a terapia expressiva como estratégia de cuidado integral no núcleo ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE SAÚDE DA COMUNIDADE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA A TERAPIA EXPRESSIVA COMO ESTRATÉGIA DE CUIDADO INTEGRAL NO NÚCLEO DE ATENÇÃO ONCOLÓGICA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ANTÔNIO PEDRO Denise Vianna Orientadora: Maria Inês Nogueira Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro Niterói-RJ Dezembro 2013 PROJETO DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Transcript of a terapia expressiva como estratégia de cuidado integral no núcleo ...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE SADE DA COMUNIDADE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

    A TERAPIA EXPRESSIVA

    COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL

    NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA DO

    HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO

    Denise Vianna

    Orientadora: Maria Ins Nogueira

    Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro

    Niteri-RJ Dezembro 2013

    PROJETO DE DISSERTAO DE MESTRADO

    DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE

    COLETIVA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

  • DENISE VIANNA

    A TERAPIA EXPRESSIVA

    COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL

    NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA DO

    HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO

    Orientadora: Maria Ins Nogueira

    Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro

    Niteri-RJ Dezembro 2013

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Sade Coletiva da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito parcial

    obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva

  • FICHA CATALOGRFICA

    Vianna, Denise.

    A Terapia Expressiva como estratgia de Cuidado Integral no Ncleo de Ateno

    Oncolgica do Hospital Universitrio Antnio Pedro / Denise Vianna.- 2013.

    1 v. (195 f)

    Orientadora: Maria Ins Nogueira

    Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Sade da

    Comunidade, Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva, 2013.

    Bibliografia: f. 162-173

    Ttulo em ingls: Expressive Therapy as a strategy of integral care in the Antonio

    Pedro University Hospital.

    Palavras-chave: Terapia expressiva / arteterapia. Cuidado integral / Humanizao.

    Prticas integrativas e complementares. Quimioterapia.

    Terapia expressiva / arteterapia. Cuidado integral. Humanizao.

    Quimioterapia.

    [Digite uma citao do documento ou o resumo de um ponto interessante. Voc

    pode posicionar a caixa de texto em qualquer lugar do documento. Use a guia

  • DENISE VIANNA

    A TERAPIA EXPRESSIVA COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL

    NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA DO HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO

    Aprovada em 16 de dezembro de 2013.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof Maria Ins Nogueira - UFF Orientadora

    Prof Lenita Lorena Barreto Claro - UFF

    Co-orientadora

    Prof Madel Therezinha Luz - UFRGS

    Prof. Alusio Gomes da Silva Jnior UFF

    Prof Marilene Cabral do Nascimento suplente UFF

    Niteri-RJ 2013

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Sade Coletiva da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito parcial

    obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva

  • DEDICATRIA

    minha av Emlia, que me ensinou a dar boas risadas.

    Ao meu pai e me, ouro de mina.

    Aos meus irmos e sobrinhos.

    Aos meus descendentes, sementes que me mostraram a beleza da vida:

    Carina, Santiago, talo e Mal

  • AGRADECIMENTOS

    Gracias a la vida que me ha dado tanto

    Me dio dos luceros que cuando los abro

    Perfecto distingo lo negro del blanco

    Y en el alto cielo su fondo estrellado

    Violeta Parra

    A todas as pessoas que cruzaram meu caminho, e que me tornaram quem eu sou.

    A toda equipe TECI-HUAP e alunos dos Cursos Cuidar de Si com Arte.

    E, no processo dessa escritura, minha gratido especial a quatro mulheres:

    Lilian - por sua dedicao incondicional, irm que a vida me deu

    Anna Alice - por sua presena amiga em todos os momentos

    Lenita - que abriu as portas para que tudo acontecesse, mestra do cuidado e da ateno

    Maria Ins - que possibilitou que esse trabalho se realizasse, com sabedoria e competncia

  • queles que me ofereceram sua expresso, sua palavra e seu olhar pessoas em tratamento e profissionais do

    Ncleo de Ateno Oncolgica do Hospital Universitrio Antnio Pedro.

    Ontem, dois anos aps o incio de nosso trabalho, estudando os dados da pesquisa, descobri que quase 50 % dos pacientes que citaremos esto mortos. Fiquei muito chocada com isso. Como lidar com a finitude? Como lidar com as perdas? Faz parte da vida, a morte. Onde estar aquele paciente que ia guardar uma estrela, e um chaveiro junto com a sade na caixa mgica? Vejo a narrativa de seu Jos, no meu primeiro dia de campo. Disse estar muito bem, sem problema nenhum: Gostei. Me trato h bastante tempo. A doena apareceu mais uma vez - no tenho medo nem guardo rancor, acredito que vou vencer. A atividade abre a mente, qualquer coisa que se faa aqui ajuda a levantar o astral. Vou guardar na caixa: sade, estrela e meu chaveiro. Ele colou na caixa as palavras Viver e Mudana para melhor, e escreveu a mensagem: Tu s uma rocha e a rocha nunca desmancha.

    Segundo sua narrativa, sentia-se normal e preocupado antes da atividade de Terapia Expressiva, mas depois ele disse estar com coragem. Portanto, seu Jos foi um dos pacientes que contribuiu para que nossa pesquisa mostrasse que os pacientes obtiveram conforto com nossas atividades. A releio o que ele me disse:

    ... qualquer coisa que se faa aqui ajuda a levantar o astral.... De repente tudo parece vazio... Crise existencial normal e bom t-la. Hoje uma paciente da sala de espera disse: Morte e vida so ddivas do criador para mim - a vida e a doenas so feitas para aperfeioar o mundo e as pessoas isso aconteceu comigo. Deixei de ser religiosa, no preciso mais de religio. Gostaria de trabalhar com vocs nesse projeto, conversando com as pessoas. Desculpe estar chorando, emoo de estar aqui fazendo esse trabalho e falando com voc. Ela ficou ainda mais comovida ao saber que duas das voluntrias que fizeram a atividade com ela tinham tido cncer, e estavam curadas. Ela sorriu, como quem descobre: Essas duas, realmente, sabem o que eu estou passando. Foi visvel um sopro de esperana passar por ela: se elas escaparam... Depois ela disse que queria fazer caridade: Mas caridade no dar nada material que sobra do oramento. Eu era empresria, j fiz muito isso - piegas. Caridade dar algo seu de dentro, no de fora. E isso, como vocs, eu tenho para dar! . Experincias contraditrias... A esperana mais antiga se encarna subitamente no instante presente, momento messinico, experincia da aura da Obra.

    Estrela cadente

    estrela que j morreu

    a que brilha no presente...

    Denise Vianna, maio de 2013

  • Infuso de Vida

    O que voc poderia fazer dentro de um hospital

    estando muito doente

    com um brao preso e espetado por uma agulha

    por onde entrassem medicamentos que lhe deixassem enjoado

    ou um tanto zonzo?

    Bem, ao menos voc poderia ouvir estrias, conversar, pintar,

    falar do seu passado, traar planos para o futuro,

    chorar, rir ou cantar.

    Onde mora a parte divina,

    a beleza,

    o ncleo saudvel que mantm, acesa,

    mesmo a chama mais tnue da vida?

    A chama da vida,

    que a mesma para todos,

    a que brilha nos lugares mais obscuros...

    Denise Vianna outubro 2011

  • RESUMO

    A Terapia Expressiva como estratgia de Cuidado Integral no Ncleo de Ateno

    Oncolgica do Hospital Universitrio Antnio Pedro

    Esta dissertao estimou, pelo mtodo da Pesquisa-ao, os efeitos da Infuso de Vida (AIV)

    sesses coletivas de Terapia Expressiva durante a quimioterapia sobre os sentimentos e

    sensao de conforto de portadores de cncer e doenas degenerativas diversas no Ncleo de

    Ateno Oncolgica do HUAP. A AIV o trabalho de campo da ao principal do Programa

    de extenso Terapia Expressiva como veculo de Cuidado Integral no Hospital Universitrio

    Antnio Pedro, o Curso de Extenso Cuidar de si com Arte, voltado promoo de melhor

    qualidade de vida e do cuidado prestado por profissionais de sade. A ferramenta Terapia

    Expressiva, oferecida aos pacientes, familiares e seus cuidadores, veiculada pelo material

    expressivo, sob o referencial da Psicologia Analtica. Foram avaliadas, sob triangulao de

    mtodos pela pesquisa quali-quantitativa, 413 atendimentos a 282 pacientes que frequentaram

    as 48 sesses entre 5 de abril e 3 de novembro de 2011. Os dados das entrevistas, analisados

    estatisticamente, foram contextualizados aos temas e categorias surgidas na anlise de

    contedo das narrativas s entrevistas abertas e registro dos depoimentos e dirios de campo -

    dos membros da equipe multiprofissional do programa, alunos do curso e bolsistas de

    graduaes diversas - pelo referencial interpretativo das cincias sociais. A partir da

    descrio dos participantes, concomitantes alvos da pesquisa; da opinio dos pacientes sobre

    as atividades desenvolvidas e de suas sugestes e crticas sobre a AIV, puderam ser

    identificadas questes e solues ligadas humanizao e integralidade do setor do hospital

    onde acontece a ao como atividade modelar para o hospital como um todo e da sade em

    geral, revelando que o modelo proposto poder ser aplicado em outros servios e hospitais

    como uma nova forma de cuidado complementar.

    PALAVRAS- CHAVE: Terapia expressiva / arteterapia. Cuidado integral / Humanizao. Prticas

    integrativas e complementares. Quimioterapia.

  • ABSTRACT

    The Expressive Therapy as a strategy for the Comprehensive Care at the Center

    for Oncology Care of the University Hospital Antonio Pedro

    This dissertation evaluates, through the Action Research method, the effects of Life

    Infusion (AIV) collective sessions of Expressive Therapy during chemotherapy sessions

    on the feelings and sense of comfort for those with cancer and several degenerative diseases at

    the Center for Oncology Care (NAO) of the University Hospital Antonio Pedro . The AIV is

    the field work of the main action of the extension program Expressive Therapy as a vehicle

    for Comprehensive Care at the University Hospital Antonio Pedro, extension course Taking

    Care of Yourself With Art, aimed to promoting a better life quality and care provided by the

    health professionals. The Expressive Therapy tool, offered to patients, families and

    caregivers, is conveyed by expressive material, under the Analytical Psychology framework.

    We evaluated, under triangulation methods by the qualitative and quantitative researches, 413

    attendances to 282 patients who attended the 48 sessions between April 5 and November 3,

    2011. Data from the interviews were statistically analyzed and contextualized into the themes

    and categories that emerged during the analysis of the narratives of the open interviews and

    testimonies recording, and from the field diaries notes made by the members of the program

    multidisciplinary team, course students and several undergraduate students under the

    interpretive framework of Social Sciences. The AIV actions were capable of renew patients

    perspectives and coping skills, the expression of their emotions and other psychic contents,

    providing benefits at the physical and spiritual levels, and opportunities to reflect about: their

    lives trajectory, needs, skills, the present and future prospects. The AIV also contributed to

    promote more friendly relations between patients and hospital staff, creating a more

    welcoming atmosphere in the NAO. From the participants descriptions, ongoing research

    targets, the patients' opinion about the activities and their suggestions and criticisms on the

    AIV, we could identified questions and solutions related to the humanization and

    completeness of the hospital's sector where the actions take place, providing a model for the

    whole hospital and health in general, showing that the proposed model can be applied to other

    services and hospitals as a new form of complementary care.

    KEYWORDS: Expressive Therapy / Art Therapy. Comprehensive Care /

    Humanization. Integrative and Complementary Practices. Chemotherapy

  • Sumrio

    1 INTRODUO ................................................................................................................................... 11

    2 REFERENCIAIS TERICOS ................................................................................................................. 22

    2.1 Traos da expresso humana .......................................................................................................... 23

    2.2 Psicologia Analtica de Jung............................................................................................................25

    2.3 Trajetria da Terapia Ocupacional Terapia Expressiva ............................................................... 29

    2.4 Consideraes estticas e a adoo do nome - Terapia Expressiva .............................................. 32

    3 JUSTIFICATIVA S ........................................................................................................................... 35

    3.1 A ferida na Medicina Cientfica ............................................................................................... .......35

    3.2 Terapia Expressiva - proposta de cuidado integral ........................................................................ 39

    3.3 Humanizao: crculo de potncia do cuidado .............................................................................. 45

    3.3.1 O Mestre Ignorante ...................................................................................................................... 46

    3.3.2 O Curador Ferido O desintegrado()que integra ........................................................................ 49

    3.3.3 Cuidado, esttica e educao - tica sob toro .......................................................................... 54

    3.4 Um doente chamado Hospital precisa de cuidado ........................................................................ 56

    3.5 Por que trabalhar com essas pessoas?........................................................................................... 58

    3.6 Experincias com terapias expressivas: uma reviso de literatura ................................................ 60

    4 OBJETIVOS ...................................................................................................................................... 62

    4.1 Objetivo Geral ................................................................................................................................ 62

  • 4.2 Objetivos Especficos ...................................................................................................................... 62

    5 METODOLOGIA ............................................................................................................................... 63

    5.1 Pesquisa-ao e triangulao de mtodos ..................................................................................... 63

    5.2 Populao da pesquisa ................................................................................................................... 66

    5.3 Estabelecimento de um modelo de trabalho e de investigao liberdade e autonomia ........... 70

    5.4 Uma equipe interdisciplinar e a coleta dos dados ......................................................................... 72

    5.5 Atividades de campo orientao, acompanhamento, superviso .............................................. 74

    5.6 Instrumentos e anlise dos dados .................................................................................................. 76

    6 RESULTADOS E DISCUSSO ...........................................................................................................80

    6.1 Roteiro das atividades .................................................................................................................... 80

    6.2 Quantificando os dados .................................................................................................................. 85

    6.2.1 Identificando as pessoas...............................................................................................................85

    6.2.2 Anlise quantitativa dos dados da Ficha de Avaliao dos pacientes .........................................87

    6.3 A traduo aproximando nmeros e afetos e transdisciplinaridade ......................................... 99

    6.3.1 Contexto dos dados da Ficha de Informaes ........................................................................... 104

    6.3.2 Contexto dos dados da Ficha de Avaliao.................................................................................109

    6.3.3 Anlise de contedo das narrativas dos pacientes em Infuso de Vida .................................... 117

    6.4 O mundo das imagens como se faz Terapia Expressiva ........................................................... 133

    7 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................... 154

    8 REFERNCIAS ................................................................................................................................ 162

    9 APNDICES ...................................................................................................................................174

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AIV Ao Infuso de Vida

    CNS Conselho Nacional de Sade

    Curso CSA Curso Cuidar de Si com Arte

    CFM Conselho Federal de Medicina

    HUAP Hospital Universitrio Antnio Pedro

    MAC Medicinas Alternativas Complementares

    MT Medicinas Tradicionais

    MTC Medicina Tradicional Chinesa

    NAO Ncleo de Ateno Oncolgica do Hospital Universitrio

    Antnio Pedro

    OMS Organizao Mundial da Sade

    PIC Prticas Integrativas e Complementares

    PNPIC Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares

    SUS Sistema nico de Sade

    TECI-HUAP Programa de Extenso Terapia Expressiva como Veculo de

    Cuidado Integral no Hospital Universitrio Antnio Pedro da Universidade Federal

    Fluminense

    TE Terapia Expressiva

    UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    UFF Universidade Federal Fluminense

    WHO Organizao Mundial da Sade

    WHOQOL 100 Instrumento de avaliao de qualidade de vida da Organizao

    Mundial da Sade

  • 11

    A TERAPIA EXPRESSIVA

    COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL

    NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA

    DO HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO

    Nenhum homem uma ilha, isolado em si mesmo; cada homem uma parte do continente, uma parte do todo ...

    Se um torro de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontrio,

    ou um solar de um teu amigo, ou o teu prprio...1

    1 INTRODUO

    Esse projeto pretende estimar a influncia da Atividade Infuso de Vida (AIV),

    trabalho de campo supervisionado da ao principal do Programa de Extenso da

    Universidade Federal Fluminense, Terapia Expressiva como Veculo de Cuidado

    Integral do Hospital Universitrio Antnio Pedro - TECI-HUAP, o Curso Cuidar de Si

    com Arte Curso CSA, sobre a sensao de conforto e bem-estar dos pacientes do

    Ncleo de Ateno Oncolgica desta instituio o NAO, durante a recepo venosa de

    medicamentos quimioterpicos.

    As abordagens Infuso de Vida integram sesses de Terapia Expressiva,

    ferramenta composta por tcnicas que utilizam material expressivo sob referenciais do

    campo da psicologia, precedidas e finalizadas pela aproximao amistosa de cada

    terapeuta a esses pacientes para entabular conversas. Tais interlocues, antecedendo as

    atividades de Terapia Expressiva (TE), visam inform-los sobre o procedimento a ser

    proposto na ao, criar uma intimidade facilitadora do processo e coletar os dados

    iniciais para pesquisas. Arrematando as atividades, esse contato objetiva conhecer as

    1 John Donne, expoente da poesia metafsica inglesa. Devotions upon Emergent Occasions (1623),

    fragmento da meditao XVII: Nunc Lento Sonitu Dicunt, Morieris.

  • 12

    possveis interferncias da ferramenta TE e da entrevista inicial sobre os sujeitos,

    coroando o evento com uma circunstncia de cuidado sob a forma do interesse

    manifesto e ateno da escuta.

    Esse tipo de relao, eminentemente teraputica, dirigida procura de sentidos e

    significados envolvidos na situao de sade e de vida (Ayres, 2004, p.23), subsume o

    privilgio da dimenso dialgica do encontro, abertura a um autntico interesse em

    ouvir o outro, momento em que o profissional pode ouvir e fazer-se ouvir, polos

    indissociveis de qualquer legtimo dilogo.

    Para que fazer mestrado? Quem seria meu leitor prioritrio? Em primeiro lugar, eu mesma - escrever para mim. Para compreender esse processo, preciso retirar-me, como quem d

    um passo atrs para ver o quadro que est pintando. Em essncia, dever ser uma obra em triangulaes: de mtodos, de

    filosofia, de princpios. Pensar sobre o que penso, pensar sobre o que escrevo,

    escrever sobre o que penso. E, mais do que tudo, sentir. Minha trajetria pessoal caminho torto, o desejo de ser mdica e

    cantora, as artes plsticas, a dvida entre as trajetrias profissionais e

    pessoais, que nunca se dirimiu. A crise existencial, o medo de ficar solta na

    vida: ser mdica foi uma iluso de proteo - o curso de medicina foi de

    angstia, solido, falta de perspectiva. A residncia em Hematologia laboratrio e clnica. Depois a fuga da morte e do HUAP, a promessa: s volto para esse

    hospital se eu vier diferente.

    E fui morar na medicina diagnstica citologista, hemoterapeuta. Ento fui levada fora para o outro lado - enfermidade, que me

    aproximou da Homeopatia, a medicina da experincia.

    Curador-ferido, aprendi em mim, matria-corpo-esprito. Com a Arte de curar, o estudo paralelo da msica, astrologia,

    geometria sagrada, psicologia transpessoal, danas circulares e outras artes,

    plsticas ou performticas. Por algum motivo passei a chefiar o laboratrio do ento PAM-CPN,

    que estava em estado lastimvel. Por meio da sensibilidade e da dedicao,

    consegui dar um rumo quela nau abandonada, instintivamente, conversando

    sobre os desejos e necessidades de cada um dos 90 funcionrios e dos

    usurios. Aprendi fazendo a arte prtica da gesto. Mestre ignorante. De repente, um caminho adventcio a Arteterapia. Uma guinada

    radical de paixo e o encontro com Jung e Nise da Silveira. Mais adiante, por

    insatisfao com o que fazia, mudei-me para o Programa Interdisciplinar de

    Geriatria e Gerontologia da UFF - homeopata, terapeuta e a professora dos

    Cursos de Extenso em Arteterapia com enfoque no cuidado ao idoso ali e,

    depois, na Associao de Professores Inativos da UFF. Fiz grandes amizades

    com cerca de 70 alunos, ao formar quatro turmas entre 2002 e 2010. Foram

    abertos de campo de voluntariado em mais de 20 instituies pblicas

    escolas, hospitais, orfanatos, asilos: Grupo ConVivncia do ambulatrio para

    idosos do PIGG da UFF, na enfermaria de Pediatria do Hospital dos

    Servidores do Estado, no Projeto pela Vida do CPN-PMN, no Centro de

    Referncia da Coordenao dos Direitos das Mulheres de Niteri.

    Depois o retorno ao HUAP, justamente ao Departamento de Sade

    da Comunidade, um dos valiosos protagonistas das mudanas curriculares na

    Faculdade de Medicina na UFF no perodo em que estive ausente dessa

  • 13

    instituio, Foi esse o lugar que acolheu os germes de um programa que

    ainda eram meus sonhos de instituir tantas novidades. De volta ao comeo. Onde precisam de mim? No lugar que deixei

    vago, onde no terminei minha funo: na Oncologia e Hematologia, mas,

    conforme o prometido, para fazer uma coisa diferente no mais tratar da

    morte e da doena, mas sim da vida. Entrando diferente em um Hospital

    diferente: Departamento de Sade e Sociedade, encontro adiado com as

    Cincias Sociais.

    Em parte por minha trajetria anterior na Hematologia no NAO,

    fui recebida de braos abertos, com total liberdade para colocar em prticas

    ideias que se conformaram durante anos (Dirio de campo, supervisora e

    autora do programa, 2011).

    Segundo Luz (2011), nas ltimas dcadas observado o crescente adoecimento

    e mortes secundrias devido ao alto nvel de estresse dos trabalhadores das

    universidades da rea de sade e hospitais universitrios, derivados das ms condies

    da qualidade de vida.

    Vrios trabalhos cientficos analisam as taxas de adoecimento e suicdio dos

    estudantes e profissionais de sade, que parecem estar expostos a maiores riscos que a

    populao em geral. De acordo com Gomez (1990), o suicdio na Inglaterra a principal

    causa de morte entre os mdicos acima de 40 anos e de jovens da raa branca entre 15

    a19 anos em outros pases desenvolvidos.

    No Brasil, a incidncia de suicdio nas causas de morte entre mdicos encontrada

    em uma pesquisa em Porto Alegre-RS, em 1986, de 5 %; tendo como perfil o humor

    depressivo, a desesperana, a inapetncia, baixa autoestima e sentimento de inutilidade,

    perda e insucesso. (Gomez, 1990, p.5) Um estudo sobre o coeficiente de suicdios

    entre estudantes de medicina em So Paulo mostra uma prevalncia quatro vezes maior

    do que na populao em geral. (Millan,1990)

    Uma pesquisa do Conselho Federal de Medicina, em parceria com a Fundao

    Oswaldo Cruz, revela que 80% dos mdicos, insatisfeitos com sua profisso, acham-na

    desgastante pelas condies de trabalho adversas, perda da autonomia, alta cobrana de

    resultados, excessiva carga de trabalho e necessidade de mltiplos empregos pela baixa

    remunerao (http://www.portalmedico.org.br): Nos EUA, pesquisas nos ltimos 10

    anos mostraram que 30 a 40 % dos mdicos praticantes no escolheriam a profisso

    mdica se tivessem que decidir novamente e uma porcentagem mais alta no encorajaria

    seus filhos a seguir a carreira... (Conselho Federal de Medicina, 2007, p. 36).

    http://www.portalmedico.org.br/

  • 14

    Diversos estudos apontam, no universo mdico, altos ndices de alcoolismo, de

    uso de drogas e distrbios mentais como a depresso, transtorno da personalidade e

    esquizofrenia.

    Embora tendo pleno acesso ateno especializada, h uma significativa

    resistncia em buscar auxlio pelos estudantes e profissionais da rea mdica. Tal fato

    atribudo negao e atitudes defensivas ao desconfortos fsicos e psicoemocionais, e

    por vrios receios como o de sofrer o estigma da doena mental e do uso de drogas, e o

    de sentir-se publicamente desqualificado para a profisso.

    Millan (1990) preconiza o trabalho preventivo para evitar a possvel

    estigmatizao trazida pela busca de ajuda por esses estudantes e o oferecimento de

    condies para que eles enfrentem os conflitos inerentes formao mdica.

    Os profissionais do cuidado, numa rotina que muitas vezes ocupa seus finais de

    semana, suas noites e a maior parte do tempo de suas vidas, em geral no encontram

    significado pessoal ou a to sonhada realizao profissional em seu trabalho.

    O desgaste profissional do mdico tambm se reflete na sua vida pessoal

    [...]falta de tempo, estressores acadmicos, sobrecarga de trabalho, fadiga e

    privao de sono. A vulnerabilidade a crises pessoais o leva a sentimentos de

    solido, depresso, ansiedade, insnia, problemas com lcool ou drogas

    psicotrpicas, tabagismo(Conselho Federal de Medicina, 2007, p. 31).

    A sndrome de burnout, definida nos anos 70 por Freudenberger (1974), costuma

    manifestar-se predominantemente entre o quinto e dcimo quinto anos de atividade dos

    profissionais das reas de sade. Como o fator gerador do desequilbrio no o volume,

    mas sim a falta de qualidade de vida no trabalho, o retorno s mesmas atividades, aps o

    afastamento temporrio, significa adoecer novamente. Por isso o distrbio

    subnotificado e de difcil diagnstico, j que os trabalhadores acometidos do mal temem

    perder seu emprego, o que agrava a situao mrbida.

    A sndrome, no Cdigo Internacional de Doenas sob o CID - 10.273.0, recebe a

    qualificao de sensao de estar acabado e de despersonalizao, uma

    dessensibilizao dirigida s pessoa com quem se trabalha e o estresse um esgotamento

    diverso que, de modo geral, interfere na vida pessoal do indivduo, alm de seu trabalho

    (Abreu, 2002, p.25).

    Sob tais circunstncias, provavelmente, tais cuidadores tm a tendncia a cuidar

    mecanicamente do outro, da mesma forma que cuidam de si.

  • 15

    Considerando essa realidade, o objetivo central do programa despertar a

    ateno dos diversos profissionais da sade envolvidos no cuidado de outrem para o

    cuidado de si, apresentando uma estratgia de educao permanente em prol do resgate

    dos ideais dos profissionais de sade, ampliando seus conhecimentos em prticas

    voltadas humanizao. Concebe-se que isso possa contribuir para a promoo da

    integralidade do hospital, resgatando a noo de equipe pela religao dos servios e

    categorias funcionais, fundamentando ampla rede interdisciplinar de humanizao

    envolvendo sade, cultura, arte e educao e aprimorando o cuidado oferecido aos

    usurios do hospital.

    A humanizao do cuidado

    deve comear pelo cuidador

    CUIDAR DE SI

    para melhor cuidar

    do outro

    A convivncia multiprofissional e interdisciplinar em uma mesma sala de aula

    parte da estratgia para despertar habilidades em lidar com problemas de diferentes

    naturezas, pelo exerccio do confronto e discusso dos limites do poder de manipular,

    medicar, operar, internar ou impor procedimentos nos ato de cuidado.

    No que se refere gesto em sade, preciso democratizar o processo de

    trabalho na organizao dos servios, horizontalizando saberes, promovendo

    as atividades multiprofissionais e interdisciplinares, incorporando a

    renovao das prticas de sade, numa perspectiva de integralidade em que a

    valorizao da ateno e do cuidado desponta como dimenso bsica para a

    poltica de sade, que se desenvolve ativamente no cotidiano dos servios.

    (Pinheiro & Luz, 2003, p. 30).

    No entanto, na prtica, os conceitos e ferramentas metodolgicas adotadas do

    campo das Cincias Sociais pela rea de sade nem sempre honram a integrao

    necessria interdisciplinaridade (Luz, 2011).

  • 16

    O interesse inicial para pesquisa dentro do programa foi o de avaliar possveis

    mudanas evocadas pelo curso na qualidade de vida destes alunos-terapeutas,

    especialmente nas situaes do trabalho de campo. Ali, no mais protagonistas das

    atividades caractersticas de sua qualificao profissional original, eles seriam apenas

    coadjuvantes: observadores, auxiliares na manipulao do material expressivo pelos

    pacientes e coletores de informaes para avaliaes posteriores. Para apreciar possveis

    modificaes nesse grupo, foram aplicados instrumentos de pesquisa voltados aferio

    da qualidade de vida a todos os alunos como o WHOQOL 100 (instrumento da

    Organizao Mundial de Sade - OMS) e o Questionrio validado do Senso de

    Coerncia de Antonovsky (Dantas, 2007) no primeiro e no ltimo dia de aula.

    Entretanto, as questes sociais, frutos da construo histrica e por isso dotadas

    de provisoriedade e dinamismo, sempre exibem resultados influenciados pelos fatos do

    devir (Minayo, 2010). Frente necessidade de expandir a amostra da pesquisa da

    proposta anterior com alunos do ano seguinte do Curso CSA e ao estmulo da fartura e

    riqueza de significados dos resultados exibidos em campo pelos pacientes que

    experimentaram as atividades com TE, o foco do objetivo principal da dissertao foi

    apurado para conhecer os efeitos do atendimento complementar quimioterapia sobre

    os pacientes do NAO nos sete meses da implantao da AIV.

    Alm disso, outra necessidade mostrou-se prioritria investigar e fundamentar

    a TE como uma ferramenta tanto exequvel quanto capaz de interferir favoravelmente

    na humanizao e cuidado integral em servios de sade, particularmente em um

    hospital universitrio.

    Dois grandes desafios evidenciaram-se: selecionar um objetivo para uma

    dissertao de mestrado em meio amplitude e diversidade das atividades que

    compem o programa que lhe deu origem, e formatar como projeto de pesquisa um

    material que adveio da observao de uma ao que, em carter preliminar, visava

    oferecer uma ferramenta de educao permanente aos profissionais de sade e prestar

    servios com o escopo principal de beneficiar pessoas.

    Ponderar sobre a demanda de humanizao e de integralidade no sistema de

    sade conduz a uma das vrias acepes do princpio do cuidado integral - uma meta

    que inclui conjuntos de sentidos e valores de algumas prticas e modos de organizar

    servios e polticas desta rea de ateno e que articula medidas preventivas e

  • 17

    assistenciais, indo ao encontro do respeito a inmeros direitos dos seus usurios

    (Mattos, 2003).

    Para Ayres (2004, p.27), a abordagem do cuidado, humanizao e integralidade,

    aponta para um conjunto de princpios e estratgias que norteiam, ou devem nortear, a

    relao entre um sujeito, o paciente, e o profissional de sade que lhe atende. Esse

    cuidado humanizado, que no visto apenas com o sentido operativo do senso

    comum, chamado pelo autor como Cuidado [...] ateno sade imediatamente

    interessada no sentido existencial da experincia do adoecimento [...] e das prticas de

    promoo, proteo ou recuperao da sade (Ayres, 2004, p. 22).

    Camargo Jr (2003, p.31) considera a integralidade um ideal regulador sujeito ao

    devir, e no um conceito: algo como o ideal de objetividade para a investigao

    cientfica, impossvel de ser plenamente atingido, mas do qual constantemente

    buscamos aproximarmo-nos [...] a um tempo inalcanvel e indispensvel.

    Pensar a integralidade no como uma meta a ser alcanada no fim do caminho,

    mas sim como sendo o prprio caminho (Xavier & Guimares, 2004), incita a indagar

    como aprimorar, na prtica, a humanizao do cuidado - uma questo recorrente nos

    estudos sobre capacitao e treinamento das equipes de sade envolvidas no tema.

    Embora as propostas tericas desafiem a construo prtica de um modelo que

    atenda realmente s demandas da populao (Silva Jr., Merhy e Carvalho, 2003), a no

    consolidao da integralidade das aes de sade nos espaos onde ela deveria se

    materializar, isto , nos servios de sade (Pinheiro e Luz, 2003, p.19), parece

    denunciar um desencontro entre o diagnstico das necessidades e as medidas

    teraputicas e preventivas propostas pelo SUS, mmesis da inefetividade de muitos

    aspectos da biomedicina e das polticas institucionais de sade. Por isso mesmo, tais

    instituies, reunindo uma multiplicidade de atores sociais, so campos privilegiados

    para a observao e anlise dos elementos constitutivos do princpio da integralidade

    nas prticas teraputicas prestadas aos indivduos e difundidas na coletividade.

    Os eventos relativos sade, altamente imprevisveis e subjetivos,

    principalmente no que se refere rea pblica, para Pinheiro e Luz (2003, p.8)

    envolvem complexos relacionamentos entre dirigentes, equipes multidisciplinares do

    cuidado e a populao que os demanda, estando todos imersos em vasto material

    simblico que expresso cultural de um modo de perceber a sade e a doena.

  • 18

    Perguntas surgem e abrem a discusso: exequvel oferecer este to decantado

    cuidado integral? De que forma possvel aprimorar o cuidado e a humanizao na

    prtica, considerando o complicado cenrio poltico e social em que se insere a sade?

    Vale a pena reputar o curso do panorama da educao em sade na Universidade

    Federal Fluminense nas ltimas dcadas.

    Nos anos 60, o Hospital Municipal Antnio Pedro, embora cedido essa

    universidade, conservou-se como o principal mantenedor da assistncia pblica em uma

    grande rea de Niteri (Silva Junior, 2006).

    Na dcada de 70, sob o contexto da crise da Medicina, a qualidade e abrangncia

    dos servios oferecidos no faziam jus aos custos inflacionados dos servios de sade e

    as caractersticas da formao mdica tradicional deixavam a desejar em inmeros

    aspectos. Segundo Koifman (2001, p.57), o sistema de sade no atendia s

    necessidades bsicas de assistncia mdica da populao e pouca nfase era dada ao

    preparo dos professores de medicina, bem como aos mtodos de ensino-aprendizagem e

    ao seu papel educacional.

    No final desse decnio, explicitao formal do descontentamento com o ensino

    da Faculdade de Medicina da UFF por seus professores e alunos, foi iniciado um longo

    processo de discusso e avaliao do currculo mdico por um grupo de trabalho

    formado por representantes dos muitos departamentos envolvidos e por representantes

    estudantis do Diretrio Acadmico. Na redao do documento preliminar de

    reformulao curricular, elaborado aps o primeiro ano dessas atividades, alguns dos

    tpicos a serem discutidos e resolvidos foram a demarcao dos padres do profissional

    a ser formado, os parmetros das mudanas curriculares, a realidade poltica do Brasil e

    o funcionamento dos servios pblicos e o ensino de Medicina em Niteri (Koifman,

    2001).

    Nessa fase introdutria foram detectados problemas decorrentes da insuficincia

    na formao dos professores de medicina e dos profissionais de sade que,

    excessivamente terica, enfatizava as especialidades e as tecnologias diagnsticas com

    prejuzo do cuidado, levando precariedade do atendimento bsico assistncia

    mdica, apontando para a premncia de mudanas nos sistemas de sade e de educao.

    Aps um longo decurso, no qual se intercalaram discusses e interrupes, o processo

    de reformulao curricular foi retomado em 1983 e concludo em 1992, mas somente

    em 1994 foi de fato implementado o novo currculo do curso de Medicina na UFF.

  • 19

    No entanto, apesar das reformas curriculares valorizarem a contextualizao

    sociocultural das prticas, a interdisciplinaridade e a tica na formao de profissionais

    de sade (Koifman, 2001), tal discurso no determinou mudanas substanciais na

    estrutura curricular das faculdades de medicina do Brasil estas s poderiam acontecer,

    como afirma Nogueira (2012 a), a partir da introduo de inovaes no sedimentado e

    hegemnico estilo de pensamento do paradigma biomdico.

    Koifman (2001, pg. 59), analisa o lapso de mais de uma dcada entre a

    reformulao curricular da UFF e sua implantao:

    O processo de reformulao curricular, ento, que havia recomeado em

    1983, evoluiu at a elaborao de sua proposta, em 1992, e posterior

    implantao, em 1994. Entre os diversos motivos de tais interrupes esto as

    mudanas de direo dentro da a prpria universidade e na Secretaria de

    Sade de Niteri. A reformulao curricular da UFF data de 1992, e sua

    implantao, de 1994, com a resoluo no 37/94 do Conselho de Ensino e

    Pesquisa (CEP). O processo de reformulao, de mais de dez anos de

    durao, ocorreu paralelamente s mudanas da rede de sade de Niteri e do

    Brasil, no contexto do SUS (Koifman, 2001, p. 59).

    O governo federal, em 1993, implantou o Programa de Sade da Famlia -

    estratgia inicial do Ministrio da Sade para reorientar o modelo assistencial - que

    priorizou as prticas na ateno primria, o trabalho comunitrio e a educao em

    sade.

    Para Nogueira (2012 a), a expanso desse Programa exigiu novas formas de

    conceber e exercer o cuidado em equipes interdisciplinares. Mas a tentativa de atender

    demanda to complexa denunciou a inexistncia de profissionais capacitados para tal,

    apontando para a necessidade de novos formatos de graduao.

    Com base nessas reflexes, construiu-se um projeto de pesquisa no nvel de

    ps-doutorado, desenvolvido no IMS/UERJ, para problematizar o processo

    de transformao da formao mdica brasileira mediante a anlise de uma

    experincia de integrao universidade-servio-sociedade, com a introduo

    de novos cenrios de prtica profissional. Escolheu-se, para sediar o estudo, a

    Escola Mdica da UFF, em razo da reforma curricular implementada em

    1994 (Nogueira, 2012 a, p.16).

    Em 1997 foi reconhecida oficialmente a necessidade dos polos de formao,

    capacitao e educao permanente perante o vnculo das secretarias municipais e

    estaduais de sade com as universidades e instituies de ensino.

  • 20

    Dentre as vrias dificuldades detectadas para a real implementao do cuidado

    eficaz e integral, pertinente apontar o desencontro entre a idealizao elaborada pelos

    gestores e as diversas impossibilidades prticas do campo executor. A superao desses

    hiatos parece ainda uma quimera, embora ponto de honra do iderio do processo de

    reforma do sistema de sade brasileiro na construo do Sistema nico de Sade

    (SUS), sua criao pela Constituio Federal em 1988, valorizando rudimentos

    relativos integralidade das aes, equilbrio entre o conhecimento geral e o

    especializado, reconhecendo a determinao social no processo sade-doena, a

    incluso de prticas de medicina ditas alternativas e a interdisciplinaridade (Pinheiro e

    Luz, 2003).

    O documento final sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de

    Graduao em Medicina, definidas em 1998 e homologadas em 2001, foi prenunciado

    no final da dcada de 70 pelas discusses sobre a reorientao e mudanas curriculares

    no Movimento Sanitrio.

    O atual currculo mdico da UFF sobrepujou as qualidades recomendadas por

    essas diretrizes, mormente no que tange insero de atividades prticas aos alunos

    desde o incio da graduao, to relevantes sua pstera vida profissional. A

    contribuio do Instituto de Sade da Comunidade, que oferece as disciplinas com o

    enfoque na Sade Coletiva, confirma o esteio das cincias humanas e sociais para essa

    formao mdica:

    Nos dois primeiros anos de formao, com a insero do aluno em atividades

    prticas, a promoo do contato com a comunidade e o deslocamento da

    Anatomia para o segundo perodo, criou-se uma estratgia que favorecia a

    desconstruo do imaginrio tradicional do mdico para uma imagem mais

    humanista (Nogueira, 2012 a, p.133).

    Nos quatro primeiros anos da organizao curricular de graduao em medicina

    da UFF, o Programa Terico-Demonstrativo articulou as disciplinas ditas bsicas com

    aquelas do ciclo profissional e do Programa Prtico-Conceitual.

    Props as disciplinas de Trabalho de Campo Supervisionado de I a IV, Sade e

    Sociedade, Planejamento e Gerncia em Sade e Epidemiologia. A valorizao da

    Iniciao Cientfica e das disciplinas optativas de Medicina Tradicional Chinesa,

  • 21

    Introduo Homeopatia, Fitoterapia, Teraputica e Propedutica Homeoptica,

    ratificam o carter inovador do curso de Medicina da UFF (Nogueira, 2012 a, p.132).

    As diretrizes curriculares do ensino mdico e em sade, homologadas em 2001

    pelo Conselho Nacional de Educao (Brasil), reafirmam o aparelho formador da sade

    como canalizador das mudanas necessrias

    integrao entre teoria e prtica, pesquisa e ensino, e entre contedos

    biolgicos, psicolgicos, sociais e ambientais do processo sade-doena,

    alm da insero precoce e responsvel dos estudantes em atividades

    formativas nos servios de sade e o estmulo participao ativa destes na

    construo do conhecimento (Nogueira, 2009, p.264).

    Programas parceiros entre sade e educao incentivaram a implantao de

    metodologias de ensino-aprendizagem ao profissional mdico, segundo uma formao

    humanista e crtica, comprometida com as necessidades de sade da populao.

    Nogueira (2009) ressalta a interao ativa entre usurios, estudantes, professores e

    profissionais, trazendo s escolas mdicas reformas curriculares e experincias

    inovadoras.

    Por comungar com estes propsitos por meio de atividades de campo como a

    AIV, o Curso CSA pretende contribuir com a formao multiprofissional dos estudantes

    de medicina da UFF e com o processo de educao permanente de profissionais de

    sade de diversas formaes e instituies.

  • 22

    2 REFERENCIAIS TERICOS

    A discriminao dos termos da Terapia Expressiva - o que terapia e o que

    expresso - fundamental para a considerao de seu significado global.

    TERAPIA EXPRESSIVA

    O que EXPRESSO?

    O que TERAPIA?

    Terapia Expressiva um conjunto de procedimentos que utiliza materiais

    expressivos, segundo os referenciais tericos da Psicologia Analtica proposta por Carl

    Gustav Jung. Considerando o simbolismo de sries de imagens, abarca duas condies

    indispensveis:

    1. Ser uma proposta diagnstica e teraputica que considera a expresso de

    contedos inconscientes sob a forma de imagens por qualquer material

    ou tcnica expressiva.

    2. Ter referencial terico na Psicologia Analtica, conforme os conceitos

    postulados por Jung em suas Obras Completas (CW)2.

    O potencial teraputico da TE intermediado pela manipulao, em tcnicas

    diversas, de uma infinidade de materiais expressivos eleitos criteriosamente para cada

    caso ou momento de vida, visando estimular a criatividade e mobilizar a energia vital

    em prol da harmonia e bem estar.

    O profissional que utiliza a TE um facilitador que, ao utilizar mltiplas

    propostas expressivas no espao do cuidado, plsticas ou no, oferece modalidades

    teraputicas peculiares. Destas aes resulta um campo de experincias metafricas,

    onde os conflitos podem ser representados, reconhecidos e resolvidos simbolicamente.

    2 Segundo Boechat (1999), a obra de 20 volumes de Jung no seguiu uma ordem cronolgica, mas sim temtica, sendo por isso chamada de trabalhos coligidos - Collected Works (CW), Princeton: Bollingen

    Series, Princeton University Press (em portugus, Obras Completas. Petrpolis, RJ: Editora Vozes).

  • 23

    Considerando a produo do paciente para alm do julgamento utilitrio, moral

    ou esttico, o olhar do terapeuta no se dirige beleza, mas sim emerso de elementos

    psquicos preteridos ou ainda desconhecidos. O material inconsciente, revelado desta

    forma conscincia, dispensaria a necessidade de manifestaes por meio de leses no

    corpo fsico, sintomas emocionais ou mentais.

    2.1 Traos da expresso humana

    Achterberg (1996) considera a cura pela imaginao um fenmeno cultural. Cita

    paralelos entre tcnicas da psiquiatria e os sistemas sociais das prticas tradicionais

    realizadas pelos curadores nativos e populares xams, curandeiros, benzedores e

    pajs-ndios - que localizavam as propriedades medicinais ativas nas prticas rituais

    populares.

    O uso de tcnicas expressivas utilizando a dramatizao evocando animais ou

    objetos que os representem como smbolos mgicos pode substituir os rituais xamnicos

    no setting teraputico.

    A paciente estava bem desanimada quando chegou. A histria pedia que ela

    imaginasse seu animal de poder, e ela escolheu um canrio. Construiu seu

    animal sem entusiasmo, reafirmando que no tinha medo de nada. Denise lhe

    perguntou se desejava colocar asas no seu canrio. S se for amarela, ela

    disse. Conseguimos as asas amarelas para o bichinho, e depois disso ela

    parecia ter ganho um novo nimo: Meu pssaro est livre para voar!. O

    nome dele O canrio que me traz felicidade! (voluntria sobre portadora

    de cncer, atividade O Rato e o Pag, 11/10/12).

    possvel acompanhar o trajeto da utilizao do material expressivo de forma

    espontnea ou com finalidades teraputicas a partir das pinturas pr-histricas e do

    xamanismo.

    Segundo Achterberg (1996), o xam - conjugando os prottipos do louco e do

    terapeuta - era o escolhido pela comunidade para ser um visionrio a servio das

    pessoas, um intermedirio entre o mundo espiritual, a natureza e a comunidade. Ao

    alcanar o estado de xtase, dirigia as mensagens recebidas do inconsciente ao

    consulente para que ele enfrentasse seus medos, a insanidade, a solido, o orgulho, os

    vcios, a doena e a morte sob vrias formas de expresso, como a dana e a fala

    teatralizada.

  • 24

    Dos primrdios da humanidade permanecem os registros dos primeiros homens,

    imagens espontneas inscritas na pedra que, integradas ao meio-ambiente, traduziam o

    equilbrio das comunidades primitivas com a natureza. Cenas rupestres mostram

    grandes quadrpedes alvejados para a caa, reverenciados como sendo superiores aos

    homens que os matavam por terem se oferecido em sacrifcio como alimento para a

    comunidade humana.

    Milhares de anos depois, Arthur Bispo do Rosrio (1911 - 1989), o Bispo do

    Rosrio (http://www.itaucultural.org.br), ex- marinheiro e ento funcionrio da Light,

    foi enviado ao Hospital dos Alienados na Praia Vermelha aps ter apresentado um

    delrio de contedo mstico. Diagnosticado como portador de esquizofrenia paranide,

    foi internado na Colnia Juliano Moreira, alternando fases de surtos sob internao no

    hospcio com perodos de remisso doena, nos quais exerce ofcios externos. No

    comeo de 1960 viveu em um quartinho do sto de uma clnica peditrica na qual

    trabalhou, onde iniciou seus trabalhos realizados com materiais rudimentares. Em 1964

    regressou Colnia, onde criou seu ateli e permaneceu por 50 anos, at a sua morte.

    Em uma de suas obras bordou num lenol da instituio, com fiapos de roupas dos

    internos, um touro atingido por duas lanas - ritual sangrento do lazer contemporneo

    numa tourada - exibindo a falta de respeito natureza, outrora sagrada. Essa imagem

    similar aquela citada acima: dois mamferos, similares na forma e portando mensagens

    to antagnicas, so separados por sculos de histria, apontando para o descaminho em

    que se inscreveu a raa humana.

    Entre as coisas que inventariou para Deus em seu delrio criativo, este eminente

    artista plstico produziu um extenso acervo com diversos tipos de materiais oriundos do

    lixo e da sucata. Sua arte considerada pelos crticos, at hoje, to vanguardista quanto

    a obra de Marcel Duchamp (Braga, 2001). Suas imagens, presentes em cerca de 1.000

    peas com objetos do cotidiano, falam alm das palavras, traando a histria da

    humanidade e homenageando a saga da vida na gratuidade da criao artstica.

    De forma anloga trabalha a TE, enquanto reafirma a inteno teraputica em sua

    prtica e na traduo da analogia entre as imagens psquicas e aquelas extrovertidas

    pelas tcnicas expressivas: da psique ao suporte, expresso; do suporte psique,

    terapia (Vianna et al., 2012).

  • 25

    primrdios

    Pinturas rupestres

    Xamanismo

    sculo XVI

    em diante

    Terapia ocupacional

    Psicologia analtica

    Emoo de lidar

    atualidade

    Arteterapia

    Terapia Expressiva

    Grande parte das linhas teraputicas que usam o material expressivo para

    conhecer e tratar conflitos psquicos, revelam os indcios do encontro de Nise da

    Silveira com a Psicologia Analtica - constructo terico de Jung que, como ser visto

    adiante, a terapeuta introduziu no Brasil.

    2.2 Psicologia Analtica de Jung

    Embora seja relevante delinear as grandes linhas da psicologia de Jung, a

    magnitude das obras do autor torna impossvel que um aprofundamento exaustivo no

    assunto seja alcanado na presente dissertao.

    Psicologia Analtica a nominao para o constructo de Jung (1875-1961),

    como Psicanlise so conhecidas as obras de Freud e de seus discpulos, e o termo

    Psicologia Individual serve ao referencial de Adler. Para Fordham (1978), o que h de

    comum entre todas essas linhas - muito embora as teorias dessas diferentes escolas se

    disponham a servir pontos de vista diversos - o emprego de tcnicas especficas para

    que fatores inconscientes sejam trazidos luz e, posteriormente, integrados

    conscincia. Para esta autora aqueles que se identificam com as obras de Jung tm um

    tipo de esprito no sectrio, inclinado aos estudos cientficos que apontam mais

    intimamente para estudos humansticos amplos (Fordham, 1978, p. 8).

    Para falar da alma e da atividade mental, Jung preferiu aos termos mente e

    mental os termos psique e psquico, que englobam os aspectos complementares

    consciente e inconsciente. O territrio consciente, cujo eixo central o ego, pode ser

    comparado a uma ilha que se eleva do oceano, sob a qual se estende um domnio

    desconhecido aparentemente catico e muito mais vasto, sua matriz inconsciente, onde

    esto os germes de novas possibilidades da vida.

  • 26

    No modelo de inconsciente proposto por Jung, uma zona mais superficial,

    o inconsciente pessoal, conformado pelas percepes subliminares e experincias

    esquecidas, desejos e mpetos infantis reprimidos, contedos que podem ser evocados

    ou relembrados espontaneamente, por meio dos sonhos ou de tcnicas analticas. O

    inconsciente coletivo um estrato mais profundo, cunhado por uma mirade de

    experincias pr- hominais - as imagens primordiais ou arqutipos - que pode ser vivido

    pelo homem no s como imagens, mas tambm como emoes. Para Jung (1986a)

    relacionam-se, desta maneira, o consciente, o inconsciente pessoal (espao das

    vivncias que pertencem ao passado da pessoa) e o inconsciente coletivo, arcabouo de

    toda a raa humana - substrato comum da anatomia psquica - da mesma maneira que o

    corpo humano, apesar das diferenas raciais, compartilha uma anatomia semelhante.

    A existncia do inconsciente coletivo pode inferir-se dos ntidos vestgios de

    imagens mitolgicas no homem normal imagens de que ele no tinha

    conhecimento anterior. Por vezes difcil provar que esse conhecimento

    nunca existiu, mas em certos casos de desordem mental h uma espantosa

    proliferao da imaginria mitolgica, que nunca foi possvel explicar pela

    experincia do prprio indivduo (Fordham, 1978, p. 27).

    Para a autora, os mitos so a expresso direta do inconsciente coletivo, que se

    apresentam sob formas anlogas em todos os povos e pocas. A perda da capacidade de

    contat-los levaria desconexo com as foras saudveis fundamentais alimentao

    da criatividade, que os rituais e as expresses realizadas nas sesses de TE objetivam

    resgatar, ao reconectar a pessoa com tais contedos revitalizantes.

    O uso de textos das tradies - como mitos, fbulas e contos de fada - reatualiza

    significantes que trazem contedos pertencentes ao acervo de memrias passadas, cujo

    alto potencial gerativo de simbolizao estimula o desbloqueio de contedos

    inconscientes, e capaz de resolver os complexos.

    Para a teoria junguiana, um complexo psicolgico conjuga grupos de imagens

    com um acento emocional comum, interrelacionadas com um determinado ncleo

    energtico temtico (arquetpico). Os complexos so formados medida que

    experincias de vida acontecem e se agregam s estruturas dos arqutipos - modelos

    virtuais de centros ordenadores incognoscveis - dos quais s se podem ter notcia por

    meio de suas projees, as imagens arquetpicas.

  • 27

    A psicologia de Jung no se restringe a uma psicopatologia, dado que para o

    autor as manifestaes inconscientes no so consideradas patolgicas (1986a), e nem

    os complexos exclusivamente nocivos. Estes estruturam-se com e para as pessoas,

    independentemente de sua classificao psquica como normais ou anormais,.

    Fordham (1978) diz que, para Jung, a psique uma realidade que se impe de

    muitas formas, inclusive como doenas fsicas sem causa orgnica, pois os processos

    psquicos interiores tm igual valor aos exteriores ou ambientais.

    A TE considera que as sesses da AIV podem oferecer uma ambincia de

    acolhimento compatvel com a resoluo dos complexos, da os frequentes relatos de

    experincias de alvio, de sensao de bem-estar e de conforto: Para desfazer ou

    transformar os complexos patolgicos, costuma mostrar-se necessrio repetir a

    experincia da emoo vinculada ao complexo visado, mas numa situao segura e

    contida (Hall, 1986, p. 58).

    Uma das propostas da psicologia analtica ajudar as pessoas a enfrentarem e

    ultrapassarem esses ns energticos para que prossigam em seus processos de

    individuao - um conceito junguiano que designa a tendncia manifestao do

    potencial inato de cada pessoa em relao ao significado de sua vida, mais uma busca

    do que o alcance de uma meta.

    como se um rio que se espraiava por preguiosos meandros e pais

    encontrasse de repente o caminho de regresso ao seu prprio leito, ou como

    se uma pedra pousada em cima de uma semente fosse retirada, permitindo

    que a planta iniciasse o seu crescimento natural (Jung, 1981, p. 190).

    Para Boechat (1998), o processo de individuao d-se de forma pedaggica,

    pelo desvelamento e realizao lenta e gradual de potencialidades intrnsecas e inatas.

    Esse processo dirige-se ao encontro do si-mesmo, em direo conformao daquele

    que no se divide - o indivduo - o que no implica o individualismo que relega a tica

    coletiva em detrimento do egosmo.

    Encontrando apoio nas palavras de Jung (2011, p. 120), para quem o fim ltimo

    do homem no a sua existncia individual, mas a marcha da sociedade humana, pois

    sem ela o homem no chegaria nem a existir, pode-se expandir o tema da individuao

    do plano individual para o coletivo:

  • 28

    ... o processo de individuao natural produz uma conscincia do que seja a

    comunidade humana, porque traz justamente conscincia o inconsciente,

    que o que une todos os homens e comum a todos os homens. A

    individuao o tornar-se um consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a

    humanidade toda [...] conjunto organizado dos indivduos no Estado, ainda

    que esta se revista de uma autoridade maior, no mais constituda de uma

    massa annima, mas uma comunidade consciente (Jung, 2011, p. 124).

    Ratifica-se que nesta pesquisa no ser possvel proceder ao aprofundamento

    dos conceitos contidos nas obras de Jung, fundamentais compreenso estendida do

    funcionamento das atividades com TE. H ideias muito complexas, como a noo do

    arqutipo do psicide (Hall, 1986, p.188), que se refere superposio entre processos

    psicolgicos e fisiolgicos, em contraposio lgica da oposio herdada da

    concepo iluminista que separava em polaridades a matria do esprito, a alma do

    corpo, o inconsciente do consciente, a natureza da cultura, o sujeito do objeto, a sade

    da doena. Para Jung, esses pares no so antitticos, mas sim dois lados de uma mesma

    moeda. Essa noo de continuidade psicofsica encontra-se de forma abundante em seus

    textos sobre a Alquimia, tema que lhe foi to caro, nos quais a Obra ou a Pedra

    Filosofal simbolizava a unidade segundo o princpio dos eventos sincrnicos, em

    oposio ao paradigma da crena do adoecimento causal de lgica biolgica que separa

    processos fsicos, emocionais, mentais e espirituais.

    Jung, formado como mdico psiquiatra e sem um treinamento especfico em

    arte, utilizou intuitivamente o manuseio de materiais expressivos diversos em atividades

    prticas na clnica, sob a regncia da imaginao:

    Eu aproveitava uma imagem onrica ou uma associao do paciente para lhe

    dar como tarefa elaborar ou desenvolver estas imagens, deixando a fantasia

    trabalhar livremente. De conformidade com o gosto ou os dotes pessoais,

    cada um poderia faz-lo de forma dramtica, dialtica, visual, acstica, ou em

    forma de dana, de pintura, de desenho ou de modelagem. O resultado desta

    tcnica era toda uma srie de produes artsticas complicadas cuja

    multiplicidade me deixou confuso durante anos, at que eu estivesse em

    condio de reconhecer que este mtodo era a manifestao espontnea de

    um processo em si desconhecido, sustentado unicamente pela habilidade

    tcnica do paciente, e ao qual, mais tarde, dei o nome de processo de

    individuao".

    Mas bem antes que me surgisse este reconhecimento, eu observei que este

    mtodo muitas vezes diminua, de modo considervel, a freqncia e a

    intensidade dos sonhos, reduzindo, destarte, a presso inexplicvel exercida

    pelo inconsciente. Em muitos casos, isto produzia um efeito teraputico

    notvel, encorajava tanto a mim como o paciente a prosseguir no tratamento,

    malgrado a natureza incompreensvel dos contedos trazidos luz do dia

    (Jung, 1986 a, p. 139).

  • 29

    De acordo com Jung (1984), cada homem possui um quantum energtico a

    libido - que anloga energia vital. No esforo de explicar este conceito, construiu um

    modelo baseado na teoria energtica das cincias fsicas, no qual a libido pode ser

    disponibilizada tanto para objetos externos quanto para conexes inconscientes, fluindo

    entre os polos opostos das necessidades do inconsciente e o mundo externo, buscando a

    adaptao ativa ao meio e s satisfaes conscientes. A libido poderia, portanto,

    manifestar-se sob vrias formas - pelas imagens do inconsciente ou a criatividade que,

    em conformidade com a energia psquica e o impulso de vida, seriam responsveis pela

    existncia em si e pela manuteno da espcie.

    No psiquismo, que para Jung um sistema energtico relativamente fechado,

    quando a energia psquica abandona um de seus investimentos direciona-se a uma outra

    motivao, podendo extroverter-se sob novas formas. Simultaneamente, os sintomas

    fsicos ou psquicos, enquanto espelham a tentativa do equilbrio possvel para cada

    circunstncia - como por uma expresso plstica ou uma doena criativa -

    oportunizando a resoluo de conflitos. Nesta circunstncia, o estrato inconsciente da

    psique comunica-se simbolicamente com o consciente, o que traduzido pelas imagens

    reveladas nos suportes de natureza material como o prprio corpo e suas

    manifestaes dinmicas expressivas.

    2.3 Trajetria da Terapia Ocupacional Terapia Expressiva

    O registro do uso de recursos expressivos com finalidades teraputicas, data do

    incio do sculo XIX.

    Philippe Pinel (Paris, 1745-1826) aboliu a sangria, as purgaes e os

    vesicatrios, em favor de uma abordagem teraputica que inclua o contato prximo e

    amigvel com o paciente, as discusses das dificuldades pessoais e um programa de

    atividades dirigidas com material expressivo.

    Freud buscou compreender a dinmica psquica a partir do estudo das obras de

    alguns artistas consagrados.

    Na dcada de 20, Jung ampliou o uso da arte como componente implcito ao

    processo teraputico, para alm do contexto diagnstico.

  • 30

    Em 1940, o que se entende atualmente como arteterapia, teria sido sistematizada

    por Margareth Naumburg nos EUA (Vasconcelos & Giglio, 2007).

    No Brasil, merecem destaque Ulysses Pernambuco (Pernambuco, 1892-1943) e

    Osrio Cesar (Oficina de Pintura em 1923 e Escola Livre de Artes Plsticas, 1949,

    Hospital Psiquitrico do Juqueri, So Paulo), que pelo artesanato e desenvolvimento de

    aptides expressivas com o mnimo de interferncia do supervisor, garantiam a plena

    espontaneidade das manifestaes, permitindo o desenvolvimento psicolgico e

    artstico.

    Nise da Silveira (1905-1999), protestando contra muitos dos mtodos

    teraputicos correntes na poca - o eletrochoque, a insulinoterapia e a lobotomia -

    defendeu uma prtica cuja base era o afeto catalisador, um estar ao lado do cliente

    numa relao de horizontalidade que abolia a hierarquia entre o mdico e o paciente, a

    sanidade e a loucura. Ela trouxe os conceitos de Jung anlise das obras com material

    expressivo dos pacientes da seo de Teraputica Ocupacional, que implantou no

    Hospital Pedro II do Engenho de Dentro.

    Nise considerava que os trabalhos de pintura e desenho dos internos,

    oportunidade de conhecer as imagens do inconsciente, eram uma manifestao

    espontnea que demandava ateno e um estudo aprofundado e sistemtico, o que

    inspirou a criao do Museu de Imagens do Inconsciente (Silveira, 1982).

    Seu foco no era artstico e sim teraputico: considerava que a psicologia

    analtica jamais deveria explicar o fenmeno arte ou opinar sobre o valor esttico

    positivo ou negativo das obras de arte, o que pertence ao ajuizamento dos crticos de

    arte. Seus pronunciamentos limitavam-se a pesquisas concernentes aos processos da

    atividade criadora e ao estudo psicolgico (...) decifrao das imagens simblicas (...)

    trazendo luz sobre significaes...( 1994, p.167).

    Seria talvez desnecessrio frisar que a simples emergncia de imagens

    arquetpicas no resulta em obras de arte. Essas imagens surgem

    cotidianamente nos sonhos e nas fantasias de todos os seres humanos.

    Entretanto as obras de arte so raras. Faz-se necessrio que as rudes imagens

    primordiais sejam elaboradas, ou melhor, transmutadas em formas que

    possuem certas qualidades, ditas artsticas. preciso que essas formas

    apelem para os sentidos e falem a linguagem da poca. A maneira como se

    realiza essa transmutao (processo criador) no foi jamais explicada por

    nenhuma psicologia (Silveira, 1994, p.181).

  • 31

    Lidar com material expressivo em sua interface com o universo teraputico,

    segundo Vasconcellos & Giglio (2007), tem duas linhas de atuao: a arte como terapia

    (art as therapy), que focaliza o processo dito artstico que concomitantemente produz

    efeitos teraputicos, e a artepsicoterapia (art psychoterapy), em que o fazer arte ocorre

    dentro da abordagem psicoteraputica.

    Algumas noes equivocadas atribudas s terapias expressivas, como as de que

    as tcnicas expressivas tm apenas como finalidade ocupar os pacientes, gerar lucros ou

    distrair, so possivelmente reflexos da sua construo histrica.

    Nise da Silveira rejeitou veementemente a denominao Terapia Ocupacional

    para definir o fazer afetivo dos esquizofrnicos com materiais expressivos, adotando

    publicamente o nome Emoo de Lidar, inspirada por um cliente da Casa das Palmeiras

    (Chang, 2001, p.24).

    Uma reviso bibliogrfica escrutinando o tema das terapias complementares que

    utilizam materiais e tcnicas expressivas diversas tangentes rea do cuidado,

    permitindo manifestar emoes e contedos inconscientes, encontrou registros com

    designaes variadas: terapias expressivas (McNiff, 2005), arteterapia (Pratt & Wood,

    1998), arte-psicoterapia (Dreifuss-Kattan, 1990) e arteterapias criativas (Hartley &

    Payne, 2008). Malchiodi (1999, 2005) usa o termo genrico terapias expressivas, nele

    incluindo diferentes especialidades - arteterapia, musicoterapia, dramaterapia, terapia

    pelo movimento, entre outros.

    Jung (1985a) diz que, quando se fala da relao entre a psicologia e a arte, pode-

    se apenas tratar de aspectos que a ser submetidos pesquisa psicolgica sem violar a

    natureza desta, j que para ele a investigao do que arte deveria ser objeto de

    consideraes esttico-artsticas e no de apreo psicolgico.

    A proposta da Arteterapia, ncleo central que permanece como esteio na TE,

    jamais considera uma imagem isolada, mas sim sries de imagens realizadas dentro ou

    fora do setting teraputico, evocadas ou no por induo. Mais importante que a

    imagem como obra o acompanhamento do desenvolvimento psquico e clnico da

    pessoa por meio de sua trajetria expressiva. Com muito mais facilidade do que

    verbalmente, contedos inconscientes podem ser extrovertidos e materializados por

    meio de imagens (Vasconcellos & Giglio 2007), prestando-se assim a serem

    alegoricamente manipulados.

  • 32

    2.4 Consideraes estticas e a adoo do nome - Terapia Expressiva

    Arte, termo polissmico que pertence ao universo da Esttica, utilizado como

    parte da palavra Arteterapia, pode evocar concepes inadequadas e provocar conflitos

    interdisciplinares.

    Tentando dirimir tais questes, esta dissertao prope a denominao Terapia

    Expressiva em substituio a Arteterapia, entre outros motivos pela polissemia trazida

    pelo prefixo arte, que pode criar expectativas equivocadas sobre valores estticos da

    produo dos pacientes, evocando preconceitos como o de imaginar que preciso ser

    artista para ser terapeuta ou usurio do tratamento.

    A partir da fundao do Programa foi adotado o termo Terapia Expressiva,

    no singular, para nomear um grupo de procedimentos diagnsticos e

    teraputicos que utiliza uma variedade de tcnicas e materiais para a

    expresso de contedos inconscientes atravs de imagens, cujo simbolismo

    considerado sob as referncias tericas da Psicologia Analtica, proposta por

    C.G.Jung em suas Obras Completas. A inteno teraputica preenchida pela

    traduo dos contedos psquicos em imagens, que so extrovertidas pelas

    tcnicas expressivas: da psique ao suporte expresso; do suporte psique

    terapia (Vianna et al. 2012, p.102).

    No contexto da TE o termo arte torna-se inclusive redundante quando conjugado

    terapia, que j , por si, ars curandi3.

    Aqui no h a proposta de alar voos pelo universo esttico, mas apenas a de

    justificar a adoo do termo TE para a ferramenta-objeto desta dissertao.

    Muitas vezes, uma imagem sem originalidade, vigor de traos ou cores, que

    provavelmente no seria considerada uma obra de arte do ponto de vista esttico quer

    sob o olhar da crtica ou de pblicos heterogneos, pode ser valiosa no

    acompanhamento contextual de um caso.

    Kant, em sua Terceira Crtica (1995), marco da esttica moderna, ao considerar

    o ajuizamento do objeto esttico, ressalta que a obra de arte prescinde de qualquer

    interesse prtico.

    3 O Juramento de Hipcrates, lido no ritual de doutoramento em Medicina, vem sofrendo inmeras

    mudanas. Um texto simplificado, mais recentemente adotado, situa a Medicina como a Arte de Curar:

    Prometo que, ao exercer a arte de curar mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da

    caridade e da cincia... Rezende, J. Linguagem Mdica, 3a. ed., Goinia, AB Editora e Distribuidora de

    Livros Ltda, 2004.

  • 33

    Se Arteterapia designar prticas com finalidades teraputicas por meio da arte,

    estar-se- frente a uma concepo incongruente concepo esttica kantiana, para a

    qual o objeto esttico no poderia servir a propsito algum que no o comprazimento,

    a satisfao dos sentidos (Kant, 1995, ).

    Para o autor, aquilo que serve para alguma coisa corresponde categoria

    geradora de satisfao e pertence ao conceito de bom: [...] bom para (til) algo que

    apraz somente como meio[...] onde est contido o conceito de fim, um interesse

    qualquer; e no categoria do belo, pertinente ao objeto de arte, uma vez que nenhum

    conceito de bom pode determinar o juzo de gosto, porque ele um juzo esttico e no

    um juzo de conhecimento ( 11).

    No livro A origem da obra de arte, Heidegger diz existirem trs categorias de

    coisas no mundo: as meras coisas, os apetrechos e as obras de arte; e considerando que a

    obra de arte possui materialidade, sendo portanto coisa, pergunta-se: mas o que torna

    uma coisa obra de arte? O que que est em obra na obra? (Heidegger, 2007, p. 27).

    Para tentar diferenciar a obra de arte das outras coisas, (Heidegger, 2007) pensa

    inicialmente sobre o que a obra de arte, em sua origem, no . No uma mera coisa

    que repousa sobre si mesma como uma pedra, que no tem utilidade pr-estabelecida.

    Tambm no apetrecho, cuja feitura pelo homem pressupe alguma necessidade

    humana e que tem por sua razo de ser a utilidade, ocupando posio intermediria:

    meio coisa pela utilidade e meio obra de arte por ter sido obra humana, embora sem a

    autossuficincia dela. A obra de arte repousa em si mesma, sem utilidade e foi feita pelo

    homem sem propsitos utilitrios.

    Heidegger diz que, para que se pense a obra de arte, necessrio pensar o artista,

    em circularidade do pensamento:

    A pergunta pela origem da obra de arte indaga a sua provenincia essencial.

    Segundo a compreenso normal, a obra surge a partir e atravs da atividade

    do artista. Mas por meio e a partir de que que o artista o que ? Atravs da

    obra; pois pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra que primeiro

    faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista a origem da obra. A

    obra a origem do artista (Heidegger, 2007, p.11).

  • 34

    Portanto, se a TE define-se como ferramenta com finalidades teraputicas, ela

    no deveria estar associada aos conceitos e categorias da arte, e aquele que conduz um

    processo arteteraputico, assim como o paciente que fez a obra, deveriam ser artistas

    tambm.

    Embora o objetivo da criao das obras na TE seja primariamente teraputico e

    no esttico, se dessa produo plstica surgir uma obra de arte, esta poder ser

    reconhecida, tal como se deu no Hospital Psiquitrico Pedro II, onde foi criado o Museu

    de Imagens do Inconsciente, albergando o material esttico produzido por seus

    pacientes.

    O principal mrito disto foi poltico, uma vez que os pacientes psiquitricos

    puderam ser alados da categoria de loucos categoria de artistas, revertendo

    preconceitos hierrquicos seculares.

    A adoo do termo Terapia Expressiva foi assumida publicamente em

    substituio nominao corrente arteterapia em novembro de 2010, quando da

    implantao do TECI-HUAP no Simpsio Terapia Expressiva como veculo do

    Cuidado Integral no Hospital Universitrio Antnio Pedro. Foi acordado que

    arteterapia no designa, com propriedade, o trabalho por meio de materiais expressivos

    com fins teraputicos, seja no meio artstico, psicolgico ou teraputico. Por questes

    prticas, neste projeto, as referncias anteriores mudana de nome para Terapia

    Expressiva da ferramenta ainda sero consideradas como arteterapia.

    Uma concepo potica do cuidado parece concertar com o conceito da

    gratuidade da arte da cura em sua finalidades sem fins, conforme o conceito esttico

    kantiano: Entendemos que o cuidado no campo da sade sua prpria razo de ser. o

    meio e o fim das aes desenvolvidas pelos profissionais que atuam nesse campo(

    Silva Jnior et al., 2006, p. 93).

  • 35

    3 JUSTIFICATIVAS

    3. 1 A ferida na Medicina Cientfica

    Refletir sobre a sade pede conformidade abordagem crtica da cincia,

    estratgia que permite observar os limites e potenciais da prtica clnica em direo

    integralidade de suas aes. A medicina ocidental contempornea, associada a um

    imaginrio que a considerava cientfica por alguns autores e, de certa, forma pela

    sociedade em geral, guarda em suas origens vrios registros de ciso.

    Desde a segmentao do cosmos em um mundo celeste e sublunar proposta por

    Aristteles, passa-se ao distanciamento de Deus sob a viso teocntrica da Igreja da Alta

    Idade Mdia at o estabelecimento do Iluminismo na cincia, como fonte ltima da

    verdade (Camargo, 1993). O movimento alcunhado como positivista e o divrcio da

    filosofia e da cincia em ascenso, forjaram uma racionalidade gestada na concretude

    do conhecimento cientfico. A mecnica clssica, equiparando a trajetria dos planetas

    ao funcionamento de um grande relgio, dividiu o tempo em partes estanques e

    delimitou um prazo quantitativo prpria vida. Esse foi o legado que, na medicina

    contempornea, plasmou seu carter generalizante e analtico (Camargo, 1992).

    De acordo com Koifman (2001), o modelo biomdico contempla o corpo como

    uma mquina de grande complexidade, cujo funcionamento deve ser regido por leis

    perfeitas. Todavia, esse sistema exala contradies, uma vez que defeitos iminentes

    devem ser permanentemente inspecionados, previstos e corrigidos por tcnicos

    especialistas cuja curiosidade diagnstica e a exuberncia tecnolgica interceptaram as

    mquinas entre as pessoas de forma implacvel.

    O mdico que prioriza o desempenho tcnico em sua formao e orienta-se pelas

    finalidades diagnsticas, conduzindo os colquios com os pacientes pela via estreita da

    anamnese dirigida, extingue a disponibilidade para acolher a expresso livre das queixas

    de seus pacientes, frustrando o estabelecimento de uma relao de confiana: a

    formao mdica que torna o profissional cada vez mais distante do respeito ao

    desejo do paciente, o dono do corpo que est sendo tratado, muitas vezes o leva a

    cometer erros por se considerar dono do saber e no escutar a opinio do dono do

    corpo (Koifman, 2001, p. 53).

  • 36

    Originada na viso anatomoclnica, uma medicina do corpo, das leses e das

    doenas dissecou em partes os organismos que, paradoxalmente, reorganizaram-se em

    sistemas, virtualidade de comunicaes telegrficas que arremedam a totalidade

    perdida. Da mesma forma, o corpo terico da medicina gerou especialidades e

    disciplinas, que, quanto mais especializadas, menos conseguem dialogar.

    A hiperespecializao, para Morin (2010, p. 13), dilui o que essencial e separa

    aquilo que global, com a crescente fragmentao dos saberes entre disciplinas:

    tornam-se invisveis os conjuntos complexos; as interaes e retroaes entre partes e

    todo; as entidades multidimensionais e os problemas essenciais.

    Outra ciso detectada por Koifman (2001, p. 50) na formao mdica a de

    dois processos quase independentes: uma extensa formao clnica, centrada nas

    cincias biomdicas que refora a prtica individualista da medicina e uma

    abordagem social.

    Morin (2010) sugere que os desenvolvimentos disciplinares das cincias,

    trouxeram, pela superespecializao, o confinamento e o despedaamento do saber.

    Como resultado, a cultura genrica das humanidades, que deveria integrar

    conhecimentos e englobar a filosofia, o ensaio e a cultura cientfica, sofreu a

    fragmentao das conquistas sobre a vida em reas estanques. Essas partes tornaram-se

    incapazes de pensarem sobre si mesmas e sobre os problemas sociais e humanos:

    A reforma do pensamento que permitiria o pleno emprego da inteligncia

    para responder a esses desafios e permitiria a ligao de culturas dissociadas.

    Trata-se de uma reforma no programtica, mas paradigmtica, concernente a

    nossa aptido para organizar o conhecimento (Morin, 2010, p. 20).

    Para Luz (1988), a biomedicina valoriza principalmente o eixo explicativo

    ligado s cincias experimentais na busca da causa das doenas, mesmo que o

    diagnstico obtido no oferea nenhum conforto aos pacientes, caracterizando o

    divrcio entre a Cincia das Doenas e a Arte de Curar.

    Da mesma forma, Camargo (1993) fala de como o homem se apega s velhas

    crenas da cincia, mesmo que estas no atendam mais s novas necessidades j que a

    prtica corrente da medicina, dita cientfica, no supre grande parte das demandas de

  • 37

    seus usurios. Escorada por critrios falhos, essa doutrina mdica se ressente de

    parmetros tico-normativos que guiem os mdicos em sua articulao terico-

    conceitual, desde a noo de doena at a lgica teraputica.

    Nogueira (2009) discute a trajetria epistemolgica do ensino mdico atual,

    fruto do estilo de pensamento norteador da medicina ocidental, que instituindo a

    anatomia patolgica e, objetivando a doena ao localiz-la no corpo, excluiu a

    subjetividade do adoecer. Em contraparte, cita diversos autores que defendem a

    necessidade dos referenciais das cincias humanas e sociais para uma compreenso

    ampliada do processo sade-doena, expandindo a ideologia dos referenciais para a

    medicina contempornea. Diz, tambm, que as transformaes da abordagem conceitual

    do adoecimento acompanharam o desenvolvimentos das medicinas alternativas nas

    ltimas dcadas (Nogueira, 2009, p. 265) e que a ampliao da responsabilidade pelo

    atendimento aos pacientes por uma rede multiprofissional de cuidado tende a incidir

    sobre a hegemonia mdica. Para que isso realmente se efetive fundamental que se

    cumpram as mudanas propostas para a formao mdica. Entretanto, a grande maioria

    dos cursos de Medicina ainda separa os ciclos bsico e profissional, segundo uma

    formao com base cientfica, conforme as caractersticas individualizantes de seu

    legado biolgico e mecnico, atendendo aos interesses do complexo mdico-industrial e

    em detrimento do cuidado (Nogueira, 2009).

    Para Luz (2004), a ciso do modelo biomdico estende-se a todos os aspectos do

    que se chama sade, cuja demanda por smbolos decorrente do desencantamento

    trazido pelo capitalismo. E tambm na rea da sade que as prticas promotoras da

    reinsero do contato fsico entre as pessoas simulam as relaes de empatia entre os

    sujeitos, solapadas da sociedade pelos valores individualistas. Mesmo sob a falta de

    integralidade no cuidado aos pacientes e em tudo que diz respeito aos profissionais da

    rea - nas tnues relaes interdisciplinares, no isolamento do hospital de uma

    sociedade ressentida pela desproteo gerada na falta de cuidado consigo mesma e

    desenraizada de seus rituais e tradies - acontece esse deslocamento funcional.

    A sade teria substitudo as atividades de congraamento e festa que no

    existem mais no mundo, e que podem ser repostas por atividades grupais ou coletivas de

    sade... legitimando situaes de cuidado que eram antes assumidas por instituies

    ou instncias especficas, como a famlia, ou escola... (Luz, 2004, p.19).

  • 38

    Se os envolvidos na rea da sade assumissem sua parte de responsabilidade

    pela ciso do cuidado, poderia emergir a oportunidade da cura no prprio seio desta

    rea lesada - o centro do cuidado.

    Para Ayres (2004, p.27), a conscincia do adoecer e dos saberes e instrumentos

    tecnicamente dirigidos a seu controle so histrico e socialmente configurados, e todo

    o investimento que se disponha a transformar de forma efetiva os obstculos

    felicidade humana devem apreciar e lavrar as razes dos significados do adoecimento.

    Camargo Jr (2003, pp.62-63) fala dos efeitos mgicos que os rituais

    representados pela consulta mdica olhares, gestos, perguntas, roupa branca, e,

    principalmente, pela presena do prprio mdico, representam em sua eficcia: prticas

    de cura falam de outras formas ao homem de todo o tempo e lugar; para usar a

    expresso de Lvi-Strauss, todas tm eficcia simblica. A partir de crenas,

    representaes e valores compartilhados por pacientes e terapeutas e pela cultura da

    qual fazem parte.

    A AIV, como prtica ritual, esmera-se em prover algo da demanda por smbolos

    pessoais, valorizando o indivduo na confluncia com suas origens, nas prticas

    mgicas, no encontro marcado com o ldico e o criativo. A transformao do ambiente

    hospitalar em um tmenos alqumico para que nele se d a Obra4, pode converter o

    NAO, lugar inusitado para a festa e congregao - porque originalmente destinado ao

    tratamento de pessoas com doenas de mau prognstico - em um palco de

    possibilidade da cesura que porta o novo. A fora que a opera no uma arma contra a

    doena, mas a que pede licena para abrir o espao representativo da sade.

    Alquimia um trabalho a ser feito na prpria personalidade [...] a virtude

    (que significa eficincia energtica), tem agora poder interno capaz de

    influenciar coisas. Ciente dessa virtude, o homem seria capaz de extrair a

    essncia oculta de todas as substncias, inclusive daquelas que lhe do a

    prpria consistncia em todos os nveis (Vianna, 1998, p. 26).

    4 Tmenos alqumico: segundo os antigos gregos, um recinto sagrado. Para a Psicologia Analtica, lugar

    onde a Obra Alqumica, a transformao da matria em esprito poderia acontecer mediante rituais

    hermticos, simbolizando o processo de individuao.

  • 39

    3.2 Terapia Expressiva - proposta de cuidado integral

    No campo da sade, o reconhecimento do valor de vrios sistemas teraputicos e

    de cuidado, cujas prticas eram voltadas para a fora curativa da natureza, foi precedido

    pelos movimentos de contracultura: Diante disso, sob a denominao de terapias

    tradicionais, alternativas, holsticas, integrais, naturais, doces, energticas ou

    complementares, diversas formas de cuidado conquistaram espao no mundo ocidental

    (Nascimento et al. 2012, p. 14). A discusso desse tema avultou-se a nvel mundial. No

    Brasil, por ocasio da VIII Conferncia Nacional de Sade, em 1986, foi formalizada a

    sugesto de que as prticas alternativas de assistncia sade fossem inseridas em seus

    servios, o que foi reforado e