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A Tragédia de Um Povo

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A REVOLUÇÃO RUSSA1891 ‑1924

Tradução de

Valéria Rodrigues

Orlando Figes

A TRAGÉDIA DE UM POVO

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Título original: A People’s Tragedy: The Russian Revolution© 1996, Orlando FigesEdição portuguesa © 2017, Publicações Dom QuixoteMapas: James SinclairReservados todos os direitos.

Capa: Rui GarridoImagem da capa: © Getty ImagesFotografias: direitos reservados

Revisão: GoodSpellPaginação: Joana AmaralImpressão e acabamento: CEM1.ª edição: Outubro de 2017Depósito legal n.º 430 566/17ISBN: 978 ‑972 ‑20 ‑6370 ‑8

Publicações Dom QuixoteUma editora do Grupo LeYaRua Cidade de Córdova, n.o 22610 ‑038 Alfragide – Portugalwww.dquixote.ptwww.leya.com

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Índice

Introdução à Edição do Centésimo Aniversário .............................................. 13Prefácio .......................................................................................................... 21Glossário ........................................................................................................ 25Nota sobre as datas ......................................................................................... 27Mapas ............................................................................................................ 29

PARTE UM – A RÚSSIA SOB O ANTIGO REGIME

I. A Dinastia .................................................................................................... 39O czar e o seu povo ................................................................................... 39O miniaturista ........................................................................................... 51O herdeiro ................................................................................................. 61

II. Pilares Instáveis .......................................................................................... 73Burocratas e trajes de gala .......................................................................... 73O ténue verniz da civilização ...................................................................... 80Resquícios de um exército feudal ............................................................... 94Uma Rússia não muito sagrada ................................................................ 101Uma prisão de povos ................................................................................ 108

III. Ícones e Baratas ...................................................................................... 123Um mundo à parte .................................................................................. 123Tentativas de banir o passado ................................................................... 142

IV. Tinta Vermelha ........................................................................................ 165No interior da fortaleza ............................................................................ 165Marx chega à Rússia................................................................................. 182

PARTE DOIS – A CRISE DE AUTORIDADE (1891 ‑1917)

V. Primeiro Sangue ....................................................................................... 203Patriotas e libertadores ............................................................................ 203«Não existe czar» ..................................................................................... 220Uma encruzilhada .................................................................................... 240

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VI. Últimas Esperanças ................................................................................. 263Parlamentares e camponeses ..................................................................... 263O homem de Estado ................................................................................ 271A aposta nos fortes ................................................................................... 284Por Deus, pelo Czar e pela Pátria ............................................................. 294

VII. Uma Guerra em Três Frentes .................................................................. 307Uma barreira de metal contra homens ..................................................... 307O motorista maluco ................................................................................. 325Das trincheiras às barricadas .................................................................... 347

PARTE TRÊS – A RÚSSIA REVOLUCIONÁRIA(FEVEREIRO DE 1917 – MARÇO DE 1918)

VIII. Glorioso Fevereiro ................................................................................ 363O poder das ruas...................................................................................... 363Revolucionários relutantes ....................................................................... 380Nicolau, o último .................................................................................... 396

IX. O País Mais Livre do Mundo .................................................................. 411Um estado liberal distante........................................................................ 411Expectativas ............................................................................................. 419A fúria de Lénine ..................................................................................... 443O desespero de Gorki .............................................................................. 456

X. A Agonia do Governo Provisório .............................................................. 463A ilusão de uma nação ............................................................................. 463Um vermelho mais escuro ........................................................................ 478O homem do cavalo branco ..................................................................... 496Hamlets do socialismo democrático ......................................................... 514

XI. A Revolução de Lénine ............................................................................ 533A arte da insurreição ................................................................................ 533Os autocratas do Smolny ......................................................................... 560Saqueando os saqueadores........................................................................ 581O socialismo num só país ........................................................................ 598

PARTE QUATRO – A GUERRA CIVIL E A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA SOVIÉTICO (1918 ‑1924)

XII. Últimos Sonhos do Velho Mundo .......................................................... 617São Petersburgo na estepe ........................................................................ 617O fantasma da Assembleia Constituinte ................................................... 638

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XIII. A Revolução Vai à Guerra ..................................................................... 653Armar a revolução .................................................................................... 653Kulaks, comerciantes clandestinos e isqueiros ........................................... 668A cor do sangue ....................................................................................... 693

XIV. O Novo Regime Triunfante ................................................................... 719Três batalhas decisivas .............................................................................. 719Camaradas e comissários .......................................................................... 753Uma pátria socialista ................................................................................ 768

XV. Derrota na Vitória .................................................................................. 797Atalhos para o comunismo ...................................................................... 797 Engenheiros da alma ................................................................................ 809O bolchevismo em retirada ..................................................................... 829

XVI. Mortes e Partidas .................................................................................. 853Órfãos da Revolução ................................................................................ 853O campo não conquistado ....................................................................... 866A última batalha de Lénine ...................................................................... 873

Conclusão ..................................................................................................... 889Notas ............................................................................................................ 905Bibliografia .................................................................................................... 929Índice Onomástico ....................................................................................... 957

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Introdução à Edição do Centésimo Aniversário

É difícil pensar num acontecimento, ou numa série de acontecimentos, que tenha afetado a história dos últimos cem anos mais profundamente do que a Revolução Russa de 1917. Uma geração após o estabelecimento do sistema soviético, um terço da humanidade estava a viver sob regimes modelados, mais ou menos, a partir dele. O medo do bolchevismo foi um grande fator na ascensão dos movimentos fascistas, traçando o caminho para a eclosão da Segunda Guerra Mundial. A partir de 1945, a exportação do modelo leninista para a Europa de Leste, a China, o Sudoeste Asiático, a África e a América Central mergulhou o mundo numa longa Guerra Fria, que chegou a um fim incerto apenas com o colapso da União Soviética, em 1991. «A revolução de 1917 definiu a forma do mundo contemporâneo e só agora estamos a emergir das suas sombras», escrevi eu no prefácio à primeira edição de A Tragédia de Um Povo em 1996. Hoje, em 2017, essas sombras ainda pairam sombria‑mente sobre a Rússia e as frágeis novas democracias que emergiram da União Soviética. A sua presença pode ser sentida nos movimentos revolucionários e terroristas dos nossos tempos. Como avisei na última frase deste livro, «os fantasmas de 1917 continuam a assombrar ‑nos».

Não foi isso que pareceu a muitos nos anos imediatamente a seguir ao colapso da União Soviética. Havia um sentimento geral, pelo menos no Oci‑dente, de que a Revolução Russa tinha acabado, os seus falsos deuses vencidos pela democracia. Nesse momento de triunfo democrático e de triunfalismo, Francis Fukuyama escreveu o seu livro seminal O Fim da História e o Último Homem (1992), no qual anunciou a derradeira vitória do capitalismo libe‑ral na sua grande batalha ideológica contra o comunismo. «O que estamos a testemunhar», escreveu Fukuyama, «não é só o fim da Guerra Fria, ou o ultrapassar de um período específico da história do pós ‑guerra, mas o fim da História enquanto tal: isto é, a etapa final da evolução ideológica da Huma‑nidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a derradeira forma de governo humano».

Quando estava a trabalhar em A Tragédia de Um Povo, entre 1989 e 1996, tive sem dúvida a sensação libertadora, como historiador, de que o meu assun‑to não tinha de continuar a ser definido pelas batalhas ideológicas da Guerra Fria. A Revolução Russa estava a tornar ‑se um outro tipo de «história»: com

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o colapso do sistema soviético, podia, ao menos, ser vista como uma traje‑tória completa – com um início, um meio e, agora, um fim –, passível de um estudo mais permissivo, sem as pressões da política contemporânea ou as intenções restritivas da sovietologia, a estrutura político ‑científica na qual a maior parte dos estudos ocidentais da revolução foram escritos quando a União Soviética era viva.

Entretanto, a abertura dos arquivos soviéticos permitiu novas abordagens à história da revolução. A minha foi a de usar histórias pessoais de indivíduos normais cujas vozes tinham sido perdidas nas histórias da época da Guerra Fria (tanto soviéticas como ocidentais), que se tinham focado nas abstratas «massas», classes sociais, partidos políticos e ideologias. Tendo trabalhado nos arquivos soviéticos desde 1984, incomodava ‑me o facto de ainda não terem sido encontradas revelações inquietantes acerca de Lenine, Trotsky ou até de Estaline, que era o mais procurado por quem chegava recentemente às salas de leitura. Mas entusiasmava ‑me a oportunidade de trabalhar com os arquivos pessoais de figuras menores da revolução – líderes secundários, trabalhado‑res, soldados, oficiais, intelectuais e até camponeses – em quantidades muito maiores do que fora anteriormente permitido. A abordagem biográfica que acabei por adotar em A Tragédia de Um Povo não teve apenas a intenção de acrescentar «interesse humano» à narrativa. Ao tecer as histórias destes in‑divíduos, quis apresentar a revolução como uma série dramática de aconte‑cimentos, que não eram controlados pelas pessoas que neles participavam. As figuras que escolhi tinham uma característica em comum: com planos para influenciar o curso da História, todas elas foram vítimas de consequências imprevistas. Ao concentrar ‑me nelas, o meu intuito foi reconstituir o trágico caos da revolução, que varreu tantas vidas e destruiu tantos sonhos.

A minha conceção da revolução como uma «tragédia do povo» tinha tam‑bém o propósito de funcionar como um argumento acerca do destino da Rússia: a sua incapacidade de ultrapassar o passado autocrático e de estabili‑zar enquanto democracia em 1917; o mergulho na violência e na ditadura. As causas dessa falha democrática, parecia ‑me, estavam enraizadas na história do país, na fraqueza da classe média e das instituições civis e, acima de tudo, na pobreza e no isolamento dos camponeses, a vasta maioria da população da Rússia, cuja revolução agrária eu tinha estudado em pormenor no meu pri‑meiro livro, Peasant Russia, Civil War (1989).

Quando A Tragédia de Um Povo saiu, alguns críticos acharam o livro de‑masiado sombrio no seu balanço do potencial democrático da revolução. Parte dessa reação teve origem na visão marxista de Outubro de 1917 como uma revolta popular baseada numa revolução social que perdeu o seu caráter democrático somente após a morte de Lenine, em 1924, e a ascensão de Esta‑line ao poder. Outra parte decorria das esperanças democráticas depositadas na Rússia pós ‑soviética por uma variedade ampla de grupos interessados,

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desde os idealistas impenitentes e a intelligentsia russa – que queriam acre‑ditar que o país ainda podia tornar ‑se uma democracia emergente, assim se libertasse da sua herança estalinista – até aos líderes empresariais ocidentais, mais pragmáticos mas desconhecedores da Rússia, que apostavam o seu di‑nheiro nisso.

Essas esperanças tiveram vida curta, uma vez que a Rússia sob o governo de Vladimir Putin, eleito presidente em 2000, regrediu para uma forma de governo mais autoritária e familiar. As causas desta falha democrática foram semelhantes às de 1917, tal como as identifiquei em A Tragédia de Um Povo, mas com uma diferença significativa. Ao contrário da queda do sistema cza‑rista em fevereiro de 1917, o colapso do regime soviético em 1991 não foi provocado por uma revolução popular ou social que tivesse levado à reforma democrática do Estado. Foi essencialmente um abdicar do poder por parte das elites comunistas, as quais, pelo menos na Rússia – onde não havia leis de lustração como as da Europa de Leste e dos estados Bálticos para as manter fora do serviço público –, depressa conseguiram recuperar cargos dominantes na política e nos negócios com novas identidades políticas. Livre de qualquer tipo de escrutínio público, o KGB, onde Putin fez a sua carreira, teve a opor‑tunidade de se reconstruir, acabando por se transformar no Serviço Federal de Segurança (FSB), sem mudanças significativas no seu pessoal.

Tal como em 1917, a viragem em direção a um governo autoritário sob Putin foi possível graças à fraqueza das classes médias e das instituições pú‑blicas na Rússia pós ‑soviética. Sujeita à pressão do mercado, a intelligentsia provou ser de longe mais pequena e menos influente do que julgava, e perdeu a sua credibilidade enquanto voz moral do povo, um papel que desempenhara desde o século xix: vivia num mundo de livros numa altura em que o poder e a autoridade eram cada vez mais definidos pelos mass media controlados pelo Estado. No quarto de século que passou desde a queda do regime soviético, o desenvolvimento de organismos públicos na Rússia tem sido lamentavelmen‑te lento. Onde estão as associações profissionais, os sindicatos, as associações de consumidores, os verdadeiros partidos políticos? O problema para a de‑mocracia na Rússia reside tanto na fraqueza da sociedade civil, como na força opressiva do Estado.

Mas o maior problema para o projeto democrático de 1991, tal como ti‑nha sucedido em 1917, era o simples facto histórico de que os russos nunca o tinham experienciado. Nem o governo czarista nem o governo soviético lhes tinham dado uma amostra ou sequer um entendimento de soberania parla‑mentar, de responsabilidade governamental ou de liberdades protegidas pela lei. A conceção popular de «democracia» em 1917 não correspondia de todo a uma forma de governo, antes era um rótulo social, equivalente a «o povo», cujo oposto não era a «ditadura», mas sim «os burgueses». Com base nisto, nas seis ou até sete décadas seguintes, as pessoas podiam acreditar que o sistema

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soviético era «o mais democrático do mundo», no sentido de que oferecia, melhor ou pior, emprego universal, habitação, assistência médica e igualdade social. Nesta visão, a crise económica que acompanhou o colapso do sistema soviético punha em causa a credibilidade das versões capitalistas de «liberda‑de» e «democracia» que eram apresentadas no seu lugar.

Para a maioria dos russos comuns, especialmente para os de uma certa idade, que se identificavam como «soviéticos», a década de 1990 foi quase como uma catástrofe. Eles perderam tudo: um modo de vida a que estavam habituados; um sistema económico que garantia segurança; uma ideologia que lhes dava certezas morais, talvez até esperança; um império enorme com o estatuto de superpotência e uma identidade que se sobrepunha a divisões étnicas; e orgulho nacional no que dizia respeito a triunfos soviéticos na cultu‑ra, na ciência e na tecnologia. A lutarem por se adaptar às realidades duras do novo modo de vida capitalista, onde não reinava uma grande ideia, nenhum objetivo coletivo definido pelo Estado, o período soviético surgia ‑lhes com nostalgia. Muitos ansiavam por regressar ao passado místico do governo de Estaline, que, acreditavam eles, tinha presidido sobre tempos de abundância material, ordem e segurança, a «melhor época na história do país». De acordo com uma sondagem feita em 2005, 42 por cento do povo russo, e 60 por cen‑to das pessoas acima dos 60 anos de idade, queriam o regresso de «um líder como Estaline».

Desde o início do seu regime, Putin procurou restaurar o orgulho na his‑tória soviética, um dos passos imprescindíveis para o cumprimento do seu programa de reconstruir a Rússia como uma grande potência. A reabilitação do passado soviético, incluindo Estaline, abençoou o governo autoritário do próprio Putin, legitimando ‑o como o herdeiro de uma longa tradição russa de forte poder do Estado, remontando até aos czares. De acordo com este mito, a ordem e a segurança fornecidas pelo Estado são mais acarinhadas pelos russos do que os conceitos liberais do Ocidente – direitos humanos ou democracia política –, que não têm qualquer tipo de raízes na história russa.

A popularidade da iniciativa histórica de Putin ganhou especial fôlego ao encorajar sentimentos nacionalistas, um orgulho patriota em relação à vitória soviética de 1945 e um sentimento de nostalgia pela União Soviética. Quan‑do, em 2005, declarou à Assembleia Federal da Rússia que «o desmantelar da União Soviética foi a maior tragédia geopolítica do século xx», Putin estava a verbalizar a opinião de três quartos da população. De acordo com uma sondagem em 2000, essa percentagem lamentava a queda da URSS e queria que a Rússia se expandisse em tamanho, passando a incorporar territórios «russos» como a Crimeia e a Bacia do Donets, que tinham sido «perdidos» para a Ucrânia. Em 2014, voluntários russos com bandeiras neossoviéticas atravessariam a fronteira para lutar pela reconquista destes dois territórios ucranianos.

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O reescrever positivo da história soviética surgiu também como um alívio para os russos que se tinham ressentido com o «obscurecer» da história do seu país durante o período da glasnost, quando as notícias vinham cheias de revelações acerca dos «crimes de Estaline», prejudicando a versão do «manual soviético» que tinham aprendido na escola. Muitos se sentiram desconfortá‑veis com as perguntas que se viram obrigados a fazer acerca dos atos das suas famílias durante o período do governo de Estaline. Não queriam ouvir lições de moral sobre quão «má» era a história do seu país. Ao restaurar orgulho no passado soviético, Putin ajudou os russos a voltarem a sentir ‑se bem na sua pele.

A iniciativa começou nas escolas. Os manuais que eram considerados de‑masiado negativos no que tocava ao período soviético começaram a ser chum‑bados pelo Ministério da Educação, sendo efetivamente retirados das salas de aula. Em 2007, numa conferência de professores de história, Putin declarou:

Quanto a algumas páginas problemáticas na nossa história, sim, tivemo ‑las. Mas que Estado é que não as teve? E nós tivemos menos dessas páginas do que outros [Estados]. E as nossas não foram tão horríveis como as de outros Estados. Sim, nós tivemos algumas páginas terríveis: lembremo ‑nos dos acon‑tecimentos de 1937, não nos esqueçamos deles. Mas os outros países não tive‑ram menos, pelo contrário. Em todo o caso, nós não largámos químicos sobre milhares de quilómetros nem lançámos sobre um país pequeno sete vezes mais bombas do que em toda a Segunda Guerra Mundial, como os americanos fizeram no Vietname. E também não tivemos outras páginas negras, como o nazismo, por exemplo. Todo o tipo de coisas acontecem na história dos Esta‑dos. E não podemos ficar amarrados pela culpa […]

Putin não negou os crimes de Estaline. Mas argumentou a favor da necessi‑dade de não os remoer, de os comparar com os seus feitos enquanto criador do «glorioso passado soviético» do país. Num manual encomendado pelo presi‑dente para os professores de história e altamente promovido nas escolas russas, Estaline apareceu retratado como um «gestor eficaz» que «agiu racionalmente ao levar a cabo uma campanha de terror para assegurar a modernização do país».

As sondagens sugerem que os russos partilhavam essa atitude inquie‑tante em relação à violência da revolução. De acordo com uma pesquisa realizada em 2007 em três cidades (São Petersburgo, Kazan e a cidade natal de Lenine, Ulianovsk), 71 por cento da população considerava que Félix Dzerjinsky, o fundador da Cheka (precursora do KGB) em 1917, tinha «protegido a ordem pública e a vida civil». Apenas sete por cento era da opi‑nião de que ele fora um «criminoso e um carrasco». Mais perturbante ainda foi o facto de a pesquisa revelar que, enquanto quase todos se encontravam

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bem informados em relação à repressão em massa sob o governo de Estali‑ne – com a maioria reconhecendo que «entre dez e 30 milhões de vítimas» tinham sofrido –, mesmo assim, dois terços desses entrevistados considera‑vam que Estaline tinha sido positivo para o país. Muitos achavam que, sob Estaline, as pessoas tinham sido «mais amistosas e tinham revelado maior compaixão». Mesmo conhecendo os milhões de cidadãos assassinados, os russos, ao que parecia, continuavam a aceitar a ideia bolchevique de que a violência em massa por parte do Estado pode ser justificada para alcançar os objetivos da revolução.

No outono de 2011, milhares de russos viram o programa televisivo The Court of Time (Sud vremeni), no qual várias figuras e episódios da história da Rússia eram julgados num tribunal fictício com advogados, testemunhas e um júri dos espectadores, que chegavam a um veredicto ao votar por telefo‑ne. Os veredictos visíveis neste tribunal emitido pela televisão do estado não oferecem muita esperança no que toca a uma mudança de atitudes russa. Ao serem confrontados com provas da guerra de Estaline contra os camponeses e os efeitos catastróficos da coletivização forçada, na qual milhões morreram à fome e muitos mais foram enviados para os gulags ou estabelecimentos penais remotos, apesar disso, 78 por cento dos espectadores acharam que essas po‑líticas tinham justificação, uma «necessidade terrível» para a industrialização soviética. Apenas 22 por cento as consideraram como «crime».

Portanto, como é que devemos comemorar a Revolução no seu centená‑rio? Em 1889, para celebrar o centésimo aniversário da Revolução Francesa, a Torre Eiffel foi inaugurada à entrada da Exposição Universal de Paris. A Torre representava os valores da Terceira República, que vinham de 1789. Na Rússia, não seria possível construir semelhante monumento, pois a co‑memoração da Revolução de Outubro tem dividido o país desde a queda do regime soviético. Em 1996, Boris Iéltsin substituiu o Dia da Revolução de 7 de novembro pelo Dia de Acordo e Reconciliação, «com o intuito de diminuir os confrontos e de conciliar vários segmentos da sociedade». Mas os comunistas continuaram a comemorar o aniversário da Revolução de acordo com os costumes soviéticos tradicionais, com uma manifestação gigantesca empunhando bandeiras vermelhas. Putin tentou acabar com o conflito ao criar o Dia da União Nacional a 4 de novembro (data do fim da ocupação polaca da Rússia em 1612). A partir de 2005, tomou o lugar do feriado de 7 de novembro no calendário oficial. Mas o Dia da União Nacio‑nal não foi absorvido pelas massas. Segundo uma sondagem feita em 2007, apenas quatro por cento da população sabia dizer do que se tratava. Seis em cada dez pessoas opunham ‑se à substituição do Dia da Revolução. Apesar do esforço de Putin para trazer de volta os feitos positivos do passado soviético, não existe uma narrativa histórica acerca da Revolução de Outubro à volta

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da qual o país se possa unir: alguns veem ‑na como uma catástrofe natural, outros como o começo de uma grande civilização, mas o país como um todo continua incapaz de fazer as pazes com o seu legado violento e contraditório.

Da mesma maneira, não foi possível alcançar um consenso sobre o que fazer com o fundador do estado soviético. Iéltsin e a Igreja Ortodoxa Russa apoiaram iniciativas para fechar o Mausoléu de Lenine na Praça Vermelha, em Moscovo, onde o corpo preservado está exposto desde 1924, e enterrá ‑lo ao lado da sua mãe no Cemitério de Volkovo, em São Petersburgo, como ele pró‑prio desejara. Mas os comunistas falaram mais alto e estavam mais organizados contra essa iniciativa, pelo que o assunto ficou por resolver. Putin opunha ‑se à ideia de retirar o corpo de Lenine do Mausoléu, argumentando que tal iria ofender as gerações mais velhas, que tanto se tinham sacrificado pelo sistema soviético, implicando que estas gerações tinham acarinhado ideais falsos.

Com tamanha confusão e divisão, as comemorações da Revolução em 2017 serão provavelmente silenciosas. É igualmente provável que o mesmo aconteça no Ocidente, onde a memória da Revolução Russa recuou no nosso consciente histórico, em parte como resultado da perda de interesse dos media desde o fim da Guerra Fria, visto que o nosso foco foi redirecionado para o Médio Oriente e para a questão do extremismo islâmico; e talvez também em parte pela nossa crescente preocupação com os direitos humanos, que domina o discurso moral sobre a mudança política e que nos tornou menos compreen‑sivos em relação à força emotiva de outros valores, como é o caso da justiça social e da redistribuição de bens, que fomentam a violência revolucionária.

Mas, como os acontecimentos dos últimos anos têm demonstrado, a época das revoluções ainda não acabou. As «revoluções coloridas» nos Balcãs, na Ucrânia, na Geórgia e no Líbano, a Primavera Árabe e a Euromaidan da Ucrâ‑nia relembram ‑nos da importância que as manifestações em massa podem ter no derrubar dos governos, muitas vezes através do uso de violência. Em todos estes movimentos, há lições a serem retiradas a partir de comparações com 1917. O uso das redes sociais para organizar multidões, por exemplo, teria sido aplaudido por Lenine. Da mesma forma que os revolucionários olhavam para os jacobinos no século xix, também os bolcheviques se torna‑ram os modelos a seguir por todos os movimentos revolucionários do século xx, da China ao Irão, tanto como para os terroristas da atualidade. Todos os métodos usados pelo ISIS – o uso da guerra e do terror para criar um estado revolucionário, a devoção fanática e a disciplina militar dos seus seguidores e o recurso genial à propaganda – foram primeiro dominados pelos bolcheviques na Guerra Civil Russa.

Não devemos ser complacentes e acreditar que nenhuma revolução poderá ameaçar as democracias liberais ocidentais. O recente aumento de movimen‑tos populistas em massa pela Europa fora deve lembrar ‑nos de que as revo‑luções podem rebentar de forma inesperada: nunca estão demasiado longe.

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A história da Europa no século xx mostra ‑nos quão frágil a democracia tem sido. Se venceu a sua grande batalha ideológica contra o fascismo e o comu‑nismo, fê ‑lo por pouco, e a sua vitória nunca esteve garantida: o resultado poderia ter sido outro. Como escrevi, em 1996, nos últimos parágrafos deste livro: «temos de tentar fortalecer a democracia enquanto fonte de liberdade e de justiça social, de modo que os desfavorecidos e os descontentes não a rejeitem uma vez mais».

Londres, janeiro de 2017

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Prefácio

Hoje em dia, usamos a palavra «revolução» com tanta frequência – referindo‑‑nos a uma mudança na política do governo para o desporto, a uma inovação tecnológica ou mesmo a uma nova tendência de marketing – que pode ser difícil para o leitor deste livro compreender desde logo a amplitude do tema. A Re‑volução Russa foi, pelo menos em termos dos seus efeitos, um dos maiores acontecimentos da história mundial. A partir da criação do poder soviético, e no espaço de uma única geração, um terço da humanidade passou a viver sob regimes inspirados nesse poder. A revolução de 1917 definiu a forma do mundo contemporâneo e só agora estamos a emergir das suas sombras. A erupção com‑pacta de 1917 – tão frequentemente contada nos livros de história – não foi exatamente uma revolução, mas todo um complexo de diferentes revoluções, desencadeadas no meio da Primeira Guerra Mundial, que provocaram uma rea‑ção em cadeia de mais revoluções, guerras civis, guerras étnicas e guerras entre nações. Quando terminou, tinha despedaçado – e recomposto – um império que cobria um sexto da superfície do globo. Ainda que com o risco de parecer‑mos insensíveis, o caminho mais fácil para transmitir o âmbito dessa revolução seria listar os modos pelos quais se desperdiçaram vidas humanas: dezenas de milhares foram mortos por bombas e balas disparadas pelos revolucionários e pelas repressões do governo czarista, antes de 1917; milhares morreram lutando nas ruas, durante aquele ano; centenas de milhares morreram em consequência do Terror Vermelho – e outro tanto por conta do Terror Branco, se incluirmos as vítimas dos pogroms contra judeus – ao longo dos anos que se seguiram; mais de um milhão pereceram na guerra civil, incluindo civis mortos na retaguarda; e mais pessoas ainda caíram de fome, frio e doenças, em número muito superior ao das que sucumbiram pelas demais razões.

Tudo isso, suponho, vale como desculpa para justificar o tamanho deste livro – a primeira tentativa de uma história abrangente sobre todo o período revo‑lucionário num só volume. A narrativa tem início na década de 1890, quando a crise revolucionária realmente começou ou, mais especificamente, em 1891, quando a opinião pública reagiu pela primeira vez à crise decorrente da fome, entrando em rota de colisão com a autocracia czarista. Esta nossa história ter‑mina em 1924, com a morte de Lénine, quando a revolução já tinha feito um círculo completo e estavam estabelecidas as instituições básicas, se não todas

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as práticas do regime estalinista. Isso deveria dar à revolução uma longevida‑de muito maior do que o habitual. Todavia, tirando uma ou duas exceções, parece ‑me que as histórias anteriores da revolução se têm concentrado quase exclusivamente nos eventos de 1917, o que tornou muito limitado o leque dos seus possíveis desdobramentos. Não era de forma alguma inevitável que a re‑volução terminasse na ditadura bolchevique, embora olhar apenas para aquele ano fatal nos levasse a tirar essa conclusão. Houve vários momentos decisivos, antes e durante 1917, nos quais a Rússia poderia ter seguido um caminho mais democrático. Em A Tragédia de Um Povo, olhando para a revolução na sua longa duração, tentaremos explicar porque é que isto não aconteceu em cada um des‑ses momentos. Como o título pretende sugerir, o livro baseia ‑se na proposição de que o fracasso democrático da Rússia decorreu das profundas raízes culturais, políticas e histórico ‑sociais do seu povo. Muitos dos temas dos quatro capítulos introdutórios da Parte Um – a ausência de um contrapeso ao nível estatal, capaz de fazer frente ao despotismo do czar; o isolamento e a fragilidade da sociedade civil liberal; o atraso e a violência vigentes nas aldeias russas, que levaram tantos camponeses a procurar uma vida melhor nos centros industriais; e o estranho fanatismo dos intelectuais radicais russos – reaparecerão constantemente nas Partes Dois, Três e Quatro.

Embora a política nunca esteja longe, suponho que esta seja uma história social, já que seu principal foco é a gente comum. Tentei apresentar as principais forças sociais – o campesinato, a classe trabalhadora, os soldados e as minorias nacionais – como participantes do drama revolucionário, e não como «vítimas» da revolução. Houve inúmeras vítimas, sem dúvida, e não pretendi adotar a abordagem «de baixo para cima» tão em voga hoje em dia entre os historiadores «revisionistas» da Rússia soviética. Seria absurdo – e, no caso da Rússia, vergo‑nhoso – deduzir que um povo tem os governantes que merece. No entanto, também não restam dúvidas de que carece de pertinência a versão histórica «de cima para baixo» da Revolução Russa, típica do período da Guerra Fria, e na qual o povo aparecia como objeto passivo das malévolas maquinações bolchevi‑ques. Dispomos agora de uma rica e abrangente literatura, baseada em pesquisas realizadas em arquivos recém ‑abertos, sobre a vida social do campesinato russo, dos trabalhadores, dos soldados, dos marinheiros, dos cossacos, dos habitantes das cidades provincianas e das regiões não ‑russas do império durante o período revolucionário. Estas monografias revelaram ‑nos um retrato muito mais com‑plexo e convincente do relacionamento entre o partido e o povo do que aquele apresentado pelas antigas versões «de cima para baixo». Os textos mostram que em vez de uma única revolução abstrata, imposta pelos bolcheviques à Rússia inteira, o que aconteceu foi um processo moldado por paixões e interesses locais. A Tragédia de Um Povo é um esforço no sentido de sintetizar essa reavaliação e levar a questão a uma fase mais avançada, demonstrando, como o título indica, que a revolução popular continha as sementes da sua própria degeneração na

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violência e na ditadura. As mesmas forças sociais que levaram ao triunfo do regime bolchevique tornaram ‑se as principais vítimas desse triunfo.

Finalmente, A Tragédia de Um Povo oscila entre as esferas pública e privada. Sempre que possível, procurei destacar o aspeto humano dos grandes eventos, ouvindo as vozes de indivíduos cujas vidas foram apanhadas pela tempestade. Diários, cartas e outros escritos privados têm preeminência neste livro. Além disso, de forma mais profunda, as histórias pessoais de várias figuras foram en‑trelaçadas na narrativa. Algumas delas são ilustres – Máximo Gorki, o general Brusilov e o príncipe Lvov –, enquanto outras permanecem ignoradas pelos pró‑prios historiadores – o camponês reformista Sergei Semenov e o soldado Dmitry Os’kin. Todas alimentaram esperanças e aspirações, medos e deceções típicos da experiência revolucionária como um todo. Acompanhando a sorte destas figu‑ras, o meu objetivo foi transmitir o caos daqueles anos tal como terá sido sentido pelos homens e mulheres comuns. Tentei apresentar a revolução, não como uma marcha de forças sociais e ideologias abstratas, mas como um acontecimento humano, cheio de complicadas tragédias individuais. Essencialmente, é uma história de pessoas que abraçam grandes ideais e acabam por concluir que os resultados que alcançaram são muito diferentes do que imaginaram. Eis, mais uma vez, por que optei por este título: A Tragédia de Um Povo não trata apenas do momento trágico em que se deu uma viragem histórica, mas diz respeito à forma como a tragédia da revolução se apoderou dos destinos daqueles que a viveram.

Este livro levou mais de seis anos a ser escrito e estou eternamente grato para com muitas pessoas.

Devo agradecer, principalmente, a Stephanie Palmer, que suportou longas horas de trabalho egoísta, fins de semana e feriados estragados por horas extra e um comportamento quase sempre intratável do marido, muito além do que seria justo tolerar. Em troca, recebi da parte dela amor e apoio em grau muito maior do que merecia. A Stephanie cuidou de mim ao longo dos anos sombrios de uma doença debilitadora que sofri nas primeiras fases de produção do livro e, além de seu próprio fardo de trabalho pesado, assumiu mais do que seria a sua quota justa na tarefa de dar atenção às nossas filhas, Lydia e Alice, depois do seu nascimento em 1993. Por gratidão, dedico ‑lhe este livro.

Neil Belton, da Jonathan Cape, desempenhou um papel fundamental na preparação deste livro. O Neil é o editor dos sonhos de qualquer escritor. Leu cada capítulo em cada uma das versões e comentou ‑os em longas e detalhadas cartas, na mais fina prosa. As suas críticas foram sempre acertadas, o seu co‑nhecimento sobre o assunto constantemente surpreendente e o seu entusiasmo inspirador. Se há um leitor ao qual este livro se dirige, é a ele.

A segunda versão foi lida também por Boris Kolonitskii, durante vários encontros nossos em Cambridge e São Petersburgo. Estou ‑lhe muito grato pelos seus muitos comentários, que resultaram em aperfeiçoamentos do texto.

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E espero que, embora este tenha sido um trabalho unilateral, possa ser o começo de uma parceria intelectual duradoura.

Tenho uma grande dívida de gratidão para com duas mulheres extraordiná‑rias. Uma é a minha mãe, Eva Figes, mestre na arte narrativa do passado, que sempre me deu bons conselhos sobre como praticar tal ofício. A outra é a agente Deborah Rogers, que me prestou um grande serviço ao intermediar o casamen‑to com a editora Jonathan Cape.

Na Cape, duas outras pessoas merecem agradecimentos especiais. Dan Franklin leu o livro com sensibilidade e inteligência na fase final de produção. E Liz Cowen analisou todo o texto, linha a linha, sugerindo melhorias com um cuidado meticuloso. Estou profundamente agradecido a ambos.

Pela assistência na preparação do texto final, quero agradecer também a Clai‑re Farrimond, que me ajudou a verificar as notas, e a Laura Pieters Cordy, que trabalhou para além do que devia para inserir as correções. Devo também agra‑decimentos a Ian Agnew, que desenhou os esplêndidos mapas.

Os últimos seis anos foram um período estimulante para a pesquisa histórica na Rússia. Gostaria de agradecer aos funcionários de muitos arquivos e biblio‑tecas russos onde a pesquisa deste livro foi concluída. Devo muito ao conheci‑mento e aconselhamento de incontáveis arquivistas, em número grande demais para poder nomeá ‑los um a um. Mas há uma exceção, Vladimir Barakhov, dire‑tor do Arquivo Gorki, que foi mais do que generoso com seu tempo.

Muitas instituições me ajudaram na pesquisa para este livro. Agradeço à Aca‑demia Britânica, ao Leverhulme Trust e – embora a parceria não tenha sido pos‑sível – também ao Woodrow Wilson Center, em Washington, pelo seu generoso apoio. O Trinity College em Cambridge, ao qual pertenço, uma faculdade tão generosa quanto rica, foi de enorme valia, concedendo ‑me bolsas e licenças para estudos. Entre os Holy and Undivided Fellows, devo agradecimentos especiais aos meus colegas Boyd Hilton e John Lonsdale, por me substituírem em au‑sências frequentes; ao inimitável Anil Seal, pelo seu grande apoio; e sobretudo a Raj Chandavarkar, pela sua crítica tão arguta e amizade leal. Finalmente, na Faculdade de História, estou, como sempre, grato a Quentin Skinner pelos seus esforços em meu benefício.

O melhor da Universidade de Cambridge é a qualidade dos seus alunos. Ao longo dos últimos seis anos tive o privilégio de ensinar alguns dos alunos mais brilhantes na minha disciplina especial sobre a Revolução Russa. Este livro é, em grande medida, resultado dessa experiência. Muitas foram as ocasiões em que deixei a sala de aula à pressa para pôr no papel ideias que surgiram a partir de discussões com os meus alunos. Mesmo que esta contribuição não possa ser reconhecida nas notas, espero que aqueles que lerem este livro o tomem como um tributo da minha gratidão.

Cambridge, novembro de 1995

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O CZAR E O SEU POVO

Numa manhã fria e assolada pelo vento, em fevereiro de 1913, São Petersbur‑go celebrou 300 anos de governo Romanov sobre a Rússia. Há semanas que o povo vinha falando sobre o grande evento e todos concordavam que, enquan‑to vivessem, jamais voltariam a ver algo tão esplêndido. O poder majestoso da dinastia seria ostentado, como nunca antes, com pompa e extravagância. Quando o jubileu se aproximou, dignitários de partes remotas do império rus‑so lotaram os grandes hotéis da capital: príncipes da Polónia e das terras bálti‑cas; sumos sacerdotes da Geórgia e da Arménia; mulás e chefes tribais da Ásia central; o emir de Bukhara e o cã de Khiva. A cidade fervilhava de visitantes vindos das províncias, e os transeuntes bem vestidos que sempre circulavam em torno do Palácio de Inverno viam ‑se agora suplantados em número pelas massas sujas – camponeses e operários nas suas túnicas e gorros, mulheres envoltas em trapos com lenços cobrindo a cabeça. A avenida Nevsky Prospekt experimentou os piores congestionamentos de trânsito da sua história quando para lá convergiram elétricos, carruagens puxadas a cavalos e trenós. As ruas principais estavam enfeitadas com as cores imperiais, branco, azul e vermelho; as estátuas foram cobertas com grinaldas e fitas; e retratos dos czares, numa linhagem que remontava a Mikhail, pendiam das fachadas de bancos e lojas. Sobre as linhas do elétrico foram passados fios de luzes coloridas, que acen‑diam à noite com as palavras «Deus Salve o Czar» ou ainda com uma águia de duas cabeças e as datas 1613 ‑1913. Pessoas de fora da cidade, muitas das quais nunca tinham visto luz elétrica, erguiam os olhos e ficavam maravilhadas. Ha‑via colunas, arcos e obeliscos de luz. Em frente à Catedral de Kazan havia um pavilhão branco a abarrotar de incenso, bromélias e palmeiras, que tiritavam na atmosfera do inverno russo.

Foi na Catedral de Kazan que o ritual começou, com uma missa solene de ação de graças celebrada pelo patriarca da Antioquia – vindo da Grécia espe‑cialmente para a ocasião –, por três metropolitanos russos e por 50 sacerdotes de São Petersburgo. A família imperial deixou o Palácio de Inverno em car‑ruagens abertas, escoltada por dois esquadrões dos guardas de Sua Majestade e por cavaleiros cossacos de cafetãs negros e boinas vermelhas do Cáucaso.

I.A Dinastia

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Era a primeira vez que o czar cavalgava em público desde a revolução de 1905 e a polícia não pretendia correr riscos. O percurso foi ladeado pela Guarda Imperial magnificamente adornada com as suas boinas típicas de hussardos húngaros e uniformes escarlates. As bandas militares tocaram com estron‑do o hino nacional e os soldados deram vivas quando a cavalgada passou. Do lado de fora da catedral, procissões religiosas de várias partes da cidade amontoaram ‑se desde cedo. A multidão imensa, uma floresta de cruzes, íco‑nes e estandartes, ajoelhou ‑se quando uma das carruagens chegou mais perto. No interior da catedral estava a classe dominante da Rússia: grão ‑duques e príncipes, membros da corte, senadores, ministros, conselheiros de Estado, parlamentares da Duma, funcionários públicos destacados, generais e almi‑rantes, governadores de província, presidentes de câmara, líderes de zemstvos e marechais pertencentes à nobreza. Praticamente não havia um só peito sem medalhas cintilantes ou uma estrela de diamante; dificilmente se encontraria umas pernas que não estivessem cingidas por uma espada. Tudo reluzia à luz de velas – os iconostásios de prata, as mitras dos sacerdotes ornadas de joias e a cruz de cristal. No meio da cerimónia, duas pombas desceram da escuridão da cúpula e pairaram por vários momentos sobre as cabeças do czar e do seu filho. Deixando ‑se levar pela exaltação religiosa, Nicolau interpretou o voo das duas aves como um símbolo da bênção divina à Casa dos Romanov.

Enquanto isso, nos distritos operários, as fábricas foram encerradas e o dia foi considerado feriado. Os pobres fizeram fila na porta das cantinas munici‑pais, onde foram servidas refeições gratuitas em comemoração do aniversário. As lojas de penhores foram cercadas por multidões excitadas pelos rumores de que teria havido uma concessão especial permitindo ao povo reaver os seus objetos de valor sem o pagamento de taxas de juro. Quando esses boatos se revelaram falsos, as massas enfureceram ‑se e várias lojas de penhores ficaram com as janelas partidas. As mulheres reuniram ‑se do lado de fora das cadeias da cidade, na esperança de que os seus entes queridos estivessem entre os dois mil prisioneiros amnistiados por ocasião da celebração do tricentenário.

Durante a tarde, grupos enormes afluíram ao centro da cidade para um muito esperado espetáculo de son et lumière. Barraquinhas ao longo do caminho vendiam cerveja em caneca, tortas, bandeiras dos Romanov e lembranças. Houve feiras e concertos nos parques. Ao cair da noite, a avenida Nevsky Prospekt transformou‑‑se numa massa sólida de pessoas. Todos os rostos se voltaram para o alto quando o céu se acendeu com o brilho e as cores do fogo ‑de ‑artifício e das luzes, que cruza‑ram a cidade por cima dos telhados para em seguida pousarem fugazmente sobre monumentos importantes. O pináculo dourado do Almirantado brilhou como uma tocha contra o céu negro e o Palácio de Inverno foi intensamente ilumina‑do por três grandes retratos de Nicolau II, Pedro, o Grande, e Mikhail Romanov.

A família imperial permaneceu na capital para mais uma semana de rituais de homenagem. Houve receções pomposas no Palácio de Inverno, onde lon‑

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gas filas de dignitários desfilaram respeitosamente pelos salões oficiais à espera do momento de se apresentarem a Nicolau e Alexandra no salão de concertos. Houve um baile sumptuoso na Assembleia dos Nobres, ao qual compareceu o casal imperial e a sua filha mais velha, Olga, num de seus primeiros compro‑missos sociais. Olga dançou a polonesa com o príncipe Saltykov, que se esque‑ceu de tirar o chapéu, o que causou grande agitação. No Teatro Marinsky foi realizada uma apresentação de gala da ópera patriótica de Glinka, A vida pelo czar, que recontava a lenda do mujique Susanin, conhecido por ter salvado o primeiro Romanov de uma situação funesta. As fileiras de camarotes «bri‑lhavam com joias e tiaras», segundo Meriel Buchanan, filha do embaixador britânico, e os balcões estavam lotados de uniformes escarlates de oficiais da corte, que se agitaram em uníssono, «como um campo de papoilas», para sau‑dar a chegada do czar. Mathilde Kshesinskaya, ex ‑amante de Nicolau, saiu do retiro para dançar mazurcas no segundo ato. Mas a grande sensação da noite foi a aparição silenciosa do tenor Leonid Sobinov, substituindo Shaliapin, que naquela noite atravessou o palco vestido de Mikhail Romanov à frente de uma procissão religiosa. Foi a primeira (e a última) ocasião da história do teatro imperial em que a figura de um czar Romanov se fez representar em cena.1

Três meses depois, durante um maio quente como habitualmente, a famí‑lia imperial saiu em peregrinação pelas cidades da antiga Moscovo ligadas ao nascimento da dinastia. Os Romanov seguiram a rota tomada por Mikhail, o primeiro czar da linhagem, logo depois de ter sido escolhido para o trono rus‑so, em 1613 – de casa até Kostroma, no Volga, e de lá para Moscovo. A excur‑são imperial chegou a Kostroma numa flotilha de barcos a vapor. A margem do rio foi tomada por gente da cidade e do campo, os homens vestidos com túnicas e barretes, as mulheres com os lenços azul ‑claros e brancos típicos de Kostroma. Centenas de observadores entraram no rio até ficarem com água pela cintura, esperando assim aproximar ‑se um pouco mais dos visitantes reais. Nicolau visitou o mosteiro de Ipatiev, no qual Mikhail se refugiara dos invasores polacos e das guerras civis que varreram Moscovo nas vésperas da sua ascensão ao trono. O czar recebeu uma delegação de camponeses das terras outrora pertencentes ao mosteiro e posou para uma fotografia com os descen‑dentes dos boiardos que tinham saído de Moscovo em 1613 para oferecer a coroa aos Romanov.

De Kostroma, o grupo de viajantes foi para Vladimir, Níjni Novgorod e Yaroslavl. Viajaram no comboio imperial lindamente mobilado, incluindo di‑visões cobertas de painéis de mogno, poltronas de veludo macio, escrivaninha e um grande piano. A casa de banho dispunha inclusive de um mecanismo especial para evitar que a água do banho de Sua Majestade Imperial se en‑tornasse enquanto o comboio se movimentava. Não havia caminho ‑de ‑ferro entre Vladimir e a pequena cidade ‑mosteiro de Suzdal, por isso, tiveram de prosseguir viagem por estradas rurais empoeiradas, numa frota de 30 Renaults

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descapotáveis. Nas aldeias, os habitantes punham ‑se de joelhos à passagem dos veículos. Em frente às suas modestas cabanas de madeira, que passavam quase despercebidas à família imperial, os mujiques expunham pequenas me‑sas enfeitadas de flores, pão e sal, tradicionais oferendas russas aos forasteiros.

A peregrinação real chegou ao clímax com uma entrada triunfante em Moscovo, a antiga capital russa em que o primeiro czar Romanov havia sido coroado, onde o fausto e a gastronomia continuaram. O baile na Assembleia dos Nobres de Moscovo foi particularmente elegante, muito além dos sonhos mais delirantes de Hollywood. Foi instalado um elevador para que os Ro‑manov não se cansassem na escadaria que dava acesso ao salão de baile, no segundo andar. O czar e os seus acompanhantes chegaram a Moscovo de com‑boio e foram saudados por uma enorme delegação de dignitários na estação Alexandrovsky. O czar deixou o local montado num cavalo branco, cerca de 18 metros à frente da sua escolta de cossacos e do resto da cavalgada imperial, e se‑guiu para o Kremlin passando pelas massas que o aclamavam fervorosamente. A decoração ao longo da rua Tverskaya, banhada por um sol resplandecente, era ainda mais magnífica do que a de São Petersburgo. Estandartes de veludo castanho com emblemas dos Romanov atravessavam a avenida. Os edifícios estavam ornados com bandeiras, faixas coloridas e luzes que acendiam à noite para revelarem símbolos ainda mais criativos do que os exibidos na Nevsky Prospekt. Havia estátuas do czar com grinaldas nas vitrinas das lojas e nas va‑randas das residências. As pessoas atiravam confetes para a comitiva. O czar desceu do cavalo na Praça Vermelha, onde procissões religiosas vindas de todas as partes da cidade se tinham reunido para vê ‑lo e, caminhando por entre filas de sacerdotes que entoavam cânticos, entrou na Catedral de Uspensky para rezar. A imperatriz e o herdeiro Alexis também deveriam caminhar algumas centenas de metros. Mas Alexis sofrera uma nova crise de hemofilia e teve de ser carregado por um guarda ‑costas cossaco. Quando a procissão fez uma pausa, o primeiro ‑ministro, conde Kokovtsov ouviu da multidão «exclamações de pesar à vista daquela pobre criança desamparada, o herdeiro do trono dos Romanov».2

Durante a comemoração do tricentenário, a dinastia Romanov apresentou ao mundo uma imagem brilhante do poder e da opulência da monarquia. Não se tratava de simples propaganda. Os rituais de homenagem à dinastia e a glorificação da sua história pretendiam, seguramente, inspirar reverência e apoio popular à autocracia como princípio. Mas o objetivo era também rein­ventar o passado, recontar a epopeia do «czar popular», de modo a investir a monarquia de uma legitimidade mítico ‑histórica e de uma imagem de perma‑nência eterna numa época de inquietação, na qual o seu direito de governar era desafiado pela democracia emergente da Rússia. Os Romanov estavam a recuar ao passado com a esperança de que isso os salvasse do futuro.

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O culto da Moscovo do século XVII era a chave dessa reinvenção e o leit­motiv do jubileu. Nos últimos anos, três princípios reconhecidos do czarismo moscovita tornaram ‑se fundamentais para os Romanov. O primeiro era a no‑ção de patrimonialismo, segundo a qual o czar possuía, literalmente, toda a terra da Rússia como seu feudo privado (votchina), como se fosse um senhor medieval. No primeiro censo nacional, em 1897, Nicolau descreveu ‑se como «proprietário de terras». Até à segunda metade do século XVIII, essa ideia man‑teve a Rússia afastada do Ocidente, onde uma classe latifundiária independen‑te emergira como contraponto à monarquia. O segundo princípio era a ideia de governo pessoal: enquanto personificação de Deus na terra, a vontade do czar não devia ser limitada por leis ou pela burocracia, e ele poderia governar o país de acordo com a sua própria consciência de deveres e direitos. Isto tinha igualmente distinguido a tradição bizantina de despotismo em relação ao Es‑tado absolutista ocidental. Conservadores, como Konstantin Pobedonostsev, tutor e principal ideólogo dos dois últimos czares, Nicolau e Alexandre, alega‑va que essa autocracia religiosa se adequava perfeitamente ao espírito nacional russo e que era necessário um autocrata divino para conter os instintos anár‑quicos do povo russo.* Finalmente, havia a ideia da união mística entre o czar e o povo ortodoxo, que o amava e lhe obedecia como a um pai e a um deus. Era uma fantasia de governo paternal, de uma época de ouro da autocracia popular, livre das complicações do Estado moderno.

Os dois últimos czares tiveram motivos óbvios para se agarrarem firme‑mente a essa visão arcaica. Na verdade, uma vez que acreditavam que o seu po‑der e prestígio estavam a ser corroídos pela «modernidade» sob todas as formas – crenças seculares, ideologias constitucionais do Ocidente e as novas classes urbanas –, era lógico que procurassem retroceder os ponteiros do relógio para alguma época dourada remota. Foi no século XVIII e no reinado de Pedro, o Grande – «Vosso Pedro», como Nicolau se referia a ele em conversas com funcionários – que o apodrecimento, na perspetiva deles, começou a surgir. Havia dois modelos opostos de autocracia na Rússia: o petrino e o moscovita. Baseado no absolutismo ocidental, o modelo petrino procurava sistematizar o poder da coroa por meio de normas legais e instituições burocráticas, o que levava a uma limitação dos poderes do czar, ainda que, em última análise, ele estivesse obrigado a respeitar as leis criadas por ele mesmo. O czar que não se‑guisse as suas próprias determinações era considerado um déspota. A tradição petrina também implicava uma transferência do foco de poder: da pessoa divina de um czar para o conceito abstrato do Estado autocrático. Nicolau abominava

* Bertrand Russell lançou mão de ideia similar quando, numa tentativa de explicar a Revolução Russa a Lady Ottoline Morrell, observou que, embora o despotismo bolchevique fosse terrível, parecia o tipo certo de governo para a Rússia: «Para entender, basta perguntar ‑se como é que as personagens de Dostoiévski devem ser governadas.»

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essa noção. Tal como o seu pai, Alexandre III, ele fora educado para manter os princípios do governo pessoal, mantendo o poder na corte, e para desconfiar da burocracia, como se esta fosse uma espécie de «muro» rompendo o vínculo na‑tural entre o czar e o seu povo. Essa desconfiança pode ser explicada pelo facto de, durante o século XIX, a burocracia imperial ter começado a emergir como uma força tendente à modernização e à reforma. Os burocratas tornavam ‑se cada vez mais independentes da corte e cada vez mais próximos da opinião pública. E isso, na perspetiva dos conservadores, levaria necessariamente a exi‑gências revolucionárias por uma Constituição. O assassinato de Alexandre II em 1881 (após duas décadas de reformas cautelosas) parecia confirmar a tese dos conservadores de que havia chegado a hora de combater a deterioração do sistema. Alexandre III (que certa vez afirmou que «desprezava a burocracia e brindava com champanhe a sua destruição»)3 instituiu o regresso a formas pes‑soais de governo autocrático nas duas esferas de governo, central e local. E para onde seguia o pai, o filho devia acompanhá ‑lo.

O modelo autocrático de Nicolau era quase inteiramente moscovita. O seu czar favorito era Alexei Mikhailovich (1645 ‑76), e o nome que deu ao seu herdeiro foi inspirado na admiração por este antepassado. Nicolau imitava a piedade serena de Alexei Mikhailovich, a qual lhe teria assegurado, dizia ‑se, a convicção de governar a Rússia segundo a sua própria consciência religiosa. Além disso, gostava de justificar as suas políticas alegando que a ideia lhe «fora sugerida» por Deus. Segundo o conde Witte, um de seus ministros mais es‑clarecidos, Nicolau acreditava que «o povo não tem influência sobre os factos, que Deus tudo dirige e ainda que o czar, como um ser escolhido por Deus, não deve aconselhar ‑se com ninguém e apenas seguir a sua inspiração divina». Tamanha era a admiração de Nicolau pelos costumes semi ‑asiáticos da Idade Média, que tentou introduzi ‑los na sua corte. Ordenou que se mantivesse a grafia de antigas formas eslavas em documentos oficiais e publicações, mes‑mo depois de essas já terem desaparecido da literatura russa. Empregava a palavra Rus’, o velho termo moscovita para as terras centrais da Rússia, e não Rossiia, expressão usada pelo império e que havia sido adotada por Pedro, o Grande. Não gostava do título Gosudar Imperator (Imperador Soberano), também introduzido por Pedro, pois isso implicava que o autocrata nada mais fosse do que o primeiro funcionário do Estado abstrato (gosudarstvo). E dava preferência ao antigo título czar (derivado do grego, kaisar), que remontava à era bizantina e carregava conotações religiosas de governo paternal. Nico‑lau também brincava com a ideia de fazer com que todos os seus cortesãos usassem longos cafetãs, iguais aos dos velhos boiardos moscovitas (apenas o custo da indumentária o fez recuar). O ministro do Interior, D. S. Sipiagin, autor da ideia, tinha os seus aposentos decorados no estilo moscovita. Numa ocasião, recebeu o czar – que apareceu mascarado de Alexei – com todos os rituais da corte do século XVII, seguidos por um banquete tradicional russo e

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orquestra cigana. Nicolau encorajava a elegante corte russa a promover bailes de máscaras, hábito surgido na época do seu pai. Em 1903, Nicolau foi o responsável por um dos mais sumptuosos. Os convidados vestiram ‑se com réplicas de trajes usados na corte de Alexei e dançaram à moda medieval russa. Fotografias de todos os presentes, cada qual identificado pelo respectivo posto na corte segundo a terminologia dos séculos XVII e XX, foram publicadas em dois álbuns ricamente produzidos. Nicolau desfilou com uma cópia da túnica processional usada por Alexei, e Alexandra escolheu um vestido de gala e pen‑teado iguais aos que eram exibidos pela czarina Natália.4

Nicolau não escondia que preferia Moscovo a São Petersburgo. A velha «ci‑dade sagrada», com as suas mil cúpulas em forma de cebola, representava a tra‑dição oriental e bizantina que era o centro da sua visão do mundo moscovita. Preservada de influências ocidentais, Moscovo conservava o «estilo nacional» tão caro aos dois últimos czares. Ambos consideravam São Petersburgo – com o seu estilo arquitetónico clássico, as suas lojas e a sua burguesia ocidental – alheia à Rússia. Tentaram moscovitizar a cidade, construindo igrejas de estilo bizantino, moda iniciada na época de Nicolau I – e também acrescentando traços arquiteturais arcaicos à paisagem local. Alexandre III, por exemplo, encomendou um Templo da Ressurreição de Cristo, que foi erguido segundo as características da velha Moscovo e que tinha por objetivo consagrar o ponto exato do Canal Catarina em que o seu pai fora assassinado, em 1881. Com as suas cúpulas características, mosaicos multicoloridos e decoração trabalhada, o templo contrastava bizarramente com as outras grandes catedrais da cidade, a Catedral de Kazan e a de Santo Isaac, ambas baluartes do estilo clássico. Nicolau remodelou edifícios à maneira neobizantina. O Conselho Escolar do Santo Sínodo foi refeito de acordo com o Templo ‑Monumento de Alexandre Nevsky, graças ao embelezamento da sua fachada clássica com motivos mosco‑vitas e ao acréscimo de cinco cúpulas em forma de cebola ao telhado outrora linear e de um campanário triangular. Mais edificações foram levantadas ao velho estilo russo para marcar o jubileu Romanov. A Catedral do Tricente‑nário, perto da estação de Moscovo, por exemplo, foi construída como uma réplica explícita do estilo da igreja de Rostov, do século XVII. A Aldeia Fedorov, erguida a mando de Nicolau em Czarskoe Seló, nos arredores da capital, era uma recriação elaborada do Kremlin e da catedral do século XVII5, uma espécie de parque temático moscovita!

Nicolau e o seu pai Alexandre visitavam Moscovo com frequência e usavam a cidade para ostentações ritualísticas de homenagem à dinastia. A coroação do czar, que tradicionalmente acontecia em Moscovo, tornou ‑se num evento ainda mais importante e mais simbólico do que fora no passado. Nicolau ganhou o hábito de ir a Moscovo na Páscoa, costume que czar algum ado‑tara ao longo de 50 anos. Convencera ‑se de que somente em Moscovo e nas províncias seria possível encontrar comunhão espiritual com o povo russo.

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«Unido em prece com meu povo», escreveu ao governador ‑geral de Moscovo, em 1900, logo depois da sua primeira visita de Páscoa à velha capital, «ganho forças novas para servir a Rússia, para o seu bem ‑estar e glória.»6 Depois de 1906, quando São Petersburgo se tornou sede da Duma, Nicolau dedicou ‑se ainda mais a Moscovo e às províncias, utilizando ‑as como base para a constru‑ção da sua «autocracia popular» para rivalizar com o parlamento. Com o apoio do povo simples russo – representado cada vez mais por Grigorii Rasputine –, reafirmaria o poder do trono, há tanto tempo forçado a retrair ‑se perante a burocracia e a sociedade.

O jubileu do tricentenário marcou o auge dessa indústria do património moscovita. Foi uma celebração dinástica, centrada nos símbolos do czar e destinada a colocar de lado tudo o que comemorasse os símbolos do Esta‑do. A disputa entre Rasputine, o escandaloso «homem sagrado» camponês, cuja influência passara a dominar a corte, e Mikhail Rodzianko, presidente da Duma, durante a cerimónia na Catedral de Kazan, foi emblemática a esse respeito. Rodzianko ofendera ‑se porque os membros da Duma iriam sentar ‑se no fundo da catedral, muito longe dos lugares reservados aos conselheiros de Estado e senadores. Segundo se queixou ao mestre ‑de ‑cerimónias, isso «não estava em consonância com a dignidade» do parlamento. «Se o jubileu pre‑tendia ser verdadeiramente uma exaltação nacional, não devia ser ignorado que em 1613 fora uma assembleia do povo e não um grupo de funcionários que elegera Mikhail Romanov como czar da Rússia.» O argumento de Rod‑zianko foi levado em conta e os assentos da Duma foram trocados pelos dos senadores. Mas quando o presidente da Duma ia ocupar o lugar que lhe era destinado, encontrou ‑o ocupado por um homem de barbas escuras em roupa de camponês, que imediatamente reconheceu como sendo Rasputine. Os dois discutiram acaloradamente, um insistindo na santidade da sua posição como presidente do parlamento eleito do país, o outro alegando ter apoio do pró‑prio czar, até que um membro do protocolo foi chamado para restaurar a paz. Com um lamento pesado, Rasputine deslocou ‑se para a saída, onde foi ajudado com o seu manto de zibelina e teve uma carruagem preparada para o levar dali.7

O primeiro ‑ministro foi igualmente ultrajado pela atitude desdenhosa da corte em relação ao governo durante os rituais do jubileu. Os ministros teriam de providenciar transporte e acomodações por conta própria enquanto acom‑panhassem a comitiva real na viagem às províncias. «A atitude atual», como recordou o conde Kokovtsov:

parecia sugerir que o governo era uma barreira entre o povo e o seu czar, a quem o povo veria com devoção cega porque fora escolhido por Deus. [...] Os amigos mais próximos do czar na corte convenceram ‑se de que o sobera‑no tudo podia, fiando ‑se no amor ilimitado e na lealdade suprema do povo.

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Os ministros do governo, por outro lado, não se compraziam com esse tipo de autocracia; nem a Duma, que continuamente buscava controlar o poder executivo. Ambos eram da opinião de que o soberano deveria reconhecer as mudanças ocorridas desde o dia em que os Romanov se tornaram czares de Moscovo e senhores dos domínios russos.

O primeiro ‑ministro tentou em vão explicar a Nicolau que não seria pos‑sível salvar o trono com a tentativa de adotar «a auréola do "czar moscovita" que governa a Rússia como se fosse seu património próprio».8

A comunhão entre o czar e o seu povo foi o tema central do jubileu. O cul‑to do mujique Ivan Susanin deveria reforçar a mensagem de que pessoas sim‑ples amavam os Romanov. Susanin tinha vivido na propriedade da família imperial, em Kostroma. Segundo a lenda, pagando com a própria vida, salvara Mikhail Romanov ao enganar os polacos que pretendiam matá ‑lo a véspera da sua subida ao trono. A partir do século XIX, Susanin passou a ser oficialmente chamado de herói nacional e celebrado em poemas patrióticos e em óperas como A vida pelo czar, de Glinka. Durante as comemorações do tricentenário, a ópera foi encenada em todo o país por companhias amadoras, escolas e regi‑mentos. A imprensa sensacionalista e os panfletos populares contavam o mito do camponês ad nauseam. À história era atribuído estatuto de símbolo da de‑voção do povo e do seu dever para com o czar. Um jornal do exército relatou aos seus leitores que Susanin havia mostrado a cada soldado como ser fiel ao juramento feito ao monarca. A imagem do herói mujique do século XVII foi reproduzida em toda a parte durante o jubileu, sobretudo na base do Monu‑mento Romanov, em Kostroma, onde uma figura feminina representando a Rússia abençoa um Susanin de joelhos. Durante a excursão a Kostroma, Ni‑colau chegou a ser apresentado a uma delegação de camponeses de Potemkin formada por supostos descendentes de Susanin.9

De acordo com a propaganda do jubileu, a eleição dos Romanov em 1613 fora um momento crucial do despertar nacional, o primeiro ato, de facto, do Estado ‑nação russo. A «pátria inteira» teria participado na escolha, assim garantindo um mandato popular à dinastia, embora tivesse sido amplamente aceite por historiadores do século XIX que a eleição fora produto de maqui‑nações de uns poucos boiardos poderosos, e não de pessoas comuns. Através daquela eleição, alegava ‑se, os Romanov passaram a personificar a vontade da nação. «O espírito da Rússia está encarnado no seu czar», escreveu um propa‑gandista. «O czar é para o povo a mais alta conceção dos destinos e ideais da nação.» A Rússia, em suma, eram os Romanov. «Em cada alma há algo dos Ro‑manov», declarou o jornal Novoe vremia. «Algo da alma e do espírito da dinastia que reina há 300 anos.»10

Nicolau Romanov, encarnação da Rússia: este era o culto promovido pelo jubileu. Um culto que procurava manter ‑se com base na posição religiosa que

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o czar ocupava na consciência popular. A Rússia tinha uma longa tradição de príncipes santificados – governantes que foram canonizados por darem a vida pro patria et fades – e isso desde o século X. Na mente do povo comum, o czar não era apenas um governante régio, mas um deus na terra. Ele via ‑se como uma figura paterna (o Czar Batiuchka, ou Czar Paizinho, dos contos popula‑res) que conhecia pessoalmente todos os mujiques pelo nome, compreendia os seus problemas nos mínimos detalhes e que, se não fosse pelos boiardos e pelos funcionários da nobreza que o cercavam – todos maus –, satisfaria as suas exigências num Manifesto Dourado, dando ‑lhes a terra. Daí a tradi‑ção camponesa de enviar apelos diretos ao czar – uma tradição que (como a psique monárquica refletida no povo comum) perdurou na era soviética, quando petições similares eram mandadas a Lénine ou a Estaline. Esse mito «ingénuo» do mujique em relação ao Bom Czar podia às vezes ser usado para legitimar rebeliões camponesas, especialmente quando uma reforma governa‑mental há muito esperada não satisfazia as expectativas populares. Pugachev, o líder rebelde cossaco da década de 1770, autoproclamou ‑se czar Pedro III. E os camponeses rebeldes depois de 1861 também se revoltaram em nome do Verdadeiro Czar quando a emancipação dos servos daquele ano não atendeu às reivindicações camponesas. Mas, no geral, o mito do Bom Czar funcionava para beneficiar a coroa e, quando a crise revolucionária se aprofundou, os pro‑pagandistas de Nicolau apoiaram ‑se cada vez mais nessa tradição.

A propaganda do tricentenário foi o apogeu dessa lenda. Nicolau foi re‑presentado perante os seus súbditos como se fosse um pai divino intimamente conhecido de cada um deles e atento a todas as suas necessidades. Era louvado pelo seu estilo de vida modesto e pelos seus gostos simples, a sua acessibilidade ao povo comum, a sua bondade e a sua sabedoria. Uma biografia popular de Nicolau foi encomendada especialmente para o jubileu, a primeira alguma vez publicada de um czar vivo. Nela, era retratado como o «pai do seu povo, cujas necessidades cuida de forma franca e compassiva». A ele atribuía ‑se dedicar «cuidado e atenção especiais ao bem ‑estar e ao desenvolvimento moral» dos mujiques, em cujas cabanas frequentemente entrava «para ver como vivem e partilhar do seu leite e pão preto». Em ocasiões oficiais, «conversava cordial‑mente» com os camponeses, que então «se benziam e sentiam mais felizes para o resto das suas vidas». Nicolau compartilhava dos hábitos e das aspirações singelos, usava uma túnica simples e alimentava ‑se de pratos camponeses tí‑picos, como borscht e blinies. Durante o jubileu, foi fotografado em atos de homenagem simbólica ao povo, inspecionando um novo tipo de arado ou provando as rações dos seus soldados. Essas imagens foram calculadas para reforçar o mito popular de que nada da vida quotidiana do povo, por mais trivial que fosse, escapava à atenção do czar e que a sua influência estava em toda parte. «Milhares de fios invisíveis cruzam o coração do czar», escreveu o biógrafo real; «e esses fios estendem ‑se às cabanas dos pobres e aos palácios dos

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ricos. E essa é a razão por que o povo russo sempre aclama o seu czar com tal fervor entusiástico, seja no Teatro Marinsky, em São Petersburgo [...] ou à sua passagem pelas cidades e aldeias.»11

«Agora pode ver ‑se que cobardes são aqueles ministros», disse a imperatriz Alexandra a uma dama de companhia logo após o jubileu. «Estão sempre a assustar o imperador com ameaças de revolução e você teve oportunidade de constatar o contrário com os seus próprios olhos: basta aparecermos e imedia‑tamente os corações são nossos.» Se os rituais do jubileu pretendiam criar a ilusão de uma dinastia poderosa e estável, então convenceram poucas pessoas, exceto a corte. Os Romanov tornaram ‑se vítimas da sua própria propagan‑da. Nicolau, em particular, voltou da sua excursão às províncias convicto da autoilusão de que «o meu povo ama ‑me». Isso despertou um novo desejo de viajar pelo interior da Rússia. Falava de uma viagem de barco Volga abaixo, uma visita ao Cáucaso e à Sibéria. Encorajado pela crença na sua própria po‑pularidade, começou a procurar maneiras de se aproximar do sistema de go‑verno pessoal que tanto admirava na antiga Moscovo. Estimulado pelos seus ministros mais reacionários, chegou a considerar a total dissolução da Duma, ou transformá ‑la num órgão meramente consultivo, como a Assembleia da Terra (Zemskii Sobor) dos séculos XVI e XVII.

Observadores estrangeiros simpatizantes da monarquia eram facilmente conquistados pela retórica otimista. «Nenhum futuro parece tão confiante ou tão brilhante», anunciou o The Times de Londres em relação às perspetivas dos Romanov, numa edição especial sobre o jubileu. Convencido da devoção do povo ao czar, o jornal relatou que uma série de selos postais com retratos dos governantes Romanov tinha sido impressa para marcar o tricentenário, mas fora retirada, porque alguns funcionários monárquicos dos correios se recusaram a colocar o carimbo sobre aqueles rostos venerados. «Esses escrú‑pulos leais e eminentemente respeitáveis», concluiu o The Times, «são típicos da mente das vastas massas do povo russo». Estes sentimentos eram ecoados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. «Nada podia exceder a afeição e a devoção à pessoa do imperador demonstradas pela população sem‑pre que Sua Majestade aparecia. Não há dúvida de que nesse forte apego das massas [...] à pessoa do imperador está a grande força da autocracia russa.»12

Na verdade, o jubileu aconteceu no meio de uma profunda crise social e política, alguns diriam mesmo revolucionária. As celebrações ocorreram num cenário de várias décadas de violência, sofrimento humano e repressão cres‑centes, que tinham oposto o povo do czar ao seu regime. Nenhuma das feri‑das da revolução de 1905 se tinha fechado. Algumas delas ainda supuravam e pioravam. O grande problema camponês permanecia insolúvel, a despeito dos esforços tardios a favor da reforma agrária. E, de facto, desde a revolução

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de 1905, quando vira as suas propriedades serem invadidas pelas massas, a nobreza agrária tinha ‑se tornado ainda mais avessa à ideia de concessões aos mujiques. Tinha havido igualmente uma ressurgência de greves na indústria, muito mais militantes do que as anteriores, ocorridas no início do século, com os bolcheviques a ganharem cada vez mais terreno nas organizações sindicais e a minarem os rivais mais moderados, os mencheviques. Quanto às aspirações liberais, aparentemente tão próximas em 1905, essas haviam ‑se tornado numa perspetiva mais distante quando a corte e os seus apoiantes bloquearam todas as reformas liberais da Duma. Além disso, com o julgamento de Beiliss, em 1913 – que logo depois do Caso Dreyfus chocou toda a Europa com a perse‑guição medieval a um judeu inocente com base em acusações inventadas de assassinato ritual de uma criança cristã –, essas aspirações liberais tropeçaram no frágil ideal dos direitos civis. Havia, em suma, um abismo cada vez maior de desconfiança não só entre a corte e a sociedade – um abismo simbolizado pelo escândalo Rasputine –, mas também entre a corte e muitos dos seus apoiantes tradicionais do funcionalismo civil, da Igreja e do exército, que se fazia notar sempre que o czar resistia às suas exigências de reforma. Assim como os Romanov estavam ‑se a auto ‑homenagear e a autoelogiar com a cren‑ça fantástica de que poderiam governar durante mais 300 anos, do lado de fora da corte havia círculos nos quais crescia a sensação de crise e catástrofe iminentes. Essa sensação de desespero foi bem enunciada pelos poetas da chamada «Idade da Prata» da literatura russa – sobretudo Blok e Belyi –, que representaram a Rússia como se esta vivesse sobre um vulcão. Nas palavras de Blok:

E sobre a Rússia vejo um silencioso Fogo que se espalha para longe e tudo consome.

Como explicar o colapso da dinastia? Colapso é certamente a palavra certa a usar. Pois o regime Romanov caiu sob o peso das suas próprias contradi‑ções internas. Não foi derrubado. Como em todas as revoluções modernas, as primeiras fissuras apareceram no topo. A revolução não começou com o movimento operário – há muito a preocupação dos historiadores de esquerda do Ocidente. Nem começou com a erupção dos movimentos nacionalistas na periferia. Tal como aconteceu com o colapso do império soviético, construído sobre as ruínas do governo Romanov, a revolta nacionalista foi consequência e não causa da crise. Um argumento mais convincente poderia ser o de que tudo tivera início com a revolução camponesa por causa da terra – que em alguns lugares surgiu já em 1902, três anos antes da revolução de 1905 –, o que não seria de se estranhar, na medida em que a Rússia era esmagado‑ramente uma sociedade rural. Mas embora o problema camponês, assim como o dos operários e nacionalistas, tenha sido responsável por debilitações

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estruturais fundamentais no sistema social do velho regime, ainda assim não determinou as políticas da monarquia. E era na política que estava o problema. Não há razão para supor que o regime czarista estava fadado ao colapso da maneira que os deterministas marxistas alegaram a partir do seu foco estreito nas «contradições sociais». O regime poderia ter ‑se salvado pela reforma. Mas havia obstáculos, pois os dois últimos czares da Rússia não tinham tido vontade de realizar reformas a sério. Com efeito, em 1905, quando o czar esteve perto de ser arrancado do trono, foi forçado, mesmo com relutância, a conceder reformas. Mas, uma vez passada a ameaça, vol‑tou a alinhar ‑se com os partidários da reação. Este é o ponto fraco fatal do argumento dos historiadores de direita que pintam uma imagem cor ‑de ‑rosa do império czarista na véspera da Primeira Guerra Mundial. Alegam que o regime estava a ser reformado, ou «modernizado», segundo as tendências ocidentais liberais. Mas os dois últimos czares e os seus seguidores mais reacionários – a nobreza, a Igreja e os círculos políticos de direita – eram, na melhor das hipóteses, ambíguos em relação à ideia de «modernização». Eles sabiam, por exemplo, que precisavam de uma economia industrial mo‑derna para competir com as forças do Ocidente. Mas ao mesmo tempo eram profundamente hostis às exigências políticas e às transformações sociais da ordem industrial urbana. Em vez de enveredarem pela via das reformas, preferiram aderir obstinadamente à visão arcaica de autocracia. Enquanto a Rússia entrava no século XX, eles tentavam voltar ao século XVII. E esta foi a sua desgraça.

Aqui, portanto, estão as raízes da revolução, no conflito crescente entre uma sociedade que rapidamente se tornava mais bem informada, mais urbana e mais complexa, e uma autocracia fossilizada que não fazia concessões polí‑ticas. Esse conflito agudizou ‑se (na verdade, tornou ‑se revolucionário) pela primeira vez após a fome de 1891, quando o governo se atolou na crise e a sociedade liberal se tornou politizada enquanto lançava ela mesma uma campanha de socorro. E é nesse ponto que a narrativa da Parte Dois começa. Mas antes devemos examinar mais detalhadamente os protagonistas do con‑flito, começando pelo czar.

O MINIATURISTA

Quatro anos antes do tricentenário, o brilhante escultor, príncipe P. N. Tru‑betskoi, concluíra a estátua equestre do czar Alexandre III, já falecido, que foi colocada na Praça Znamenskaya, do lado oposto à estação Nikolaevsky, em São Petersburgo. Era uma representação tão engenhosa e formidável da autocracia sob forma humana que depois da revolução os bolcheviques decidiram deixá ‑la no mesmo lugar, como uma lembrança assustadora do