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Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 211 Introdução: refletir sobre as relações Introdução: refletir sobre as relações Introdução: refletir sobre as relações Introdução: refletir sobre as relações Introdução: refletir sobre as relações entre famílias populares e escola entre famílias populares e escola entre famílias populares e escola entre famílias populares e escola entre famílias populares e escola Em qualquer pesquisa, quando construímos um objeto ou uma forma de abordar e tratar uma questão, o fazemos comumente de maneira a ultrapassar os discursos, os pontos de vista ou as abordagens que nos pareçam precários ou insuficientes. No que concerne às relações entre as famílias populares e a escola, ou à relação das famílias populares com a es- colarização, o discurso que mais freqüentemente en- contramos nos ambientes educacionais é o discurso normativo, que tende a insistir naquilo que, do ponto de vista da instituição escolar, é percebido como dé- ficit da ação dos pais no que tange à escola, ou seja, como déficits educacionais. Esse discurso é particu- larmente fértil, uma vez que se dirige às frações mais dominadas e mais carentes das classes populares, aquelas que são mais afetadas pela precariedade da existência. Para escapar a essa visão depreciativa, que não permite levar em conta as relações das famílias populares com a escola e a escolarização, várias abor- dagens sociológicas podem ser mobilizadas. Podemos apreender as relações com base nas di- ferenças de capitais associados às posições sociais, fazendo uso do conceito de capital cultural, criado por Pierre Bourdieu (1979a, 1979b), para analisar as diferenças entre classes sociais nas relações com a escola (Lareau, 1989). Insistimos então na fraqueza dos recursos culturais e escolares que os pais podem mobilizar em suas relações com a escola e para con- tribuir para a escolaridade de seus filhos, assim como nos efeitos de dominação gerados por essa relativa fraqueza em termos de capital cultural. Em uma pers- pectiva próxima a essa, as relações podem ser vistas como relações entre indivíduos ou grupos que ocu- pam posições diferentes no espaço social: de um lado, os professores, membros das classes médias assala- riadas; de outro, as famílias populares, caracteriza- das por seu pertencimento às classes sociais mais des- providas e mais dominadas no espaço social. O sentido das relações está, portanto, todo contido nas diferen- ças entre as posições objetivas dos indivíduos e dos grupos no espaço social. Enfim, podemos assinalar que as relações entre famílias populares e escola sur- gem das relações entre instituições de socialização e Para uma análise das relações entre famílias ara uma análise das relações entre famílias ara uma análise das relações entre famílias ara uma análise das relações entre famílias ara uma análise das relações entre famílias populares e escola: confrontação entre lógicas populares e escola: confrontação entre lógicas populares e escola: confrontação entre lógicas populares e escola: confrontação entre lógicas populares e escola: confrontação entre lógicas socializadoras socializadoras socializadoras socializadoras socializadoras Daniel Thin Universidade Lumière Lyon 2, Faculdade de Antropologia e Sociologia Tradução: Anna Carolina da Matta Machado Revisão técnica: Lea Pinheiro Paixão

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  • Para uma anlise das relaes entre famlias populares e escola

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 211

    Introduo: refletir sobre as relaesIntroduo: refletir sobre as relaesIntroduo: refletir sobre as relaesIntroduo: refletir sobre as relaesIntroduo: refletir sobre as relaesentre famlias populares e escolaentre famlias populares e escolaentre famlias populares e escolaentre famlias populares e escolaentre famlias populares e escola

    Em qualquer pesquisa, quando construmos umobjeto ou uma forma de abordar e tratar uma questo,o fazemos comumente de maneira a ultrapassar osdiscursos, os pontos de vista ou as abordagens quenos paream precrios ou insuficientes. No queconcerne s relaes entre as famlias populares e aescola, ou relao das famlias populares com a es-colarizao, o discurso que mais freqentemente en-contramos nos ambientes educacionais o discursonormativo, que tende a insistir naquilo que, do pontode vista da instituio escolar, percebido como d-ficit da ao dos pais no que tange escola, ou seja,como dficits educacionais. Esse discurso particu-larmente frtil, uma vez que se dirige s fraes maisdominadas e mais carentes das classes populares,aquelas que so mais afetadas pela precariedade daexistncia. Para escapar a essa viso depreciativa, queno permite levar em conta as relaes das famliaspopulares com a escola e a escolarizao, vrias abor-dagens sociolgicas podem ser mobilizadas.

    Podemos apreender as relaes com base nas di-ferenas de capitais associados s posies sociais,fazendo uso do conceito de capital cultural, criadopor Pierre Bourdieu (1979a, 1979b), para analisar asdiferenas entre classes sociais nas relaes com aescola (Lareau, 1989). Insistimos ento na fraquezados recursos culturais e escolares que os pais podemmobilizar em suas relaes com a escola e para con-tribuir para a escolaridade de seus filhos, assim comonos efeitos de dominao gerados por essa relativafraqueza em termos de capital cultural. Em uma pers-pectiva prxima a essa, as relaes podem ser vistascomo relaes entre indivduos ou grupos que ocu-pam posies diferentes no espao social: de um lado,os professores, membros das classes mdias assala-riadas; de outro, as famlias populares, caracteriza-das por seu pertencimento s classes sociais mais des-providas e mais dominadas no espao social. O sentidodas relaes est, portanto, todo contido nas diferen-as entre as posies objetivas dos indivduos e dosgrupos no espao social. Enfim, podemos assinalarque as relaes entre famlias populares e escola sur-gem das relaes entre instituies de socializao e

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    Daniel ThinUniversidade Lumire Lyon 2, Faculdade de Antropologia e Sociologia

    Traduo: Anna Carolina da Matta MachadoReviso tcnica: Lea Pinheiro Paixo

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    Daniel Thin

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    de enquadramento e membros de classes populares,relaes consideradas na perspectiva de um controlesocial exercido sobre as famlias (Donzelot, 1977).1

    Essas abordagens permitem evitar os discursos queadotam o ponto de vista da instituio escolar, e es-clarecem vrias dimenses das relaes entre as fa-mlias populares e a escola. Alis, elas no esto to-talmente ausentes de nossas prprias anlises, porexemplo, quando observamos a ao empreendidapelos agentes da instituio escolar para tentar imporaos pais outras prticas socializadoras ou outras re-gras familiares de vida, ou ainda quando estudamos aao dos dispositivos encarregados de remediar asrupturas escolares de estudantes dos meios populares(Kherroubi, Millet & Thin, 2005). Alm disso, temosrealmente de falar de famlias que possuem fracocapital cultural, se o medirmos pelos diplomas e pelonmero de anos de escolarizao dos pais, e pela suadistncia com relao cultura dominante.

    Entretanto, parece-nos que essas abordagens dei-xam de fora questes centrais que envolvem as rela-es entre famlias populares e escola. O capital cul-tural certamente um indicador valioso quando setrata de classificar os sujeitos sociais e suas prticasculturais e educativas, compar-los, situ-los uns emrelao aos outros, mas no permite, por si s, resti-tuir ou resumir a diversidade e a complexidade dasprticas.2 Ele deixa de lado as relaes efetivas dospais com a escola, a forma como os pais se apropriamda escolaridade de seus filhos, o sentido que eles atri-buem a isso, as prticas socializadoras familiares,apesar das correlaes que podemos estabelecer en-tre prticas e capital escolar, correlaes que so amanifestao dos efeitos durveis da socializaoexercida pela escola.

    Acima de tudo, se nos limitarmos a essas dimen-ses, esqueceremos a especificidade de relaes que

    se entrelaam ao redor de um fenmeno que tem suasprprias caractersticas (irredutveis s caractersticasde uma classe social), a escolarizao, e de relaespor meio das quais so confrontadas prticas sociali-zadoras divergentes. Para compreender as relaesentre as famlias populares e a escola, preciso levarem conta o fato de que essas relaes colocam emjogo maneiras de estar com as crianas, maneiras deexaminar as aprendizagens, maneiras de comunicar,ou, ainda, maneiras de regular os comportamentosinfantis ou juvenis. As relaes produzidas pela esco-larizao revelam sujeitos sociais cujas prticas so-cializadoras so muito diferentes, freqentementecontraditrias, entretecidas por lgicas antinmicas:de um lado, os professores, cujas lgicas educativasfazem parte daquilo que chamamos modo escolar desocializao; do outro, famlias populares com lgi-cas socializadoras estranhas ao modo escolar de so-cializao. No , portanto, somente o capital cultu-ral ou o capital escolar que esto em jogo; o conjuntodas prticas socializadoras das famlias que estoimplicadas nas relaes entre os pais e os professo-res, e essas prticas devem ser compreendidas por suadistncia do modo escolar de socializao, mais doque pelo capital escolar dos pais. Nossas pesquisassobre as relaes entre famlias populares e escola(Thin, 1998) nos levaram a entender essas relaesnaquilo em que elas so urdidas por dissonncias etenses entre lgicas socializadoras divergentes, atmesmo contraditrias, e, finalmente, como o lugar deuma confrontao desigual entre dois modos de so-cializao: um, escolar e dominante; o outro, populare dominado.3

    1 Para um retorno crtico noo de controle social e sua

    crtica, ver Darmon (1999).2 Sobre esse assunto, ver Lahire (1995).

    3 Essa tese, alis, perpassa nossos trabalhos mais recentes.

    Assim, uma pesquisa sobre os percursos de rupturas escolares toma

    como ponto de partida que o fundamento dessas rupturas reside

    na contradio entre as lgicas sociais nas quais os alunos oriun-

    dos de famlias populares (e, particularmente, os mais domina-

    dos) vivem e so socializados, e as lgicas escolares. Ver Millet e

    Thin (2003, 2005).

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    Diversidade e hierarquiaDiversidade e hierarquiaDiversidade e hierarquiaDiversidade e hierarquiaDiversidade e hierarquiadas lgicas socializadorasdas lgicas socializadorasdas lgicas socializadorasdas lgicas socializadorasdas lgicas socializadoras

    Analisar as relaes entre famlias populares eescola nessa perspectiva requer que se abandone aviso dominante que caracteriza essas famlias pelaincoerncia, pela negligncia, pela anormalidade,e que se considere que as prticas e as maneiras defazer dos pais no so totalmente incoerentes, que elastm sua prpria lgica, ou melhor, que elas no pare-cem incoerentes seno quando confrontadas com asnormas da escola e, de modo mais amplo, com asnormas dominantes da vida social. Isso exige tam-bm ultrapassar as concepes normativas da sociali-zao (trazidas, por exemplo, pelas sociologiasultrafuncionalistas, como a de Talcott Parsons, queignoram a variabilidade social das normas de classe,atribuindo s normas convencionais, por petio deprincpio, uma quasi-universalidade (Chamboredon,1997, p. 190-191), ou que reduzem o sentido da so-cializao interiorizao de normas sociais domi-nantes ou produo de indivduos capazes de viverem conformidade com as leis e normas prprias a umaformao social em uma dada poca. Trata-se, antes,de pensar formas diversas de socializao relaciona-das s condies de existncia, s relaes sociais e histria dos grupos e dos indivduos. Segundo o pro-grama de pesquisa do Groupe de Recherche sur laSocialisation (GRS),4 trata-se de sair de uma sociali-zao vista como o nico produto da ao das insti-tuies construdas ao longo da histria, para conceb-la como um processo contnuo, nos dois planos dabiografia individual e da produo das relaes so-ciais, e que no se reduz, portanto, ao de umainstncia particular.5 Produto das relaes sociais

    (mais ou menos institucionalizadas), ela conhece va-riaes em funo das diversas configuraes de re-laes sociais nas quais se produz e das quais os indi-vduos participam. Entender desse modo a noo desocializao permite pensar os desvios e as diferen-as de socializao em funo dos pertencimentos edas trajetrias sociais, como tambm pensar nas ten-ses entre lgicas de socializao divergentes.

    A anlise das relaes entre famlias populares eescola, em termos de encontros entre lgicas sociali-zadoras diferentes e divergentes, alimenta-se dos tra-balhos de Basil Bernstein e de Jean-ClaudeChamboredon, quando destacam, cada um por seulado, as diferenas de socializao segundo as clas-ses sociais e as relaes dessas socializaes diferen-ciadas com os modos de socializao dominantes.

    Ao contrrio do que dizem os comentrios maisfreqentes sobre seus trabalhos, Basil Bernstein nose contenta em destacar dois registros de linguagemou dois cdigos lingsticos com base em suas obser-vaes de crianas de classes superiores e de crianasda classe operria. Associando esses cdigoslingsticos s condies de socializao nas quaiseles emergem, estabelece, ao menos por princpio oupostulado, a ligao entre relaes sociais, condiesde existncia, socializao e modos de comunicao(e, portanto, dimenses simblicas e cognitivas), ediferencia, desse ponto de vista, as classes superiorese as classes populares. Ele desenvolve um estudo derelaes familiares, ou de estruturas intrafamiliares,distinguindo famlias que tm orientao pessoal(classes superiores) e famlias posicionais (classespopulares). Dessa forma, o trabalho de Bernstein pos-sibilita o estudo dos elos entre posies no espaosocial, formas de organizao familiar e de relaes

    4 Encontramos tambm uma concepo de socializao que

    permite pensar uma socializao no-normativa em Berger e

    Luckmann (1986).5 Nessa tica, a noo de socializao tambm no

    assimilvel educao que tenha por objeto suscitar e desenvol-

    ver na criana um certo nmero de estados fsicos, intelectuais e

    morais exigidos dela pela sociedade poltica em seu conjunto, e

    pelo ambiente especfico ao qual ela est particularmente destina-

    da (Durkheim, 1985, p. 51). O autor faz com que esse enunciado

    seja precedido pela seguinte frase: A educao a ao exercida

    pelas geraes adultas sobre aquelas que ainda no esto

    emparedadas pela vida social.

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    Daniel Thin

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    intrafamiliares, e formas de socializao. Alm dis-so, Bernstein trata das relaes entre socializaoescolar e socializao nas famlias, e enfatiza que,para as crianas de classes superiores, a escolariza-o fonte de desenvolvimento cultural e simbli-co, e, para as crianas de classes populares (famliasoperrias), ela uma experincia de mudana sim-blica e social (Bernstein, 1975, p. 192). Ele abordaainda a questo da relao com os brinquedos em di-ferentes tipos de famlias, mostrando a proximidadeda concepo de brinquedos nas classes superiores ea que ocorre na escola maternal6 (idem, p. 159) e adistncia entre essa ltima e a concepo das mes defamlias operrias. Assim, seus trabalhos abrem ca-minho (pelas ligaes que ele estabelece entre cdi-gos lingsticos e socializao) para pesquisas sobreas consonncias e dissonncias entre a socializaoescolar e as diferentes socializaes familiares.

    Por sua vez, Jean-Claude Chamboredon trata dasocializao na escola em suas relaes com a socia-lizao fora da escola, ou seja, nas famlias, atravsdo modo de socializao na escola maternal. Destacaque o desenvolvimento da escolarizao no nvel daescola maternal tem efeitos diferentes de acordo comas classes sociais, a descoberta da primeira infn-cia como objeto pedaggico podendo ter conseqn-cias opostas nas diferentes classes: de um lado, desa-possamento da famlia em proveito da escola; de outrolado, extenso das funes de inculcao da famlia,graas inveno de um novo terreno e de novosmtodos de socializao (Chamboredon & Prevot,1973, p. 297). Chamboredon estabelece uma relaoexplcita entre as condies sociais de existncia e asocializao quando coloca a questo da relao en-tre trabalho e jogo nas diferentes famlias, que variade acordo com as condies mais ou menoslimitadoras e mais ou menos penosas de trabalho, eque traz possibilidades diferenciadas de apreender a

    lgica educativa da pedagogia do jogo; ou, ainda,quando insiste nas condies sociais que favorecemou no uma redefinio do papel pedaggico da mede famlia (idem, p. 304). Finalmente, a relao coma infncia que se impe na escola maternal, e queconstitui uma dimenso do modo escolar de sociali-zao, est mais prxima das famlias de classes su-periores que das famlias populares. Com esse textode Chamboredon, vemos como, afinal, essa relaose constri pelas proximidades entre o modo escolarde socializao, ou uma de suas variantes, e determi-nadas classes sociais, simultaneamente por seu capi-tal cultural e por suas condies de existncia.

    Quando aborda outro objeto, a delinqncia ju-venil, Jean-Claude Chamboredon convida mais cla-ramente a se pensar na diversidade dos modos de so-cializao em funo das classes sociais. Ele insisteprincipalmente nas diferentes formas de regulao doscomportamentos infantis e adolescentes de acordocom as classes sociais: os fracassos de socializa-o no so dissociveis das condies de socializa-o e das formas de regulao caractersticas de cadaclasse social: estas, de fato, definem, seno o conjun-to das causas da delinqncia, ao menos suas condi-es de possibilidade de surgimento (Chamboredon,1997, p. 170). Ressaltando que a delinqncia juve-nil no redutvel a uma rejeio das normas con-vencionais, mas remete s diferenas ou aos afasta-mentos da socializao, e que ela no tem o mesmosignificado nas classes populares e nas classes mdias,em funo das posies das famlias no seio de suasclasses e das prticas de socializao, Chamboredonpermite que se examine o que poderamos denominarconflitos de socializao ou conflitos entre lgicas so-cializadoras, ao mesmo tempo em que se esquiva deuma concepo normativa da socializao.

    Apoiados principalmente nesses dois autores enos trabalhos do GRS sobre a forma escolar comomodo de socializao dominante, foi possvel desen-volver uma anlise das relaes entre famlias popu-lares e escola em termos de confrontao entre as l-gicas socializadoras diferentes, com freqnciadivergentes, s vezes, antinmicas.

    6 Na Frana, a educao bsica compreende a escola mater-

    nal, no obrigatria, que recebe crianas de zero a seis anos, a esco-

    la elementar, obrigatria a partir dos seis anos, e o colegial. (N.T.)

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    Uma confrontao desigualUma confrontao desigualUma confrontao desigualUma confrontao desigualUma confrontao desigual

    Essa confrontao acontece entre dois conjuntosde lgicas socializadoras relativamente distintas umada outra, e que podem se traduzir em prticasantinmicas (por exemplo, no que diz respeito auto-ridade, ou em matria de linguagem, ou ainda do jogo).Esses pontos de distanciamento, essas diferenas, essaoposio entre esses dois conjuntos de lgicas sociali-zadoras so de natureza estrutural, porque esto fun-damentados na estrutura das relaes sociais (queentrecruzam, como sabemos por meio de Bourdieu,dimenses econmicas e dimenses culturais). Acre-dito, alm disso, que esse ponto de vista est presentetambm em Bernstein, quando destaca os vnculos exis-tentes entre os dois cdigos de comunicao, assimcomo as duas formas de socializao e as relaes so-ciais. Essa confrontao entre dois plos (o plo daslgicas escolares e o plo das lgicas populares) , aomesmo tempo, o encontro entre um plo dominante eum plo dominado, o que justifica a proposio de umaconfrontao desigual (Thin, 1994a). Ela desigual nosentido de que as prticas e as lgicas escolares ten-dem a se impor s famlias populares. Ela desigualno sentido de que os pais, tendo pouco (ou nenhum)domnio dos conhecimentos e das formas de aprendi-zagem escolar e dominando mal as regras da vida es-colar, so, no obstante, obrigados a tentar participardo jogo da escolarizao, cuja importncia grandepara o futuro de seus filhos. Ela tambm desigualporque os professores, como agentes da instituio es-colar, tm o poder de impor s famlias que elas seconformem s exigncias da escola (pelo menos s maiselementares entre elas). Ela desigual, ainda, porqueos pais tm o sentimento de ilegitimidade de suas pr-ticas e de legitimidade das prticas dos professores. dessa confrontao desigual que nasce a maioria dosmal-entendidos, das inquietaes, das dificuldades en-tre os professores e as famlias populares. Tais dificul-dades no podem ser analisadas como produto de umasimples incompreenso que basta ser esclarecida paraque as relaes melhorem. As dificuldades so estru-turais e, se queremos falar em mal-entendido, preci-

    so no esquecer que ele produto de uma profundaoposio entre duas lgicas sociais diferentes. Portan-to, falar de confrontao entre as lgicas escolares e aslgicas das famlias populares no significa que as re-laes sejam necessariamente conflituosas. Se a noode confrontao indica claramente a existncia de umatenso constitutiva das relaes entre as lgicas e asprticas mais ou menos antinmicas, essa tenso podeser solucionada por ajustes recprocos, por apropria-es mais ou menos conformes s lgicas escolares,ou ainda por uma coexistncia em que os protagonis-tas das relaes se mantenham distantes uns dos ou-tros. preciso ter claro, ainda, que confrontao desi-gual e o predomnio do modo escolar de socializao(e, ao mesmo tempo, das lgicas da escola) na relaono significam que a situao seja confortvel para osprofessores, nem, ao contrrio, que as prticas dos paisno sejam constrangedoras para os professores. Sabe-mos que essa confrontao torna complexo o trabalhodos professores quando as prticas dos pais no cor-respondem s suas expectativas. Essa confrontao temtambm incidncias nas famlias, que podem serdesestabilizadas at em suas prticas socializadoras comseus filhos, e at em sua autoridade parental, mesmoquando a escola pode tentar valorizar novamente ospais ou requalific-los em seus papis de pais. Na ver-dade, como em todas as relaes sociais, estas aqui sorelaes de interdependncia, no sentido em queNorbert Elias (1991a, 1991b) as teorizou, gerando obri-gaes de interdependncia tanto nas famlias quantonos professores.

    Lgicas socializadoras escolares eLgicas socializadoras escolares eLgicas socializadoras escolares eLgicas socializadoras escolares eLgicas socializadoras escolares emodo escolar de socializaomodo escolar de socializaomodo escolar de socializaomodo escolar de socializaomodo escolar de socializao

    Em um plo da confrontao encontramos as l-gicas escolares incorporadas pelos professores e an-coradas na instituio escolar e na histria social deseus agentes. Essas lgicas esto inscritas no mundoescolar de socializao, produto de um processo his-trico de transformao do modo de socializao ede relao com a infncia dominante em nossas for-maes sociais. No podemos, portanto, estudar as

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    relaes entre professores e famlias populares semnos interrogarmos sobre as lgicas escolares e o modoescolar de socializao que se impe como modo desocializao dominante em nossa formao social, aslgicas socializadoras que esse modo implica ocupan-do amplamente o espao da instituio escolar. Aslgicas escolares, para alm da diversidade das prti-cas de ensino, inscrevem-se e encontram sua unida-de, sua coerncia, seu fundamento no modo escolarde socializao, conceito que se apia nos trabalhosscio-histricos sobre a forma escolar desenvolvidospelo GRS (Vincent, 1980; Vincent, Lahire & Thin,2001).7 A forma escolar constituda, no decorrer deum longo processo histrico, como forma de relaessociais e de socializao que, sem ser completamentehomognea, partilha um certo nmero de traos arti-culados entre si e que caracterizam uma maneira desocializar que se imps como predominante em v-rias sociedades modernas.

    A forma escolar , antes de tudo, caracterizada porum espao e um tempo especficos. A socializao opera-se, ento, fora da vida social comum, num espao fe-chado e resguardado dos olhares no-pedaggicos.Esse o princpio do enclausuramento escolar. A so-cializao ocorre fora das temporalidades da vida so-cial, segundo ritmos que so prprios da escola e quese baseiam no princpio de um emprego bem estrutu-rado do tempo, deixando o mnimo de tempo possvelpara o tempo livre de toda rotina e de toda atividadeescolar ou educativa. Impera a obsesso pela ocupa-o incessante das crianas, sobretudo das crianaspobres, que no devem ficar entregues a si mesmas e

    deixadas nas ruas.8 A forma escolar uma forma derelao social especfica, no sentido de que ela , antesde tudo, uma relao pedaggica. O nico sentido darelao a educao. Os adultos que rodeiam as crian-as tm como nica tarefa educ-las e form-las atra-vs de atividades que no tm outro fim seno a for-mao das mentes e dos corpos. A forma escolar incluitambm as aprendizagens separadas da prtica. No seaprende mais fazendo ou repetindo os gestos daquelesque sabem (praticamente), participando de tarefas co-tidianas e imitando. Aprende-se por meio de exerc-cios concebidos para fins exclusivos de aprendizagem.Alm disso, na forma escolar, a socializao passa pelaaprendizagem de regras, e a relao entre o mestre e oaluno deve-se basear em regras impessoais ou su-prapessoais, que se aplicam tanto ao professor quantoao aluno: ela no pode depender do humor do pedago-go, ou de suas afinidades (ou incompatibilidades) comesse ou aquele aluno. Esse um dos fundamentos dadisciplina escolar, e o duplo sentido disso no aconte-ce por acaso: as disciplinas escolares so entretecidaspela aprendizagem de regras (regras gramaticais, re-gras matemticas, regras de apresentao etc.). Assim,por meio das aprendizagens desenvolve-se um traba-lho educativo e moral. A construo da forma escolarparticipa de maneira central da instaurao de uma novarelao com a infncia, e de uma nova forma de socia-lizar. A criana constituda como um ser especficoque surge de uma ao especfica, distinta das outrasatividades sociais, e que chamamos de educao. Aseparao da infncia, que se realiza preferencialmen-te nas escolas, uma separao social que constituiuma categoria etria, progressivamente desmembradaem subcategorias, sobre a qual deve ser exercida a aoeducativa, a socializao metdica da nova gerao7 O conceito de modo escolar de socializao lembra exa-

    tamente que o que est em jogo so as modalidades de socializa-

    o, e permite evitar os riscos de leitura reificante, aos quais a

    noo de forma escolar nem sempre escapa. Falar de modo esco-

    lar de socializao uma maneira de tornar mais operacional o

    conceito de forma escolar e colocar em suspenso a questo da

    unidade ou da unicidade da forma escolar, para pensar um modo

    de socializao com orientaes partilhadas por diferentes variantes

    ou diferentes evolues da forma escolar.

    8 , alis, surpreendente reencontrar essa obsesso rela-

    cionada s crianas das classes populares no momento em que,

    num pas como a Frana, ressurge o medo das novas classes pe-

    rigosas e de seus filhos, isto , das classes pobres, vtimas da

    precariedade de existncia e, com freqncia, relegadas a morar

    em bairros segregados.

  • Para uma anlise das relaes entre famlias populares e escola

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    de que fala mile Durkheim (1985, p. 51), ao espe-cializada que requer competncias especficas. Ad-mite-se, doravante, que a criana no est madura paraa vida, que preciso que ela seja submetida a um regi-me especial, a uma quarentena, antes de deix-la jun-tar-se aos adultos (Aris, 1973, p. 313).9 Certamente,a forma escolar que foi elaborada a partir dos sculosXVI e XVII na Frana passou por muitas transforma-es ao longo do tempo. Assim, podemos lembrar quenas escolas francesas havia um abrandamento das re-gras e a possibilidade de constru-las em conjunto comos alunos, ou ainda a insistncia na autonomia doaluno, ou seja, a busca de produo de uma auto-obri-gao e de uma autodisciplina na criana, para que elaestabelea suas prticas, seus comportamentos, de acor-do com suas prprias regras, normas ou leis... No en-tanto, se a escola de hoje no mais aquela em quenasceu a forma escolar, ela conserva lgicas que sur-gem fundamentalmente dessa forma escolar. Alm dis-so, o modo escolar de socializao exige um mododominante de socializao, no apenas pelo lugar sem-pre muito importante ocupado pela escola nas socieda-des modernas, mas tambm porque ele se impe comomodo de socializao para alm das fronteiras da es-cola e entretece vrias instncias de socializao (comoas atividades de extenso ou extracurriculares) (Thin,1994b) e partes do espao social, a ponto de podermosfalar de pedagogizao das relaes sociais (Bernard,1984, p. 18).

    Lgicas socializadoras popularesLgicas socializadoras popularesLgicas socializadoras popularesLgicas socializadoras popularesLgicas socializadoras populares

    No outro plo da confrontao, as lgicas so-cializadoras das famlias populares opem-se em

    vrios aspectos s lgicas escolares. Essas lgicassocializadoras populares enrazam-se e perpetuam-se por meio da socializao familiar, das condiessociais de existncia que se afastam das lgicas es-colares, e da prpria escolarizao (ou falta de esco-larizao) dos pais, que est na base de sua relaocom a escola, mas tambm de sua relao com a lin-guagem e com a cultura escolar. As diferenas entreos dois conjuntos de lgicas socializadoras so per-cebidas em uma grande variedade de dimenses.Assim, contrariamente ao modo escolar, que tende aseparar tempo de aprendizagens e tempo de prti-cas, a socializao familiar no ambiente popularacontece principalmente atravs dos atos da vidacotidiana, na convivncia de adultos e crianas, semseparao da vida comum da famlia ou do bairro.Os pais no constroem momentos especficos de aoeducativa com seus filhos, como podemos observarnas famlias de classes mdias e superiores. Eles notransformam os momentos de jogo em momentoseducativos, mas os vivem como momentos de pra-zer compartilhado, com freqncia em relaes cor-porais pouco mediatizadas por jogos que impemregras formais. As diferenas passam igualmentepelas prticas de linguagem que, alm do fato desinalizarem um fraco domnio da linguagem esco-lar, esto estreitamente ligadas ao modo de sociali-zao familiar, estruturao das relaes intrafa-miliares e relao com a escrita na famlia(Bernstein, 1975; Lahire, 1993). Em muitos dom-nios, as lgicas familiares vo de encontro s lgi-cas escolares, pois essas lgicas familiares surgemdas relaes entre pais e filhos, dos modos de comu-nicao, das temporalidades familiares, ou aparecemdiretamente da sua compreenso da escolarizao ede suas relaes com a escola e com os professores.Podemos desenvolver aqui algumas dessas dimen-ses das lgicas e das prticas familiares.

    O modo de autoridadeO modo de autoridadeO modo de autoridadeO modo de autoridadeO modo de autoridade

    A autoridade dos pais e o modo de ao sobre ascrianas apiam-se, sobretudo, no princpio de uma

    9 Essa transformao no deixa de ter ligao com o que

    Norbert Elias chamou processo de civilizao, que supe a cons-

    truo de indivduos para os quais a auto-obrigao se sobrepe

    obrigao exterior. O desenvolvimento dessa auto-obrigao re-

    quer um trabalho que forme hbitos e disposies, trabalho que

    pode ser mais bem realizado com as crianas que so submetidas

    a uma ao pedaggica sistemtica. Ver Elias (1973, 1975).

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    presso exterior que supe uma vigilncia direta eprticas de controle dos comportamentos. Encontra-mos poucas regras dirigindo cada momento da vidada criana quando ela est dentro ou fora de casa,mas a transgresso de limites que no podem ser ul-trapassados, sejam eles limites territoriais ou deaceitabilidade, acarreta diferentes formas de repres-so verbal ou fsica. Os pais fixam os limites a seremrespeitados de forma imperativa, ou seja, eles sopouco negociveis, e fora deles concedem toda liber-dade. A autoridade manifesta-se na forma de sanescontextualizadas, isto , sanes aplicadas diretamenteao ato repreensvel ou reprovado, e que tm comoobjetivo primeiro interromper o ato. Esse modo deautoridade implica que a autoridade, inseparvel docontexto no qual ela se aplica, s pode ser exercidapela presena fsica dos pais. Isso no ocorre facil-mente nas relaes com os professores. Quando estespedem aos pais que intervenham para regular os com-portamentos de seus filhos na escola, os pais sentem-se impotentes e devolvem aos professores sua pr-pria responsabilidade quanto vigilncia direta decomportamentos no espao escolar. Essa atitudeparental, ento, deixa de ser interpretada como umsinal de abandono do seu papel de pais. Ao mesmotempo, nas famlias populares, fica-se do lado opostode prticas que visem de maneira privilegiada trans-mitir e fazer interiorizar uma moral por meio de umdiscurso educativo, a produzir disposies pela ex-plicitao de princpios morais, que permitem que ascrianas participem, discernindo as boas das msinfluncias. Trata-se, sobretudo, de vigiar, de impe-dir ou de limitar as aes das crianas, especialmentefora de casa, em vez de inculcar-lhes regras de segu-rana, de moral... s quais elas devero submeter seuscomportamentos. Em outras palavras, as prticas dospais de famlias populares agem mais pela pressoexterior do que pela busca de um autocontrole10 dasprprias crianas. Ora, de modo inverso, a escola hojevaloriza a autonomia, entendida como a capacidade

    de as crianas comportarem-se, por si mesmas, deacordo com as regras da vida escolar e, de modo maisamplo, social. A autonomia (forma de autocontrole)assim concebida no apenas buscada, mas s vezestambm esperada pelos professores, que gostariam queseus alunos fossem autnomos desde o momento emque entram em sua sala de aula. Desse ponto de vista,as prticas dos pais, apreendidas por meio do com-portamento de seus filhos, ou diretamente, nos en-contros com os professores, parecem, para estes, muitodistanciadas das prticas que desenvolvem a autono-mia das crianas.

    Esse distanciamento faz com que os pais sejamcom freqncia percebidos pelos professores comofracos do ponto de vista da autoridade que exercemsobre suas crianas (ao mesmo tempo muito rgidose muito permissivos), fraqueza que estaria na ori-gem dos comportamentos no conformes s regrasescolares apresentados por certas crianas dos meiospopulares. Outra conseqncia que, quando os pro-fessores apelam para a autoridade dos pais, eles sem-pre podem recear que ela seja exercida de acordo commodalidades muito afastadas da norma escolar deautoridade, principalmente porque os pais das fam-lias populares comumente usam castigos corporaispara punir os atos repreensveis.11 Essa confrontaodos modos de autoridade carregada de umadesqualificao potencial dos pais. Estes podem sen-tir-se duplamente desqualificados: primeiro, porquetm pouco domnio sobre o comportamento de seusfilhos; segundo, porque as modalidades de sua aosobre esses comportamentos seriam muito violentasou prejudiciais autonomia das crianas. Esse sen-timento de desqualificao contribui para desarmar aautoridade dos pais justamente onde as instituiesde socializao e de enquadramento (a escola, o tra-

    10 De acordo com a expresso de Norbert Elias.

    11 Alm do fato de que a ao fsica corresponde mais

    inteno de interromper rapidamente o ato repreensvel, seria pre-

    ciso levar em conta tudo aquilo que os castigos corporais impli-

    cam em relao ao corpo das classes populares, que devem sua

    existncia no plano econmico sua fora fsica de trabalho.

  • Para uma anlise das relaes entre famlias populares e escola

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 219

    balho social) gostariam de refor-la, sobretudo seconsiderarmos que as prprias crianas, ao descobri-rem na escola outro modo de autoridade, outros prin-cpios de legitimidade dos adultos, podem questionara autoridade parental tradicional.

    O distanciamento entre as expectativas dos agen-tes da instituio escolar e as prticas das famliaspopulares e a desqualificao simblica dos pais atin-ge o auge quando estes ltimos vem suas possibili-dades de regular os comportamentos de seus filhosalteradas por condies de existncia degradadas,como pudemos observar em famlias afetadas diretaou indiretamente pela precariedade econmica (Millet& Thin, 2005). Podemos evocar aqui a imposio dehorrios de trabalho que impedem os pais de estarempresentes de maneira regular nos momentos impor-tantes da vida familiar, ou ainda as situaes de isola-mento social, que atingem mais freqentemente asmes solteiras e desempregadas e que diminuem osrecursos da rede de sociabilidade para apoiar a aode regulao dos comportamentos das famlias, ou,enfim, a desqualificao social dos pais, que pode setransformar em desqualificao aos olhos de seus pr-prios filhos. A ocorrncia dessas situaes cria outrassituaes que fragilizam o modo de autoridade dasfamlias populares e aprofundam o fosso existenteentre estas ltimas e a instituio escolar.

    Modos de comunicaoModos de comunicaoModos de comunicaoModos de comunicaoModos de comunicao

    O problema da linguagem uma questo impor-tante nas escolas dos bairros populares. Qualquerenquete feita com professores revela que eles lamen-tam o que identificam como uma falta de vocabulriodos alunos, dificuldades de ingressar no mundo daescrita e da linguagem escolar. Freqentemente, es-sas percepes coincidem com a percepo do uni-verso dessas famlias carentes no que diz respeito comunicao e linguagem. Pela distncia entre alinguagem dos alunos e a linguagem esperada na es-cola constri-se toda uma representao das famliase de seu universo vocabular, representao freqen-temente reforada pelas interaes entre os professo-

    res e os pais. A observao nas famlias e nos encon-tros no permite inferir uma falta de comunicao,mas sim prticas linguageiras12 afastadas das lgicasescolares em matria de linguagem. Com base nostrabalhos de Bernstein (1975), de Lahire (1993) oude Labov (1978), podemos mostrar que as prticaslinguageiras nas famlias populares surgem de umalinguagem pouco descontextualizada, mas fortemen-te ligadas aos acontecimentos que esto ocorrendo ouque foram vivenciados em conjunto. Ligada a essaforte contextualizao dos discursos, a linguagem caracterizada por muitos subentendidos, como pro-va, por exemplo, o emprego recorrente de expressesdcticas, assim como de locues que s designamcom preciso as coisas e as pessoas por meio do em-prego de pronomes diticos (ele, ela, ns...) para no-mear alternadamente, e sem referncia explcita, con-textos ou indivduos que, no entanto, so distintos naordem do discurso. Pode-se pensar que a ligao en-tre o contexto conhecido dos interlocutores e a pre-ponderncia do ns (do coletivo) sobre o eu(o indivduo) na socializao dispensa a explicitaonecessria comunicao escolar. Alm disso, a co-municao com as crianas no surge de uma comu-nicao pedaggica, mas de uma comunicao prti-ca que visa troca, antes de qualquer outra finalidade.Isso faz com que os professores lamentem que os paisno realizem com seus filhos um trabalho explcitosobre a linguagem, ou seja, que eles no considerema linguagem como objeto de uma troca educativa por exemplo, designando as coisas sem ter em vistaqualquer utilidade prtica, ou corrigindo as constru-es gramaticais das crianas. Essas diferenas delgicas so, em princpio, e disso no se tem dvida,dificuldades escolares para as crianas dessas fam-lias. Elas tambm trazem em si a potencialidade detenses entre as famlias e os professores, uma vezque as famlias so vistas como deficientes no planolingstico, e porque as distncias sociolingsticas

    12 No sentido de prticas cotidianas de linguagem. (N.T.)

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    tambm sero evidenciadas no curso das interaesentre os pais e os agentes da instituio escolar.

    Relao com o tempoRelao com o tempoRelao com o tempoRelao com o tempoRelao com o tempo

    Podemos tambm evocar a questo das tempo-ralidades que so diferentes no universo escolar e nouniverso das famlias populares. O mundo da escola um mundo de regularidade temporal, marcado tan-to pelos horrios e calendrios escolares como pelasucesso de atividades pedaggicas organizadas deacordo com os empregos do tempo. tambm o mun-do da planificao atravs da lgica da progressonas aprendizagens, a do caderno de textos ou da agen-da, ou ainda a do encontro, como, por exemplo, nasreunies entre professores e pais. No caso das fam-lias populares, as mais dominadas, so outras tempo-ralidades que aparecem. Por um lado, trata-se de fa-mlias cujos membros so socializados em universosnos quais as relaes com o tempo objetivadas emagendas, calendrios, relgios etc. tm pouco lugar,porque eles so pouco escolarizados ou porque vm,pela emigrao, de universos culturalmente afastadosdesse tipo de racionalidade temporal. Por outro lado,e cada vez mais, as famlias so afetadas pela precari-edade da existncia, pela falta de trabalho estvel oupelo desemprego. Para essas famlias excludas dasociedade salarial (Castel, 1995), a ausncia de divi-so temporal pelo trabalho,13 ou as temporalidades deum trabalho errtico conduzem, s vezes, a tempora-

    lidades simples ou arrtmicas, atropeladas de vez emquando por urgncias ligadas fragilidade da exis-tncia, e que se harmonizam mal com as temporali-dades escolares.14 Essas famlias mais desprovidas soassim condenadas a viver cada dia com sua agonia,15

    o que impossibilita qualquer planificao e antecipa-o da existncia. Tudo ocorre como se nas famliasque acumulam dificuldades a vida fosse vivida comouma seqncia de golpes que so proferidos contraelas, de urgncias que precisam ser enfrentadas e queimpedem qualquer programao de atividades, a pontode no poderem, por exemplo, organizar encontroscom os agentes de instituies como a instituio es-colar. Em outras famlias, nas quais os pais tm umemprego, as fortes obrigaes temporais da atividadeprofissional produzem o que podemos denominar tem-poralidades familiares no-sincronizadas, no sentidode que as divises temporais produzidas pela ativida-de profissional dos pais esto em claro desacordo comos outros ritmos familiares, principalmente os ritmosdos filhos e os ritmos que sua escolarizao exige. Osbenefcios organizacionais e temporais (em termos deregularidade de horrios, de estruturao dos ritmosfamiliares) que o exerccio de uma atividade assa-lariada em horrios regulares e durante o dia podeproduzir sobre a vida familiar so prejudicados porescalas de horrio que desequilibram os ritmos do-msticos, e algumas vezes por horrios irregulares.So, portanto, temporalidades muito afastadas das

    13 Pierre Bourdieu (1977), evocando a condio dos

    subproletrios argelinos nos anos de 1950 e de 1960, destacou os

    efeitos estruturantes do trabalho e a desorganizao que a ausn-

    cia de emprego regular pode produzir: na falta de emprego regu-

    lar, o que faz falta no apenas a certeza de um salrio, esse

    conjunto de obrigaes que caracterizam uma organizao coe-

    rente do tempo e um sistema de expectativas concretas. Como o

    equilbrio emocional, o sistema de quadros temporais e espaciais

    nos quais se desenrola a existncia no pode se constituir na au-

    sncia de pontos de referncia fornecidos pelo trabalho regular.

    Toda a vida relegada incoerncia (p. 87).

    14 H um exemplo disso num filme de Bertrand Tavernier,

    Quando tudo comea (1999), em uma cena em que o diretor de

    uma escola maternal censura um jovem casal por no levar seu

    filho regularmente escola. Os dois terminam confessando (o tom

    o de uma confisso constrangida e dolorosa) que esto h muito

    tempo desempregados, esto desanimados e no encontram moti-

    vos sequer para levantar da cama pela manh...15 Como escreveu Robert Castel (1995), no momento em

    que esta civilizao do trabalho parece se impor em definitivo

    sobre a hegemonia do assalariado que a construo racha, colo-

    cando na ordem do dia a velha obsesso popular de viver um dia

    aps o outro (p. 461).

  • Para uma anlise das relaes entre famlias populares e escola

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 221

    temporalidades escolares que tecem as vidas das fa-mlias populares, repercutindo tanto nas relaes en-tre pais e filhos como nas relaes com a escola, ouainda com as aprendizagens escolares.16

    Uma relao instrumental com a escola ou aUma relao instrumental com a escola ou aUma relao instrumental com a escola ou aUma relao instrumental com a escola ou aUma relao instrumental com a escola ou algica da eficcialgica da eficcialgica da eficcialgica da eficcialgica da eficcia

    O sentido da escolarizao para famlias de bai-xa renda reside nas possibilidades sociais que elaviabiliza e sobre as quais baseia sua promessa, sejaem termos de futuros profissionais, seja em matriade conhecimentos que permitam, segundo seus pr-prios termos, que o sujeito se vire na vida cotidia-na. De fato, cada instante da vida escolar que ospais apreendem de acordo com essa lgica de efic-cia, e cada atividade pedaggica deve se inscreverdiretamente na perspectiva de eficcia social. Emoutras palavras, para as famlias populares, os exerc-cios escolares no so considerados atividades cujoobjetivo est nelas mesmas (Bourdieu, 1984, p. 177).Constituem-se em exerccios para a obteno de re-sultados que se traduzem em notas, na passagem deuma classe para outra, naquilo que eles permitem con-quistar socialmente. Conseqentemente, as ativida-des escolares s tm sentido se as famlias popularespuderem associ-las aos objetivos sociais que atri-buem escolarizao de seus filhos; todas as ativida-des que parecem afastar as crianas das aprendiza-gens ditas fundamentais, e que no parecem contribuirpara a melhoria dos resultados escolares, so mais oumenos suspeitas aos seus olhos. Aparecendo como in-

    teis, incoerentes com relao a esses objetivos, elass podem ser perda de tempo. Como o saber no podevir seno da escola, e como os investimentos sociaisso primordiais, os pais no entendem que o tempoda escola seja desviado das aquisies que eles jul-gam fundamentais.

    Enfim, a importncia do trabalho e do trabalhosrio est tambm na origem da reserva dos paiscom relao s atividades pedaggicas que aparente-mente so menos trabalhosas que as aulas e os exer-ccios. Ela nutre-se da forte ciso entre trabalho e jogo,entre trabalho e descanso, caracterstica das classespopulares e que as diferencia dos intelectuais (por-tanto, dos professores), que nem sempre sabem ondepassa a fronteira entre seu trabalho e seus lazeres. Nosmeios populares, o jogo remete a colocar entre pa-rnteses as exigncias da vida, leva a um descanso, aum prazer, a uma troca livre de qualquer conotaopedaggica e educativa. Para os pais, a escola estclassificada ao lado do trabalho, e tudo aquilo que seassemelhe ao jogo parece intil ou nefasto escolari-dade.

    Alm disso, observamos uma oposio ou umatenso entre os pais, que esperam da escola conheci-mentos que sejam apreensveis em sua operacionali-dade imediata e prtica, e a lgica pedaggica, que seinscreve na durao, que coloca o sentido das apren-dizagens em objetivos mais distantes e mais gerais,ou mais universais, cujos fins s se desvelam em lon-go prazo, no domnio de procedimentos intelectuaisabstratos. Desse ponto de vista, alis, o processo desecundarizao da escola elementar acentuou, semdvida alguma, a distncia existente entre as famliaspopulares e a escola, ao longo dos ltimos trinta anos,uma parte das aprendizagens tendo mais sentido naseqncia dos estudos (o colgio, depois o liceu) quena sua finalidade prtica e a curto prazo.17

    As prticas familiares ante a escolaridade sosempre maneiras de se apropriar da situao escolar

    16 A disciplina escolar , antes de tudo, uma disciplina tem-

    poral e, se consideramos que o trabalho pedaggico tem por fun-

    o substituir o corpo selvagem [] por um corpo habituado, ou

    seja, temporalmente estruturado [] (Bourdieu, 1972, p. 296),

    [] falta a ele, assim, uma capacidade de auto-obrigao ao tra-

    balho escolar e uma crena em seu futuro escolar e profissional

    que, ambos, se constroem durante um longo tempo, a partir de

    numerosos ritos de confirmao e consagrao que balizam a tra-

    jetria escolar (Beaud, 2002, p. 159).

    17 Jean-Manuel de Queiroz (1981) fala da desorientao

    escolar dos pais.

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    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006

    que os pais no podem contornar. As modalidadesdessa apropriao entram em contradio com as ex-pectativas e os desejos dos professores. Assim, umaparcela dos pais (sobretudo os mais desprovidos diantedos saberes e da pedagogia escolares) no participaregularmente do trabalho escolar, ou intervm ape-nas quando os resultados pioram substancialmente.Para esses pais, o que predomina o sentimento deincompetncia, e at o temor de prejudicar seus fi-lhos. Em seguida, eles consideram que o papel da es-cola e dos professores se ocupar de todo o processode escolarizao, a includos o aprendizado das li-es e a realizao dos exerccios escritos. O acom-panhamento distante por parte de alguns pais con-siderado insuficiente, e os pais so incitados a investirmais no acompanhamento escolar de seus filhos. Ou-tros pais tendem a superinvestir no trabalho esco-lar de seus filhos, acrescentando tarefas ou tentandoantecipar as aprendizagens escolares. Essas prticasde sobreescolarizao so contrrias lgica peda-ggica atual, que supe o aprendizado da autonomiano trabalho escolar e, a partir da, mais amplamente,a autonomia na vida social. Para os professores, ospais que desconhecem a autonomia enquadrada quepreconizam oscilam entre a frouxido e o excessode controle em matria de escolaridade, fugindo deCaribde para cair em Cila.18 Por conseguinte, , comfreqncia, grande o mal-entendido entre os pais e osprofessores. Muitos pais no conseguem compreen-der as observaes e as crticas dos professores quecensuram o controle excessivo que eles exercem so-bre o trabalho escolar de seus filhos, por estarem con-vencidos de que esto fazendo tudo que lhes poss-vel pela escolaridade de suas crianas. Da mesmaforma, eles no entendem que os resultados escolaresno melhorem apesar do acmulo de exerccios es-

    colares em casa, e alguns se interrogam ento sobrea qualidade pedaggica dos professores. Enfim, essatenso leva muitos pais a oscilar entre a retirada eo superinvestimento, no que se refere ao acompa-nhamento da escolaridade.

    Uma relao na escola entre ambivalnciaUma relao na escola entre ambivalnciaUma relao na escola entre ambivalnciaUma relao na escola entre ambivalnciaUma relao na escola entre ambivalnciae apropriaes heterodoxase apropriaes heterodoxase apropriaes heterodoxase apropriaes heterodoxase apropriaes heterodoxas

    Essas lgicas socializadoras, enraizadas nas clas-ses populares, e que se perpetuam enquanto seeternizam as condies que as criaram, so domina-das e ilegtimas. Portanto, elas no esto completa-mente livres da influncia das lgicas escolares, dasquais diferem. A confrontao da escolarizao pelasprticas das famlias populares no ocorreria se ospais no percebessem a ilegitimidade de suas prti-cas e reconhecessem a legitimidade das prticasescolares desenvolvidas por uma instituio que setornou central tanto no processo de socializao quan-to no da reproduo do social. Isso explica o fato deencontrarmos na relao das famlias populares coma escola e com a escolarizao a ambivalncia carac-terstica de todo simbolismo e de toda prtica da clas-se dominada (Grignon & Passeron, 1989, p. 71),ambivalncia fundada no reconhecimento da impor-tncia e da legitimidade da escola, associada a for-mas de desconfiana e distncia em relao institui-o escolar. Com efeito, os pais expressam umsentimento difuso de que a escola talvez no seja fei-ta para eles e para seus filhos, manifestam medos li-gados aos riscos envolvidos na escolarizao, e umadesconfiana no que tange s instituies em geral.

    A ambivalncia vai aparecer, por exemplo, quan-do os pais pedem aos professores que sejam rgidos eseveros, e ao mesmo tempo protestam contra algu-mas sanes: de um lado, eles esperam que as moda-lidades de manuteno da ordem escolar correspon-dam ao modo de autoridade familiar; de outro, elestendem a querer proteger os membros da famlia con-tra o poder dos agentes das instituies, com uma es-pcie de obsesso quanto injustia e estigmatizaoa respeito de sua famlia. A ambivalncia tambm

    18 Caribde ou Carbdis, temvel turbilho no Estreito de

    Messina, terror dos antigos navegantes, que, se conseguiam dele

    escapar, iam bater contra o rochedo de Cila. Da a expresso pro-

    verbial fugir de Caribde para cair em Cila, isto , fugir de um

    perigo para expor-se a outro, maior. (N.T.)

  • Para uma anlise das relaes entre famlias populares e escola

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 223

    observada na mistura de confiana e desconfiana queenvolve as relaes com os professores: confiana,porque se considera que os professores tm compe-tncias pedaggicas e saberes que faltam aos pais;desconfiana, porque os pais acreditam numa inge-rncia na vida familiar ou numa usurpao de suasprerrogativas como pais, ou ainda na transmisso devalores contrrios moral familiar. A ambivalnciarevela-se ainda na conjugao de fortes expectativascom relao escolarizao, para que as crianas es-capem das condies precrias de existncia, e de re-ceios mais ou menos fortes relacionados entrada navida acadmica. Ao sentimento de que a escolariza-o constitui uma oportunidade a ser agarrada, e deque o modelo legtimo de percurso escolar passa pelaopo pela continuidade dos estudos alm da escola-ridade obrigatria, mescla-se a percepo de obst-culos a serem ultrapassados e de riscos associadosquando no se suficientemente provido de recursosescolares e econmicos.

    Se a ambivalncia caracteriza a relao que asfamlias populares tm com a escolarizao e a insti-tuio escolar, as prticas das famlias populares noque tange a estas no sero, portanto, inteiramentecompreensveis a partir dessa noo, se forem redu-zidas a um tipo de oscilao entre as prticas que ten-deriam conformidade com as exigncias escolarese as prticas que contradizem essas exigncias, ou auma oscilao entre a aceitao do jogo escolar e umarecusa ou um distanciamento com relao ao jogo.As prticas das famlias populares ante a escola de-vem ser vistas como prticas de apropriao, o maisdas vezes heterodoxas, da situao escolar que elasno podem contornar. Constrangidas a fazer com aescola e a escolarizao, as famlias populares as apro-priam segundo suas prprias lgicas, suas prpriasvises de escolaridade e de educao. De imediato,no momento mesmo em que se apoderam das exign-cias escolares, elas lhes do um sentido diferente doseu sentido escolar ou do sentido dado pelos profes-sores: assim, a demanda pelo acompanhamento dotrabalho escolar traduz-se por um aumento de traba-lho segundo modalidades que os professores deplo-

    ram; a exigncia de interveno no comportamentodas crianas pode dar lugar a prticas de enquadra-mento excessivo e controle estrito, contrrias buscaescolar pela autonomia dos alunos etc. Espcie deastcia dos dominados, para falar como Michel deCerteau (1990), as apropriaes das exigncias esco-lares baseadas nas lgicas populares operam tradu-es das lgicas escolares para a ordem das lgicaspopulares. O estudo concreto das apropriaes es-sencial para a compreenso das relaes das famliaspopulares com a escola sem cair no impasse que con-siste em opor aquilo que seria uma resistncia quiloque seria uma submisso das famlias populares slgicas escolares. Ele possibilita evidenciar as prti-cas que so, simultaneamente, aceitao do jogo es-colar, submisso s determinaes da escola e altera-o das lgicas escolares por sua converso ordemdas lgicas populares.

    ConclusoConclusoConclusoConclusoConcluso

    Longe de ceder ao miserabilismo, que atribui asdificuldades da escolarizao nos bairros populares carncia cultural ou negligncia educativa das fa-mlias, a pesquisa sociolgica mostra que precisobuscar na confrontao entre as lgicas populares eas lgicas escolares as fontes das dificuldades parti-culares da escola e do ensino nos bairros populares.Seria errneo no perceber que as famlias estorealmente em situao de inferioridade em relao situao escolar, e que as crianas realmente apre-sentam caractersticas que as colocam em uma situa-o difcil diante das aprendizagens escolares. Masseria igualmente um erro esquecer que as carnciasdas famlias e de suas crianas s existem em rela-es sociais desiguais, que impem a posse de apti-des acadmica e socialmente reconhecidas, e esta-belecem as caractersticas dos membros das classespopulares como negativas e inferiores. A inferiorida-de no uma substncia, no est na natureza dossujeitos sociais que a portariam por acaso; ela o pro-duto de relaes sociais cujo equilbrio de foras desigual. No mbito das relaes entre famlias po-

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    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006

    pulares e escola, a confrontao que inferioriza asfamlias portadora de um risco de desqualificaosimblica destas ltimas, e pode levar a responsabili-zaes secundrias pelas instituies de trabalho so-cial ou da justia19 Ao mesmo tempo, podemos com-preender as lgicas socializadoras das famliaspopulares, como sua relao com a escola e com aescolarizao, referindo-as s condies sociais deexistncia e experincia escolar dos pais, comomostra Lea Pinheiro Paixo (2005) a propsito demulheres que trabalham separando o lixo nos lixesdo Rio de Janeiro. Pensar em termos de confrontaoentre lgicas socializadoras diferentes permite ultra-passar, ao mesmo tempo, uma viso legitimista, queconsiste em medir as prticas das famlias popularesde acordo unicamente com as exigncias e normaseducativas escolares, e uma viso realmente muitorelativista, que colocaria lado a lado os dois conjun-tos de lgicas socializadoras. Refletir sobre a confron-tao permite pensar as prticas socializadoras em suaslgicas prprias, e pensar, ao mesmo tempo, em seuspontos de encontro e nos seus efeitos. Na situao deconfrontao, muitas prticas de famlias popularesso mistas, isto , trabalhadas ao mesmo tempo pelaslgicas escolares e pelas suas lgicas prprias. Nsas entendemos, portanto, simultaneamente em suasduas dimenses, ou como produto original do encon-tro entre os dois conjuntos de lgicas, ou seja: entreas lgicas escolares e as lgicas socializadoras dasfamlias populares. Em outras palavras, tratamos damaneira como as lgicas escolares so confrontadascom lgicas diferentes, que s vezes resistem a elasatravs de apropriaes heterodoxas, ao mesmo tem-po em que as lgicas das famlias populares so tra-balhadas, consideradas e modificadas pela confron-tao com as lgicas escolares.

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    19 Como podemos perceber no caso de colegiais em ruptu-

    ras escolares ocasionadas por sua responsabilizao em dispositi-

    vos que articulam a ao da instituio escolar, do trabalho social,

    da justia, e s vezes da instituio de sade (Kherroubi, Millet &

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  • Para uma anlise das relaes entre famlias populares e escola

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 225

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    com o ttulo Sobre a histria e a teoria da forma escolar, em Edu-

    cao em Revista, n. 33, p. 7-47, jun. 2001).

    DANIEL THIN, doutor em sociologia e cincias sociais,

    professor na Faculdade de Antropologia e Sociologia da Univer-

    sidade Lumire Lyon 2 e membro do Grupo de Pesquisa sobre

    Socializao (Groupe de Recherche sur la Socialisation),

    pesquisando sobre as relaes entre famlias e dispositivos de

    remediao das rupturas escolares. Publicaes mais impor-

    tantes: com Guy Vincent e Bernard Lahire, Quartiers populaires:

    lcole et les familles (Lyon: Presses Universitaires de Lyon,

    1998); com Mathias Millet, Ruptures scolaires: lcole

    lepreuve de la question sociale (Paris: PUF, 2005); Sobre a his-

    tria e a teoria da forma escolar (Educao em Revista, n. 33,

    p. 7-47, jun. 2001).

    Recebido em outubro de 2005

    Aprovado em janeiro de 2006

  • Resumos/Abstracts/Resumens

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 369

    Resumos/Abstracts/ResumensResumos/Abstracts/ResumensResumos/Abstracts/ResumensResumos/Abstracts/ResumensResumos/Abstracts/Resumens

    Daniel Thin

    Para uma anlise das relaes entrefamlias populares e escola:confrontao entre lgicassocializadorasO artigo parte da considerao de queno somente o capital cultural e o ca-pital escolar que esto em jogo no pro-cesso de escolarizao. As prticas desocializao das famlias implicadaspodem estar em consonncia ou emdissonncia com a lgica que organizao cotidiano da escola, favorecendo ouno seu trabalho. A escola um lugarde confrontao de modos de socializa-o divergentes, sendo o seu prpriomodo de socializao o modo de so-cializao escolar considerado hege-mnico. Analisa como fonte das difi-culdades escolares de filhos decamadas populares tenses, contradi-es entre as lgicas da escola e as l-gicas de suas famlias. Discute os con-frontos entre o modo de exercerautoridade, o modo de comunicao, arelao com o tempo e o sentido da es-colarizao, como casos em que as l-gicas de socializao naqueles dois es-paos se opem. Mostra que precisobuscar nos confrontos entre lgicas po-pulares e lgicas escolares as fontesdas dificuldades particulares da escolae do ensino nos bairros populares.Palavras-chave: socializao; modode socializao escolar; socializao

    em famlias de camadas populares; so-cializao e escolarizao; relao es-cola-famlia

    For an analysis of the relationsbetween low income families andschool: confrontation betweensocializing logicsThis article begins with theconsideration that it is not only cultu-ral and school capital which is in playin the schooling process. The practicesof socialization of the families involvedcan be in consonance or in dissonancewith the logic which organizes thedaily school routine, favouring or notits working. The school is a place ofconfrontation between different modesof divergent socialization, with its ownmode of socialization the schoolmode of socialization considered ashegemonic. It analyses as the source ofschool difficulties of working classchildren tensions and contradictionsbetween the logic of the school and thelogic of the families. It discusses theconfrontation between the way ofexercising authority, the form ofcommunication, the relation with timeand the sense of schooling, as cases inwhich the logics of socialization inthose two spaces are opposed. It showsthat it is necessary to seek the sourcesof the specific difficulties of the schooland of teaching in working classdistricts in the confrontation betweenpopular logic and school logic.

    Key-words: socialization; mode ofschool socialization; socialization inlow income families; socialization andschooling; relation school-family

    Para un anlisis de las relacionesentre las familias populares y laescuela: confrontacin de lgicassocializadorasEl artculo parte de la consideracinde que no es solamente el capital cul-tural y el capital escolar que estn enjuego en el proceso de escolarizacin.Las prcticas de socializacin de lasfamilias implicadas pueden estar enconsonancia o en disonancia con la l-gica que organiza el cotidiano de laescuela, favoreciendo o no su trabajo.La escuela es un lugar deconfrontacin de modos desocializacin divergentes, siendo supropio modo de socializacin elmodo de socializacin escolar consi-derado hegemnico. Analiza comofuente de las dificultades escolares dehijos de clases sociales popularestensiones, contradicciones entre las l-gicas de la escuela y las lgicas de susfamilias. Discute los confrontos entreel modo de ejercer autoridad, el modode comunicacin, la relacin con eltiempo y el sentido de laescolarizacin, como casos en que laslgicas de socializacin en aquellosdos espacios se oponen. Muestra quees preciso buscar en los confrontos en-tre lgicas populares y lgicas escola-

  • Resumos/Abstracts/Resumens

    370 Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 32 maio/ago. 2006

    res las fuentes de las dificultades parti-culares de la escuela y de la enseanzaen los barrios populares.Palabras claves: socializacin; modode socializacin escolar; socializacinen familias de clases sociales popula-res; socializacin y escolarizacin;relacin escuela-familia

    Nadir Zago

    Do acesso permanncia no ensinosuperior: percursos de estudantesuniversitrios de camadas popularesO presente artigo trata da problemticadas desigualdades educacionais, comlonga tradio na sociologia da educa-o, e sobre a presena de estudantesde origem popular no ensino superior.O eixo central da anlise contempla asdesigualdades de acesso e de perma-nncia no ensino superior. Os resulta-dos apresentados esto apoiados emuma pesquisa, com duas fontes princi-pais de informao: de natureza quan-titativa, apoiada nas estatsticas doscandidatos inscritos no exame de aces-so universidade; em dados mais apro-fundados, obtidos em entrevistas com27 estudantes. A discusso do trabalhopermite mostrar as contradies entreuma maior demanda da populao pelaelevao do nvel escolar e as polticasde acesso e de permanncia no sistemade ensino superior brasileiro.Palavras-chave: ensino superior; desi-gualdades sociais e educacionais

    From access to permanence inhigher education: the trajectories ofuniversity students of popular originThis article deals with the problem ofinequalities in education, a theme dearto the sociology of education, and ofthe presence of students of popularorigin in higher education. The centralaxis of this analysis is that of theinequalities of access and permanenceof those students in higher education.The results are based on theconclusions of a research based on two

    main sources of information: 1) of aquantitative nature: the data onstudents enrolled in the universityadmission exam; 2) more qualitativedata obtained from interviews with 27students. This study permits us to showthe contradictions between a greaterdemand for higher levels of educationand the policies of access andpermanence to the Brazilian system ofhigher education.Key-words: higher education; socialand educational inequalities

    Del acceso a la pernanencia en laenseanza superior : trayectos deestudiantes universitarios de clasessociales popularesEl presente artculo trata de la proble-mtica de las desigualdades educati-vas, con larga tradicin en lasociologa de la educacin, y sobre lapresencia de estudiantes de origen po-pular en la enseanza superior. El ejecentral del anlisis son las desigualda-des de acceso y de permanencia en laenseanza superior. Los resultados quefueron presentados estn apoyados enuna pesquisa, con dos principalesfuentes de informacin: 1) denaturaleza cuantitativa, apoyada enlas estadsticas de los candidatosinscriptos en el examen de acceso a launiversidad; 2) en datos ms profun-dos obtenidos en entrevistas con 27estudiantes. La discusin del trabajopermite mostrar las contradiccionesentre una mayor demanda de lapopulacin, devido a la elevacin delnivel escolar y las polticas de acceso yde permanencia en el sistema de laenseanza superior brasilea.Palabras claves: enseanza superior;desigualdades sociales y educativas

    Marilia Pontes Sposito, HamiltonHarley de Carvalho e Silva, NilsonAlves de Souza

    Juventude e poder local: um balanode iniciativas pblicas voltadas para

    jovens em municpios de regiesmetropolitanasRene os resultados preliminares doprojeto de pesquisa Juventude, escola-rizao e poder local, que examinainiciativas pblicas desenvolvidas peloExecutivo municipal em 74 municpiosde regies metropolitanas do Brasil(Sudeste, Sul, Centro-Oeste e Nordes-te) no perodo entre 2001 e 2004. Asprincipais aes so investigadas tendocomo eixos analticos o conjunto depercepes sobre juventude que anco-ram as iniciativas e as formas que sopropostas pelo poder pblico para ainterao com os segmentos juvenis.Palavras-chave: juventude; polticaspblicas; poder local

    Youth and local power: a balance ofpublic initiatives directed at youngpeople in municipalities pertainingto metropolitan regionsPresents the preliminary results of theresearch project Youth, schooling andlocal power which examines publicinitiatives developed by municipalgovernments in 74 municipalitiespertaining to metropolitan regions inBrazil (Southeast, South, Central Westand Northeast) in the period between2001 and 2004. The principal actionsare investigated taking as analytic axesthe set of perceptions on youth whichanchor the initiatives and the formswhich are proposed by the publicpower for interaction with this segmentof the population.Key-words: youth; public policy; localpower

    Juventud y poder local: un balancede iniciativas pblicas dirigidas parajvenes en municipios de regionesmetropolitanasReune los resultados preliminares delproyecto de investigacin Juventud,escolarizacin y poder local que exa-mina iniciativas pblicas desarrolladaspor el ejecutivo municipal en 74municipios de regiones metropolitanas