A Revolta Contra a Inclusão, Entrevista de Bruno Cava

9
Busca Avançada A revolta contra a inclusão, entrevista de Bruno Cava 19/09/2013 Por Bruno Cava / Gigi Roggero Entrevista de Bruno Cava por Gigi Roggero (presencial), 14/7/2013, paraCommonware (em italiano) | Trad. UniNômade Brasil Qual é a genealogia e as formas de desenvolvimento do movimento no Brasil? Devemos começar por dois pontos importantes. O primeiro diz respeito ao fator global: perderemos qualquer coisa de decisivo se não olharmos ao contexto. Tiveram lutas na Turquia e no Egito, teve um inteiro ciclo de lutas começado em 2011: é impossível não ver algumas características em comum. Por exemplo, antes da revolução árabe, existiam ditaduras, um consenso sólido como rocha por uma governança muito verticalizada, e coisa de duas ou três semanas a rocha ruiu. Os movimentos romperam o consenso e a percepção política mudou. No Egito, as redes sociais trabalharam com os movimentos de rua, os sindicatos, as bases. No Brasil, se pode ver algo parecido: não se tem uma ditadura, obviamente, mas também um forte consenso ao redor de um tipo de governança. Este consenso era tão sólido que se colocava como indiscutível, seria fantasia qualquer alternativa. De repente, foi colocado no centro da discussão, e por fora dos canais institucionais da representação. Se pensarmos também no 15-M europeu, havia um consenso consolidado ao redor de um governo financeiro da Europa, com o poder concentrado em grandes bancos, grupos de investimento, onde os próprios estados- nações e a União Europeia não passam de filiais do sistema financeiro. De repente, imprevisivelmente, e de maneira bem material, rasgou um dissenso na inteira lógica de funcionamento da política nesses países. Também nos Estados Unidos. Se olharmos pro movimento Occupy, ele abriu uma alternativa real a um debate bipartidário completamente

description

entrevista

Transcript of A Revolta Contra a Inclusão, Entrevista de Bruno Cava

Parte superior do formulrioBusca AvanadaParte inferior do formulrioA revolta contra a incluso, entrevista de Bruno Cava19/09/2013Por Bruno Cava / Gigi Roggero

Entrevista deBruno CavaporGigi Roggero(presencial), 14/7/2013, paraCommonware(em italiano) | Trad.UniNmade Brasil

Qual a genealogia e as formas de desenvolvimento do movimento no Brasil?Devemos comear por dois pontos importantes. O primeiro diz respeito ao fator global: perderemos qualquer coisa de decisivo se no olharmos ao contexto. Tiveram lutas na Turquia e no Egito, teve um inteiro ciclo de lutas comeado em 2011: impossvel no ver algumas caractersticas em comum. Por exemplo, antes da revoluo rabe, existiam ditaduras, um consenso slido como rocha por uma governana muito verticalizada, e coisa de duas ou trs semanas a rocha ruiu. Os movimentos romperam o consenso e a percepo poltica mudou. No Egito, as redes sociais trabalharam com os movimentos de rua, os sindicatos, as bases. No Brasil, se pode ver algo parecido: no se tem uma ditadura, obviamente, mas tambm um forte consenso ao redor de um tipo de governana. Este consenso era to slido que se colocava como indiscutvel, seria fantasia qualquer alternativa. De repente, foi colocado no centro da discusso, e por fora dos canais institucionais da representao. Se pensarmos tambm no 15-M europeu, havia um consenso consolidado ao redor de um governo financeiro da Europa, com o poder concentrado em grandes bancos, grupos de investimento, onde os prprios estados-naes e a Unio Europeia no passam de filiais do sistema financeiro. De repente, imprevisivelmente, e de maneira bem material, rasgou um dissenso na inteira lgica de funcionamento da poltica nesses pases. Tambm nos Estados Unidos. Se olharmos pro movimento Occupy, ele abriu uma alternativa real a um debate bipartidrio completamente pacificado sobre o capitalismo, um tipo de pressuposto invisvel, mas que voltou cena pblica desde sabe-se l quando.Nas revolues rabes, no 15-M e no Occupy, as pessoas saram s ruas, ocuparam praas, multiplicaram encontros, criaram novas formas de organizao e novos discursos, e colocaram radicalmente em discusso o fundamento de uma governana que, at pouco tempo, era invisvel e mesmo intocvel. A produo de subjetividade chacoalhou as coordenadas da poltica. Penso que no Brasil, vimos alguma coisa de semelhante. As pessoas no apenas foram s ruas e praas para se manifestar contra os governos, mas tambm deixando claro que estavam em xodo em relao s bandeiras dos partidos, sindicatos e todas as instituies da representao, inclusive os grandes veculos de imprensa, que se colocam como representantes da opinio e moralidade pblicas. Acredito que a conexo global verdadeiramente importante e que o movimento brasileiro esteja inscrito no mesmo ciclo de lutas.Obviamente, e aqui entramos no segundo ponto, no Brasil existem muitas especificidades que no podem ser esquecidas. No estamos vivendo um momento de crise ou recesso e, alm disso, no se d uma fase de rebaixamento social da classe mdia, nem um governo que esteja aplicando medidas de austeridade. mais ou menos o oposto: vivemos num tempo de crescimento econmico estvel, do incio at o fim do governo Lula, de 2002 a 2010, continuando num ritmo constante no governo Dilma. Lembremos que Lula e Dilma so do mesmo partido, ela era o principal ministro de Lula, e a sucessora por ele indicada. Nesse perodo Lula/Dilma, vivemos uma fase de incluso social: em uma dcada vimos milhes de brasileiros atingirem um nvel indito de renda e acesso ao consumo, um nvel relativamente digno. No pas sempre houve uma elite branca muito rica, uma delgada camada mdia e uma ampla base de pobres sem a possibilidade sequer de construir um futuro, sem a possibilidade de estudar ou trabalhar seno em condies extremamente precrias, sem renda garantida e com reduzido acesso ao mercado de consumo. Na ltima dcada, teve uma forte distribuio da riqueza social e um nmero verdadeiramente impressionante de pessoas tem, hoje, condies de pensar prospectivamente e organizar um futuro. Em termos de subjetividade, vimos uma transformao social drstica e profunda, que mudou a sociedade brasileira. Os pobres agora podem entrar em lugares que sequer sonhavam atravessar a porta. Por exemplo, a universidade: em 2003, menos de 10% da populao completava uma graduao e, atualmente, o nmero aproximadamente o dobro. Mas isso se v tambm no cotidiano por toda a cidade. Os pobres agora compram produtos no supermercado, fazem turismo, vo a pet shops ou sales de beleza, chegando a mercadorias e servios antes impensveis.Comment by usuario: Influncia de Jess aqui;;;;;Portanto, no tivemos rebaixamento, mas o oposto. Tivemos uma nova composio social nascida do crescimento econmico. No tem como dizer, agora, que as revoltas no Brasil sejam contra a excluso, porque o que vimos foi a incluso na sociedade. A insatisfao, assim, vivida na pele e gritada na rua, contra um projeto de incluso.Podemos e devemos entrar no campo das hipteses, e muitos esto j refletindo sobre as revoltas de grande escala no Brasil. Eu penso que um bom ponto de apoio para essa reflexo, pensando do ponto de vista da composio social e de classe, que o ponto de vista de um materialismo consequente, o livro do socilogo Jess Souza:Os batalhadores do Brasil. uma pesquisa emprica em que o autor se prope a descrever os dramas, as angstias e o sofrimento dessa nova composio social, aparecida na ltima dcada, e que tenta de todas as formas vencer no novo Brasil. As histrias de vida mostram como difcil conseguir o sucesso, o tamanho da montanha de exigncias, cobranas e expectativas carregadas sobre cada um. Porque na medida em que as pessoas agora tm o acesso ao sucesso, tambm podem fracassar. O fracasso vem a reboque como contrapartida ao futuro. A sociedade brasileira, afinal, no uma sociedade clssica de bem estar social. Longe disso, do paradigma que encontramos nos livros e que sempre se refere Europa do ps-guerra, os Trinta Gloriosos etc. Aqui, temos uma sociedade ultracompetitiva, submersa na precariedade, flexvel, um mundo do trabalho marcado por uma cobrana intensiva e individualizada. Para vencer, no preciso apenas estar qualificado para trabalhar, mas estar preparado emocionalmente, ter um perfil empreendedor, ser polivalente em qualidades e virtudes, ser bonito, arrojado, simptico, estar bem dotado de capital cultural e intelectual. Isso tudo carrega a subjetividade de uma enorme presso.Antes, a maioria dos pobres vivia na lei da sobrevivncia, na labuta diria pelas necessidades bsicas, sozinho num mundo inacessvel, fechado, spero, essencialmente injusto, onde a telenovela parece outro planeta. S que, agora, com a abertura do mercado de trabalho e consumo, com a incluso de milhes, a sobrevivncia est projetada para o futuro como um item que voc pode conquistar ou no, e que depende de voc. O controle da subjetividade diferente, mas nem por isso menos tenso. Voc passa a ser responsvel individualmente pelo seu sucesso, e tem de fazer mil coisas difceis e diversas, para chegar l.Nesta perspectiva, outra linha de pesquisa que me parece til para compreender as manifestaes brasileiras est, por exemplo, no importante livro de Maurizio Lazzarato,A fbrica do homem endividado[sem traduo ao portugus]. um livro que se aplica tambm ao Sul, mesmo fora das condies da crise do Norte. Aqui se vive outro tipo de crise, do ponto de vista da subjetividade. A dvida, aqui, no financeira. uma dvida subjetiva que empurra voc a vencer, para ser uma pessoa bem sucedida, para avanar, superar os obstculos, adaptar-se. Em suma, a nova classe mdia mais um contradispositivo da subjetividade, uma espcie de fardo, que mobiliza os emergentes entre certo sucesso e certo fracasso, quer dizer, um modelo de incluso que vai muito alm do plano econmico ou sociolgico. Nesse esforo sempre inglrio para vencer no novo capitalismo brasileiro, se explicam pelo menos em parte vrios arranjos de sucesso, como a ascenso das igrejas neopentecostais, a retomada de esquemas familiares, autoempreendedorismo.Portanto, esta a situao no Brasil: h uma nova composio social, h uma presso subjetiva cortando-a por dentro, e ao mesmo tempo no existem bons sistemas de transporte, sade, segurana pblica, educao. Os nibus, trens e metrs, em especial, so lugares de sofrimento, sufocantes na hora do rush, superlotados e extremamente lentos. Apesar de tudo isso, nesta construo antropolgica de subjetividade do novo mundo do trabalho brasileiro, aparentemente no existia uma insatisfao de grande escala, disseminada, alm de revoltas, tumultos e pautas mais pontuais e circunscritas a temas especficos. Parcialmente, isto se deve porque o prprio modelo de incluso mobiliza a culpa individual: so as pessoas que, no final das contas, esto devendo, nasceram devendo, e devem responsabilizar-se por isso.Pode dar exemplos de como isso ocorre concretamente? Como se v o novo Brasil e os brasileiros?Por exemplo. Se estou no nibus prensado na carne alheia por mais de uma hora para voltar pra casa no culpo a organizao do transporte coletivo, mas a mim mesmo, por no ter sido bem sucedido o suficiente para comprar o conforto de um automvel. Se minha filha est penando na fila de um hospital por atendimento, me culpo por no ter sido capaz de vencer a ponto de pagar um bom plano de sade. Se tenho de coloc-la na escola pblica, igualmente lamento no ter obtido o sucesso necessrio para matricul-la numa escola da classe mdia. E assim por diante, a culpa sempre do indivduo que no conseguiu realizar o que deveria, no se esforou, no se adaptou o suficiente. Tudo nos leva a crer que s temos deveres e no direitos. Agora, imagine se parte desse gigantesco esforo de adaptao e trabalho, que precisamos investir para obter boa educao, transporte e atendimento de sade, fosse investido em uma luta poltica pela reinveno, reforma e melhoria dos sistemas de educao, transporte e sade? Quero dizer, em vez de se culpar individualmente por no vencer no sistema, por que no questionar o prprio sistema. Parece abstrato culpar o sistema e exatamente isso que tenta fazer parecer o grande consenso em vigor. Mas no . Existem caixas pretas, acordes e conchavos bastante reais, envolvendo muito dinheiro, ao redor da organizao urbana do transporte, dos planos de sade, da lgica de funcionamento da educao.Tudo isso , na verdade, um arranjo material de interesses e esquemas: a maioria discutidos em gabinetes e campanhas eleitorais, inacessveis populao que, no final, quem paga tudo. Essa situao esdrxula, onde temos culpa por tudo e estamos endividados por tudo, na minha anlise, foi um fator desencadeador da escala massiva dos protestos brasileiros. As pessoas perceberam que a culpa no era delas, especialmente quando o Movimento Passe Livre questionou a lgica do transporte pblico e, mais importante, os governantes tiveram de recuar e fazer o impossvel: cancelar o aumento. que alm das planilhas e clculos objetivos de especialistas, com que tentam nos convencer que no d mais, existe uma margem bastante palpvel que a margem de lucratividade, compromisso poltico-eleitoral e explorao,margem sistmica, numa monstruosa e insacivel extrao de tempo, vida e energia das pessoas includas no novo Brasil e suas cidades. O problema, enfim, de organizao, sistmico porque transcende a esfera meramente individual, a conscincia e o mrito de cada um, incidindo diretamente sobre o plano poltico. O preo das tarifas um tema poltico, jamais econmico.A situao explodiu com um acontecimento contingente, a Copa das Confederaes. Existe esse esteretipo do Brasil como ptria das chuteiras, lugar de alienao onde o futebol no passa de pio de povo. Mas coincidentemente os maiores protestos da histria do pas se deram em meio a um megaevento do futebol. Mais do que isso, foi na mdia esportiva e seus jornalistas que apareceram as opinies mais crticas realizao dos megaeventos, contrastando com a absoluta cumplicidade e at ufanismo por parte dos jornalistas convencionais. Isso faz parte da estratgia de capitalizar o Brasil atraindo investimentos, uma espcie de marketing poltico pela sua insero no mercado global, na nova ordem mundial. Essa plastificao soa como uma ofensa.O fato que os brasileiros quando veem a imagem que se est vendendo do pas no estrangeiro, s podem ficar indignados. Quem v de fora a propaganda oficial parece que o pas maravilhoso, primeiromundista, quando h deficincias graves e humilhaes em setores essenciais, como saneamento, sade, educao, cultura, segurana pblica. preciso mostrar os ps de barro do colosso, diante de uma publicidade to enganosa.Podemos no viver uma crise recessiva, mas sucede uma crise do crescimento, uma crise da nova sociedade brasileira e sua composio social profundamente ambivalente. Muitas pessoas uma hora se indignam e se revoltam contra o modelo molar de incluso. Nas revoltas, existe uma positividade, as manifestaes esto assentadas numa vontade de viver e expandir diferente, uma construo comum de alternativas constituintes. Nada disso entendido pelo governo federal, que insiste nos slogans do Brasil Maior e do Brasil Rico, sem prestar ateno (e at desprezando) em qual riqueza e grandeza as pessoas tm sonhado.Tem-se ento no Brasil uma revolta contra a incluso. Tambm sublinhaste como no se pode falar em rebaixamento, mas ao mesmo tempo falacioso o argumento da nova classe mdia. Podemos dizer que, no Brasil, essa camada mdia j nasce rebaixada e precarizada? Ou seja, j imediatamente proletariado cognitivo?Concordo. Penso que no Brasil historicamente saltamos a casa dowelfare state; que a nossa histria, ao contrrio do que teorizam intelectuais colonizados, no um jogo da amarelinha onde o cu o primeiro mundo. Aqui talvez sequer seja caso de andar pra frente, quem sabe pros lados, como o caranguejo. Os sociaisdemocratas europeus dos anos 1960 e 1970 sonhavam com o pleno emprego e os nossos, colonizados, com a Sucia. Quanto complexo de inferioridade! Paradoxalmente, j nascemos numa situaops-moderna. O ps-estruturalismo foi inventado pelos ndios e no por acaso Levi-Strauss levou para o outro lado do oceano e deu noAnti-dipo.H cerca de 10 anos, quando a polcia subia o morro tinha um s objetivo: extermnio, controle violento dos negros. Era chacina o tempo todo. Agora, embora a forma-caveira persevere, sobem tambm os bancos, a formalizao dos servios. A lgica agora de pacificao e no extermnio. Essa paz obviamente do medo, que permita uma relao de fora favorvel para explorar o territrio de maneira ordenada. O que significa: expandir a franja do capitalismo, concentrar a explorao e incluir a populao no mercado de trabalho e consumo. Isso, como toda franja capitalista, tem dois lados. Por um lado, aumenta em molecularidade o controle, transmudado de sua forma mais disciplinar. Por outro, mobiliza capacidades e ferramentas da populao, que passa a exigir mais e aumentar a sua esfera de direitos, a sua posio como sujeito. O pacote pacificao signo de uma ambivalncia, o que se pode condenar, contudo, estabelecer a unidade dessa pacificao como tarefa de polcia civil ou militar, no importa, so igualmente brutais e racistas. Por que no uma unidade de polticas pblicas, oupolticas do comum(UPC)?Contrastando com teorias catastrofistas da esquerda, que s veem o pobre e a favela como vtimas, como lugar infernal, Giuseppe Cocco trabalha h muito tempo sobre esse conceito de mobilizao produtiva dos pobres. uma retomada da favela como usina, como fbrica de desejos, franja de subjetividade. Isso tem um lado tico e esttico muito forte, e vai alm de interpretaes paternalistas para instalar nas comunidades e suas tradies de luta uma qualidade constituinte. Isso est acontecendo no Rio e em outras grandes cidades. Essas pessoas no aceitam mais quaisquer empregos subalternos, condies humilhantes, e esto se proletarizando, ou melhor, socializando noutros termos, se organizando de outras maneiras, novos coletivos e movimentos poltico-culturais.Uma boa pesquisa seria identificar no s os novos circuitos de valorizao e formas difusas de explorao do novo proletariado, mas tambm as bacias de trabalho vivo, os modos inovadores de cooperao social, viver junto, de criar.Antes, voc acenou sobre o papel dos jovens, a juventude como categoria poltica e no exclusivamente anagrfica. Pelo que voc diz, os jovens esto imediatamente socializados dentro de um novo modelo de incluso social do Brasil Maior. Quanto e em que formas a questo geracional pesa na composio de classe?O movimento do Passe Livre, que afinal disparou as revoltas em junho, composto por pessoas na faixa dos 20 anos. realmente incrvel. Nas manifestaes, os grupos de ao direta so milhares e milhares de garotas e garotos com 16, 17, 18 anos, estudantes do ensino mdio, alm de muitos universitrios. Eu vi vrios com uniformes da escola pblica. Este um elemento incontestvel. Vimos por outro lado os antiges, eu incluso, em vrios momentos tmidos, hesitantes, e alguns inclusive com uma atitude de desprezo e at repulsiva. Consideram-se militantes de stimo dan e esto perplexos, porque os protestos tambm so contra as bandeiras vermelhas da esquerda, dos partidos, e tambm contra o governo federal do PT e de Dilma. Houve hostilizaes contra isso e ns estvamos ali, sem saber para onde ir, em meio a uma juventude positivamente selvagem que, todavia, estava muito bem organizada, com pautas muito consistentes e uma percepo agudssima sobre a realidade bloqueada.Temos que levar em considerao que essa nova gerao j cresceu num outro Brasil, na nova sociedade profundamente ambivalente de que eu falava. No viveram politicamente os tempos de FHC, a terra arrasada dos anos 1990, e no compreendem como a gente compreendia a luta antineoliberal, que s privatizaes e ao mercado dizia vivas ao estado. J nasceram politicamente no governo Lula e no vo se contentar com explicaes que o PSDB pior. Isso no convence, uma chantagenzinha de velho. Tudo isso, para eles, no faz sentido. E bom que seja assim. Esto livres desses vcios que nos tornam hesitantes, ranzinzas e at nojentinhos. Porque Belo Monte, a resistncia da Aldeia Maracan, a luta por renda, mdia e cultura, isso para eles vivido como um imediato contra o estado, e no s um problema do mercado. Est tudo misturado, como se tivessem contornado a guilhotina da modernidade entre pblico e privado. Na minha opinio, e espero no estar enquadrando demais essa carga selvagem, o discurso do comum imediatamente consistente com essa febre geracional.Comment by usuario: algo que escrevo em algum texto....Eles dizem: ok, esta minha possibilidade de existir, de viver sem seguir o que j estava preparado para mim, minha chance de dizerno montanha de expectativas e culpas, do mercado, do estado, da famlia, ento eu vou l e fao meu caminho.Tem, sim, um componente geracional.Voc citou algumas vezes o conceito de comum: alm do que existe nos lxicos polticos, em que modo concretamente importante nas lutas e qual a sua relao com o pblico?Como eu disse, nos anos 90 no Brasil, parecia claro a muita gente que a direita era pelo mercado, a privatizao e a globalizao financeira, enquanto a esquerda defendia o estado, o pblico e a proteo dos pases pobres contra a globalizao. ramos pelos servios integralmente pblicos e de qualidade, por uma sociedade com um estado forte, que pudesse confrontar o poder econmico e os arcasmos regionais e, de cima a baixo, realizar a justia social. Quando eu tinha 16 anos, eu acreditava piamente nisso. O iluminismo no ilumina a gente ele ilude, no ?Veio a esquerda ao poder, Lula foi eleito em 2002. As receitas neoliberais foram dando lugar para uma matriz mais sincrtica, misturando algumas polticas do tempo do FHC (ortodoxia financeira, algumas privatizaes), com o nacional-desenvolvimentismo na linha furtadiana. Mas tambm inovaes, de fato tmidas, embora importantes, seja em termos programticos, como a massificao das polticas sociais, os pontos de cultura, seja de abertura para os movimentos, como forma de governana. Dilma sucedeu Lula, e fortaleceu no discurso o lado gestor, da eficincia e modernizao do estado. A minha impresso que ela pensa efetivamente como a esquerda pensava nos anos 1970. Isso toca, por vezes, nas estratgias desenvolvimentistas de certo setor formulador e intelectual das ditaduras militares, a exemplo da equipe do ex-presidente Geisel. O signo mximo, sem dvida, a barragem de Belo Monte, que vai ser a terceira do mundo e servir essencialmente para fortalecer a primarizao da economia no norte do pas (grande indstria mineradora).Por isso, as manifestaes esto se revoltando tambm contra o estado. Contra um estado muito distante da composio social, incapaz de comunicar-se, de ser perpassado desde baixo. O Grande Projeto est surdo e mudo, resume-se a viver de publicidade, gabinetes fechados, e pesquisas desde o alto de opinio e popularidade. O governo pretende colher o apoio a jusante, sem fazer o dever de casa de uma democracia. Esse descompasso se abriu nas ruas, onde preciso reformular tudo, voltar prancheta. a, nessa necessidade de positividade, que eu vejo o comum como uma resposta em movimento. Existe, sim, um desejo de organizao que no passa pelas formas representativas, que no quer mais saber dos mil conchavos e lobbies envolvidos na governana. Que no querem fazer megabarragens e megaobras para capitalizar a imagem do Brasil ou auferir divisas pela exportao de commodities. Porque os representantes dizem que no tem outro jeito. Mostram planilhas, infogrficos, leem as tendncias internacionais. Mas tem que ter outro jeito. As pessoas esto construindo isso, quando, em grande xodo, recusam os partidos, bandeiras e movimentos de esquerda ou direita. Esse comum est espessando graas a novas redes, formas de comunicao, formas de controle democrtico e deliberao. Da podem surgir outros modelos de governana no nvel dos servios, da sade, cultura, educao, transporte.No Brasil, o comum no tanto uma questo de inovao terica, mas uma alternativa constituinte que se impe pelo prprio impasse oferecido pelos representantes, na camisa-de-fora entre pblico e privado.Nas revoltas brasileiras, como a relao entre o movimento e a esquerda, que costuma ser o portador do discurso histrico da defesa do pblico e do estado?A esquerda tradicional no Brasil, estou falando do PT, PCdoB, PDT, PCB, PSOL, PSTU, movimentos sociais, centrais sindicais, UNE, UBES e alguns outros, foram pegos totalmente de surpresa pela magnitude que a coisa galgou em pouqussimo tempo. A reao foi de assombro generalizado. E da comearam a surgir discursos de primeira hora. Tiveram os que frisaram no ter nada a ver com isso, e fizeram questo de marcar atos e passeatas separados do movimento selvagem. Tiveram outros que, no governo, na situao, julgaram que os maiores prejudicados seriam eles mesmos, que tinham as eleies de 2014 j calculadas e definidas, e a partiram para estratgias de desqualificao e, os mais pelegos, de criminalizao. Tiveram os que ficaram repelidos pela presena de pautas incomuns esquerda, e alguns minsculos grupos da direita, sem representatividade nos protestos, mas que foram suficientes para ativar um medo totalmente irracional e mecanismos de defesa, com abundante abuso da palavra fascismo. A tese da manipulao tpica da mentalidade colonial. O esquerdista pensa como o colonizador: o outro incapaz de autodeterminar-se, incapaz de querer o melhor para si, e que quem tem a razo ele mesmo, o conscientizador, e que essa razo precisa ser encarnada no estado socialista. Essa a construo do socialismo: eles mesmos encarnados no poder para civilizar as massas brbaras. quase uma constncia histrica serem atropelados pelas revolues que s conseguem elogiar nos livros.E tiveram, claro, intelectuais orgnicos muito bem orientados pelos dirigentes que no tiveram qualquer pudor em usar seu capital acadmico (medido pelo sistema Lattes) para engrossar o caldo da represso violenta. O caso mais grave, na minha opinio, foi da filsofa Marilena Chau, que palestrou na academia da polcia militar que fascistas eram os manifestantes.Enquanto muita gente se mobilizou na alegria de ver algo diferente finalmente acontecer num pas onde sempre se falou em alienao e desmobilizao, a esquerda tradicional fez o papelo de se diferenciar ela mesma da multido, que provou conhecer somente na teoria ou atravs de pesquisas de opinio e eleitorais. Muitas mscaras caram, da esquerda na situao e na oposio, e eu no tenho dvida que as pessoas que se revoltaram e foram s ruas vo se lembrar disso. Tem muita gente de esquerda, alis, que tem medo que realmente ocorram grandes manifestaes. Isso ameaa a sua reserva de mercado, mexe com sua identidade querida, no final das contas s mais uma zona de conforto burguesa onde podem estabelecer relaes de amizade, produo ou amorosas com alguma segurana e autocomplacncia. realmente triste o grau de impotncia de parte de nossa esquerda, um complexo colonizado.Voltemos genealogia do movimento no Brasil. Em que grau pode recompor e transformar lutas precedentes, e em que grau pode criar perspectivas comuns?No vejo, hoje, a esquerda tradicional, sejam partidos, sindicatos ou movimentos sociais, capazes de unificar e dar direo intensa mobilizao da sociedade brasileira, na dimenso poltica e produtiva. Acredito que a massificao dos tumultos e lutas pode acontecer, outra vez, atravs de aes tticas feitas no momento certo, a exemplo do que o MPL conseguiu ser o estopim, em junho. Essas aes esto conjugadas com uma indignao difusa que se manifesta onde a vida mais tensa: no transporte coletivo, na sade, na educao e outros mbitos cheios de plvora. Obviamente, a iminncia e a realizao da Copa do Mundo vo tensionar ainda mais a situao, alm das eleies de 2014, onde sero votados presidente, governador e parlamentares federais e estaduais.Se uma recomposio de classe no nvel organizativo possvel, se d com outro tipo de movimento, e outro tipo de comunicao. Est em construo, talvez seja difcil enxerg-la, e prefiro no fazer postulaes que paream abstratas ou metafsicas. Que sei eu de utopias? Sei que a luta continua e s ela ensina, como gosta de dizer uma companheira tradutora da Vila Vudu. Grupos como oFavela no se calapromovem arranjos inditos, com capilaridade nas favelas, mas tambm no asfalto. Outras mdias, como o jornalNova Democracia, ou esses maratonistas com cmera na cabea fazendostreaming, contam-nos outras histrias diretamente dos acontecimentos. Tem muita coisa de bastidor, matilhas amorosas de preto, grupos esttico-polticos, outra produo cultural, como por exemplo oNorte Comum, no Rio. Os camels, os sem tetos, os artistas de rua, os hackers, as vadias, os precrios, todos continuam na sua construo diuturna de outra cidade, e atravessam as manifestaes na medida de seu desejo e sua raiva.Estamos, ns da UniNmade brasileira, pesquisando as formas embrionrias e produzindo conhecimento nas lutas e para as lutas, isso certo e para mim gratificante. A esquerda se perdeu num compromisso histrico em que a juventude e todos ns revoltados e indignados no nos sentimos comprometidos. No posso deixar de estar otimista.Bruno Cava militante e blogueiro, publica oQuadrado dos loucose participa da redeUniNmadeGigi Roggero pesquisador precrio das lutas na Europa, autor deFbrica do saber vivo, participa do projetoCommonware