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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE SADE DA COMUNIDADE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA
A TERAPIA EXPRESSIVA
COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL
NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA DO
HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO
Denise Vianna
Orientadora: Maria Ins Nogueira
Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro
Niteri-RJ Dezembro 2013
PROJETO DE DISSERTAO DE MESTRADO
DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE
COLETIVA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
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DENISE VIANNA
A TERAPIA EXPRESSIVA
COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL
NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA DO
HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO
Orientadora: Maria Ins Nogueira
Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro
Niteri-RJ Dezembro 2013
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Sade Coletiva da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva
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FICHA CATALOGRFICA
Vianna, Denise.
A Terapia Expressiva como estratgia de Cuidado Integral no Ncleo de Ateno
Oncolgica do Hospital Universitrio Antnio Pedro / Denise Vianna.- 2013.
1 v. (195 f)
Orientadora: Maria Ins Nogueira
Co-orientadora: Lenita Barreto Lorena Claro
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Sade da
Comunidade, Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva, 2013.
Bibliografia: f. 162-173
Ttulo em ingls: Expressive Therapy as a strategy of integral care in the Antonio
Pedro University Hospital.
Palavras-chave: Terapia expressiva / arteterapia. Cuidado integral / Humanizao.
Prticas integrativas e complementares. Quimioterapia.
Terapia expressiva / arteterapia. Cuidado integral. Humanizao.
Quimioterapia.
[Digite uma citao do documento ou o resumo de um ponto interessante. Voc
pode posicionar a caixa de texto em qualquer lugar do documento. Use a guia
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DENISE VIANNA
A TERAPIA EXPRESSIVA COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL
NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA DO HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO
Aprovada em 16 de dezembro de 2013.
BANCA EXAMINADORA
Prof Maria Ins Nogueira - UFF Orientadora
Prof Lenita Lorena Barreto Claro - UFF
Co-orientadora
Prof Madel Therezinha Luz - UFRGS
Prof. Alusio Gomes da Silva Jnior UFF
Prof Marilene Cabral do Nascimento suplente UFF
Niteri-RJ 2013
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Sade Coletiva da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva
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DEDICATRIA
minha av Emlia, que me ensinou a dar boas risadas.
Ao meu pai e me, ouro de mina.
Aos meus irmos e sobrinhos.
Aos meus descendentes, sementes que me mostraram a beleza da vida:
Carina, Santiago, talo e Mal
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AGRADECIMENTOS
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Violeta Parra
A todas as pessoas que cruzaram meu caminho, e que me tornaram quem eu sou.
A toda equipe TECI-HUAP e alunos dos Cursos Cuidar de Si com Arte.
E, no processo dessa escritura, minha gratido especial a quatro mulheres:
Lilian - por sua dedicao incondicional, irm que a vida me deu
Anna Alice - por sua presena amiga em todos os momentos
Lenita - que abriu as portas para que tudo acontecesse, mestra do cuidado e da ateno
Maria Ins - que possibilitou que esse trabalho se realizasse, com sabedoria e competncia
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queles que me ofereceram sua expresso, sua palavra e seu olhar pessoas em tratamento e profissionais do
Ncleo de Ateno Oncolgica do Hospital Universitrio Antnio Pedro.
Ontem, dois anos aps o incio de nosso trabalho, estudando os dados da pesquisa, descobri que quase 50 % dos pacientes que citaremos esto mortos. Fiquei muito chocada com isso. Como lidar com a finitude? Como lidar com as perdas? Faz parte da vida, a morte. Onde estar aquele paciente que ia guardar uma estrela, e um chaveiro junto com a sade na caixa mgica? Vejo a narrativa de seu Jos, no meu primeiro dia de campo. Disse estar muito bem, sem problema nenhum: Gostei. Me trato h bastante tempo. A doena apareceu mais uma vez - no tenho medo nem guardo rancor, acredito que vou vencer. A atividade abre a mente, qualquer coisa que se faa aqui ajuda a levantar o astral. Vou guardar na caixa: sade, estrela e meu chaveiro. Ele colou na caixa as palavras Viver e Mudana para melhor, e escreveu a mensagem: Tu s uma rocha e a rocha nunca desmancha.
Segundo sua narrativa, sentia-se normal e preocupado antes da atividade de Terapia Expressiva, mas depois ele disse estar com coragem. Portanto, seu Jos foi um dos pacientes que contribuiu para que nossa pesquisa mostrasse que os pacientes obtiveram conforto com nossas atividades. A releio o que ele me disse:
... qualquer coisa que se faa aqui ajuda a levantar o astral.... De repente tudo parece vazio... Crise existencial normal e bom t-la. Hoje uma paciente da sala de espera disse: Morte e vida so ddivas do criador para mim - a vida e a doenas so feitas para aperfeioar o mundo e as pessoas isso aconteceu comigo. Deixei de ser religiosa, no preciso mais de religio. Gostaria de trabalhar com vocs nesse projeto, conversando com as pessoas. Desculpe estar chorando, emoo de estar aqui fazendo esse trabalho e falando com voc. Ela ficou ainda mais comovida ao saber que duas das voluntrias que fizeram a atividade com ela tinham tido cncer, e estavam curadas. Ela sorriu, como quem descobre: Essas duas, realmente, sabem o que eu estou passando. Foi visvel um sopro de esperana passar por ela: se elas escaparam... Depois ela disse que queria fazer caridade: Mas caridade no dar nada material que sobra do oramento. Eu era empresria, j fiz muito isso - piegas. Caridade dar algo seu de dentro, no de fora. E isso, como vocs, eu tenho para dar! . Experincias contraditrias... A esperana mais antiga se encarna subitamente no instante presente, momento messinico, experincia da aura da Obra.
Estrela cadente
estrela que j morreu
a que brilha no presente...
Denise Vianna, maio de 2013
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Infuso de Vida
O que voc poderia fazer dentro de um hospital
estando muito doente
com um brao preso e espetado por uma agulha
por onde entrassem medicamentos que lhe deixassem enjoado
ou um tanto zonzo?
Bem, ao menos voc poderia ouvir estrias, conversar, pintar,
falar do seu passado, traar planos para o futuro,
chorar, rir ou cantar.
Onde mora a parte divina,
a beleza,
o ncleo saudvel que mantm, acesa,
mesmo a chama mais tnue da vida?
A chama da vida,
que a mesma para todos,
a que brilha nos lugares mais obscuros...
Denise Vianna outubro 2011
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RESUMO
A Terapia Expressiva como estratgia de Cuidado Integral no Ncleo de Ateno
Oncolgica do Hospital Universitrio Antnio Pedro
Esta dissertao estimou, pelo mtodo da Pesquisa-ao, os efeitos da Infuso de Vida (AIV)
sesses coletivas de Terapia Expressiva durante a quimioterapia sobre os sentimentos e
sensao de conforto de portadores de cncer e doenas degenerativas diversas no Ncleo de
Ateno Oncolgica do HUAP. A AIV o trabalho de campo da ao principal do Programa
de extenso Terapia Expressiva como veculo de Cuidado Integral no Hospital Universitrio
Antnio Pedro, o Curso de Extenso Cuidar de si com Arte, voltado promoo de melhor
qualidade de vida e do cuidado prestado por profissionais de sade. A ferramenta Terapia
Expressiva, oferecida aos pacientes, familiares e seus cuidadores, veiculada pelo material
expressivo, sob o referencial da Psicologia Analtica. Foram avaliadas, sob triangulao de
mtodos pela pesquisa quali-quantitativa, 413 atendimentos a 282 pacientes que frequentaram
as 48 sesses entre 5 de abril e 3 de novembro de 2011. Os dados das entrevistas, analisados
estatisticamente, foram contextualizados aos temas e categorias surgidas na anlise de
contedo das narrativas s entrevistas abertas e registro dos depoimentos e dirios de campo -
dos membros da equipe multiprofissional do programa, alunos do curso e bolsistas de
graduaes diversas - pelo referencial interpretativo das cincias sociais. A partir da
descrio dos participantes, concomitantes alvos da pesquisa; da opinio dos pacientes sobre
as atividades desenvolvidas e de suas sugestes e crticas sobre a AIV, puderam ser
identificadas questes e solues ligadas humanizao e integralidade do setor do hospital
onde acontece a ao como atividade modelar para o hospital como um todo e da sade em
geral, revelando que o modelo proposto poder ser aplicado em outros servios e hospitais
como uma nova forma de cuidado complementar.
PALAVRAS- CHAVE: Terapia expressiva / arteterapia. Cuidado integral / Humanizao. Prticas
integrativas e complementares. Quimioterapia.
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ABSTRACT
The Expressive Therapy as a strategy for the Comprehensive Care at the Center
for Oncology Care of the University Hospital Antonio Pedro
This dissertation evaluates, through the Action Research method, the effects of Life
Infusion (AIV) collective sessions of Expressive Therapy during chemotherapy sessions
on the feelings and sense of comfort for those with cancer and several degenerative diseases at
the Center for Oncology Care (NAO) of the University Hospital Antonio Pedro . The AIV is
the field work of the main action of the extension program Expressive Therapy as a vehicle
for Comprehensive Care at the University Hospital Antonio Pedro, extension course Taking
Care of Yourself With Art, aimed to promoting a better life quality and care provided by the
health professionals. The Expressive Therapy tool, offered to patients, families and
caregivers, is conveyed by expressive material, under the Analytical Psychology framework.
We evaluated, under triangulation methods by the qualitative and quantitative researches, 413
attendances to 282 patients who attended the 48 sessions between April 5 and November 3,
2011. Data from the interviews were statistically analyzed and contextualized into the themes
and categories that emerged during the analysis of the narratives of the open interviews and
testimonies recording, and from the field diaries notes made by the members of the program
multidisciplinary team, course students and several undergraduate students under the
interpretive framework of Social Sciences. The AIV actions were capable of renew patients
perspectives and coping skills, the expression of their emotions and other psychic contents,
providing benefits at the physical and spiritual levels, and opportunities to reflect about: their
lives trajectory, needs, skills, the present and future prospects. The AIV also contributed to
promote more friendly relations between patients and hospital staff, creating a more
welcoming atmosphere in the NAO. From the participants descriptions, ongoing research
targets, the patients' opinion about the activities and their suggestions and criticisms on the
AIV, we could identified questions and solutions related to the humanization and
completeness of the hospital's sector where the actions take place, providing a model for the
whole hospital and health in general, showing that the proposed model can be applied to other
services and hospitals as a new form of complementary care.
KEYWORDS: Expressive Therapy / Art Therapy. Comprehensive Care /
Humanization. Integrative and Complementary Practices. Chemotherapy
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Sumrio
1 INTRODUO ................................................................................................................................... 11
2 REFERENCIAIS TERICOS ................................................................................................................. 22
2.1 Traos da expresso humana .......................................................................................................... 23
2.2 Psicologia Analtica de Jung............................................................................................................25
2.3 Trajetria da Terapia Ocupacional Terapia Expressiva ............................................................... 29
2.4 Consideraes estticas e a adoo do nome - Terapia Expressiva .............................................. 32
3 JUSTIFICATIVA S ........................................................................................................................... 35
3.1 A ferida na Medicina Cientfica ............................................................................................... .......35
3.2 Terapia Expressiva - proposta de cuidado integral ........................................................................ 39
3.3 Humanizao: crculo de potncia do cuidado .............................................................................. 45
3.3.1 O Mestre Ignorante ...................................................................................................................... 46
3.3.2 O Curador Ferido O desintegrado()que integra ........................................................................ 49
3.3.3 Cuidado, esttica e educao - tica sob toro .......................................................................... 54
3.4 Um doente chamado Hospital precisa de cuidado ........................................................................ 56
3.5 Por que trabalhar com essas pessoas?........................................................................................... 58
3.6 Experincias com terapias expressivas: uma reviso de literatura ................................................ 60
4 OBJETIVOS ...................................................................................................................................... 62
4.1 Objetivo Geral ................................................................................................................................ 62
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4.2 Objetivos Especficos ...................................................................................................................... 62
5 METODOLOGIA ............................................................................................................................... 63
5.1 Pesquisa-ao e triangulao de mtodos ..................................................................................... 63
5.2 Populao da pesquisa ................................................................................................................... 66
5.3 Estabelecimento de um modelo de trabalho e de investigao liberdade e autonomia ........... 70
5.4 Uma equipe interdisciplinar e a coleta dos dados ......................................................................... 72
5.5 Atividades de campo orientao, acompanhamento, superviso .............................................. 74
5.6 Instrumentos e anlise dos dados .................................................................................................. 76
6 RESULTADOS E DISCUSSO ...........................................................................................................80
6.1 Roteiro das atividades .................................................................................................................... 80
6.2 Quantificando os dados .................................................................................................................. 85
6.2.1 Identificando as pessoas...............................................................................................................85
6.2.2 Anlise quantitativa dos dados da Ficha de Avaliao dos pacientes .........................................87
6.3 A traduo aproximando nmeros e afetos e transdisciplinaridade ......................................... 99
6.3.1 Contexto dos dados da Ficha de Informaes ........................................................................... 104
6.3.2 Contexto dos dados da Ficha de Avaliao.................................................................................109
6.3.3 Anlise de contedo das narrativas dos pacientes em Infuso de Vida .................................... 117
6.4 O mundo das imagens como se faz Terapia Expressiva ........................................................... 133
7 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................... 154
8 REFERNCIAS ................................................................................................................................ 162
9 APNDICES ...................................................................................................................................174
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIV Ao Infuso de Vida
CNS Conselho Nacional de Sade
Curso CSA Curso Cuidar de Si com Arte
CFM Conselho Federal de Medicina
HUAP Hospital Universitrio Antnio Pedro
MAC Medicinas Alternativas Complementares
MT Medicinas Tradicionais
MTC Medicina Tradicional Chinesa
NAO Ncleo de Ateno Oncolgica do Hospital Universitrio
Antnio Pedro
OMS Organizao Mundial da Sade
PIC Prticas Integrativas e Complementares
PNPIC Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares
SUS Sistema nico de Sade
TECI-HUAP Programa de Extenso Terapia Expressiva como Veculo de
Cuidado Integral no Hospital Universitrio Antnio Pedro da Universidade Federal
Fluminense
TE Terapia Expressiva
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFF Universidade Federal Fluminense
WHO Organizao Mundial da Sade
WHOQOL 100 Instrumento de avaliao de qualidade de vida da Organizao
Mundial da Sade
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A TERAPIA EXPRESSIVA
COMO ESTRATGIA DE CUIDADO INTEGRAL
NO NCLEO DE ATENO ONCOLGICA
DO HOSPITAL UNIVERSITRIO ANTNIO PEDRO
Nenhum homem uma ilha, isolado em si mesmo; cada homem uma parte do continente, uma parte do todo ...
Se um torro de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontrio,
ou um solar de um teu amigo, ou o teu prprio...1
1 INTRODUO
Esse projeto pretende estimar a influncia da Atividade Infuso de Vida (AIV),
trabalho de campo supervisionado da ao principal do Programa de Extenso da
Universidade Federal Fluminense, Terapia Expressiva como Veculo de Cuidado
Integral do Hospital Universitrio Antnio Pedro - TECI-HUAP, o Curso Cuidar de Si
com Arte Curso CSA, sobre a sensao de conforto e bem-estar dos pacientes do
Ncleo de Ateno Oncolgica desta instituio o NAO, durante a recepo venosa de
medicamentos quimioterpicos.
As abordagens Infuso de Vida integram sesses de Terapia Expressiva,
ferramenta composta por tcnicas que utilizam material expressivo sob referenciais do
campo da psicologia, precedidas e finalizadas pela aproximao amistosa de cada
terapeuta a esses pacientes para entabular conversas. Tais interlocues, antecedendo as
atividades de Terapia Expressiva (TE), visam inform-los sobre o procedimento a ser
proposto na ao, criar uma intimidade facilitadora do processo e coletar os dados
iniciais para pesquisas. Arrematando as atividades, esse contato objetiva conhecer as
1 John Donne, expoente da poesia metafsica inglesa. Devotions upon Emergent Occasions (1623),
fragmento da meditao XVII: Nunc Lento Sonitu Dicunt, Morieris.
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possveis interferncias da ferramenta TE e da entrevista inicial sobre os sujeitos,
coroando o evento com uma circunstncia de cuidado sob a forma do interesse
manifesto e ateno da escuta.
Esse tipo de relao, eminentemente teraputica, dirigida procura de sentidos e
significados envolvidos na situao de sade e de vida (Ayres, 2004, p.23), subsume o
privilgio da dimenso dialgica do encontro, abertura a um autntico interesse em
ouvir o outro, momento em que o profissional pode ouvir e fazer-se ouvir, polos
indissociveis de qualquer legtimo dilogo.
Para que fazer mestrado? Quem seria meu leitor prioritrio? Em primeiro lugar, eu mesma - escrever para mim. Para compreender esse processo, preciso retirar-me, como quem d
um passo atrs para ver o quadro que est pintando. Em essncia, dever ser uma obra em triangulaes: de mtodos, de
filosofia, de princpios. Pensar sobre o que penso, pensar sobre o que escrevo,
escrever sobre o que penso. E, mais do que tudo, sentir. Minha trajetria pessoal caminho torto, o desejo de ser mdica e
cantora, as artes plsticas, a dvida entre as trajetrias profissionais e
pessoais, que nunca se dirimiu. A crise existencial, o medo de ficar solta na
vida: ser mdica foi uma iluso de proteo - o curso de medicina foi de
angstia, solido, falta de perspectiva. A residncia em Hematologia laboratrio e clnica. Depois a fuga da morte e do HUAP, a promessa: s volto para esse
hospital se eu vier diferente.
E fui morar na medicina diagnstica citologista, hemoterapeuta. Ento fui levada fora para o outro lado - enfermidade, que me
aproximou da Homeopatia, a medicina da experincia.
Curador-ferido, aprendi em mim, matria-corpo-esprito. Com a Arte de curar, o estudo paralelo da msica, astrologia,
geometria sagrada, psicologia transpessoal, danas circulares e outras artes,
plsticas ou performticas. Por algum motivo passei a chefiar o laboratrio do ento PAM-CPN,
que estava em estado lastimvel. Por meio da sensibilidade e da dedicao,
consegui dar um rumo quela nau abandonada, instintivamente, conversando
sobre os desejos e necessidades de cada um dos 90 funcionrios e dos
usurios. Aprendi fazendo a arte prtica da gesto. Mestre ignorante. De repente, um caminho adventcio a Arteterapia. Uma guinada
radical de paixo e o encontro com Jung e Nise da Silveira. Mais adiante, por
insatisfao com o que fazia, mudei-me para o Programa Interdisciplinar de
Geriatria e Gerontologia da UFF - homeopata, terapeuta e a professora dos
Cursos de Extenso em Arteterapia com enfoque no cuidado ao idoso ali e,
depois, na Associao de Professores Inativos da UFF. Fiz grandes amizades
com cerca de 70 alunos, ao formar quatro turmas entre 2002 e 2010. Foram
abertos de campo de voluntariado em mais de 20 instituies pblicas
escolas, hospitais, orfanatos, asilos: Grupo ConVivncia do ambulatrio para
idosos do PIGG da UFF, na enfermaria de Pediatria do Hospital dos
Servidores do Estado, no Projeto pela Vida do CPN-PMN, no Centro de
Referncia da Coordenao dos Direitos das Mulheres de Niteri.
Depois o retorno ao HUAP, justamente ao Departamento de Sade
da Comunidade, um dos valiosos protagonistas das mudanas curriculares na
Faculdade de Medicina na UFF no perodo em que estive ausente dessa
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instituio, Foi esse o lugar que acolheu os germes de um programa que
ainda eram meus sonhos de instituir tantas novidades. De volta ao comeo. Onde precisam de mim? No lugar que deixei
vago, onde no terminei minha funo: na Oncologia e Hematologia, mas,
conforme o prometido, para fazer uma coisa diferente no mais tratar da
morte e da doena, mas sim da vida. Entrando diferente em um Hospital
diferente: Departamento de Sade e Sociedade, encontro adiado com as
Cincias Sociais.
Em parte por minha trajetria anterior na Hematologia no NAO,
fui recebida de braos abertos, com total liberdade para colocar em prticas
ideias que se conformaram durante anos (Dirio de campo, supervisora e
autora do programa, 2011).
Segundo Luz (2011), nas ltimas dcadas observado o crescente adoecimento
e mortes secundrias devido ao alto nvel de estresse dos trabalhadores das
universidades da rea de sade e hospitais universitrios, derivados das ms condies
da qualidade de vida.
Vrios trabalhos cientficos analisam as taxas de adoecimento e suicdio dos
estudantes e profissionais de sade, que parecem estar expostos a maiores riscos que a
populao em geral. De acordo com Gomez (1990), o suicdio na Inglaterra a principal
causa de morte entre os mdicos acima de 40 anos e de jovens da raa branca entre 15
a19 anos em outros pases desenvolvidos.
No Brasil, a incidncia de suicdio nas causas de morte entre mdicos encontrada
em uma pesquisa em Porto Alegre-RS, em 1986, de 5 %; tendo como perfil o humor
depressivo, a desesperana, a inapetncia, baixa autoestima e sentimento de inutilidade,
perda e insucesso. (Gomez, 1990, p.5) Um estudo sobre o coeficiente de suicdios
entre estudantes de medicina em So Paulo mostra uma prevalncia quatro vezes maior
do que na populao em geral. (Millan,1990)
Uma pesquisa do Conselho Federal de Medicina, em parceria com a Fundao
Oswaldo Cruz, revela que 80% dos mdicos, insatisfeitos com sua profisso, acham-na
desgastante pelas condies de trabalho adversas, perda da autonomia, alta cobrana de
resultados, excessiva carga de trabalho e necessidade de mltiplos empregos pela baixa
remunerao (http://www.portalmedico.org.br): Nos EUA, pesquisas nos ltimos 10
anos mostraram que 30 a 40 % dos mdicos praticantes no escolheriam a profisso
mdica se tivessem que decidir novamente e uma porcentagem mais alta no encorajaria
seus filhos a seguir a carreira... (Conselho Federal de Medicina, 2007, p. 36).
http://www.portalmedico.org.br/
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Diversos estudos apontam, no universo mdico, altos ndices de alcoolismo, de
uso de drogas e distrbios mentais como a depresso, transtorno da personalidade e
esquizofrenia.
Embora tendo pleno acesso ateno especializada, h uma significativa
resistncia em buscar auxlio pelos estudantes e profissionais da rea mdica. Tal fato
atribudo negao e atitudes defensivas ao desconfortos fsicos e psicoemocionais, e
por vrios receios como o de sofrer o estigma da doena mental e do uso de drogas, e o
de sentir-se publicamente desqualificado para a profisso.
Millan (1990) preconiza o trabalho preventivo para evitar a possvel
estigmatizao trazida pela busca de ajuda por esses estudantes e o oferecimento de
condies para que eles enfrentem os conflitos inerentes formao mdica.
Os profissionais do cuidado, numa rotina que muitas vezes ocupa seus finais de
semana, suas noites e a maior parte do tempo de suas vidas, em geral no encontram
significado pessoal ou a to sonhada realizao profissional em seu trabalho.
O desgaste profissional do mdico tambm se reflete na sua vida pessoal
[...]falta de tempo, estressores acadmicos, sobrecarga de trabalho, fadiga e
privao de sono. A vulnerabilidade a crises pessoais o leva a sentimentos de
solido, depresso, ansiedade, insnia, problemas com lcool ou drogas
psicotrpicas, tabagismo(Conselho Federal de Medicina, 2007, p. 31).
A sndrome de burnout, definida nos anos 70 por Freudenberger (1974), costuma
manifestar-se predominantemente entre o quinto e dcimo quinto anos de atividade dos
profissionais das reas de sade. Como o fator gerador do desequilbrio no o volume,
mas sim a falta de qualidade de vida no trabalho, o retorno s mesmas atividades, aps o
afastamento temporrio, significa adoecer novamente. Por isso o distrbio
subnotificado e de difcil diagnstico, j que os trabalhadores acometidos do mal temem
perder seu emprego, o que agrava a situao mrbida.
A sndrome, no Cdigo Internacional de Doenas sob o CID - 10.273.0, recebe a
qualificao de sensao de estar acabado e de despersonalizao, uma
dessensibilizao dirigida s pessoa com quem se trabalha e o estresse um esgotamento
diverso que, de modo geral, interfere na vida pessoal do indivduo, alm de seu trabalho
(Abreu, 2002, p.25).
Sob tais circunstncias, provavelmente, tais cuidadores tm a tendncia a cuidar
mecanicamente do outro, da mesma forma que cuidam de si.
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Considerando essa realidade, o objetivo central do programa despertar a
ateno dos diversos profissionais da sade envolvidos no cuidado de outrem para o
cuidado de si, apresentando uma estratgia de educao permanente em prol do resgate
dos ideais dos profissionais de sade, ampliando seus conhecimentos em prticas
voltadas humanizao. Concebe-se que isso possa contribuir para a promoo da
integralidade do hospital, resgatando a noo de equipe pela religao dos servios e
categorias funcionais, fundamentando ampla rede interdisciplinar de humanizao
envolvendo sade, cultura, arte e educao e aprimorando o cuidado oferecido aos
usurios do hospital.
A humanizao do cuidado
deve comear pelo cuidador
CUIDAR DE SI
para melhor cuidar
do outro
A convivncia multiprofissional e interdisciplinar em uma mesma sala de aula
parte da estratgia para despertar habilidades em lidar com problemas de diferentes
naturezas, pelo exerccio do confronto e discusso dos limites do poder de manipular,
medicar, operar, internar ou impor procedimentos nos ato de cuidado.
No que se refere gesto em sade, preciso democratizar o processo de
trabalho na organizao dos servios, horizontalizando saberes, promovendo
as atividades multiprofissionais e interdisciplinares, incorporando a
renovao das prticas de sade, numa perspectiva de integralidade em que a
valorizao da ateno e do cuidado desponta como dimenso bsica para a
poltica de sade, que se desenvolve ativamente no cotidiano dos servios.
(Pinheiro & Luz, 2003, p. 30).
No entanto, na prtica, os conceitos e ferramentas metodolgicas adotadas do
campo das Cincias Sociais pela rea de sade nem sempre honram a integrao
necessria interdisciplinaridade (Luz, 2011).
-
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O interesse inicial para pesquisa dentro do programa foi o de avaliar possveis
mudanas evocadas pelo curso na qualidade de vida destes alunos-terapeutas,
especialmente nas situaes do trabalho de campo. Ali, no mais protagonistas das
atividades caractersticas de sua qualificao profissional original, eles seriam apenas
coadjuvantes: observadores, auxiliares na manipulao do material expressivo pelos
pacientes e coletores de informaes para avaliaes posteriores. Para apreciar possveis
modificaes nesse grupo, foram aplicados instrumentos de pesquisa voltados aferio
da qualidade de vida a todos os alunos como o WHOQOL 100 (instrumento da
Organizao Mundial de Sade - OMS) e o Questionrio validado do Senso de
Coerncia de Antonovsky (Dantas, 2007) no primeiro e no ltimo dia de aula.
Entretanto, as questes sociais, frutos da construo histrica e por isso dotadas
de provisoriedade e dinamismo, sempre exibem resultados influenciados pelos fatos do
devir (Minayo, 2010). Frente necessidade de expandir a amostra da pesquisa da
proposta anterior com alunos do ano seguinte do Curso CSA e ao estmulo da fartura e
riqueza de significados dos resultados exibidos em campo pelos pacientes que
experimentaram as atividades com TE, o foco do objetivo principal da dissertao foi
apurado para conhecer os efeitos do atendimento complementar quimioterapia sobre
os pacientes do NAO nos sete meses da implantao da AIV.
Alm disso, outra necessidade mostrou-se prioritria investigar e fundamentar
a TE como uma ferramenta tanto exequvel quanto capaz de interferir favoravelmente
na humanizao e cuidado integral em servios de sade, particularmente em um
hospital universitrio.
Dois grandes desafios evidenciaram-se: selecionar um objetivo para uma
dissertao de mestrado em meio amplitude e diversidade das atividades que
compem o programa que lhe deu origem, e formatar como projeto de pesquisa um
material que adveio da observao de uma ao que, em carter preliminar, visava
oferecer uma ferramenta de educao permanente aos profissionais de sade e prestar
servios com o escopo principal de beneficiar pessoas.
Ponderar sobre a demanda de humanizao e de integralidade no sistema de
sade conduz a uma das vrias acepes do princpio do cuidado integral - uma meta
que inclui conjuntos de sentidos e valores de algumas prticas e modos de organizar
servios e polticas desta rea de ateno e que articula medidas preventivas e
-
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assistenciais, indo ao encontro do respeito a inmeros direitos dos seus usurios
(Mattos, 2003).
Para Ayres (2004, p.27), a abordagem do cuidado, humanizao e integralidade,
aponta para um conjunto de princpios e estratgias que norteiam, ou devem nortear, a
relao entre um sujeito, o paciente, e o profissional de sade que lhe atende. Esse
cuidado humanizado, que no visto apenas com o sentido operativo do senso
comum, chamado pelo autor como Cuidado [...] ateno sade imediatamente
interessada no sentido existencial da experincia do adoecimento [...] e das prticas de
promoo, proteo ou recuperao da sade (Ayres, 2004, p. 22).
Camargo Jr (2003, p.31) considera a integralidade um ideal regulador sujeito ao
devir, e no um conceito: algo como o ideal de objetividade para a investigao
cientfica, impossvel de ser plenamente atingido, mas do qual constantemente
buscamos aproximarmo-nos [...] a um tempo inalcanvel e indispensvel.
Pensar a integralidade no como uma meta a ser alcanada no fim do caminho,
mas sim como sendo o prprio caminho (Xavier & Guimares, 2004), incita a indagar
como aprimorar, na prtica, a humanizao do cuidado - uma questo recorrente nos
estudos sobre capacitao e treinamento das equipes de sade envolvidas no tema.
Embora as propostas tericas desafiem a construo prtica de um modelo que
atenda realmente s demandas da populao (Silva Jr., Merhy e Carvalho, 2003), a no
consolidao da integralidade das aes de sade nos espaos onde ela deveria se
materializar, isto , nos servios de sade (Pinheiro e Luz, 2003, p.19), parece
denunciar um desencontro entre o diagnstico das necessidades e as medidas
teraputicas e preventivas propostas pelo SUS, mmesis da inefetividade de muitos
aspectos da biomedicina e das polticas institucionais de sade. Por isso mesmo, tais
instituies, reunindo uma multiplicidade de atores sociais, so campos privilegiados
para a observao e anlise dos elementos constitutivos do princpio da integralidade
nas prticas teraputicas prestadas aos indivduos e difundidas na coletividade.
Os eventos relativos sade, altamente imprevisveis e subjetivos,
principalmente no que se refere rea pblica, para Pinheiro e Luz (2003, p.8)
envolvem complexos relacionamentos entre dirigentes, equipes multidisciplinares do
cuidado e a populao que os demanda, estando todos imersos em vasto material
simblico que expresso cultural de um modo de perceber a sade e a doena.
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18
Perguntas surgem e abrem a discusso: exequvel oferecer este to decantado
cuidado integral? De que forma possvel aprimorar o cuidado e a humanizao na
prtica, considerando o complicado cenrio poltico e social em que se insere a sade?
Vale a pena reputar o curso do panorama da educao em sade na Universidade
Federal Fluminense nas ltimas dcadas.
Nos anos 60, o Hospital Municipal Antnio Pedro, embora cedido essa
universidade, conservou-se como o principal mantenedor da assistncia pblica em uma
grande rea de Niteri (Silva Junior, 2006).
Na dcada de 70, sob o contexto da crise da Medicina, a qualidade e abrangncia
dos servios oferecidos no faziam jus aos custos inflacionados dos servios de sade e
as caractersticas da formao mdica tradicional deixavam a desejar em inmeros
aspectos. Segundo Koifman (2001, p.57), o sistema de sade no atendia s
necessidades bsicas de assistncia mdica da populao e pouca nfase era dada ao
preparo dos professores de medicina, bem como aos mtodos de ensino-aprendizagem e
ao seu papel educacional.
No final desse decnio, explicitao formal do descontentamento com o ensino
da Faculdade de Medicina da UFF por seus professores e alunos, foi iniciado um longo
processo de discusso e avaliao do currculo mdico por um grupo de trabalho
formado por representantes dos muitos departamentos envolvidos e por representantes
estudantis do Diretrio Acadmico. Na redao do documento preliminar de
reformulao curricular, elaborado aps o primeiro ano dessas atividades, alguns dos
tpicos a serem discutidos e resolvidos foram a demarcao dos padres do profissional
a ser formado, os parmetros das mudanas curriculares, a realidade poltica do Brasil e
o funcionamento dos servios pblicos e o ensino de Medicina em Niteri (Koifman,
2001).
Nessa fase introdutria foram detectados problemas decorrentes da insuficincia
na formao dos professores de medicina e dos profissionais de sade que,
excessivamente terica, enfatizava as especialidades e as tecnologias diagnsticas com
prejuzo do cuidado, levando precariedade do atendimento bsico assistncia
mdica, apontando para a premncia de mudanas nos sistemas de sade e de educao.
Aps um longo decurso, no qual se intercalaram discusses e interrupes, o processo
de reformulao curricular foi retomado em 1983 e concludo em 1992, mas somente
em 1994 foi de fato implementado o novo currculo do curso de Medicina na UFF.
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19
No entanto, apesar das reformas curriculares valorizarem a contextualizao
sociocultural das prticas, a interdisciplinaridade e a tica na formao de profissionais
de sade (Koifman, 2001), tal discurso no determinou mudanas substanciais na
estrutura curricular das faculdades de medicina do Brasil estas s poderiam acontecer,
como afirma Nogueira (2012 a), a partir da introduo de inovaes no sedimentado e
hegemnico estilo de pensamento do paradigma biomdico.
Koifman (2001, pg. 59), analisa o lapso de mais de uma dcada entre a
reformulao curricular da UFF e sua implantao:
O processo de reformulao curricular, ento, que havia recomeado em
1983, evoluiu at a elaborao de sua proposta, em 1992, e posterior
implantao, em 1994. Entre os diversos motivos de tais interrupes esto as
mudanas de direo dentro da a prpria universidade e na Secretaria de
Sade de Niteri. A reformulao curricular da UFF data de 1992, e sua
implantao, de 1994, com a resoluo no 37/94 do Conselho de Ensino e
Pesquisa (CEP). O processo de reformulao, de mais de dez anos de
durao, ocorreu paralelamente s mudanas da rede de sade de Niteri e do
Brasil, no contexto do SUS (Koifman, 2001, p. 59).
O governo federal, em 1993, implantou o Programa de Sade da Famlia -
estratgia inicial do Ministrio da Sade para reorientar o modelo assistencial - que
priorizou as prticas na ateno primria, o trabalho comunitrio e a educao em
sade.
Para Nogueira (2012 a), a expanso desse Programa exigiu novas formas de
conceber e exercer o cuidado em equipes interdisciplinares. Mas a tentativa de atender
demanda to complexa denunciou a inexistncia de profissionais capacitados para tal,
apontando para a necessidade de novos formatos de graduao.
Com base nessas reflexes, construiu-se um projeto de pesquisa no nvel de
ps-doutorado, desenvolvido no IMS/UERJ, para problematizar o processo
de transformao da formao mdica brasileira mediante a anlise de uma
experincia de integrao universidade-servio-sociedade, com a introduo
de novos cenrios de prtica profissional. Escolheu-se, para sediar o estudo, a
Escola Mdica da UFF, em razo da reforma curricular implementada em
1994 (Nogueira, 2012 a, p.16).
Em 1997 foi reconhecida oficialmente a necessidade dos polos de formao,
capacitao e educao permanente perante o vnculo das secretarias municipais e
estaduais de sade com as universidades e instituies de ensino.
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Dentre as vrias dificuldades detectadas para a real implementao do cuidado
eficaz e integral, pertinente apontar o desencontro entre a idealizao elaborada pelos
gestores e as diversas impossibilidades prticas do campo executor. A superao desses
hiatos parece ainda uma quimera, embora ponto de honra do iderio do processo de
reforma do sistema de sade brasileiro na construo do Sistema nico de Sade
(SUS), sua criao pela Constituio Federal em 1988, valorizando rudimentos
relativos integralidade das aes, equilbrio entre o conhecimento geral e o
especializado, reconhecendo a determinao social no processo sade-doena, a
incluso de prticas de medicina ditas alternativas e a interdisciplinaridade (Pinheiro e
Luz, 2003).
O documento final sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de
Graduao em Medicina, definidas em 1998 e homologadas em 2001, foi prenunciado
no final da dcada de 70 pelas discusses sobre a reorientao e mudanas curriculares
no Movimento Sanitrio.
O atual currculo mdico da UFF sobrepujou as qualidades recomendadas por
essas diretrizes, mormente no que tange insero de atividades prticas aos alunos
desde o incio da graduao, to relevantes sua pstera vida profissional. A
contribuio do Instituto de Sade da Comunidade, que oferece as disciplinas com o
enfoque na Sade Coletiva, confirma o esteio das cincias humanas e sociais para essa
formao mdica:
Nos dois primeiros anos de formao, com a insero do aluno em atividades
prticas, a promoo do contato com a comunidade e o deslocamento da
Anatomia para o segundo perodo, criou-se uma estratgia que favorecia a
desconstruo do imaginrio tradicional do mdico para uma imagem mais
humanista (Nogueira, 2012 a, p.133).
Nos quatro primeiros anos da organizao curricular de graduao em medicina
da UFF, o Programa Terico-Demonstrativo articulou as disciplinas ditas bsicas com
aquelas do ciclo profissional e do Programa Prtico-Conceitual.
Props as disciplinas de Trabalho de Campo Supervisionado de I a IV, Sade e
Sociedade, Planejamento e Gerncia em Sade e Epidemiologia. A valorizao da
Iniciao Cientfica e das disciplinas optativas de Medicina Tradicional Chinesa,
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Introduo Homeopatia, Fitoterapia, Teraputica e Propedutica Homeoptica,
ratificam o carter inovador do curso de Medicina da UFF (Nogueira, 2012 a, p.132).
As diretrizes curriculares do ensino mdico e em sade, homologadas em 2001
pelo Conselho Nacional de Educao (Brasil), reafirmam o aparelho formador da sade
como canalizador das mudanas necessrias
integrao entre teoria e prtica, pesquisa e ensino, e entre contedos
biolgicos, psicolgicos, sociais e ambientais do processo sade-doena,
alm da insero precoce e responsvel dos estudantes em atividades
formativas nos servios de sade e o estmulo participao ativa destes na
construo do conhecimento (Nogueira, 2009, p.264).
Programas parceiros entre sade e educao incentivaram a implantao de
metodologias de ensino-aprendizagem ao profissional mdico, segundo uma formao
humanista e crtica, comprometida com as necessidades de sade da populao.
Nogueira (2009) ressalta a interao ativa entre usurios, estudantes, professores e
profissionais, trazendo s escolas mdicas reformas curriculares e experincias
inovadoras.
Por comungar com estes propsitos por meio de atividades de campo como a
AIV, o Curso CSA pretende contribuir com a formao multiprofissional dos estudantes
de medicina da UFF e com o processo de educao permanente de profissionais de
sade de diversas formaes e instituies.
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2 REFERENCIAIS TERICOS
A discriminao dos termos da Terapia Expressiva - o que terapia e o que
expresso - fundamental para a considerao de seu significado global.
TERAPIA EXPRESSIVA
O que EXPRESSO?
O que TERAPIA?
Terapia Expressiva um conjunto de procedimentos que utiliza materiais
expressivos, segundo os referenciais tericos da Psicologia Analtica proposta por Carl
Gustav Jung. Considerando o simbolismo de sries de imagens, abarca duas condies
indispensveis:
1. Ser uma proposta diagnstica e teraputica que considera a expresso de
contedos inconscientes sob a forma de imagens por qualquer material
ou tcnica expressiva.
2. Ter referencial terico na Psicologia Analtica, conforme os conceitos
postulados por Jung em suas Obras Completas (CW)2.
O potencial teraputico da TE intermediado pela manipulao, em tcnicas
diversas, de uma infinidade de materiais expressivos eleitos criteriosamente para cada
caso ou momento de vida, visando estimular a criatividade e mobilizar a energia vital
em prol da harmonia e bem estar.
O profissional que utiliza a TE um facilitador que, ao utilizar mltiplas
propostas expressivas no espao do cuidado, plsticas ou no, oferece modalidades
teraputicas peculiares. Destas aes resulta um campo de experincias metafricas,
onde os conflitos podem ser representados, reconhecidos e resolvidos simbolicamente.
2 Segundo Boechat (1999), a obra de 20 volumes de Jung no seguiu uma ordem cronolgica, mas sim temtica, sendo por isso chamada de trabalhos coligidos - Collected Works (CW), Princeton: Bollingen
Series, Princeton University Press (em portugus, Obras Completas. Petrpolis, RJ: Editora Vozes).
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Considerando a produo do paciente para alm do julgamento utilitrio, moral
ou esttico, o olhar do terapeuta no se dirige beleza, mas sim emerso de elementos
psquicos preteridos ou ainda desconhecidos. O material inconsciente, revelado desta
forma conscincia, dispensaria a necessidade de manifestaes por meio de leses no
corpo fsico, sintomas emocionais ou mentais.
2.1 Traos da expresso humana
Achterberg (1996) considera a cura pela imaginao um fenmeno cultural. Cita
paralelos entre tcnicas da psiquiatria e os sistemas sociais das prticas tradicionais
realizadas pelos curadores nativos e populares xams, curandeiros, benzedores e
pajs-ndios - que localizavam as propriedades medicinais ativas nas prticas rituais
populares.
O uso de tcnicas expressivas utilizando a dramatizao evocando animais ou
objetos que os representem como smbolos mgicos pode substituir os rituais xamnicos
no setting teraputico.
A paciente estava bem desanimada quando chegou. A histria pedia que ela
imaginasse seu animal de poder, e ela escolheu um canrio. Construiu seu
animal sem entusiasmo, reafirmando que no tinha medo de nada. Denise lhe
perguntou se desejava colocar asas no seu canrio. S se for amarela, ela
disse. Conseguimos as asas amarelas para o bichinho, e depois disso ela
parecia ter ganho um novo nimo: Meu pssaro est livre para voar!. O
nome dele O canrio que me traz felicidade! (voluntria sobre portadora
de cncer, atividade O Rato e o Pag, 11/10/12).
possvel acompanhar o trajeto da utilizao do material expressivo de forma
espontnea ou com finalidades teraputicas a partir das pinturas pr-histricas e do
xamanismo.
Segundo Achterberg (1996), o xam - conjugando os prottipos do louco e do
terapeuta - era o escolhido pela comunidade para ser um visionrio a servio das
pessoas, um intermedirio entre o mundo espiritual, a natureza e a comunidade. Ao
alcanar o estado de xtase, dirigia as mensagens recebidas do inconsciente ao
consulente para que ele enfrentasse seus medos, a insanidade, a solido, o orgulho, os
vcios, a doena e a morte sob vrias formas de expresso, como a dana e a fala
teatralizada.
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Dos primrdios da humanidade permanecem os registros dos primeiros homens,
imagens espontneas inscritas na pedra que, integradas ao meio-ambiente, traduziam o
equilbrio das comunidades primitivas com a natureza. Cenas rupestres mostram
grandes quadrpedes alvejados para a caa, reverenciados como sendo superiores aos
homens que os matavam por terem se oferecido em sacrifcio como alimento para a
comunidade humana.
Milhares de anos depois, Arthur Bispo do Rosrio (1911 - 1989), o Bispo do
Rosrio (http://www.itaucultural.org.br), ex- marinheiro e ento funcionrio da Light,
foi enviado ao Hospital dos Alienados na Praia Vermelha aps ter apresentado um
delrio de contedo mstico. Diagnosticado como portador de esquizofrenia paranide,
foi internado na Colnia Juliano Moreira, alternando fases de surtos sob internao no
hospcio com perodos de remisso doena, nos quais exerce ofcios externos. No
comeo de 1960 viveu em um quartinho do sto de uma clnica peditrica na qual
trabalhou, onde iniciou seus trabalhos realizados com materiais rudimentares. Em 1964
regressou Colnia, onde criou seu ateli e permaneceu por 50 anos, at a sua morte.
Em uma de suas obras bordou num lenol da instituio, com fiapos de roupas dos
internos, um touro atingido por duas lanas - ritual sangrento do lazer contemporneo
numa tourada - exibindo a falta de respeito natureza, outrora sagrada. Essa imagem
similar aquela citada acima: dois mamferos, similares na forma e portando mensagens
to antagnicas, so separados por sculos de histria, apontando para o descaminho em
que se inscreveu a raa humana.
Entre as coisas que inventariou para Deus em seu delrio criativo, este eminente
artista plstico produziu um extenso acervo com diversos tipos de materiais oriundos do
lixo e da sucata. Sua arte considerada pelos crticos, at hoje, to vanguardista quanto
a obra de Marcel Duchamp (Braga, 2001). Suas imagens, presentes em cerca de 1.000
peas com objetos do cotidiano, falam alm das palavras, traando a histria da
humanidade e homenageando a saga da vida na gratuidade da criao artstica.
De forma anloga trabalha a TE, enquanto reafirma a inteno teraputica em sua
prtica e na traduo da analogia entre as imagens psquicas e aquelas extrovertidas
pelas tcnicas expressivas: da psique ao suporte, expresso; do suporte psique,
terapia (Vianna et al., 2012).
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primrdios
Pinturas rupestres
Xamanismo
sculo XVI
em diante
Terapia ocupacional
Psicologia analtica
Emoo de lidar
atualidade
Arteterapia
Terapia Expressiva
Grande parte das linhas teraputicas que usam o material expressivo para
conhecer e tratar conflitos psquicos, revelam os indcios do encontro de Nise da
Silveira com a Psicologia Analtica - constructo terico de Jung que, como ser visto
adiante, a terapeuta introduziu no Brasil.
2.2 Psicologia Analtica de Jung
Embora seja relevante delinear as grandes linhas da psicologia de Jung, a
magnitude das obras do autor torna impossvel que um aprofundamento exaustivo no
assunto seja alcanado na presente dissertao.
Psicologia Analtica a nominao para o constructo de Jung (1875-1961),
como Psicanlise so conhecidas as obras de Freud e de seus discpulos, e o termo
Psicologia Individual serve ao referencial de Adler. Para Fordham (1978), o que h de
comum entre todas essas linhas - muito embora as teorias dessas diferentes escolas se
disponham a servir pontos de vista diversos - o emprego de tcnicas especficas para
que fatores inconscientes sejam trazidos luz e, posteriormente, integrados
conscincia. Para esta autora aqueles que se identificam com as obras de Jung tm um
tipo de esprito no sectrio, inclinado aos estudos cientficos que apontam mais
intimamente para estudos humansticos amplos (Fordham, 1978, p. 8).
Para falar da alma e da atividade mental, Jung preferiu aos termos mente e
mental os termos psique e psquico, que englobam os aspectos complementares
consciente e inconsciente. O territrio consciente, cujo eixo central o ego, pode ser
comparado a uma ilha que se eleva do oceano, sob a qual se estende um domnio
desconhecido aparentemente catico e muito mais vasto, sua matriz inconsciente, onde
esto os germes de novas possibilidades da vida.
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26
No modelo de inconsciente proposto por Jung, uma zona mais superficial,
o inconsciente pessoal, conformado pelas percepes subliminares e experincias
esquecidas, desejos e mpetos infantis reprimidos, contedos que podem ser evocados
ou relembrados espontaneamente, por meio dos sonhos ou de tcnicas analticas. O
inconsciente coletivo um estrato mais profundo, cunhado por uma mirade de
experincias pr- hominais - as imagens primordiais ou arqutipos - que pode ser vivido
pelo homem no s como imagens, mas tambm como emoes. Para Jung (1986a)
relacionam-se, desta maneira, o consciente, o inconsciente pessoal (espao das
vivncias que pertencem ao passado da pessoa) e o inconsciente coletivo, arcabouo de
toda a raa humana - substrato comum da anatomia psquica - da mesma maneira que o
corpo humano, apesar das diferenas raciais, compartilha uma anatomia semelhante.
A existncia do inconsciente coletivo pode inferir-se dos ntidos vestgios de
imagens mitolgicas no homem normal imagens de que ele no tinha
conhecimento anterior. Por vezes difcil provar que esse conhecimento
nunca existiu, mas em certos casos de desordem mental h uma espantosa
proliferao da imaginria mitolgica, que nunca foi possvel explicar pela
experincia do prprio indivduo (Fordham, 1978, p. 27).
Para a autora, os mitos so a expresso direta do inconsciente coletivo, que se
apresentam sob formas anlogas em todos os povos e pocas. A perda da capacidade de
contat-los levaria desconexo com as foras saudveis fundamentais alimentao
da criatividade, que os rituais e as expresses realizadas nas sesses de TE objetivam
resgatar, ao reconectar a pessoa com tais contedos revitalizantes.
O uso de textos das tradies - como mitos, fbulas e contos de fada - reatualiza
significantes que trazem contedos pertencentes ao acervo de memrias passadas, cujo
alto potencial gerativo de simbolizao estimula o desbloqueio de contedos
inconscientes, e capaz de resolver os complexos.
Para a teoria junguiana, um complexo psicolgico conjuga grupos de imagens
com um acento emocional comum, interrelacionadas com um determinado ncleo
energtico temtico (arquetpico). Os complexos so formados medida que
experincias de vida acontecem e se agregam s estruturas dos arqutipos - modelos
virtuais de centros ordenadores incognoscveis - dos quais s se podem ter notcia por
meio de suas projees, as imagens arquetpicas.
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27
A psicologia de Jung no se restringe a uma psicopatologia, dado que para o
autor as manifestaes inconscientes no so consideradas patolgicas (1986a), e nem
os complexos exclusivamente nocivos. Estes estruturam-se com e para as pessoas,
independentemente de sua classificao psquica como normais ou anormais,.
Fordham (1978) diz que, para Jung, a psique uma realidade que se impe de
muitas formas, inclusive como doenas fsicas sem causa orgnica, pois os processos
psquicos interiores tm igual valor aos exteriores ou ambientais.
A TE considera que as sesses da AIV podem oferecer uma ambincia de
acolhimento compatvel com a resoluo dos complexos, da os frequentes relatos de
experincias de alvio, de sensao de bem-estar e de conforto: Para desfazer ou
transformar os complexos patolgicos, costuma mostrar-se necessrio repetir a
experincia da emoo vinculada ao complexo visado, mas numa situao segura e
contida (Hall, 1986, p. 58).
Uma das propostas da psicologia analtica ajudar as pessoas a enfrentarem e
ultrapassarem esses ns energticos para que prossigam em seus processos de
individuao - um conceito junguiano que designa a tendncia manifestao do
potencial inato de cada pessoa em relao ao significado de sua vida, mais uma busca
do que o alcance de uma meta.
como se um rio que se espraiava por preguiosos meandros e pais
encontrasse de repente o caminho de regresso ao seu prprio leito, ou como
se uma pedra pousada em cima de uma semente fosse retirada, permitindo
que a planta iniciasse o seu crescimento natural (Jung, 1981, p. 190).
Para Boechat (1998), o processo de individuao d-se de forma pedaggica,
pelo desvelamento e realizao lenta e gradual de potencialidades intrnsecas e inatas.
Esse processo dirige-se ao encontro do si-mesmo, em direo conformao daquele
que no se divide - o indivduo - o que no implica o individualismo que relega a tica
coletiva em detrimento do egosmo.
Encontrando apoio nas palavras de Jung (2011, p. 120), para quem o fim ltimo
do homem no a sua existncia individual, mas a marcha da sociedade humana, pois
sem ela o homem no chegaria nem a existir, pode-se expandir o tema da individuao
do plano individual para o coletivo:
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... o processo de individuao natural produz uma conscincia do que seja a
comunidade humana, porque traz justamente conscincia o inconsciente,
que o que une todos os homens e comum a todos os homens. A
individuao o tornar-se um consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a
humanidade toda [...] conjunto organizado dos indivduos no Estado, ainda
que esta se revista de uma autoridade maior, no mais constituda de uma
massa annima, mas uma comunidade consciente (Jung, 2011, p. 124).
Ratifica-se que nesta pesquisa no ser possvel proceder ao aprofundamento
dos conceitos contidos nas obras de Jung, fundamentais compreenso estendida do
funcionamento das atividades com TE. H ideias muito complexas, como a noo do
arqutipo do psicide (Hall, 1986, p.188), que se refere superposio entre processos
psicolgicos e fisiolgicos, em contraposio lgica da oposio herdada da
concepo iluminista que separava em polaridades a matria do esprito, a alma do
corpo, o inconsciente do consciente, a natureza da cultura, o sujeito do objeto, a sade
da doena. Para Jung, esses pares no so antitticos, mas sim dois lados de uma mesma
moeda. Essa noo de continuidade psicofsica encontra-se de forma abundante em seus
textos sobre a Alquimia, tema que lhe foi to caro, nos quais a Obra ou a Pedra
Filosofal simbolizava a unidade segundo o princpio dos eventos sincrnicos, em
oposio ao paradigma da crena do adoecimento causal de lgica biolgica que separa
processos fsicos, emocionais, mentais e espirituais.
Jung, formado como mdico psiquiatra e sem um treinamento especfico em
arte, utilizou intuitivamente o manuseio de materiais expressivos diversos em atividades
prticas na clnica, sob a regncia da imaginao:
Eu aproveitava uma imagem onrica ou uma associao do paciente para lhe
dar como tarefa elaborar ou desenvolver estas imagens, deixando a fantasia
trabalhar livremente. De conformidade com o gosto ou os dotes pessoais,
cada um poderia faz-lo de forma dramtica, dialtica, visual, acstica, ou em
forma de dana, de pintura, de desenho ou de modelagem. O resultado desta
tcnica era toda uma srie de produes artsticas complicadas cuja
multiplicidade me deixou confuso durante anos, at que eu estivesse em
condio de reconhecer que este mtodo era a manifestao espontnea de
um processo em si desconhecido, sustentado unicamente pela habilidade
tcnica do paciente, e ao qual, mais tarde, dei o nome de processo de
individuao".
Mas bem antes que me surgisse este reconhecimento, eu observei que este
mtodo muitas vezes diminua, de modo considervel, a freqncia e a
intensidade dos sonhos, reduzindo, destarte, a presso inexplicvel exercida
pelo inconsciente. Em muitos casos, isto produzia um efeito teraputico
notvel, encorajava tanto a mim como o paciente a prosseguir no tratamento,
malgrado a natureza incompreensvel dos contedos trazidos luz do dia
(Jung, 1986 a, p. 139).
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De acordo com Jung (1984), cada homem possui um quantum energtico a
libido - que anloga energia vital. No esforo de explicar este conceito, construiu um
modelo baseado na teoria energtica das cincias fsicas, no qual a libido pode ser
disponibilizada tanto para objetos externos quanto para conexes inconscientes, fluindo
entre os polos opostos das necessidades do inconsciente e o mundo externo, buscando a
adaptao ativa ao meio e s satisfaes conscientes. A libido poderia, portanto,
manifestar-se sob vrias formas - pelas imagens do inconsciente ou a criatividade que,
em conformidade com a energia psquica e o impulso de vida, seriam responsveis pela
existncia em si e pela manuteno da espcie.
No psiquismo, que para Jung um sistema energtico relativamente fechado,
quando a energia psquica abandona um de seus investimentos direciona-se a uma outra
motivao, podendo extroverter-se sob novas formas. Simultaneamente, os sintomas
fsicos ou psquicos, enquanto espelham a tentativa do equilbrio possvel para cada
circunstncia - como por uma expresso plstica ou uma doena criativa -
oportunizando a resoluo de conflitos. Nesta circunstncia, o estrato inconsciente da
psique comunica-se simbolicamente com o consciente, o que traduzido pelas imagens
reveladas nos suportes de natureza material como o prprio corpo e suas
manifestaes dinmicas expressivas.
2.3 Trajetria da Terapia Ocupacional Terapia Expressiva
O registro do uso de recursos expressivos com finalidades teraputicas, data do
incio do sculo XIX.
Philippe Pinel (Paris, 1745-1826) aboliu a sangria, as purgaes e os
vesicatrios, em favor de uma abordagem teraputica que inclua o contato prximo e
amigvel com o paciente, as discusses das dificuldades pessoais e um programa de
atividades dirigidas com material expressivo.
Freud buscou compreender a dinmica psquica a partir do estudo das obras de
alguns artistas consagrados.
Na dcada de 20, Jung ampliou o uso da arte como componente implcito ao
processo teraputico, para alm do contexto diagnstico.
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Em 1940, o que se entende atualmente como arteterapia, teria sido sistematizada
por Margareth Naumburg nos EUA (Vasconcelos & Giglio, 2007).
No Brasil, merecem destaque Ulysses Pernambuco (Pernambuco, 1892-1943) e
Osrio Cesar (Oficina de Pintura em 1923 e Escola Livre de Artes Plsticas, 1949,
Hospital Psiquitrico do Juqueri, So Paulo), que pelo artesanato e desenvolvimento de
aptides expressivas com o mnimo de interferncia do supervisor, garantiam a plena
espontaneidade das manifestaes, permitindo o desenvolvimento psicolgico e
artstico.
Nise da Silveira (1905-1999), protestando contra muitos dos mtodos
teraputicos correntes na poca - o eletrochoque, a insulinoterapia e a lobotomia -
defendeu uma prtica cuja base era o afeto catalisador, um estar ao lado do cliente
numa relao de horizontalidade que abolia a hierarquia entre o mdico e o paciente, a
sanidade e a loucura. Ela trouxe os conceitos de Jung anlise das obras com material
expressivo dos pacientes da seo de Teraputica Ocupacional, que implantou no
Hospital Pedro II do Engenho de Dentro.
Nise considerava que os trabalhos de pintura e desenho dos internos,
oportunidade de conhecer as imagens do inconsciente, eram uma manifestao
espontnea que demandava ateno e um estudo aprofundado e sistemtico, o que
inspirou a criao do Museu de Imagens do Inconsciente (Silveira, 1982).
Seu foco no era artstico e sim teraputico: considerava que a psicologia
analtica jamais deveria explicar o fenmeno arte ou opinar sobre o valor esttico
positivo ou negativo das obras de arte, o que pertence ao ajuizamento dos crticos de
arte. Seus pronunciamentos limitavam-se a pesquisas concernentes aos processos da
atividade criadora e ao estudo psicolgico (...) decifrao das imagens simblicas (...)
trazendo luz sobre significaes...( 1994, p.167).
Seria talvez desnecessrio frisar que a simples emergncia de imagens
arquetpicas no resulta em obras de arte. Essas imagens surgem
cotidianamente nos sonhos e nas fantasias de todos os seres humanos.
Entretanto as obras de arte so raras. Faz-se necessrio que as rudes imagens
primordiais sejam elaboradas, ou melhor, transmutadas em formas que
possuem certas qualidades, ditas artsticas. preciso que essas formas
apelem para os sentidos e falem a linguagem da poca. A maneira como se
realiza essa transmutao (processo criador) no foi jamais explicada por
nenhuma psicologia (Silveira, 1994, p.181).
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Lidar com material expressivo em sua interface com o universo teraputico,
segundo Vasconcellos & Giglio (2007), tem duas linhas de atuao: a arte como terapia
(art as therapy), que focaliza o processo dito artstico que concomitantemente produz
efeitos teraputicos, e a artepsicoterapia (art psychoterapy), em que o fazer arte ocorre
dentro da abordagem psicoteraputica.
Algumas noes equivocadas atribudas s terapias expressivas, como as de que
as tcnicas expressivas tm apenas como finalidade ocupar os pacientes, gerar lucros ou
distrair, so possivelmente reflexos da sua construo histrica.
Nise da Silveira rejeitou veementemente a denominao Terapia Ocupacional
para definir o fazer afetivo dos esquizofrnicos com materiais expressivos, adotando
publicamente o nome Emoo de Lidar, inspirada por um cliente da Casa das Palmeiras
(Chang, 2001, p.24).
Uma reviso bibliogrfica escrutinando o tema das terapias complementares que
utilizam materiais e tcnicas expressivas diversas tangentes rea do cuidado,
permitindo manifestar emoes e contedos inconscientes, encontrou registros com
designaes variadas: terapias expressivas (McNiff, 2005), arteterapia (Pratt & Wood,
1998), arte-psicoterapia (Dreifuss-Kattan, 1990) e arteterapias criativas (Hartley &
Payne, 2008). Malchiodi (1999, 2005) usa o termo genrico terapias expressivas, nele
incluindo diferentes especialidades - arteterapia, musicoterapia, dramaterapia, terapia
pelo movimento, entre outros.
Jung (1985a) diz que, quando se fala da relao entre a psicologia e a arte, pode-
se apenas tratar de aspectos que a ser submetidos pesquisa psicolgica sem violar a
natureza desta, j que para ele a investigao do que arte deveria ser objeto de
consideraes esttico-artsticas e no de apreo psicolgico.
A proposta da Arteterapia, ncleo central que permanece como esteio na TE,
jamais considera uma imagem isolada, mas sim sries de imagens realizadas dentro ou
fora do setting teraputico, evocadas ou no por induo. Mais importante que a
imagem como obra o acompanhamento do desenvolvimento psquico e clnico da
pessoa por meio de sua trajetria expressiva. Com muito mais facilidade do que
verbalmente, contedos inconscientes podem ser extrovertidos e materializados por
meio de imagens (Vasconcellos & Giglio 2007), prestando-se assim a serem
alegoricamente manipulados.
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2.4 Consideraes estticas e a adoo do nome - Terapia Expressiva
Arte, termo polissmico que pertence ao universo da Esttica, utilizado como
parte da palavra Arteterapia, pode evocar concepes inadequadas e provocar conflitos
interdisciplinares.
Tentando dirimir tais questes, esta dissertao prope a denominao Terapia
Expressiva em substituio a Arteterapia, entre outros motivos pela polissemia trazida
pelo prefixo arte, que pode criar expectativas equivocadas sobre valores estticos da
produo dos pacientes, evocando preconceitos como o de imaginar que preciso ser
artista para ser terapeuta ou usurio do tratamento.
A partir da fundao do Programa foi adotado o termo Terapia Expressiva,
no singular, para nomear um grupo de procedimentos diagnsticos e
teraputicos que utiliza uma variedade de tcnicas e materiais para a
expresso de contedos inconscientes atravs de imagens, cujo simbolismo
considerado sob as referncias tericas da Psicologia Analtica, proposta por
C.G.Jung em suas Obras Completas. A inteno teraputica preenchida pela
traduo dos contedos psquicos em imagens, que so extrovertidas pelas
tcnicas expressivas: da psique ao suporte expresso; do suporte psique
terapia (Vianna et al. 2012, p.102).
No contexto da TE o termo arte torna-se inclusive redundante quando conjugado
terapia, que j , por si, ars curandi3.
Aqui no h a proposta de alar voos pelo universo esttico, mas apenas a de
justificar a adoo do termo TE para a ferramenta-objeto desta dissertao.
Muitas vezes, uma imagem sem originalidade, vigor de traos ou cores, que
provavelmente no seria considerada uma obra de arte do ponto de vista esttico quer
sob o olhar da crtica ou de pblicos heterogneos, pode ser valiosa no
acompanhamento contextual de um caso.
Kant, em sua Terceira Crtica (1995), marco da esttica moderna, ao considerar
o ajuizamento do objeto esttico, ressalta que a obra de arte prescinde de qualquer
interesse prtico.
3 O Juramento de Hipcrates, lido no ritual de doutoramento em Medicina, vem sofrendo inmeras
mudanas. Um texto simplificado, mais recentemente adotado, situa a Medicina como a Arte de Curar:
Prometo que, ao exercer a arte de curar mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da
caridade e da cincia... Rezende, J. Linguagem Mdica, 3a. ed., Goinia, AB Editora e Distribuidora de
Livros Ltda, 2004.
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Se Arteterapia designar prticas com finalidades teraputicas por meio da arte,
estar-se- frente a uma concepo incongruente concepo esttica kantiana, para a
qual o objeto esttico no poderia servir a propsito algum que no o comprazimento,
a satisfao dos sentidos (Kant, 1995, ).
Para o autor, aquilo que serve para alguma coisa corresponde categoria
geradora de satisfao e pertence ao conceito de bom: [...] bom para (til) algo que
apraz somente como meio[...] onde est contido o conceito de fim, um interesse
qualquer; e no categoria do belo, pertinente ao objeto de arte, uma vez que nenhum
conceito de bom pode determinar o juzo de gosto, porque ele um juzo esttico e no
um juzo de conhecimento ( 11).
No livro A origem da obra de arte, Heidegger diz existirem trs categorias de
coisas no mundo: as meras coisas, os apetrechos e as obras de arte; e considerando que a
obra de arte possui materialidade, sendo portanto coisa, pergunta-se: mas o que torna
uma coisa obra de arte? O que que est em obra na obra? (Heidegger, 2007, p. 27).
Para tentar diferenciar a obra de arte das outras coisas, (Heidegger, 2007) pensa
inicialmente sobre o que a obra de arte, em sua origem, no . No uma mera coisa
que repousa sobre si mesma como uma pedra, que no tem utilidade pr-estabelecida.
Tambm no apetrecho, cuja feitura pelo homem pressupe alguma necessidade
humana e que tem por sua razo de ser a utilidade, ocupando posio intermediria:
meio coisa pela utilidade e meio obra de arte por ter sido obra humana, embora sem a
autossuficincia dela. A obra de arte repousa em si mesma, sem utilidade e foi feita pelo
homem sem propsitos utilitrios.
Heidegger diz que, para que se pense a obra de arte, necessrio pensar o artista,
em circularidade do pensamento:
A pergunta pela origem da obra de arte indaga a sua provenincia essencial.
Segundo a compreenso normal, a obra surge a partir e atravs da atividade
do artista. Mas por meio e a partir de que que o artista o que ? Atravs da
obra; pois pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra que primeiro
faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista a origem da obra. A
obra a origem do artista (Heidegger, 2007, p.11).
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Portanto, se a TE define-se como ferramenta com finalidades teraputicas, ela
no deveria estar associada aos conceitos e categorias da arte, e aquele que conduz um
processo arteteraputico, assim como o paciente que fez a obra, deveriam ser artistas
tambm.
Embora o objetivo da criao das obras na TE seja primariamente teraputico e
no esttico, se dessa produo plstica surgir uma obra de arte, esta poder ser
reconhecida, tal como se deu no Hospital Psiquitrico Pedro II, onde foi criado o Museu
de Imagens do Inconsciente, albergando o material esttico produzido por seus
pacientes.
O principal mrito disto foi poltico, uma vez que os pacientes psiquitricos
puderam ser alados da categoria de loucos categoria de artistas, revertendo
preconceitos hierrquicos seculares.
A adoo do termo Terapia Expressiva foi assumida publicamente em
substituio nominao corrente arteterapia em novembro de 2010, quando da
implantao do TECI-HUAP no Simpsio Terapia Expressiva como veculo do
Cuidado Integral no Hospital Universitrio Antnio Pedro. Foi acordado que
arteterapia no designa, com propriedade, o trabalho por meio de materiais expressivos
com fins teraputicos, seja no meio artstico, psicolgico ou teraputico. Por questes
prticas, neste projeto, as referncias anteriores mudana de nome para Terapia
Expressiva da ferramenta ainda sero consideradas como arteterapia.
Uma concepo potica do cuidado parece concertar com o conceito da
gratuidade da arte da cura em sua finalidades sem fins, conforme o conceito esttico
kantiano: Entendemos que o cuidado no campo da sade sua prpria razo de ser. o
meio e o fim das aes desenvolvidas pelos profissionais que atuam nesse campo(
Silva Jnior et al., 2006, p. 93).
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3 JUSTIFICATIVAS
3. 1 A ferida na Medicina Cientfica
Refletir sobre a sade pede conformidade abordagem crtica da cincia,
estratgia que permite observar os limites e potenciais da prtica clnica em direo
integralidade de suas aes. A medicina ocidental contempornea, associada a um
imaginrio que a considerava cientfica por alguns autores e, de certa, forma pela
sociedade em geral, guarda em suas origens vrios registros de ciso.
Desde a segmentao do cosmos em um mundo celeste e sublunar proposta por
Aristteles, passa-se ao distanciamento de Deus sob a viso teocntrica da Igreja da Alta
Idade Mdia at o estabelecimento do Iluminismo na cincia, como fonte ltima da
verdade (Camargo, 1993). O movimento alcunhado como positivista e o divrcio da
filosofia e da cincia em ascenso, forjaram uma racionalidade gestada na concretude
do conhecimento cientfico. A mecnica clssica, equiparando a trajetria dos planetas
ao funcionamento de um grande relgio, dividiu o tempo em partes estanques e
delimitou um prazo quantitativo prpria vida. Esse foi o legado que, na medicina
contempornea, plasmou seu carter generalizante e analtico (Camargo, 1992).
De acordo com Koifman (2001), o modelo biomdico contempla o corpo como
uma mquina de grande complexidade, cujo funcionamento deve ser regido por leis
perfeitas. Todavia, esse sistema exala contradies, uma vez que defeitos iminentes
devem ser permanentemente inspecionados, previstos e corrigidos por tcnicos
especialistas cuja curiosidade diagnstica e a exuberncia tecnolgica interceptaram as
mquinas entre as pessoas de forma implacvel.
O mdico que prioriza o desempenho tcnico em sua formao e orienta-se pelas
finalidades diagnsticas, conduzindo os colquios com os pacientes pela via estreita da
anamnese dirigida, extingue a disponibilidade para acolher a expresso livre das queixas
de seus pacientes, frustrando o estabelecimento de uma relao de confiana: a
formao mdica que torna o profissional cada vez mais distante do respeito ao
desejo do paciente, o dono do corpo que est sendo tratado, muitas vezes o leva a
cometer erros por se considerar dono do saber e no escutar a opinio do dono do
corpo (Koifman, 2001, p. 53).
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Originada na viso anatomoclnica, uma medicina do corpo, das leses e das
doenas dissecou em partes os organismos que, paradoxalmente, reorganizaram-se em
sistemas, virtualidade de comunicaes telegrficas que arremedam a totalidade
perdida. Da mesma forma, o corpo terico da medicina gerou especialidades e
disciplinas, que, quanto mais especializadas, menos conseguem dialogar.
A hiperespecializao, para Morin (2010, p. 13), dilui o que essencial e separa
aquilo que global, com a crescente fragmentao dos saberes entre disciplinas:
tornam-se invisveis os conjuntos complexos; as interaes e retroaes entre partes e
todo; as entidades multidimensionais e os problemas essenciais.
Outra ciso detectada por Koifman (2001, p. 50) na formao mdica a de
dois processos quase independentes: uma extensa formao clnica, centrada nas
cincias biomdicas que refora a prtica individualista da medicina e uma
abordagem social.
Morin (2010) sugere que os desenvolvimentos disciplinares das cincias,
trouxeram, pela superespecializao, o confinamento e o despedaamento do saber.
Como resultado, a cultura genrica das humanidades, que deveria integrar
conhecimentos e englobar a filosofia, o ensaio e a cultura cientfica, sofreu a
fragmentao das conquistas sobre a vida em reas estanques. Essas partes tornaram-se
incapazes de pensarem sobre si mesmas e sobre os problemas sociais e humanos:
A reforma do pensamento que permitiria o pleno emprego da inteligncia
para responder a esses desafios e permitiria a ligao de culturas dissociadas.
Trata-se de uma reforma no programtica, mas paradigmtica, concernente a
nossa aptido para organizar o conhecimento (Morin, 2010, p. 20).
Para Luz (1988), a biomedicina valoriza principalmente o eixo explicativo
ligado s cincias experimentais na busca da causa das doenas, mesmo que o
diagnstico obtido no oferea nenhum conforto aos pacientes, caracterizando o
divrcio entre a Cincia das Doenas e a Arte de Curar.
Da mesma forma, Camargo (1993) fala de como o homem se apega s velhas
crenas da cincia, mesmo que estas no atendam mais s novas necessidades j que a
prtica corrente da medicina, dita cientfica, no supre grande parte das demandas de
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seus usurios. Escorada por critrios falhos, essa doutrina mdica se ressente de
parmetros tico-normativos que guiem os mdicos em sua articulao terico-
conceitual, desde a noo de doena at a lgica teraputica.
Nogueira (2009) discute a trajetria epistemolgica do ensino mdico atual,
fruto do estilo de pensamento norteador da medicina ocidental, que instituindo a
anatomia patolgica e, objetivando a doena ao localiz-la no corpo, excluiu a
subjetividade do adoecer. Em contraparte, cita diversos autores que defendem a
necessidade dos referenciais das cincias humanas e sociais para uma compreenso
ampliada do processo sade-doena, expandindo a ideologia dos referenciais para a
medicina contempornea. Diz, tambm, que as transformaes da abordagem conceitual
do adoecimento acompanharam o desenvolvimentos das medicinas alternativas nas
ltimas dcadas (Nogueira, 2009, p. 265) e que a ampliao da responsabilidade pelo
atendimento aos pacientes por uma rede multiprofissional de cuidado tende a incidir
sobre a hegemonia mdica. Para que isso realmente se efetive fundamental que se
cumpram as mudanas propostas para a formao mdica. Entretanto, a grande maioria
dos cursos de Medicina ainda separa os ciclos bsico e profissional, segundo uma
formao com base cientfica, conforme as caractersticas individualizantes de seu
legado biolgico e mecnico, atendendo aos interesses do complexo mdico-industrial e
em detrimento do cuidado (Nogueira, 2009).
Para Luz (2004), a ciso do modelo biomdico estende-se a todos os aspectos do
que se chama sade, cuja demanda por smbolos decorrente do desencantamento
trazido pelo capitalismo. E tambm na rea da sade que as prticas promotoras da
reinsero do contato fsico entre as pessoas simulam as relaes de empatia entre os
sujeitos, solapadas da sociedade pelos valores individualistas. Mesmo sob a falta de
integralidade no cuidado aos pacientes e em tudo que diz respeito aos profissionais da
rea - nas tnues relaes interdisciplinares, no isolamento do hospital de uma
sociedade ressentida pela desproteo gerada na falta de cuidado consigo mesma e
desenraizada de seus rituais e tradies - acontece esse deslocamento funcional.
A sade teria substitudo as atividades de congraamento e festa que no
existem mais no mundo, e que podem ser repostas por atividades grupais ou coletivas de
sade... legitimando situaes de cuidado que eram antes assumidas por instituies
ou instncias especficas, como a famlia, ou escola... (Luz, 2004, p.19).
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Se os envolvidos na rea da sade assumissem sua parte de responsabilidade
pela ciso do cuidado, poderia emergir a oportunidade da cura no prprio seio desta
rea lesada - o centro do cuidado.
Para Ayres (2004, p.27), a conscincia do adoecer e dos saberes e instrumentos
tecnicamente dirigidos a seu controle so histrico e socialmente configurados, e todo
o investimento que se disponha a transformar de forma efetiva os obstculos
felicidade humana devem apreciar e lavrar as razes dos significados do adoecimento.
Camargo Jr (2003, pp.62-63) fala dos efeitos mgicos que os rituais
representados pela consulta mdica olhares, gestos, perguntas, roupa branca, e,
principalmente, pela presena do prprio mdico, representam em sua eficcia: prticas
de cura falam de outras formas ao homem de todo o tempo e lugar; para usar a
expresso de Lvi-Strauss, todas tm eficcia simblica. A partir de crenas,
representaes e valores compartilhados por pacientes e terapeutas e pela cultura da
qual fazem parte.
A AIV, como prtica ritual, esmera-se em prover algo da demanda por smbolos
pessoais, valorizando o indivduo na confluncia com suas origens, nas prticas
mgicas, no encontro marcado com o ldico e o criativo. A transformao do ambiente
hospitalar em um tmenos alqumico para que nele se d a Obra4, pode converter o
NAO, lugar inusitado para a festa e congregao - porque originalmente destinado ao
tratamento de pessoas com doenas de mau prognstico - em um palco de
possibilidade da cesura que porta o novo. A fora que a opera no uma arma contra a
doena, mas a que pede licena para abrir o espao representativo da sade.
Alquimia um trabalho a ser feito na prpria personalidade [...] a virtude
(que significa eficincia energtica), tem agora poder interno capaz de
influenciar coisas. Ciente dessa virtude, o homem seria capaz de extrair a
essncia oculta de todas as substncias, inclusive daquelas que lhe do a
prpria consistncia em todos os nveis (Vianna, 1998, p. 26).
4 Tmenos alqumico: segundo os antigos gregos, um recinto sagrado. Para a Psicologia Analtica, lugar
onde a Obra Alqumica, a transformao da matria em esprito poderia acontecer mediante rituais
hermticos, simbolizando o processo de individuao.
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3.2 Terapia Expressiva - proposta de cuidado integral
No campo da sade, o reconhecimento do valor de vrios sistemas teraputicos e
de cuidado, cujas prticas eram voltadas para a fora curativa da natureza, foi precedido
pelos movimentos de contracultura: Diante disso, sob a denominao de terapias
tradicionais, alternativas, holsticas, integrais, naturais, doces, energticas ou
complementares, diversas formas de cuidado conquistaram espao no mundo ocidental
(Nascimento et al. 2012, p. 14). A discusso desse tema avultou-se a nvel mundial. No
Brasil, por ocasio da VIII Conferncia Nacional de Sade, em 1986, foi formalizada a
sugesto de que as prticas alternativas de assistncia sade fossem inseridas em seus
servios, o que foi reforado e