberdade religiosa

destacados em Martinez e Raymundo (2010) no tópico a seguir.

RELIGIÃO E POLÍTICA PODEM SE RELACIONAR?

Sobre a relação entre religião e política ou religião e espaço público Casanova (2006) não percebeu

esse fenômeno como presente e comum em sociedades democráticas, assim como não o percebeu em

sociedades cujo regime político é autoritário. O autor foi além na discussão e afirmou não haver

motivos para que a religião seja separada da esfera pública. Pelo contrário, fazer constitucionalmente

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essa separação é contra o regime democrático em si.

Além disso, percebeu um aumento na relevância pública da religião em países democráticos.

Nesse sentido, defendeu que o livre exercício da religião abre caminhos para o livre exercício de direitos

civis e direitos políticos de cidadãos religiosos. Segundo o autor, esse exercício de direitos infringe na

vitalidade da sociedade civil democrática e faz com que cidadãos religiosos se vinculem ao meio político

de forma democrática. Vinculação esta que Casanova (2006) afirmou ser crescente já que a separação

entre religião e política não é uma condição de democracia e que as questões sociais da modernidade

trazem assuntos que provocam valores religiosos, tais como valores relacionados à vida (aborto, por

exemplo) e valores da própria moral cristã (defesa da família tradicional em contraposição ao casamento

homoafetivo, por exemplo). Essa ideia vai de encontro a Berger (2000), que afirmou que os indivíduos

exigem respostas que a ciência não oferece. Respostas de sentido da vida que a religião ainda é,

segundo Berger (2000), a única capaz de suprir.

Ainda sobre o debate em relação à presença forte das religiões no mundo moderno, Zepeda

(2010) reafirmou o processo de secularização na sociedade ocidental moderna. Por secularização o autor

definiu como sendo o “conjunto de mudanças pelo qual a religião perde sua relevância social, ideológica

e institucional” (ZEPEDA, 2010, p. 129) e afirmou que a caracterização da religiosidade latente hoje

no mundo ocidental só reafirma esse ponto, já que as experiências religiosas têm caráter individual e

subjetivo. Dessa forma, a modernidade demonstra uma rejeição ao controle institucional de práticas e

crenças religiosas.

Segundo o autor, essa religiosidade latente nos indivíduos não significa uma volta à tradição,

em que a religião ocupava a centralidade da vida social. Trata-se de uma das complexidades do

conceito de secularização, uma consequência da globalização, a qual permite que as religiões sejam

desterritorializadas e moldadas de acordo com as preferências individuais mais do que seguidas em uma

lógica de doutrinas. Concordando que as instituições do mundo moderno são secularizadas e que o

alto nível de religiosidade dos indivíduos não desfaz o processo de secularização, Mariano (2003)

ainda complementou a ideia ao afirmar que a globalização também tem como consequência um

pluralismo religioso e uma alta concorrência entre os religiosos em busca de fiéis. Nesse sentido, tanto

Zepeda (2010) quanto Mariano (2003) concordam que a presença de grupos religiosos na política

institucional é mais uma consequência das complexidades da secularização acarretada pela globalização.

Zepeda (2010) então constatou que não se trata de uma ressacralização da sociedade, ou seja, não

se trata de uma volta às tradições, volta à religião como aspecto central da vida social, volta esta que

negaria a secularização. Trata-se de um processo de dessecularização, em que as instituições ainda se

mantêm livre do controle religioso, enquanto as crenças herdadas das doutrinas da tradição se mesclam

com os novos movimentos religiosos criando uma situação “inédita, pois nem se trata de um simples

retorno religioso do passado,

tampouco de uma dissolução da secularização” (ZEPEDA, 2010, p. 136).

34

Casanova (2004) partilhou dessa ideia ao afirmar que a presença de religiosos na esfera

pública, ou, uma desprivatização da religião, termo que o próprio autor usou, deve-se aos desafios que a

globalização oferece à sociedade. Dessa forma, entram na esfera pública para

(...) participar das mesmas lutas face a estabelecer e definir as fronteiras modernas entre a esfera pública e privada, entre legalidade e moralidade; entre família, sociedade civil, economia e Estado, entre nações, Estados e civilizações em um sistema global emergente1 (CASANOVA, 2004, p.76).

Sobre a relação entre religião e política na modernidade secularizada, Burity (2001) apostou em

um deslocamento das fronteiras das duas esferas devido ao pluralismo na sociedade moderna. O

autor afirmou haver uma reabertura dos espaços públicos às organizações religiosas a partir de três

movimentos principais: a redefinição da fronteira entre religião e política, a qual dissolveu o sentido do

político e do religioso; a difusão de uma lógica pluralista devido à democracia e uma inserção desse

contexto em uma lógica pós-moderna e pós-secular.

O autor partiu do princípio de que a relação da religião e política é histórica. Dessa forma, ela

nunca deixou de acontecer e que atualmente a relação entre religião e política na opinião de Burity

(2001), se dá em um contexto diferente, em um contexto de pluralismo em que não há apenas uma religião

de massa e sim uma pluralidade de religiões em concorrência. Além disso, de acordo com o autor a

religião não é mais o único espaço de produção simbólica no domínio social.

Nesse contexto, a redefinição das fronteiras entre o político e religioso se dá devido à expansão

do campo de atuação da política, invadindo o campo privado e consequenteme nte abarcando também o

religioso. A democracia pluralista dando abertura aos movime ntos sociais acarretou em um

deslocamento da vida pública, da legislação formal na vida privada (Lei Maria da Penha, por exemplo).

Além disso, devido à concorrência e as novas demandas e conflitos, consequências deste deslocamento,

surgiram demandas de espaços de novas representações, incluindo então, a representação religiosa

em palanques políticos. Sendo assim, “o que é público ou privado, propriamente político ou

propriamente religioso, já não pode ser definido de forma categórica e estável” (BURITY, 2001, p. 34).

Mouffe (2006) faz uma diferenciação entre Igreja e Estado, público e privado e religião e

política. Semelhante à visão de Joanildo Burity (2006), o autor não concorda que a religião deva ficar no

âmbito privado e assim como Casanova (2006), afirmou ser da própria condição democrática a presença de

grupos religiosos na esfera pública. Porém, a separação entre Igreja e Estado é necessária e condição da

democracia liberal, já que vivemos em uma sociedade plural, que parte do pressuposto de que a diferença

impera e que é de direito de todas as diferenças se manifestarem e de ter espaços de representação. E que

é condição da própria democracia oferecer espaços para que os diferentes grupos possam discordar, a

fim de formar uma identidade coletiva em torno de posições claramente diferenciadas.

Ou seja, Mouffe (2006) partiu do pressuposto de que as diferenças existem e a democracia

1 “sino para participar in lãs mismas luchas de cara a definir y sentar las fronteras modernas entre las esferas privada y pública, entre legalidad

e moralidad, entre família, sociedad civil, economia y estado, entre naciones, estados y civilizaciones em el sistema global emergente.”

(CASANOVA, 2004, p. 76, tradução minha).

35

teria que dar condições às opiniões até mesmo às mais apaixonadas de se expressarem no meio

público para que haja posições definidas em torno de questões claramente abertas. O pluralismo

agonístico que Mouffe (2006) defendeu trata exatamente disso, de se ter um sistema de democracia que

permita que essas discussões aconteçam e que se tenham posicionamentos claros, para que identidades

coletivas se formem a fim de escolherem entre posições definidas. E os grupos religiosos, que muitas

vezes se posicionam de forma apaixonada possuem, mesmo assim, o direito de se expressarem em

espaços públicos.

Apesar de existir grande presença da religião em esferas públicas e, segundo Casanova

(2006) e Mouffe (2006), essa possibilidade de acesso de religiosos à esfera política ser uma condição da

própria democracia, é também condição da democracia a tolerância e a liberdade religiosa. O próprio

Mouffe (2006) analisou a importância da separação entre Igreja e Estado como condição da própria

democracia para que os espaços de conflitos de diferentes representações existissem. Sobre a separação

específica entre Igreja e Estado então será usado o termo laicidade no presente trabalho, pois laicidade

tem como princípio a tolerância e liberdade religiosa, termos que o conceito de secularização não abarcou,

sendo um conceito voltado mais à racionalização das esferas sociais e deslocamento da religião da lógica

centra l de cada esfera. E esses princípios são de extrema importância para tratar do tema em que se

propôs como objetivo central desse artigo, que é analisar a atividade política de políticos religiosos na

política institucional em Goiás.

POLÍTICOS RELIGOSOS EM GOIÁS

Nesse sentido, tem-se como objeto a presença de políticos evangélicos na Assembleia Legislativa

do estado de Goiás no período de 2011 a 2014. São eles: Fábio Sousa (PSDB), Luís Carlos do Carmo

(PMDB) e Lincoln Tejota (PSD). Como atividade política, foram analisados seus projetos de leis

durante o período referido, totalizando 85 projetos ao todo dos três deputados com a intenção de perceber

se os resultados das atividades práticas desses atores foram baseados em dogmas religiosos (o que é

indiscutíve l e inegociável) ou eram pautas seculares, ou seja, não tendo relação com instituições

religiosas ou dogmas. Além disso, foi realizada uma entrevista qualitativa com cada um deles, no

intuito de perceber como a moral religiosa deve ser trazida para a pratica política.

Dos 85 projetos de lei analisados, verificou-se que apenas quatro deles tiveram ligação com

algum assunto religioso, seja diretamente para denominações religiosas, igrejas, ou com temas

relacionados a dogmas religiosos. Foram eles: A marcha para Jesus, instituída no calendário goiano e a

nomeação de instituição pública da Associação Quadrangular de apoio à criança e adolescente (Fábio

Sousa - PSDB); a nomeação como instituição pública da AME-SEVA – Associação Mantenedora de

Empreendimento de Serviço Ecumênico, Voluntário Altruísta de Goiânia e Região (Lincoln Tejota –

PSD) e o projeto de lei que dispõe sobre a cobrança de ICMS nas contas de serviços públicos estaduais às

igrejas e templos de qualquer culto localizados no estado de Goiás (Luís Carlos do Carmo – PMDB).

36

Em relação a moral religiosa trazida para a prática política desses atores religiosos goianos,

pode-se perceber que essa moral foi considerada trazida como moral geral a ser seguida, como

conduta de vida a ser seguida não somente na atividade política do dia-a-dia, mas como comportamento a

ser levado a todos os setores da vida deles.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Assim, considerou-se então que a pauta predominante nos projetos de lei dos atores políticos

evangélicos pesquisados foi uma pauta secular, ou seja, a maioria dos projetos de lei não apresenta

ligação com dogmas religiosos ou instituições religiosas. Considerou- se também, que os projetos

considerados religiosos foram apresentados com respeito à liberdade religiosa e à tolerância, já que foram

projetos não apenas voltados às denominações religiosas dos próprios deputados, mas projetos voltados à

denominações cristãs de forma geral.

Apesar disso, pode-se constatar que as religiões de matriz africana não foram abarcadas em

nenhum dos projetos de lei, podendo então, considerar que a liberdade religiosa e a tolerância foi

parcialmente respeitada, já que os projetos não abrangem as outras religiões.

Assim como a defesa dos então deputados sobre a moral religiosa a ser seguida não apenas no

dia-a-dia na Assembleia, mas também na vida. Esses valores não abarcam os valores de outras religiões

ou religiosidades, considerando apenas a visão cristã do mundo.

Ainda assim, por fim, considera-se que esses atores políticos religiosos não apresentam grandes

ameaças ao estado democrático e laico no sentido aqui analisado. Porém, são atores que não se envolvem

com temas polêmicos ligados à direitos humanos de minor ia s laicas (como os movimentos feministas e

movimentos LGBTTs), como se percebe na atuação da Frente Parlamentar Evangélica atuante no

Congresso Nacional atualmente. Dessa forma, pergunta-se se a isenção desses atores a temas ligados

a direitos humanos seria uma preservação de sua imagem política religiosa?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo : Ed. Paulinas, 1985. ________________. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro. V. 21, n. 1, p. 09-24, 2001. _______________, LUCKMAN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido. A orientação do homem moderno. Ed. Vozes. Petrópolis, 2004. BURITY, Joanildo A. Religião e Política na Fronteira: desinstitucionalização e deslocamento numa relação historicamente polêmica. Revista de Estudos da Religião. nº 4, p 27-45. 2001. ___________________. Religião, voto e instituições políticas: notas sobre os evangélicos nas eleições de 2002. In: Os Votos de Deus. Evangélicos, política e eleições. BURITY, Joanildo A., MACHADO, Maria Das Dores C. (Orgs.). Recife : Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2006. CASANOVA, José. Religiones públicas em um mundo global. Iglesia Viva, nº218, abril-junio, 2-73 – 2-86, 2004. __________________.Rethingking secularization: a global comparative perspective. The Hedgehog review, Spring&Summer, p. 7-22, 2006 MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira. Católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Civitas v 11 n 2. Porto Alegre. pp. 238-258. 2011. ___________________. Efeitos da secularização do Estado, do pluralismo e do mercado religiosos sobre as igrejas pentecostais. Civitas. Porto Alegre, v. 3, nº 1, p 111 – 125, jun 2003. MARTÍNEZ. Daniel Gutiérrez. RAYMUNDO. Marcia Mocellin. Considerações sobre a laicidade e a diversidade e suas conexões com a bioética. Revista Brasileira de Bioética 6 (1-4), pp. 53-68. 2010. MOUFFE, Chantal. Religião, democracia liberal e cidadania. In: Os Votos de Deus. Evangélicos, política e eleições. BURITY, Joanildo A., MACHADO, Maria Das Dores C. (Orgs.). Recife : Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2006. ZEPEDA, José de Jesus Legorreta. Secularização ou ressacralização? O debate sociológico contemporâneo sobre a teoria da secularização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v 25, nº 73, p. 129 – 141, 2010.

37

RRAAÍÍZZEESS ee IINNFFLLUUÊÊNNIICCAASS RREELLIIGGIIOOSSAASS [Compreensão Geral para os Seminários]

Edward Pimenta Jr. - Super Interessante n. 181-out 2002, p. 22-23.

Religiões Panteístas Mais antigas do mundo e a primeira etapa da evolução do pensamento

religioso (antes de 4000 a.C.). Sem base escrita. Deus está no sol, lua, vento,

forças da natureza. Animismo, xamanismo e totemismo: rituais ao ar

livre e culto aos antepassados.

Politeísmos Deuses criadores e

destruidores.

Religiões Orientais Revelação dos seres

iluminados, reencarnação e evolução por esforço ∆.

Religião Grega Deuses com

atributos humanos

Religião Egípcia Deuses com

atributos humanos

Hinduísmo Baseado no livro

do Vedas, abrange variações

monoteístas e politeístas.

Shintoísmo Antepassados como deuses

tutelares. 700 a.C.

Neopanteístas Resgatam símbolos e

mitos de diversas religiões (monista).

Mais comum a partir do séc. XVIII

Espiritismo Reencarnação e

evolução espiritual. Allan Kardec 1857.

Budismo Siddartha Gautama (600 a.C.). Vidas

passadas e presentes interligadas

Seicho-No-Ie Criada em 1930,

promove curas e graças. Bom e ruim depende da

atitude mental

Rosa Cruz Fraternidade mística, mais

divulgada a partir de 1909

Monoteísmos Último milênio a.C. com livros sagrados,

códigos de leis e verdades absolutas.

Judaísmo Povo escolhido por Deus. A Torá e o

Talmude são livros sagrados.

Cristianismo Crêem na existência de um Deus criador e no caráter divino da revelação de Jesus.

(54)

Hare Krishna Desdobramento do hinduísmo (1966). Baseado na devoção a

Vishnu e Krishna. Com mantras � fim da ansiedade e desenv. cs e do amor a Deus.

Umbanda Início do séc. XX. É

sincrético (Candomblé, catolicismo, espiritismo

e ameríndios).

Candomblé Origem africana no

Brasil (1700). O Orixá incorpora no pai ou mãe de santo. Cada entidade

com suas cantigas/danças

Sincretismos Afros As tribos africanas no Brasil

se separaram e tradições religiosas se misturaram.

Xangô, Tambor de Mina e Babaçuê.

Pentecostais Surgem nos EUA, séc. XX. Poder

de cura do Espírito Santo (Cristã do Brasil, Assembléia de Deus,

Evangelhos Quadrangular, O Brasil para Cristo, Deus é Amor...).

Protestantismo Rompe com a hierarquia de Roma (1517). Luteranos, calvinistas e anglicanos:

salvação pela graça de Deus, mediante a fé.

Presbiteriana Surgiu na Europa (1546),

inspiração calvinista. Influenciou na formação dos

EUA.

Catolicismo Do núcleo fundado

por Pedro, posterior/e dividido em

arquidioceses, dioceses, províncias eclesiásticas (150)

Igreja Ortodoxa Rompe com cristãos de Roma (1054), fiel

à mensagem primitiva. Valoriza a liturgia e preceitos

morais

Islamismo Maomé o último dos

profetas. (622). O Alcorão versa sobre

vida familiar, política e jurídica.

Influências: Judaica/Cristã.

38

FFÉÉ CCEEGGAA,, FFAACCAA AAMMOOLLAADDAA Ódio gera ódio e escolhe seus alvos a esmo. Contra o radicalismo dos crimes cometidos em nome da religião,

a única arma deve ser um exercício radical de tolerância. Por André Santoro. Revistas das Religiões, ed. 15, nov.2004, p.30-35.

Fanático, de acordo com o dicionário Aurélio, é aquele que: “1) se considera inspirado por uma divindade, pelo espírito

divino; iluminado; 2) tem zelo religioso cego, excessivo; intolerante; 3) adere cegamente a uma doutrina, a um partido; é

partidários exaltado; faccioso; 4) tem dedicação, admiração ou amor exaltado a alguém ou algo; entusiasmo, apaixonado”. No

português, a palavra geralmente é usada em tom negativo. Mas a raiz latina do vocábulo esconde um sentido mais amplo, que vem

do latim fanaticus, uma variação de fanum, que significa templo ou lugar consagrado. “O fanaticus era aquele que freqüentava o

fanum”, diz José Rodrigues Seabra Filho, especialista em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo.

A etimologia joga um facho de luz sobre a palavra que é pronunciada à exaustão em nossos dias. Fanático não é só o

homem-bomba que, por algum motivo obscuro, abre mão da própria vida par ceifar outras tantas. Nem apenas o terrorista que, na

esperança de alcançar o Paraíso, joga um avião contra um prédio. De acordo com o psicanalista Raymundo de Lima, professor da

Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, o fanático – não apenas o religioso – pode ser detectado com base em alguns

sintomas, como a certeza de ser portador de uma verdade inquestionável, a tentativa de imposição tirânica desta mesma verdade,

cuja importância ultrapassaria o instinto de preservação da própria vida, e isolamento do grupo.

Qualquer semelhança com uma crença que extrapola os limites da fé e descamba para a fúria cega contra o próximo não é

mera coincidência. As religiões, aliás, sempre estiveram associadas a algum grau de fanatismo, por um motivo simples: elas só se

mantêm graças à partilha dos mesmos valores por uma determinada comunidade. É claro que os métodos de persuasão variam

bastante, o que significa dizer que nem todos os religiosos são fanáticos, no sentido pejorativo da palavra. “Mas a sensação da

certeza proporcionada pelas religiões abre espaço para a violência, mesmo que seja em nome da paz”, afirma o filósofo Luiz

Felipe Ponde, da PUC de São Paulo.

MEDO DO NOVO

A violência é um elemento que não pode ser dissociado da natureza humana. Quando o homem começou a manifestar

suas crenças em sistemas mais ou menos organizados, essa agressividade visceral passou a ser aliviada por uma válvula de escape:

o ritual do sacrifício. A teoria acima, elaborada pelo antropólogo francês René Girard, é uma explicação possível para os atos de

crueldade promovidos por alguns indivíduos que se dizem iluminados. Os sacrifícios, que podem resultar no derramamento de

sangue de um animal ou de uma multidão de pessoas inocentes, aplacariam a ira divina e fariam girar a roda da fé.

O pensador justifica sua visão de que a violência, longe de ser um simples efeito colateral, pode ser uma necessidade

interna das religiões. E busca as possíveis origens desse instinto de destruição no Antigo Testamento. “Talvez seja este, entre

outros, o significado da história de Caim e Abel. Caim cultiva a terra e oferece a Deus os frutos de sua colheita. Abel é um pastor

e sacrifica os primogênitos de seu rebanho. Um dos irmãos mata o outro – justamente o que não dispõe deste artifício contra a

violência”, escreveu Girard em seu livro A Violência e O Sagrado.

Em geral, a prática religiosa é permeada por atitudes positivas: o exercício da caridade, a pregação do diálogo e do

respeito ao outro, a valorização da ética, a celebração da partilha, entre outras. No entanto, todo credo baseia-se em algum tipo de

restrição ideológica. “Um dos pilares da construção religiosa é a crença coletiva em certos valores”, diz o pesquisador César

Vinícius Ornelas, da PUC de São Paulo, que prepara uma tese de doutorado sobre fundamentalismo religioso. O pensamento, ao

extremo, é mais ou menos assim: se eu creio na verdade e este é o caminho correto, o outro – que não segue minha doutrina – só

pode estar errado.

É claro que, mesmo com a adesão do grupo a princípios comuns, a fé pode andar longe das atitudes radicais. “A

religiosidade pressupõe uma experiência existencial e a busca de um sentido ético para a vida. Mas o sagrado e o profano são os

dois lados necessários da vida. Quando tudo se concentra no templo, há o risco do fanatismo”, afirma o rabino Alexandre Leone,

da Congregação Israelita Paulista.

39

VOLTA ÀS RAÍZES

A tentativa de compreender o mundo exclusivamente através do prisma da religião pode desencadear um processo de

limitação das liberdades individuais. E costuma surgir como resposta a alguma ameaça externa. Em meados do século 19, alguns

seguidores do Protestantismo norte-americano passaram a se sentir ameaçados pelo impulso de mudança que tomava conta da

sociedade. Em oposição aos protestante mais liberais, eles começaram a defender uma interpretação literal da Bíblia – ou, na visão

da época, um retorno aos fundamentos do Cristianismo. Em 1915, um grupo de professores de Teologia da universidade de

Princeton publicou uma coleção intitulada Fundamentals: A Testimony of the Truth (Fundamentos: Um Testemunho da Verdade,

inédito no Brasil). A partir de então, os seguidores desse novo Protestantismo passaram a se denominar fundamentalistas.

O termo que hoje rotula grupos extremistas islâmicos e seguidores de seitas apocalípticas, entre outros, nasceu como uma

reação à modernização. “Não só modernização tecnológica, mas modernização dos espíritos, do liberalismo, da liberdade das

opiniões, contrastando fundamentalmente com a seguridade que a fé cristã oferecia”, escreveu o teólogo Leonardo Boff em seu

livro Fundamentalismo: a Globalização e o Futuro da Humanidade. Ser fundamentalista de acordo com Boff, “é assumir a letra

das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da História, que obriga a

contínuas interpretações a atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial”.

O próprio fundamentalismo religioso pode ser interpretado de forma positiva, desde que deixemos de lado as

conseqüências mais sangrentas da interpretação inflexível dos mandamentos religiosos. “Quanto mais vamos aos fundamentos do

Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo, mais encontramos a dimensão libertária, o cuidado para com os pobres, o respeito para

com todas as pessoas e a veneração para com a natureza”, afirma Leonardo Boff. Encarada desta forma, a busca pelas raízes das

religiões pode ter uma causa nobre e humanista. Nem todo comportamento fundamentalista, portanto, é baseado em mecanismos

de intolerância e intransigência. Um exemplo seria a Teologia da Libertação, que retoma as bases do Cristianismo para promover

atitudes humanistas e democráticas.

Apesar de representar uma interpretação rígida de alguma doutrina, o fundamentalismo não dever ser confundido com

ortodoxia. “Cada religião baseia-se em um cerne dogmático de crenças. Às vezes, existe uma autoridade, como a do papa ou da

Congregação Romana, que determina que interpretações desviam-se desse dogma e, portanto, da ortodoxia”, escreveu o filósofo

Jürgen Habermas no livro Filosofia em Tempo de Terror. O ortodoxo defende a preservação da doutrina, mas não é,

necessariamente, fechado ao diálogo. E, acima de tudo, goza de boa reputação entre seus pares, algo que não costuma acontecer

com grupos fanáticos. “A maioria dos seguidores do Islamismo, Cristianismo, Judaísmo, Budismo, Sikhismo e Hinduísmo

considera que os fundamentalistas são uma minoria irresponsável”, afirma o historiador Robert Scott Appleby em The

Ambivalency of the Sacred (A Ambivalência do Sagrado, sem tradução para o português).

Muito antes dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, seguidores de diferentes religiões já

experimentaram algum tipo de fundamentalismo. “Ele não se limita aos grandes monoteísmos. Ocorre também entre budistas,

hinduístas e até confucionistas quando rejeitam muitas da conquistas da cultura liberal, lutam e matam em nome da religião e se

empenham em inserir o sagrado no campo da política e da causa nacional”, escreveu a teóloga e ex-freira católica Karen

Armstrong na obra Em nome de Deus.

Apesar de ter surgido oficialmente no século 19, a busca pelos fundamentos religiosos é um fenômeno que ganhou força

nas últimas duas décadas, especialmente após a queda do Muro de Berlim. Os discursos ideológicos, que se apoiavam num

mundo polarizado entre duas grandes forças políticas, perderam terreno para as justificativas religiosas. Hoje, matar em nome de

um regime de governo tornou-se tão menos contuntende – e freqüente – quanto cometer crimes usando a fé como pretexto.

40

INTOLERÂNCIA EM NOME DA PAZ

Na manhã do dia 20 de março de 1995, membros de uma seita japonesa espalharam o venenoso gás sarin dentro de vagões

superlotados do metrô de Tóquio. O ataque matou 12 pessoas, intoxicou milhares de passageiros e foi atribuído ao movimento de

cunho terrorista Aun Shinrikyo (A Verdade Suprema). O líder da seita, Shoko Asahara, apresentava-se como um messias e

prometia uma batalha do fim dos tempos que lhe proporcionaria o domínio do Japão e do mundo.

Além da matança indiscriminada, o que mais assustou foi o fato de a seita basear-se em princípios de várias doutrinas que

pregam a paz e a tolerância, como o Budismo japonês, o Budismo tibetano e o Hinduísmo. “O fato de o Japão ter dado as costas à

sua espiritualidade tradicional e ter adotado uma mentalidade francamente materialista, para não dizer hostil à religião, ajudou a

tornar a juventude japonesa extremamente vulnerável a esse tipo de movimento”, afirma o reverendo Ricardo Mário Gonçalves,

do Instituto Budista de Estudos Missionários, em São Paulo.

Na linha budista japonesa, os movimentos de retorno aos fundamentos da doutrina surgiram no século 19 – assim como

no Protestantismo norte-americano – como reação ao processo de modernização pelo qual passava a sociedade japonesa. “Existe

fundamentalismo no Budismo, como em todas as grandes religiões”, afirma o reverendo Ricardo. E suas principais características,

de acordo com ele, são a simplificação extrema da doutrina para a solução de problemas materiais imediatos, o uso de técnicas

agressivas de propaganda para massificar a religião e a adoção de posições políticas conservadoras, desencorajando atitudes

críticas frente aos problemas sociais.

ORIGENS DO TERROR ISLÂMICO

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos passaram a ser vistos com desconfiança pelo mundo ocidental. O

simples fato de ostentar um nome árabe tirou o sossego de muitos viajantes que desejavam entrar em países cristãos,

especialmente nos Estado Unidos. Muito já se falou sobre as passagens belicosas do Corão. “Matai os idólatras, onde quer que os

acheis; capturai-os, acossai-os e espreitai-os”, diz um trecho do livro sagrado do Islamismo. Por outro lado, várias passagens

pregam a alternativa da paz e do diálogo. Matar um inocente, com base nessa visão, seria o equivalente a matar a humanidade.

Mas, afinal, o Islã pode ser usado como justificativa para atos de terror? O historiador Bernard Lewis oferece uma possível

resposta a esta questão. A violência promovida atualmente por alguns grupos islâmicos, de acordo com o pesquisador, seria a

reedição de atos sangrentos praticados por uma seita de radicais surgida no Irã no século 10. A luta dos “Assassinos”, como eram

chamados, tinha como objetivo final a restauração da unidade do Islã, que havia sido abalada pela morte do profeta Muhammad.

Como muitos terroristas de hoje, eles também eram treinados para matar e morrer, na esperança de alcançar o Paraíso e todas as

suas benesses.

Apesar do valor histórico de sua pesquisa, o próprio Bernard Lewis faz uma advertência: os Assassinos tinham

características fundamentalistas e foram, talvez, o primeiro grande movimento de intolerância dentro do Islã. “Mas eles não

inventaram o assassinato, apenas emprestaram dele o nome. O homicídio, tal como é, é tão antigo quanto a raça humana”, afirma

o escritor em seu livro Os Assassinos: Os Primórdios do Terrorismo no Islã.

PERSPECTIVAS

Todos os dias somos bombardeados com notícias sobre novos atentados em tradicionais zonas de conflito. Repetindo o

eterno ciclo de violências que se arrasta desde as cruzadas, quando cristãos e muçulmanos digladiavam-se, facções religiosas

pregam o ódio mútuo – muitas vezes com a ajuda dos meios de coerção de seus próprios Estados – como forma de defender seus

dogmas. Em Israel, grupos judaicos fundamentalistas pleiteiam um Estado regido pelas leis da Tora em vez de um sistema de

governo laico. Segundo o rabino Alexandre Leone, por conta do apego desses grupos às próprias crenças, eles abominam qualquer

tipo de manifestação religiosa não judaica. A mesma lógica – de defesa dos fundamentos de sua fé – permeia os ataques de fiéis

evangélicos a cultos afros no Brasil. O argumento é de que esses fiéis se sentiriam ameaçados pelos rituais praticados no

Candomblé e na Umbanda, que, na visão deles, estariam associados a obras do demônio e iriam contra a vontade de Deus.

Talvez ainda sejamos obrigados a conviver com a rotina diária da religião a serviço do ódio – ou vice-versa –

durante um bom tempo. Há saída para o ciclo de intolerância dentro do qual a humanidade se encontra há vários milênios, mas o

caminho não é dos mais fáceis. “Ao terrorismo devemos responder com ações de justiça social em nível mundial, com relações

mais equânimes, com formas de inclusão e de diálogo com todas as culturas”, afirma Leonardo Boff. Utópico? Talvez. “A

pergunta que fica, dentre muitas outras, é se é possível resgatar o passado sem aniquilar o futuro. Podemos lidar com a tradição

sem violentar o presente?”, afirma César Ornelas. Cabe a nós encontrar as respostas. Sem demora.

41

MMAARRXX EE AA RReelliiggiiããoo CRITICA IDEOLÓGICA

(concepção da pessoa humana)

CRITICA POLÍTICA

(relação indivíduo e Estado)

Não existe uma igualdade real

na sociedade o indivíduo tem uma diversidade hierarquizada

⇒ conflito entre si

CRITICA ECONÔMICA

(relação indivíduo –

modo de produção capitalista)

A mercadoria de valor prático foi acrescido de valor simbólico

felicidade

Estado Burguês representante DEUS

Onipresente

Onipotente

Onisciente

Bom

Justo ....

Mercadoria produzida

$

representa

a felicidade

Esta parte deveria dominar o mundo

Bom

Inteligente

Forte

Criativo

ALI

EN

ÃO

relig

ião

conf

essa

relig

ião

pol

ítica

est

ado

relig

ião

da m

erca

doria

ALI

EN

ÃO

ALI

EN

ÃO

Direitos e

Deveres

�� Trabalha e

produz a

mercadoria

�� ��