A UTILIZAÇÃO DO CONHECIMENTO EM POLÍTICA: O CASO … · que o político deveria, senão afastar...

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987 Educ. Soc., Campinas, vol. 30, n. 109, p. 987-1007, set./dez. 2009 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> A UTILIZAÇÃO DO CONHECIMENTO EM POLÍTICA: O CASO DA GESTÃO ESCOLAR EM PORTUGAL JOÃO BARROSO * RESUMO: O presente artigo baseia-se num estudo efectuado no âmbito do projecto de investigação Knowandpol sobre as políticas de autonomia e gestão escolar em Portugal, no período ente 1986 e 2009. O objectivo central da pesquisa incidiu na articulação en- tre conhecimento e acção pública e desenvolveu-se através das se- guintes dimensões analíticas: os actores (mapa social e cognitivo); as ideias e sua evolução; a estruturação do campo político pelo co- nhecimento. No presente artigo irei apresentar alguns dos pressu- postos teóricos que orientaram a pesquisa realizada, as caracterís- ticas principais da política em estudo, a metodologia utilizada na sua análise e, finalmente, as principais conclusões obtidas a partir dos dados recolhidos. Palavras-chave: Acção pública. Autonomia. Conhecimento. Decisão política. Gestão escolar. THE USE OF KNOWLEDGE IN POLICY-MAKING: THE CASE OF SCHOOL ADMINISTRATION IN PORTUGAL ABSTRACT: This paper is based on a study on the school au- tonomy and administration policies carried out in Portugal, be- tween 1986 and 2009, within the Knowandpol research project. Its main focus is the relation between knowledge and public ac- tion. It was developed through the following analytic dimen- sions: actors (social and cognitive mapping); ideas and their evo- lution; and the structuring of the political field by knowledge. It presents some theoretical assumptions of the research, the main * Professor catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universida- de de Lisboa e coordenador da equipa portuguesa do Projecto de Investigação Knowandpol. E-mail: [email protected]

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João Barroso

A UTILIZAÇÃO DO CONHECIMENTO EM POLÍTICA:O CASO DA GESTÃO ESCOLAR EM PORTUGAL

JOÃO BARROSO*

RESUMO: O presente artigo baseia-se num estudo efectuado noâmbito do projecto de investigação Knowandpol sobre as políticasde autonomia e gestão escolar em Portugal, no período ente 1986e 2009. O objectivo central da pesquisa incidiu na articulação en-tre conhecimento e acção pública e desenvolveu-se através das se-guintes dimensões analíticas: os actores (mapa social e cognitivo);as ideias e sua evolução; a estruturação do campo político pelo co-nhecimento. No presente artigo irei apresentar alguns dos pressu-postos teóricos que orientaram a pesquisa realizada, as caracterís-ticas principais da política em estudo, a metodologia utilizada nasua análise e, finalmente, as principais conclusões obtidas a partirdos dados recolhidos.

Palavras-chave: Acção pública. Autonomia. Conhecimento. Decisãopolítica. Gestão escolar.

THE USE OF KNOWLEDGE IN POLICY-MAKING:THE CASE OF SCHOOL ADMINISTRATION IN PORTUGAL

ABSTRACT: This paper is based on a study on the school au-tonomy and administration policies carried out in Portugal, be-tween 1986 and 2009, within the Knowandpol research project.Its main focus is the relation between knowledge and public ac-tion. It was developed through the following analytic dimen-sions: actors (social and cognitive mapping); ideas and their evo-lution; and the structuring of the political field by knowledge. Itpresents some theoretical assumptions of the research, the main

* Professor catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universida-de de Lisboa e coordenador da equipa portuguesa do Projecto de Investigação Knowandpol.E-mail: [email protected]

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characteristics of the policy under consideration, the methodol-ogy adopted to carry out the study and, finally, the key conclu-sions resulting from data analysis.

Key words: Public action. Autonomy. Knowledge. Policy-making.School administration.

descrição e a análise do papel do conhecimento na construçãoe regulação das políticas de educação e de saúde, na Europa,constituem as principais finalidades do projecto de investiga-

ção denominado Knowandpol.1 No âmbito deste projecto, as diferen-tes equipas que integram o consórcio estão a estudar um conjunto di-versificado de acções públicas (duas por equipa) no domínio daeducação e da saúde. Os objectivos destes estudos consistem em des-crever a genealogia e o processo de desenvolvimento de cada acção pú-blica, identificando e caracterizando o papel desempenhado pelo conhe-cimento nesse processo. Os eixos de análise comuns aos vários estudossão estruturados pelas questões seguintes: Donde vêem e donde falamos actores envolvidos na acção pública? Que tipo de relações (hierarquia,competição, colaboração) estabelecem com os outros actores envolvidosno mesmo processo? O que sabem (ou julgam saber) estes actores? Quetipo de categorias usam nas suas narrativas? Que ideias e eventos valori-zam nas suas histórias? Que referências ou acontecimentos comuns épossível identificar nestas narrativas? Qual a representação da realidadeque estrutura a acção pública num determinado período de tempo, paracada um dos sectores em estudo (educação e saúde).

A equipa portuguesa efectuou, numa primeira fase, o estudo daspolíticas de gestão escolar e de reforço da autonomia dos estabeleci-mentos de ensino pré-escolar, básico e secundário, entre 1986 e 2009.2

É com base neste estudo que se apresentam de seguida os pressupostosteóricos que orientaram a pesquisa realizada, as características gerais dapolítica em estudo, a metodologia utilizada na sua análise e, finalmen-te, as principais conclusões obtidas a partir dos dados recolhidos.

Conhecimento, actores, regulação e política

A utilização do conhecimento em política é vista, frequentemen-te, numa perspectiva de “knowledge-based policy” (política baseada no

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conhecimento), isto é, “uma abordagem que ajuda as pessoas a toma-rem decisões bem informadas acerca de políticas, programas e projectos,colocando a melhor evidência disponível no coração do desenvolvimen-to das políticas e da sua implementação” (Davies, 2004, p. 2). Comeste fim, têm-se desenvolvido, de modo intensivo, as agências e os estu-dos que procuram fornecer aos políticos evidências (“evidence-basedpolicy”) que possam habilitá-los a ponderar as melhores decisões, abaseá-las mais em ideias do que interesses, a torná-las mais racionais.Como afirmam Maroy e Mangez (2008, p. 87) a este propósito:

Existe uma intenção de racionalização da acção pública, no sentido emque o político deveria, senão afastar toda a forma de referência aos valo-res e às finalidades normativas (elas não são recusadas em princípio, masdestinam-se a fixar os fins das políticas educativas), mas, pelo menos, nodomínio dos meios, da “governança”, da “pilotagem”, ou da “regulaçãode sistemas”, para que se possa basear em “factos” e numa condução qua-se “técnica” dos sistemas.

O conhecimento que é mobilizado ou invocado no processo polí-tico (ao nível da formulação das políticas, mas também da sua imple-mentação) é bastante diversificado quanto à sua natureza (“conhecimen-to estatal”, “conhecimento investigativo”, “conhecimento teórico”,“conhecimento prático”, etc.), quanto aos seus produtores (“técnicos”,“investigadores”, “especialistas”, “profissionais”, etc.), quanto aos espaçosinstitucionais de pertença (administração, universidades, centros de in-vestigação, “think tanks”, agências internacionais, “comunidades de prá-ticas”, redes, etc.).

Perante esta diversidade de fontes, formas e conteúdos de conhe-cimento, a escolha da informação, dos dados, dos estudos, das conclu-sões ou recomendações a utilizar permanece eminentemente política,pouco racional e fortemente condicionada por interesses e lógicas depoder.

Do mesmo modo, a pluralidade e complexidade dos conheci-mentos produzidos tornam impossível o acesso directo dos decisorespolíticos aos textos, pelo que a relação entre conhecimento e política émediada por uma diversidade de “brokers” (conselheiros, gabinetes deestudos, departamentos da própria administração, agências, meios decomunicação social, etc.), muitas vezes seleccionados mais segundo uma“lógica de confiança” do que segundo uma “lógica de competência”.

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Estas dificuldades fazem com que a influência do conhecimentona política seja mais simbólica do que real. O recurso ao conhecimen-to funciona, assim, como uma espécie de “placebo”3 junto da opiniãopública para sustentar a convicção de que as medidas tomadas consti-tuem as “terapêuticas” mais ajustadas aos problemas que é preciso re-solver.

De registar, finalmente, que a argumentação em favor da “evi-dence-based policy” se enquadra numa concepção de “engenhariapolítica” em que “os factos falam por si e a transição entre os resultadosda investigação e a política se faz através de um processo linear” (Rogers,2003, p. 70).

As críticas a esta visão positivista e funcionalista da relação entreconhecimento e política levam alguns autores a substituírem a termi-nologia “evidence-based policy” (política baseada na evidência), por“evidence-informed policy and practice” (política e prática informadapela evidência). Como afirmam Leväcic e Glatter, a razão para esta mu-dança deve-se, sobretudo, ao facto de a relação entre a produção e ouso do conhecimento ser problemática: “seria simplista assumir que aprincipal contribuição da investigação para a política é a resolução deproblemas, através da transmissão de ‘dados para a decisão’ ou de evi-dência clara sobre ‘o que funciona’. As funções mais significativas são,antes, ‘esclarecer e formular problemas e definir alternativas’” (Leväcic& Glatter, 2001, p. 6).

O modelo de “evidence-informed policy and practice”, propostopor estes autores ingleses (que trabalham no domínio da liderança eda gestão educacional), contesta a existência de uma influência directaentre conhecimento e política e propõe um processo mais complexo,com as seguintes características: os resultados da investigação sãoseleccionados; a evidência é coligida; procede-se à sua validação e co-municação; sendo em seguida usada ou ignorada no processo de deci-são (quer pelos políticos, quer pelos práticos). Neste processo, ocontributo da investigação é sempre contextualizado no campo políti-co e afecta sobretudo o “clima de opinião” (Smith, 1999, citada porLeväcic & Glatter, 2001, p. 9).

Ao contrário do que as teses racionalistas defendem, o processode decisão política é mais da ordem da “bricolage” (ver Freeman, 2007;Ball, 1998).

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Nesse sentido, a política baseada no conhecimento (ou informa-da pela evidência), mais do que capitalizar o contributo dos resultadosda investigação no processo de decisão, constitui, muitas vezes, ummodo de influenciar politicamente a investigação produzida (do conhe-cimento na política, à política do conhecimento). Esta influência nãose faz só através do controlo governamental da investigação (pelos cri-térios de financiamento, pelas encomendas, pelo reconhecimento “ofi-cial” do “mérito”, etc.), mas também pela validação dos temas e dosmétodos de investigação.

A visão mecanicista da aplicação do conhecimento na políticaeducativa (subjacente à ideia do “knowledge-based policy) começa, porisso, a dar lugar a uma abordagem interaccionista que valoriza mais aaprendizagem do que a determinação. A política continua a basear-se“mais em crenças do que em ideias” (Levin, 2001) e as evidências doconhecimento científico são sempre confrontadas (ignoradas ou utili-zadas) em função do pragmatismo da acção governativa. E esse prag-matismo leva a que muitas vezes o conhecimento mobilizado não sirvapara encontrar soluções para os problemas, mas, sim, para construirproblemas ajustados às soluções disponíveis ou que previamente se pre-tendem implementar (Edelman, 1988, citado por Parsons, 2001, p.180). Em contrapartida, mais do que uma acção directa sobre osdecisores políticos, o conhecimento (e a investigação) exerce(m) umainfluência indirecta no processo de acção pública, através das múlti-plas aprendizagens (individuais e organizacionais) que os diversosactores realizam quer através da reflexão sobre as suas práticas, quer emquadros mais institucionalizados de formação. Este facto vem reforçaro carácter instrumental dos programas de formação, na circulação dosconhecimentos.

Contra a visão determinista e linear de articulação entre o conhe-cimento e a política, subjacente ao “knowledge-based policy”, sugere-se, no presente estudo, uma visão mais plural e contextualizada, emque o conhecimento e a política são vistos como um processo; desen-volvem-se através das práticas e são constituídos e reconstituídos atra-vés das actividades de vários indivíduos e organizações, actuando demaneira diferente, mas em simultâneo.

De acordo com esta perspectiva, a articulação entre conhecimentoe política, no contexto de uma determinada acção pública, é fortemente

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influenciada pela interacção dos seguintes factores: a) tipos de conhe-cimentos mobilizáveis; b) natureza das políticas; c) tipos de actores; d)modos de regulação. Isso significa que a configuração de cada um doselementos depende parcialmente (é afectada) da configuração dos ou-tros elementos. Ou seja: o conhecimento mobilizado não é o mesmose as políticas incidirem sobre o currículo, ou a avaliação, ou a formaçãovocacional, etc.; ou se estivermos num sistema de regulação burocráti-ca ou pós-burocrática; ou se os actores envolvidos na definição e apli-cação das políticas forem directores, ou professores, ou técnicos da ad-ministração, ou autarcas, ou especialistas, etc.

Foi com este quadro teórico que se procedeu à descrição e análi-se da relação entre conhecimento e acção pública, no processo geradopela alteração sucessiva do quadro legal sobre autonomia e gestão dasescolas primárias e secundárias, em Portugal, entre 1986 e 2009.

As políticas de autonomia e gestão escolar em Portugal

As políticas de autonomia e de gestão escolar, em Portugal, de-senvolveram-se na continuidade de um processo de re-ajustamento ealteração do “modelo de gestão escolar” em vigor desde a Revolução de25 de Abril de 1974. Este modelo obedecia aos princípios da “gestãodemocrática”, consagrados com este nome na Constituição da Repú-blica de 1976, e caracterizava-se, fundamentalmente, pela existência deórgãos colegiais eleitos, com reduzido poder dos pais e forte influênciado poder dos professores, nomeadamente no Conselho Pedagógico.Apesar do processo de “normalização” (após o período revolucionário de1974-75) ter reduzido muito do carácter autogestionário que teve noinício, só a partir de 1986, com a Lei de Bases (e no quadro da presenteacção pública), é que se assiste a uma política deliberada e continuadade alteração deste regime, o que veio a ser conseguido, parcialmente, em1991 (Decreto-Lei n. 172/91) e em 1998 (Decreto-Lei n. 115-A/98)e, de modo mais radical, em 2008 (Decreto-Lei n. 75/2008). Ou seja,vinte e dois anos e doze ministros depois.

Ao longo deste processo assiste-se a uma mudança de paradigma,sobretudo em dois domínios: (a) a escola (individualmente considera-da) torna-se a unidade de gestão do sistema, e o “sistema escolar” tor-na-se um “sistema de escolas”; (b) a “gestão corporativa” (vista como

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emanação da função docente) dá lugar a uma “gestão profissionalizada”(centrada nas técnicas de gestão empresarial).

No primeiro caso, a escola é vista como o espaço privilegiado dacoordenação e regulação do sistema de ensino e como lugar estratégicopara introduzir a sua mudança (school-based management). No segun-do caso, o “novo paradigma” da gestão escolar rompe com a “tradição”herdada da Revolução de 1974, baseada no reforço do poder dos pro-fessores, no primado do “pedagógico sobre o administrativo” e na “ges-tão democrática” (entendida como a gestão exercida por órgãos cole-giais eleitos).

Esta mudança de referenciais sobre a gestão escolar integra-senuma mudança paradigmática mais vasta relacionada com a terri-torialização das políticas educativas, com a redistribuição de poderesentre o “centro” e a “periferia”, com a recomposição do papel do Esta-do na regulação da educação e com novas formas de “governança”.

Do ponto de vista do conhecimento, assiste-se igualmente, du-rante o período em análise, à “descoberta” da escola como um “novo”objecto de estudo científico na área das Ciências da Educação (ver Bar-roso, 1996), à influência, em Portugal, das teorias da “nova gestão pú-blica” (new public management) e à aplicação crescente, ao campoeducativo, dos contributos conceptuais, metodológicos e práticos oriun-dos do estudo de outras organizações, nos domínios da gestão dos recur-sos humanos, da avaliação, da auditoria, da liderança, entre outros.

Como ficou claro no estudo realizado, a dinâmica do processofoi fortemente condicionada, inicialmente, por uma clivagem políticaentre os que queriam preservar e os queriam mudar a “gestão democrá-tica”, mas foi evoluindo através da adopção de algumas políticas decompromisso ou de soluções híbridas, como atestam os dois últimosdiplomas legislativos aprovados (Decreto-Lei n. 115-A/98 e Decreto-Lei n. 75/2008).

Esta especificidade do modelo de gestão escolar “à portuguesa” ea forte carga política subjacente à sua mudança explicam a própria ori-ginalidade das soluções encontradas e o modo como os conhecimen-tos, sucessivamente inscritos ao longo deste processo, foram produzi-dos e utilizados.

Estamos, portanto, em presença de um processo de “pathdependency” e é neste quadro que se torna pertinente invocar a hipótese

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do “regime de conhecimento” proposta por Mangez (Delvaux &Mangez, 2008, p. 110): “A hipótese do ‘regime de conhecimento’ con-sidera que os contextos nacionais continuam a ser contextos relevantespara compreender o modo como o conhecimento é construído, usado,ou não usado e situado em relação à decisão política”.

Contudo, a especificidade da situação portuguesa não impediu,antes pelo contrário, a influência dos conhecimentos produzidos no es-trangeiro, nomeadamente no quadro da União Europeia (ver, por exem-plo, Eurydice, 2007; Inspecção-Geral da Educação, 2007). Mas tor-nou essa influência menos linear e mais difícil. Assiste-se a um processode “lost in transition” (perdido na transição) que se acrescenta ao jáexistente e conhecido “lost in translation” (perdido na tradução). Mui-to do conhecimento produzido, neste domínio, pela investigação oupelas “boas práticas”, de origem anglo-saxónica ou francófona, preci-sou de ser “reciclado” para ser utilizado. Quando isso não foi feito, asinferências eram infundadas e as soluções perversas. Por isso, no casopresente, a tendência para “nada mudar” ou “mudar tudo” era cons-tante. No primeiro caso, porque os problemas ou soluções identificados“lá fora” não tinham que ver com a realidade portuguesa. No segundocaso, porque as diferenças eram tão grandes que só mudando o regimena sua totalidade se poderiam aplicar as boas práticas propostas.

Como síntese das principais características deste processo detransformação das políticas públicas de autonomia e gestão escolar sãode referir as seguintes:

• As mudanças introduzidas adoptaram sempre um registo “topdown”. Este registo é tanto mais paradoxal quanto algumasdas matérias que eram objecto de alteração apelavam direc-tamente à livre iniciativa dos destinatários dessas políticas,como é o caso da “participação” e da “autonomia”.

• As questões substantivas de natureza política, que surgiramquando da elaboração das primeiras propostas em 1988,mantêm a mesma actualidade no debate que foi feito vinteanos depois, a propósito da publicação do Decreto-Lei n. 75/2008 (do actual governo): direcção colegial versus direcçãounipessoal; representatividade dos professores e dos pais (mai-or, menor, igual) nos órgãos de participação e de definição es-tratégica (conselho de escola ou afim); processo de escolha do

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director e responsáveis pedagógicos da gestão intermédia(eleição ou nomeação); articulação entre autonomia da esco-la, descentralização autárquica e reestruturação da adminis-tração do Ministério da Educação.

• Aceleração do processo de “normalização” europeia (principal-mente com o actual governo) e perda da “especificidade por-tuguesa” construída após a Revolução de 25 de Abril de1974, no que se refere ao “modelo” de gestão e à autonomia.Na verdade, Portugal e Espanha eram os únicos países euro-peus em que o director da escola era eleito. No caso portu-guês, a originalidade residia igualmente no primado da ges-tão colegial e da eleição dos cargos de gestão intermédia.

• Tendência emergente para a “profissionalização do gestor”quer pelo reforço da sua formação nas áreas da gestão, querpela eventualidade de recurso a não docentes para exerceremesse cargo.

• Evolução do processo de legitimação das políticas de reforçoda autonomia das escolas, que inicialmente decorria da ela-boração de um projecto educativo específico pela escola e que,actualmente, ficou dependente da realização prévia de umprocesso de avaliação externa.

• Tensão entre uma “lógica burocrática”, centrada numa regu-lação externa através de procedimentos administrativos de co-ordenação e controlo, e uma “lógica pedagógica”, centrada naauto-regulação pelos profissionais, no que se refere à organi-zação do trabalho e às matérias pedagógicas.

• Inexistência de uma política articulada entre o reforço da au-tonomia das escolas e a reestruturação do Ministério da Edu-cação, com a consequente redução da organização centra-lizadora e burocrática que continua a dominar a administraçãoda educação em Portugal.

• Inexistência de uma política articulada de descentralização,com a transferência de competências e recursos para as autar-quias, aumentando o seu poder de tutela sobre o sistemaeducativo local.

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Características do estudo

O desenho metodológico adoptado desenvolveu-se em função deduas dimensões analíticas principais: os actores e as suas narrativas(quem são, o que dizem, em que cenas actuam, como intervêm, de quemodo descrevem as políticas, o que sabem, ou dizem saber, que ideiascirculam, são adoptadas ou rejeitadas, onde e por quem, entre outras);a interacção entre conhecimento e acção pública (de que modo as dife-rentes ideias e conhecimentos, científicos e não-científicos, circulam eestruturam a formulação e implementação das políticas, e qual a influ-ência das relações de poder nesse processo, qual o papel do conheci-mento na regulação das políticas).

De acordo com este quadro de referência, e no caso da acção pú-blica em estudo, a metodologia adoptada combinou a abordagem ex-tensiva e intensiva, com recurso fundamentalmente às técnicas de aná-lise documental e de entrevistas.

A abordagem extensiva foi utilizada, sobretudo, para proceder auma caracterização geral da emergência e desenvolvimento das políti-cas relacionadas com a autonomia e gestão escolar em Portugal, numaperspectiva holística e diacrónica.

A abordagem intensiva foi utilizada para a análise de casos ouepisódios críticos, com o fim de compreender a especificidade, nestaacção pública, da articulação entre conhecimento e política e da inter-venção de determinadas categorias de actores, localizados em diferen-tes cenas e instâncias de decisão: o debate parlamentar entre 1986 e2008;4 o debate no jornal Público (jornal nacional de referência) sobreo processo legislativo que está na origem da aprovação da última medi-da legislativa sobre a gestão escolar em Portugal (Decreto-Lei n. 75/20085); a implementação e a negociação com as escolas dos contratosde autonomia (um dos instrumentos centrais deste processo).

Além da recolha de dados realizada nos estudos atrás referidos,procedeu-se, ainda, no quadro do estudo extensivo: à realização deentrevistas a diferentes actores intervenientes no processo;6 à identifi-cação e caracterização das dissertações de mestrado e doutoramentodefendidas nas instituições de ensino superior, em Portugal, no do-mínio da “autonomia e gestão escolar”;7 à análise da legislação; à revi-são da literatura da especialidade sobre este tema; à análise de diversa

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documentação produzida por ministros, sindicatos, Conselho Nacio-nal de Educação e vários especialistas; a um estudo exploratório sobreos “textos” produzidos em dois blogues (Terrear e ProfAvaliação), du-rante a discussão pública do projecto de Decreto-Lei n. 771/07.8

A circulação entre conhecimento e política

Tomando como referência os objectivos do estudo, apresentam-se de seguida as principais conclusões que é possível extrair da análisedos dados recolhidos na investigação empírica.9

• A relação entre conhecimento e política é variável ao longo doprocesso de acção pública e depende, entre outros factores, do co-nhecimento académico disponível, dos modos de regulação predo-minantes, das características dos actores envolvidos, do objecto daspolíticas empreendidas.

O processo de acção pública não é um processo linear e envolvevários actores e “racionalidades”, antes e depois da decisão política. Domesmo modo, o conhecimento que é inscrito na acção pública varia demomento para momento e decorre das características do próprio pro-cesso político. No caso presente, há uma forte influência pelo facto depredominar uma administração ainda muito centralizada que actuaatravés de uma regulação burocrática. Isto explica o protagonismo daagenda política dos ministros da Educação, quer no debate parlamentar,quer na dinâmica legislativa, quer nos sentidos das alterações intro-duzidas nos vários diplomas analisados, quer na produção académica eno próprio desenvolvimento da área disciplinar da Administração Edu-cacional.

Convém sublinhar que a influência do “modo de regulação” noprocesso político e na mobilização do conhecimento não é exclusiva ese cruza com outras influências igualmente importantes. As caracterís-ticas da produção académica em Ciências da Educação, na área da Ad-ministração Educacional, não se têm revelado “adequadas” (no enten-der dos ministros entrevistados) aos problemas que eles consideramexistir e pretendem resolver. Daí que, após uma primeira fase, em quea elaboração da legislação era precedida da elaboração de estudos pré-vios por especialistas e docentes universitários (ainda que com a cola-boração de dirigentes da administração), se assista, recentemente, à

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tentativa de criação, no próprio Ministério da Educação, de uma“tecnoestrutura” capaz de produzir um “conhecimento estatal” próprio,compatível com as “necessidades” do Ministério da Educação (ver Bar-roso et al., 2008). Este conhecimento é baseado, sobretudo, na “inves-tigação avaliativa” e no reconhecimento das “boas práticas” (Lessard,2008, p. 562-563) e apela, muitas vezes, a áreas disciplinares diferen-tes das Ciências da Educação (estatística, gestão de empresas, psicolo-gia social, entre outras). Neste processo, já não estamos em presençade uma mera “transferência de conhecimentos”, mas, sim, na criaçãode conhecimentos transdisciplinares aplicados. Ou, como diz Nassehi(2008): “Temos cada vez mais consciência de que estamos perante umprocesso de transformação (transformation process), mais do que umprocesso de transporte (transportation process)”.

De salientar, ainda, que se assiste, igualmente, e numa outracena da acção pública (as escolas), à emergência de novos actores (e “no-vos” conhecimentos) que resultam do crescente número de dirigentesescolares que têm feito cursos de mestrado neste domínio. Trata-se deum saber prático que começa a ser “teorizado” e que aproxima os “co-nhecimentos dos actores” aos “conhecimentos dos autores”, devido àforte componente investigativa que têm estes cursos (pelo menos até à“reforma de Bolonha”). Isso é tanto mais evidente quanto o objectodesta acção pública é a escola enquanto organização e unidade de ges-tão. Como se sabe, o conhecimento produzido neste domínio dependemuito da “aprendizagem organizacional”, pelo que a importância doconhecimento dos actores é decisiva. Esta tendência é reforçada pelacontinuidade, em Portugal, de uma “regulação burocrático-profissional”nas escolas portuguesas (apesar das recentes alterações) e, portanto, pelarelevância da “expertise” docente na organização e gestão escolar, bemcomo do poder e saber dos “profissionais”. Aliás, o confronto entre estesvários tipos de conhecimento (“burocrático”, “new public management”e “pedagógico-profissional”) constituiu uma das especificidades destaacção pública.

• A circulação do conhecimento faz-se através da circulação daspessoas.

Professores e dirigentes de escolas que se tornam deputados. De-putados que se tornam membros de gabinetes dos ministros ou secre-tários de Estado. Académicos que participam em grupos de trabalho

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de apoio à decisão política. Sindicalistas e funcionários da administra-ção que fazem cursos de pós-graduação nas universidades, sob a orien-tação de professores que participam nos grupos de trabalho de apoio àdecisão política, ou que elaboram estudos para o Ministério da Educa-ção. Académicos que escrevem artigos de opinião na imprensa. Profes-sores do ensino superior que se tornam ministros. Sindicalistas que setornam professores do ensino superior e vice-versa. Secretários de Esta-do que se tornam professores do ensino superior e que, nessa qualida-de, elaboram estudos para apoio à decisão política. Ministros que setornam presidentes do Conselho Nacional de Educação ou vice-versa.Especialistas que participam em grupos de trabalho ou elaboram estu-dos para o Ministério de Educação e que são convidados a fazer confe-rências em eventos promovidos pelos sindicatos. Directores de escolasque passam a exercer funções dirigentes no Ministério da Educação.Altos dirigentes da administração que se tornam professores do ensinosuperior, participando na formação de futuros directores de escolas.Como se vê, estamos num campo social profundamente híbrido, comfronteiras esbatidas entre as várias cenas de decisão e acção políticas, ecom actores versáteis e “polivalentes” que se desmultiplicam em dife-rentes papéis. Neste contexto, o conhecimento é externalizado, sobre-tudo pelos discursos dos actores, e as constelações de conhecimentossão determinadas pelas estruturas das redes sociais, definidas pela cir-culação dos actores em diferentes cenas da acção pública.

• A utilização do conhecimento no processo de decisão política é for-temente condicionada pela interacção (competição) entre diferen-tes grupos de interesse.

A dinâmica do processo legislativo foi influenciada pelas “advocacycoalitions” (coligações de causas)10 que se constituíram em função de de-terminadas ideias e crenças sobre a educação, em geral, e do governo dasescolas, em particular. Os conhecimentos que são mobilizados por estas“advocacy coalitions” são seleccionados de acordo com os interesses par-tilhados pelo grupo e com a sua eficácia para manipular o debate e in-fluenciar os diversos actores (no Parlamento, no Ministério da Educação,nas escolas, na imprensa, nos sindicatos, nas universidades, etc.). No pre-sente estudo, foi possível reconhecer a existência de várias “advocacycoalitions”, através da convergência de argumentos e de acções em fun-ção de determinadas crenças e ideias sobre as finalidades da autonomia eos modos de concretizá-la.

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Uma primeira “advocacy coalition” (mais recente) formou-se à vol-ta do jornal Público (em particular através dos editoriais do director, dealguns artigos de opinião e “cartas de leitores”), de uma associação desig-nada “Fórum Liberdade de Educação”, do Partido Popular Centro De-mocrático Social (direita parlamentar), de alguns bloggers, associaçõesempresariais, entre outros tipos de actores que defendem a “liberdade deescolha” das escolas pelas famílias, os “vouchers”, a “competição entre asescolas” para criação de mercados educativos, as “lideranças eficazes”, a“qualidade total”, entre outros. Embora estas políticas sejam típicas dosmovimentos conservadores e neoliberais, elas são promovidas não pela suareferência ideológica, mas pela sua aparente racionalidade e qualidadetécnica. Os conhecimentos que são mobilizados baseiam-se nas “boaspráticas”, no “exemplo estrangeiro”, na “evidência científica”, na “gestãoempresarial”, etc. Destinam-se a persuadir os professores, as famílias dosalunos, os membros da administração, a opinião pública em geral, daexistência de “um problema” para o qual “se tem solução”.

Uma segunda “advocacy coalition”, mais antiga e de sentidooposto, formou-se à volta de uma das principais federações de sindica-tos de professores (FENPROF), de militantes de movimentos pedagógi-cos, de alguns académicos (de diversas instituições de ensino superi-or), de antigos “membros dos conselhos directivos” (órgão colegial eleitocriado com a revolução), de partidos da esquerda parlamentar, que de-fendem a “gestão democrática”, “o primado do pedagógico sobre o ad-ministrativo”, “a participação dos professores”, “as direcções colegiais”,etc. Os conhecimentos que são mobilizados baseiam-se na “experiênciadas escolas”, no “pensamento crítico” (de alguns académicos) e nos re-sultados da investigação que se mostram “congruentes” com as políti-cas defendidas.

Para além destas duas “advocacy coalitions”, outras se formaramao longo do processo, menos ideologizadas, mais indefinidas e voláteis,organizadas em função do apoio ou da crítica a determinados diplo-mas legislativos, como aconteceu sobretudo com o Decreto-Lei n. 172/91 e com o Decreto-Lei n. 75/2008. Estes grupos integram professo-res do ensino superior, outros especialistas com formação pós-gradua-da, dirigentes de escolas. O conhecimento que é mobilizado baseia-se,sobretudo, em trabalhos de natureza académica, no discurso e nas prá-ticas de gestores escolares. Geram-se, por vezes, “alianças” conjunturais(ou outras ligações menos formais) entre membros destes grupos e as

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duas “advocacy coalitions” referidas em primeiro lugar. Estas ligações ex-plicam a migração de muitos conceitos de uma cena de acção públicapara outra cena, de um grupo de actores para outro grupo de actores. Éo caso, por exemplo, dos conceitos de “autonomia”, de “liderança”, de“avaliação”, de “qualidade”, de “participação”, de “projecto”, que vão so-frendo sucessivos arranjos de sentido (ressemantização) para serem com-patíveis com as crenças e ideias defendidas em cada situação.

• A relação entre conhecimento e política tanto pode ser feita paraconstruir problemas, como para definir soluções.

No caso da acção pública em estudo, “o reforço da autonomia dasescolas” foi apresentado como solução, pelo Ministério da Educação, an-tes mesmo de a “sua falta” ser sentida como problema, pelas escolas. Istosignifica que coexistiram neste processo duas lógicas distintas, mas com-plementares, para estabelecer a transferência entre o campo científico eo campo político. Por um lado, uma lógica centrada na procura de so-luções, que se traduz no “knowledge-base policy” (ou “knowledge-informed policy”). Esta lógica foi assumida no discurso dos ministrosentrevistados e na criação dos grupos de trabalho, como o meio de re-colher informação primeiro, para decidir depois. Por outro lado, uma ló-gica que parte da definição a priori de soluções que fazem parte da agen-da política e para as quais se têm de “encontrar” os problemas adequados.Neste caso, como sugere Kingdon (2003, p. 172), “são as soluções queandam à busca dos problemas”, pelo que o conhecimento que é mobili-zado destina-se, sobretudo, a justificar a necessidade de fazer o que sequer fazer.

Estas duas lógicas explicam muito do jogo da “oferta e procura”nos processos de transferência entre conhecimento e política (e vice-versa), verificados ao longo desta acção pública, quer na constituiçãodos grupos de trabalho, quer na utilização do conhecimento académicodisponível. Por um lado, as encomendas dos ministros da Educação aosgrupos de trabalho (criados para apoio à decisão política) partem já deum objectivo político prévio (“reforço da autonomia”, “criação de lide-ranças fortes”, “avaliação da qualidade”, etc.) e o que se espera é que osgrupos de trabalho legitimem e operacionalizem esses objectivos. Poroutro lado, as encomendas de estudos às universidades, ou o aprovei-tamento de investigações já realizadas no meio académico, são condicio-nadas, previamente, pela congruência existente entre os resultados da

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investigação e a orientação política. Ou seja, a utilização do conhecimen-to pela política determina o condicionamento político da produção doconhecimento.

Neste contexto, a influência do conhecimento (em especial do co-nhecimento académico disponível) na acção pública em estudo foi con-dicionada por três factores principais: exequibilidade (privilegiam-se osconhecimentos operacionais que são facilmente traduzíveis em acções);convergência (privilegiam-se os conhecimentos que são adequados às cren-ças pré-existentes); agenda (privilegiam-se os conhecimentos que se inte-gram no “agenda setting”). Ou, como diz Delvaux (Delvaux & Mangez,2008, p. 79-80), baseado em Kingdon, “certos tipos de conhecimento(os que estão incorporados em crenças ou que são postos em forma delinguagem) tendem a ser mobilizados através dos testes da fasibilidade,da aceitablidade e da relevância”.

• Os tipos de conhecimentos que são mobilizados são variados, masé muito reduzida a utilização do conhecimento científico.

No caso do Parlamento, os deputados (que intervieram nas ses-sões plenárias onde este tema foi abordado) só muito raramente fazemreferências genéricas a estudos ou a nomes de especialistas para sustentaras suas crítica ou propostas e nunca apresentam informações ou dadosresultantes de estudos de natureza científica ou produzidos por especia-listas. As suas intervenções são apoiadas maioritariamente em crenças eideias geradas pelas suas convicções ideológicas ou pelas estratégias polí-tico-partidárias. A argumentação em favor ou contra as propostas dos vá-rios governos e dos vários partidos baseia-se, por vezes, em exemplos es-trangeiros, ou em experiências dos professores e das escolas, mas semqualquer referência a dados ou evidências de natureza empírica.

No caso da imprensa, o caso do jornal que foi estudado mostra aexistência de uma “advocacy coalision”, que defende posições favoráveis à“liberdade de escolha” das escolas pelas famílias, aos “vouchers”, à criaçãode “mercados educativos”, à gestão profissionalizada, entre outras, quese expressam através de editoriais, artigos de opinião, entrevistas, re-portagens, cartas ao director. Neste tipo de textos a argumentação uti-lizada remete, genericamente, para uma racionalidade técnica (supos-tamente neutra do ponto de vista político) que separaria, à partida, o“certo” do “errado”, a “boa política” da “má política”. Contudo, tambémneste caso o recurso a estudos e informações fundadas na investigação

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ou em conhecimento académico é reduzido e muito menos se for pro-veniente das “Ciências da Educação”.

Quanto aos “talk events”, é o espaço público onde, pela sua na-tureza, é possível encontrar maior número de referências a estudos einvestigações produzidos no meio académico ou por especialistas. Étambém frequente a presença de “testemunhos” de responsáveis pelagestão das escolas, quer recorrendo ao conhecimento prático das suasexperiências pessoais, quer ao conhecimento produzido no quadro dosseus estudos de pós-graduação.

Finalmente, é de referir que o debate público promovido pelasinstituições de ensino superior (por si ou em articulação com associa-ções profissionais e científicas) é relevante, embora naturalmente comum número reduzido de iniciativas (tendo em conta as poucas institui-ções existentes). É neste tipo de eventos que se encontra a maior con-centração de pessoas e de textos ligados à investigação e à produção deconhecimento especializado nesta área. Contudo, não se pode falar pro-priamente em debate (o confronto de ideias no interior desta comuni-dade académica e científica é reduzido), mas mais na exposição conjun-ta de estudos, resultados e pontos de vista distintos.

• A importância crescente do conhecimento no processo de decisãopolítica tende a fazer com que exista uma forte influência daagenda política na agenda da investigação.

Esta influência pode fazer-se directamente ou indirectamente.No primeiro caso, a influência exerce-se através de encomendas dospróprios ministros a elementos da comunidade científica no domíniodas Ciências da Educação e, mais recentemente, de outras áreas disci-plinares (direito, administração pública, gestão de empresas, estatísti-ca, entre outras). No segundo caso, pela criação de um mercado da for-mação (dos professores que querem desempenhar cargos de gestão eque são obrigados a possuir formação especializada e pós-graduada nodomínio da administração educacional). Este mercado de formação estámuitas vezes associado à realização de investigação nesta área, poractuais ou futuros dirigentes escolares, e a sua existência estimula a pró-pria especialização académica dos professores do ensino superior quetrabalham em escolas com estes cursos.

De registar, ainda, que a importância que passou a ser dada à“autonomia e gestão escolar” (e aos estudos organizacionais em geral),

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por força dos debates gerados no quadro da discussão de diferentes me-didas legislativas, está na origem de um elevado número de eventos su-bordinados a este tema. Estes eventos misturam testemunhos deactores do terreno (e, algumas vezes de outros elementos da “sociedadecivil”, como, por exemplo, jornalistas e empresários) com declaraçõespolíticas de responsáveis do Ministério da Educação e com análisesinterpretativas de académicos ou de especialistas. Estes eventos sãopromovidos por estruturas do próprio Ministério da Educação (depar-tamentos centrais, direcções regionais), ou pelos sindicatos de profes-sores, ou por associações científicas, ou por câmaras municipais, ou pe-las próprias escolas.

O crescente recurso “à evidência científica” como fonte de legi-timação ou de informação para a decisão política (“knowledge orevidence-base policy”) faz com que aumente o condicionamento políticoda própria produção científica. Este condicionamento exerce a sua influ-ência nos temas em estudo (avaliação da qualidade, efeitos da liderança,eficácia de modelos de gestão, boas práticas, comparações internacionais,entre outros), nas metodologias adoptadas (investigação operacional,análises de input-output, estudos extensivos, utilização de indicadores, en-tre outras), na apresentação dos resultados (relatórios curtos, pouco “te-óricos” e dirigidos à identificação e à resolução de problemas).

Apesar do constrangimento existente, os governantes e os altosresponsáveis do Ministério da Educação nem sempre conseguem encon-trar, no meio académico, respostas rápidas e adequadas às suas “necessi-dades”. Este facto está na origem de uma progressiva alteração datecnoestrutura do Ministério, tendo em vista a criação de um saber “pró-prio” especializado, ao nível dos estudos de avaliação, da realização decomparações internacionais, dos “observatórios de políticas (ou de práti-cas) “, entre outros.

Verifica-se, assim, por um lado, que há conhecimento produzi-do que não é utilizado pelos decisores políticos ao nível do Ministérioda Educação (ou porque não “converge” nas orientações políticas, ouporque é excessivamente crítico, ou porque não é suficientemente ope-racional). Contudo, este mesmo conhecimento pode ser utilizado paraorientar a intervenção dos sindicatos, das escolas, dos especialistas noprocesso de acção pública. Por outro lado, existe “conhecimento em fal-ta” que está na origem de encomendas específicas por parte do Minis-tério (mas também por parte dos sindicatos e outras associações) e na

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origem da criação de centros próprios de produção de conhecimentono interior da tecnoestrutura do mesmo Ministério.

Recebido e aprovado em outubro de 2009.

Notas

1. Para uma breve descrição do projecto, ver a apresentação deste dossiê. O projecto de in-vestigação está disponível em: <www.knowandpol.eu>

2. O estudo deu lugar a um relatório (Barroso & Menitra, 2009), cujas versões em inglês eem português se encontram disponíveis no sítio: <www.knowandpol.eu>

3. Por analogia com o que Edelman afirma sobre “o uso da linguagem pelos políticos e bu-rocratas que envolve a manufactura e manipulação de símbolos como placebos para usopúblico” (citado por Parsons, 2001, p. 180).

4. Excertos de 86 sessões plenárias correspondentes a 624 unidades de registo para a análisede conteúdo.

5. 76 textos relacionados com o tema “autonomia e gestão escolar” publicados entre outubrode 2007 e abril de 2008.

6. 18 entrevistas: 4 ministros da Educação; 4 elementos de “grupos de trabalho”; 4 partici-pantes diversos; 6 intervenientes directos no processo de negociação dos contratos de au-tonomia.

7. 123 dissertações de mestrado e 4 teses de doutoramento sobre autonomia e gestão escolar.

8. 121 textos extraídos dos referidos blogues.

9. Para informação sobre os dados recolhidos, consultar o respectivo relatório e anexos (Bar-roso & Menitra, 2009).

10. Na acepção proposta por Sabatier & Jenkins-Smith (1993, p. 5): “Uma ‘advocacycoalition’ é constituída por actores de uma grande variedade de instituições públicas e pri-vadas, em todos os níveis de governo, que partilham um conjunto de crenças básicas (ob-jectivos políticos, causalidades e outras percepções) e que tentam manipular regras, orça-mentos e pessoal de instituições governamentais, com o fim de atingirem objectivos deacordo com essas crenças”.

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