A Revisão Dos 2000.

16
ISBN 972-46-057 1-X Título original: Trad11 çllo: t\dl'li no dos Sa nt os Rodrigues Pour soitir du vingtieme siec le I Co po: Jnr g · Mu · h11d o l) ill s © Ferna nd Nathan Ediçc 1o: 11 ." O I 11 11 007 Direitos re servados para Portu ga l por Depósito 11•!1"1: n," 77 ')4 11/'!4 Ed it or ial Notícias l111p res ,. " I' om l 111/ll' lll n: Rua da Cruz da Carre ira, 4-B - liOO USBOA I Gráf i o Mu nu •I lln r·IJo sll & !'i lhos , Lda. .J I I I : EDGARMORIN AS GRANDES QUESTÕES DO NOSSO TEMPO 4. 3 Edição ... E:t EDITORIAL NOTÍCIAS

description

Capítulo do livro As grandes questões do nosso tempo, de Edgar Morin.

Transcript of A Revisão Dos 2000.

Page 1: A Revisão Dos 2000.

ISBN 972-46-057 1-X

Título original: Trad11çllo: t\dl'li no dos Santos Rodrigues

Pour soitir du vingtieme siecle I Copo: Jnrg · Mu ·h11d o l) ill s © Fernand Nathan Ediçc1o: 11 ." O I 11 11 007

Direitos reservados para Portugal por Depósito 11•!1"1: n," 77 ')411/'!4 Editorial Notícias l111pres,,. " I' om l 111/ll' lll n :

Rua da Cruz da Carre ira, 4-B - liOO USBOA I Gráfi o Mu nu •I lln r·IJosll & !'i lhos, Lda.

.J

I ·

I

I

I

:

EDGARMORIN

AS GRANDES QUESTÕES DO NOSSO TEMPO

4.3 Edição ...

E:t EDITORIAL NOTÍCIAS

Page 2: A Revisão Dos 2000.

1.

A REVISÃO DOS 2000

VER? VER ...

Há meses, quando me dirigia para a Casa das Ci&ncias do I (omem e me preparava para atravessar a rue d'Assas, no cruzamento I t pnil/Cherch-Midi/Assas, vi um «dois cavalos» passar o sinal encar­lltd e derrubar um motociclista que atravessava tranquilamente no

r I . O automóvel parou, o condutor saiu e eu corri para testemunhar 1 tvor da vítima, que se levantava penosamente.

M s o automobilista disse-me que fora o motociclista quem pas­m o sinal encarnado e fora chocar com ele. Como ? No tocante

d siiilal verifico que já não estou tão seguro, mas no que diz t J1 I choque bem vi o Citroiin embater no duas-rodas. O auto-' ' • I 1 m stra-me o seu guarda-lamas esquerdo ligeiramente amol­

' 1, I' I ) choque. Não há dúvida que foi ele o atingido. O que o 1 1 •lu 11 ., desmentiu.

c •tlllfl ndi de súbito que a minha percepção se ordenara ime-1 j '''' 111 m função de uma aparente racionalidade: o pequeno

I ••ui d , fora o grande que derrubara o pequeno e portanto Hll Je. Estava certo de que vira bem, mas pouco depois

111 I 1 11 invalidara a minha visão. Verificava em mim mesmo I 111 hecida e de que já me ocupara lllum livro antigo:

llu inatória da percepção. T.rata-se de uma experiência tul erros de percepção nas testemunhas de acidentes

1 I r cpto em casos absolutamente flagrantes, em que tr p I um peão na passagem dos peões, as declara-

13

Page 3: A Revisão Dos 2000.

ções variam de testemunha para testemunha, em função não só do ângulo de visão, da existência de um factor visível a um e invisível a outro, mas- também da emoção e do sMtimento. Estes exemplos aparentemente menores (mas que em caso de acidente são de impor­tância vital para os p~Cotagonistas e sobretrudo para o acidentado) reconduzem-nos ao grande problema do testemunho. Li em adoles­cente o livro de Norton Cru, precisamente intitulado Do Testemunho, em que se fazia uma críítica implacável às cctestemunhas que juram a pés juntos», como se participassem dos dois lados da batalha nos mesmos combates da I Guerra Mundial. Jiá quase me não recordo do conteúdo do livro e os seus numerosos apontamentos foram dispersos pela Gestapo durante a Ocupação; mas ficou-me a forte impressão de que devemos desconfiar da única coisa fiável de que dispomos para contar a nossa história e escrever a história: o testemunho.

Como já disse, a percepção contém uma componente alucinatória. Assim, é bem conhecido que na leitura ráipida de um texto o nosso olhar abarca apenas determinados blocos de letras a partir dos quais reconstituímos espontaneamente a integralidade da frase. r!: por isso, aliás, que temos tanta dificuldade em distinguir uma galha tipográ­fica; a visão global a partir de elementos privilegiados permite economizar a leitura de todos os elementos. Assim, por exemplo, pergunto a mim mesmo quantos leitores notaram que fiz imprimir deliberadamente a palavra galha em vez da palavra gralha? Expe­riências sobre a percepção feitas com bebés mostraram que percebiam bem, até certa idade, a identidade de volume entre dois recipientes de bombons, um largo e baixo e o outro alto e estreito. Mas a partir de certo estádio de desenvolvimento a criança, que vive num ambiente em que estatisticamente as coisas altas são mais volumosas do que as baixas, distiJngue IÍ1I1ledi.<l!tame.tllte oomo 'lltaiÍS vol'lmlOOas as caixas altas em relação às caixas baixas. Isto porque adopta inconsciente­mente uana estmtégàa de peroepção eoonómim, mpida, que comporta poucas probabilidades de erro e é por esse facto «racional». Só depois de certa idade a criança, sensível às excepções desta regra, recooside­rará todas as dimensões da caixa e adoptará uma estratégia perceptiva ainda mais racional.

Nos exemplos que acabo de dar a componente alucinatória da percepção é determinada não por um factor ccirracionab (afectivo, mágico), mas sim por um princípio de racionalidade. No que me diz respeito, era racional que o grande esmagasse o pequeno, e essa racionalidade dava coerência à minha visão. Foi portanto uma racio­nalização imediata que «alucinou» a minha percepção do choque. Mas uma vez informado, nova visão racional expulsou a outra: que o pequeno, distraído, ignorou a mudança do sinal para vermelho e de repente chocou com o veículo que se pusera em andamento quando o seu sinal mudara para verde.

14

Deste modo, não é apenas a intrusão de uma componente afec­tiva ou mágica que nos pode enganar nas nossas percepções, é tam­bém o funcionamento de uma componente aparentemente lógica e racional. Por outras palavras, devemos desconfiar, na nossa percepção, não só do que nos parece absurdo, mas também do que oos parece evidente, por ser lógico e :racional. À primeira vista é muito mais lógico e racional que o discozinho do Sol gire à volta da Terra; mas tudo muda desde que saibamos que o Sol não é um discozinho e sim um astro muito maior do que a Terra.

Onde a oomrponenre Wucinatória deixa de ser rncional (mas per­manece racionalizadora -explicarei mais adiante a diferença entre os dois termos) verifica-se choque, traumatismo, emoção violenta. No caso do motociclista derrubado, havia certamente emoção da minha parte, e essa emoção desempenhou um papel associado, ligado à minha racionalidade representativa. Com efeito, à imagem do grande derrubando o pequeno associava-se a do fraco deitado ao chão pelo f rte, e o receio pela sorte do ferido, juntamente com a sensação de lnj,ustiça, fortalecia a justeza da minha percepção. No entanto, eu não

Lava pessoalmelllte implicado na oolisão e o choque llllaJteniaJ e moral n fooa muito gnamde. Pm Jsso, a oomponenite alu.aiootória da lll nha percepção podia ser eliminada a partir das primeiras mdica-. correctoras.

A componente alucinatória pode, em contrapartida, resistir à i 1 r o . e até, em certos casos, determinar uma aluc~ação pura e

1111 I . nlucinação pura e simples é um fenómeno bem conhecido,

111 ~ru d UtPa111Jte muííto tempo se considerou próprio da aloUOUJra». 111 , I lU\ a gente pode, em circunstâncias extremas, estar sujeita a 111 1111 , quer em condições de grande fadiga (em que especial­

li • 111 o nosso próprio «duplo» nos pode aparecer), quer em condi-' •I 111 ústia, exaltação ou êxtase colectivos. Assim, milhares de

I 1 m visto em Esmima, na altura de uma prédica de 'I vi, o Messias do século XVII, uma coluna de fogo subir

• 1 I ual modo, parece que em Fátima milhares de pessoas ' 11 lu o S I rodopiar e manifestar diversos sintomas de agitação.

'' ''' • 1111 lt nlucinação é um problema-chave. Não só porque toda \1 t ntada, ajudada, por uma componente alucinatória;

1 (11 n componente pode deformar a visão, mas também h d rcrcnça intrínseca, no plano da representação, entre

\ 1 pç . A visão do alucinado tem os mesmos carac-

1 I• utl quo a percepção real para o não-alucinado. '' ••111111 nd r é necessário compreender que a percepção

11111 puro o simples reflexo do que é percebido. O nosso •t 11 rrado numa caixa preta: não «Vê» as coisas

111 I• a si mesmo no termo de um processo com-

15

Page 4: A Revisão Dos 2000.

plexo de codificação e tradução; os estímulos luminosos que impres­sionam a nossa retina são traduzidos, codificados em impulsos que, via os nervos ópticos, vão determinar os processos cerebrais bioquí­mico-eléctricos que determinam a nossa representação. Mas essa repre­sentação é ela própria co-organizada em função de estruturas e estratégicas mentais que determinam a coerência e a inteligência da percepção (assim o nosso espírito restabelece automaticamente a «constância» dos objectos, os quais, conforme se encontram situados perto ou longe do nosso olhar, são enormes ou minúsculos na nossa retina). Por outras palavras, o espírito/cérebro estrutura e organiza representações, isto é, produz uma imagem do real. Essa produção é uma tradução e não uma «reprodução» ou um reflexo. Claro que há impressão na retina tal como há impressão na chapa fotográfica, mas é o nosso espírito/cérebro que, a partir das impressões na retina, produz as suas representações. Consequentemente, a percepção é um processo em cadeia que se oompleta na projecção, sob forma de visão, da representação mental sobre os fenómenos exteriores de que provém.

Quanto à alucinação, trata-se de uma representação desenca­deada não por estímulos visuais exteriores, mas sim por estímulos cerebrais internos. A alucinação é, para o alucinado, intrinsecamente idêntica à visão perceptiva. É efectivamente, como se diz, uma «visão» dotada da sensação integral da realidade. Os Úlnicos meios de distin­guir a percepção da alucinação são meios ;reflexivos pessoais («Mas não, não é possível, isso não existe») que recorrem à coerência lógica, à plarusibilidade, à memória, ou então o il"OOurso a referêmoias exteriores (uVê porventam a mesma IOOiLsa que eu vejo?»).

Quer faça parte do sonho, quer faça parte da alucinação, a dis­tinção entre a visão real e a ilusão não é dada imediatamente. Com efeito, vivemos os nossos sonhos, a maior pavte das vezes, como se fossem a nossa realidade. Só em raros momem.tos, entre vigília e sono, adivinhamos que o sonho, que continua ou morre, não passa de um sonho. Só depois do sonho estabelecemos a diferença, recambiamos o sonho para o irreal, e podemos estabelecer a diferença porque reen­contramos as mesmas estruturas, os mesmos dados, as mesmas cons­tâncias todas as manhãs. No entanto, se fôssemos todas as noites vítimas do mesmo sonho, que decorresse num universo com as mesmas constâncias e inconstâncias do nosso, ficaríamos muito pei1turbados e deveríamos procurar os sinais que diferenciassem o sonho do real numa e através de uma estratégia de elucidação que comportasse espe­pecialmente as comunicações com outrem. Observemos aqui que só numa civilização que comporte uma concepção empírico-lógica do real opomos claramente realidade e sonho. Noutras civilizações, sobre· tudo arcaicas, o sonho é realmente vivido pelo nosso duplo que du­rante o sono se escapa do corpo e vive as suas aventuras.

16

A estratégia de elucidação e alucinação pode ser muito fácil quando a alucinação é extravagante para quem a sofre, muito difícil quando o 100bvíduo «ooredi•ta» oo sua raluoimação, [il0111que aoredái!Ja previamente na ;realidade dos fantasmas, dos espectros e dos espíritos que lhe ~pa:re.oom. e ilgua.lmernte difícil se se 1mlialr de alruJCmção colectiva, pois a referência a outrem inverte o seu valor verificador.

Vemos portanto que não existe diferença intrínseca, ao nível da representação, entre alucinação e percepção, mas que a diferença é fiundamental quanrto ao sentido de uma e de outra, e sobretudo o seu sentido de realidade ou verdade. Vimos que toda a percepção com­porta uma componente alucinatória que pode ser desencadeada ou orientada pela nossa afecrtividade, mas que também pode resultar, simultânea ou principalmente, de estratégias ou de estruturas de racio­nalização a que recorremos em qualquer percepção. Co!lJSequente­mente, o risco da ilusão não resu1ta apenas das perturbações afectivas jou das estruturas mágicas/arcaicas do espírito humano, resulta tam­

b6m da racionalidade própria de toda a operação de conhecimento. uer dizer que devemos desconfiar do testemunho dos «nossos olhos», rque não foram os nossos olhos que viram, foi sim o nosso espírito

1 or intermédio dos nossos olhos. Devemos ser prudentes, não só com o testemunho doutrem, mas

••un m com aquele que nos é mais indubitável: o nosso próprio. Voltemos ao testemunho. Até aqui só falei do testemunho ime­

to. ra, o tempo deteriora a recordação. O que se passa em pri­tt lugar é um processo cerebral inconsciente que quotidianamente

11 uma parte seleccionada da «memória curta» do dia para a 111 111 1 I L de longa duração». Muitos elementos podem portanto cair

111 1110 caixote do lixo do esquecimento. Mas não conterão esses 1 t 1 111 c ouro do pormenor significativo que se prefere inconsciente-

! LI cor ? Além disso, com o tempo, um princípio de entropia ' 1 rdação, que fica como que roída pela traça, lacunar, se , In c tremis, quando a queremos reconstituir passados tantos

1 llll restam bocados incertos . . . No entanto, a recordação 1 1 novuda por meio de rememorações frequentes para nós ou

' 11111t 111 , mo a hisrtória do antigo combatente. Mas então lem-••" 1111 il lUO a representação podia estar/ser deformada/defor-

1 d o iníc io e que com cada relato não só os pequenos 1t 1 1 1 trdnção podem ser remendados por pormenores embe-

111 1 t 1 ml>ém que com o tempo se valoriza cada vez mais •H 111 1 • c autogratificante e se esconde o que se presta à

otlt Nlução. Assim, as recordações dos ilustres devem I •udus do ,que as dos indivíduos anónimos. A ques­

, l rn ça a deformação consciente é secundária, por­n )OScicnte chega para deformar um testemunho.

> da ocultação e os poderes fantasmas do ima-

17

Page 5: A Revisão Dos 2000.

ginário são de tal ordem que bastam para oeteriorar a mais honesta das percepções.

Podemos lutar contra o logro através da recordação recorrendo às recordações doutrem, sem dúvida, mas também dedicando-nos a auto-analÍISar-111os, aut.ooornigir-111os e au'tooritimr-lllOS oontillnmamente. (Ora, essa higiene do espír1to tornou-se desconhecida e ignorada. Elogiam-se e vendem-se actualmente ioguismos de desangústia e resse­neração, mas ignora-se a ginásücajioga do espírito que se auto-analisa a si mesmo. Aliás, os manuais de psicologia há muito tempo que condenaram a «introspecção», método subjectivo arcaico bom para antiquados como Montaigne ou Proust, que ainda não dispunham do Q. L, do psicanalista e do guru).

E eis-nos perante o problema daquele que quer saber o que se passou há um instante ou há um século. Tanto num como noUJtro caso não basta uma investigação para recolher testemunhos, é necessária uma investigação aos próprios testemunhos. Impõe-se uma estratégia de conhecimento. E em semelhante estratégia, como sabem historia­dores e polícias, nada isoladamente possui vaJor absoluto, mesmo a mais sincera das percepções (ainda que possua valor de presunção muito forte, com a condição de se lhe ter reconhecido a sinceridade, o que necessita de ser também averiguado).

O testemunho ocular é um elemento capital, mas não passa de um elemento num trabalho de reconsütuição e verificação através de confrontações. A estratégia de conhecimento desenvolve-se estabele­cendo concordâncias e coerências, mas a conçordância nem sempre possui valor probatório e a coerência pode ser destruída pelo apareci­mento de llliil dado que a contradiga (não ex.iste coerência em si, existe a coerência a partir de dados).

A isso junta-se o problema do falso testemunho consciente, da mentira deliberada para ocultar um facto a<:abmnhante, e do fabrico do documento falso para provar a verdade da sua verdade.

Vemos portanto a dificuldade: um testemunho verdadeiro pode estar cheio de erros, um falso testemunho dispõe de elementos vero­símeis para aqueles a quem se destina.

A estratégia da procura do verdadeiro deve esforçar-se então por determinar o verídico a partir do verosímil, sem necessariamente iden­tificar o verídico com o verosímil (o qual verosímil depende de critérios que variam consoante os espíritos). É necessário proceder à crítica dos testemoohos. Mas uma orítioa q,ue desquali.ficasse ·Uliil re&temooho por oomporta.r alguns er.ros deveria ela própria ser cciticada por seu tUl1IlJO. Isto parece provooatr uma desill'llte§ração em cadocia que aoaba por reduzir a mi,galhas todos os dados. Na realidade não: a crítica que põe em dúvida qualquer testemllll1ho l!iransfurma-se em hii))erorítica e é a hlperoritica que deve ser critioada. Mas se a critica de hi,per· oríti,ca conduz a ;uma ron:fiJalllça s.ubcríti.ca, emltão deve ser oritkad

18

por sua vez. De facto, temos tendência paa:a ser hi!peratiticos em relação a testemiU!llihos qrue nos desagmdam, porque OOI1Jtradizem a nossa própoo visão da :realidade, e temos tendência pare oor siUb­or:íitiros com l!ludo o que Vlá. no nooso semido.

Vemos assim que os mesmos problemas fundamentais envolvem qualquer testemunho, incluindo o do próprio. Daí uma conclusão paradoxal: desconfiemos dos nossos olhos, embora seja só neles que possamos confiar. Como desconfiar e confiar simultaneamente? Este problema não nos abandonará (como veremos, devemos desconfiar da noosa confiança, mas também desconfiar da nossa desconfiança). O problema esclarece-se se pensarmos que os nossos olhos são apenas os nossos olhos, que a visão provém do encontro entre estímulos xroriores, da aotividade impresSIÍIVaj,tJmru<mlisoona do nosso aparelho >cuJar e da actividade representativa do nosso cérebro, e que tudo isso

ti uma percepção. Então, considerando que em toda a percepção são mobilizados processos cerebrais/psíquicos inconscientes, como su­l rnbundantemente mostraram, cada uma à sua maneira, a teoria da t 11'.\'fnlt e a psicanálise, precisamos de processos cerebrais/psíquicos

111 i ntes para examinar, reflectir e autocriticar a nossa visão. Quer ti/ que seremos incapazes de ver bem se não formos capazes de nos

nós mesmos. Dev.emos mobilizar o espírito para controlar os lhos e devemos mobilizar os nossos olhos para oontrolar o pfrito.

O PERIGO INFORMACIONAL

/1/t'rlla constituem o melhor sistema de informação que se h r. Uma teia apertada cobre a superfície do globo, capta

111 diatamente os acontecimentos. Investigadores e jorna-l ulh 1111 nos problemas que surgem no seio das sociedades.

• 1111 instante a possibilidade de verjsaber o que se passa. I 1 I 11 lamente conhecimento da história que se faz. O pla-

11 1 11 1\IIO U-se a laranja azul que podemos contemplar em I I 11111111 lll(,l,

1 111blnformação, pseudo-informação

planeta surge-nos envolto em nuvens. Sofremos uhinfo rmação e de sobreinformação, de falta e

111 1 111 qu se possa deplorar uma superaboodâlllcia de 111111 dtt o xccsso abafa a informação quando somos

1 1 11111~! n11 uptas de :acontecimentos •sobre os quais é

19

Page 6: A Revisão Dos 2000.

impossí~el meditar porque são imediatamente afastados por outros acontecimentos. Assim, em vez de vermos e distinguirmos os contor­no~ e as arestas do que suscita os fenómenos, somos como cegos no mei? ~e um~ nuvem informacional. E se as imagens fortes de fomes, angustias, rumas e desastres se repetem diariamente, como aconteceu durante a guerra ~o Vietname e como acontece no momento em que escrevo _no CamboJa e no Afeganistão, então saturam-se, saturam-nos ~ banahz~m-se. Enquanto a informação dá forma ás coisas, a super­mformaçao mergulha-nos no informe. . Sup~rtamos a supe~nformação; ora, es>ta não é de modo algum mcompativel com a submformação. Subinformação: continentes intei­r?s voltaram a ser desconhecidos; às antigas manchas brancas geográ­ficas ~ucederam as zonas imensas de silêncio sociológico e político, que sao ao mesmo tempo zonas de informação-ficção.

. Sabe-se vários meses ou anos mais tarde que se verificou um motim num~ gr~nde cidad~ da China ou da URSS. Os correspon­den~es. dos. Jornais estrangeiros nesses países estão enclausurados nas capttais, Circula~ em itinerários seleccionados. Para permanecerem no s~u posto envtam tex,tos semi-diplomáticos, semi-informativos, que contnbuem tanto para a desinformação como para a informação.

O nmris mudilto: eXJiste ·uma guerra entre a Chlna e o Viet!llame a~erca da qual não sabemos nada sobre os combates, a estratégia, as c!dades ocupadas ou não, os feridos, os mortos, o vencedor e o ven­o:ldo. A respcito do C3J111:boja apenas dispomos, pana sond&- abismos medonhos, de testemunhos fugazes e de um número- real ? Mftico ? -de quatro milhões de mortos.

Entre nós mmbéan etistem zonas de rombrn mt'oomacional. Assim, quando rebentou Maio de 68 nenhum jornal dispunha de antenas onde se passava/forjava a acção, isto é, nos <<grupúsculos» marginais ~e estudantes revolucionários, e foi preciso este vosso criado para lmfo:nmrar, em Le Monde, ooeroa do qllle se passava (1). Nas fábricas, nas empresas, nos escritórios, nos subsolos da sociedade, a informação não possui rede nervosa (foi em parte nessa zona de sombra que se instalou o Libération) e é atraVIés de «mergulhos» esporádicos, aqui ou ali, qrue se sabe ou ju.l®a saber o que se lá passa.

À subinformação junta-se a informação-ficção. Entre nós, esta encontro-se ci.roul!lJoorita a algurus sootores ou jornais polé.micos 0111 fantasistas. Em contrapartida, impera nos países em que se enclausura e anestesia o informador estrangeiro. Fiquei ex•tremamente impressio­nado com um acontecimento menor aquando da histórica visita de Nixou à China. Em dado momento o presidente americano, seguido dos jornalistas, atravessa o jardim de um pagode onde existe um lago.

(I) •La commune étudiante», Le Monde, de 17, 18, 20 e 21 de Maio de 1968, texto reproduzido em La Breche, por Edgar Morin, Claude Lefort e Cornélius Ca~toriadis, ed. Fayard, 1968 . .

20

Neste cenário encantador vêem-se crianças que lançam barquinhos à água e parzinhos de adolescentes sentados, de mãos da_das, ~ escu.tar transistores. Raparigas .transportam flor~s. O ·~rupo presidencial detxa este espectáculo idílico depois de. os Jornalistas. ti~arem numerosas fotografias. Um fotógra!o vo!ta atras. pouco depo1~, a pr?cur~ de um acessório esquecido. Ve entao que mstrutores saidos n!nguem sabe donde reuniram as crianças e os adolescentes, que estao forma~os. Todos entregam o seu baroo, o seu •tmaalSistor e as suas ~ores ao ms­trutor que, terminada a colheita, apita para dar a partida em passo cadenciado.

Na era estaliniana a encenação proporcionava por toda a pa~e 0 espeotáculo da unanimidade, da adesão entusiasta, da ~nstruçao do socialismo, da felicidade em marcha_. Toda a. gente sabia que ~ra vital para si nunca informar o estrangeiro, mentir-I?e sempre. Assim, a minha amiga O., que ia muitas vezes à Polórua an!es de 1956, regressava sempre eufórica com as palavras dos seu~ _amigos d: yar­sóvia, elogiando os progressos, a liberdade e _a fel!~Idade socia~Ista. Quando se arriscava a fazer alguma observaç~o cnti~a. redargmam­-lhe com azedume e demonstravam-lhe que a. tdeologta pequeno-bur­guesa lhe deformava a visão. Voltou lá depo~s do «Outubro polaco• de 1956 e os mesmos amigos, com a língua fmalmente so~ta, desaba­faram a sua repugnância e o se~ horror pel?s tempos radiosos. ~Mas porque não me preveniram entao ?» Exphcaram-.~he q~ nao se podiam arriscar a ferir os seus sentimentos progressistas. Como n_os diz 0 imolvidáivel po0011a de Wajyck, e5Crito em. 1955, segundo ~o, ou em princípios de 1956, o socialismo cons·egum transformar a agua do mar em limonada. Nas praias, as multidões be?em·na e exclamam deslumbradas: «Limonada! Limonada!» E vomztam_. _ .

Lembro-me doutra anedota. Em 1957 ou 195~, Já. nao sei, um~ jovem comunista de Bordéus estudava Russo na Umversrdade de Lem­negrado e fora adoptada por um grupo de estudantes. russos. Emb_ora permanecesse entusiasta, notava às vezes constrangimentos, coisas absurdas e atitudes duras no admirável siste~a_- Todas as ,v~zes o grupo amigo protestava e atribuía as suas cnticas. a resqmcws de mentalidade capitalista. Passados nove m_eses, _um dia, dur~nt_e uma refeição nova observação crítica, nova discussao, mas ?e subito um dos amigos pergunta aos outros: <<Dizemos-lhe?» D~J?OlS d_a ~pr?v~-

- grupo declara à J·ovem militante que as suas cntJcas sao msJgnJ-çao, o .1 · d · •~~a fiJCootes e superficia.is, que el:es .pens·am rm ve~ . p1or o SISlM!u •

Assim os seus amigos íntimos tinham-lhe expn':udo durante _nov_e meses 'uma Viendade oili.cial que cQil!Si,demvaan mentu.ra. Uma vez ~­tuLda a JlJOVa- e verd,adeina- amimde, most::anam~lhe ,teX/tos OOJlla­d à mão entre os quais um texto da revista Arguments que eu d~~gia então. De regresso a Bordéus, a estudante procurou-nos e informou-nos desta história.

21

Page 7: A Revisão Dos 2000.

. O provincíanozinho do Ocident · 9umtadas artimanhas do Oriente, e ~· Ignorant~ das grandiosas e re-~paz de conceber a profundidade d peque~o mtel~c~ual de esquerda deiXar de se sentir logrados e estu a f mentira estalimana, não podem encenações que vou evocar. pe actos com as duas grandiosas

A primeira diz respeito ao mass d floresta do Leste da PoJónia d acre e Katyn, realizado numa os nazis ocuparam a região at !lr~I_lte a II Guerra Mundial. Quando de uma vala os corpos de 'mil~a~:s em ~~r. dos Russos, exumaram atribuíram o massacre à URSS O G de oficiais e soldados polacos e dres <:ol1tou então as relações d" I oy~rno polaco no exílio em Lon­o acontecimento chegou-nos muit:; ~::~Icas com .a URSS. Na 6poca para nós evidentemente secund, . ado, perdido no meio doutros hi I · ano no moment •

t ~nana ameaçava vitalmente o <:ora ão d Uo em que ~ Alemanha ~çao encarreguei-me de or anizar u ç a . ~- Depois da Liber­nanos)) e a embaixada sog. 't" fma exposiçao sobre ·<<crimes hitJe-

b . v1e Ica orneceu-me ~o, re a ongem nazi do massacre de ?m enorme processo mumeros camponeses da ·- C Katy_n, mil vezes atestada por

regmo. ompreend~a se • 0 em causa não era a realidade d · porque. que estava afirrma.do e oonfinmado :pelas duas

0 ~!!acre de :Katyn, amplamente dade do massacre, que cada uma . atri ,an.~golllJStas, era a paremi­a~bas as teses (quero dizer . se nos ati~eUia a ~:mtra. ~bj~ctivamente, mmadorajliquidadora nazi ou t r . nnos a potencialidade exter­~omeciam informações e testem:h~~n~:a) era~ plausíveis. Ambas e que uma era falsa: se a Polónia fo d q:uantidade. ~as a verdade duas potências, era impossível ue ~a ommada sucessiv~mente pelas massacrados duas vezes. Pelo u~ me ~_mesmo~ polaco~ tivessem sido estabelecida em 1945 . q . IZ respeito, a mmha convicção F

, manteve-se ma1terra.<La di . • oram precisos os anos de 1955-195 manJte_ mUJoo tempo.

d_? próp_rio Pamido Operário Unificad~ ~ara que par~Isse ~as esferas sao nazi: Katyn era obra dos R o aco a confirmaçao da ver­estada em Varsóvia, nas derrad u_ssos. ~laro que aquando da minha em princípios de 1957 me dei eira~ c amas do «Outubro polaco>> autenticação da versão, estalinianaa~ ;ab~Iho (dado o meu papel n~ absolutamente convencida) de ti"ra mmhal_estupefacção ainda não

E l o r o caso a Impo So b 1' d" que sta me metera no Gulag toda a d. - . ~ e a em Isso ~olaco, vítima mais do estalinismo do Ire~~a~ do P~rtido Comunista fmal~ente a espantosa e incrível verrl a . o fascismo, e descobri exercia o poder o estalinismo mat a e .. por t~d~ a parte onde nazismo. ara mais estalmistas do que 0

O segundo exemplo é a gu b . . da Coreia os Chineses anoociar:~a actenológic~. Durante a guerra território norte-coreano bombas che _que dos ~m~r~canos :ança vam em rações de testemunhas oculares e das 't~ mic~obiOs. Inumeras decla­prensa, à rádio e à televisão e VI Imas oram fornecidas à im-

, e numerosas bombas foram recolhidas

22

c exibidas. Sábios estrangeiros de grande renome e alta probidade foram convidados para os laboratórios, onde puderam ver ao micros­cópio o fervilhar imundo. O correspondente de guerra do Népsza­badsàg, jornal do Partido Comooista Húngaro, decidiu dedicar-se à difusão da verdade, procedeu a unia investigação aprofundada e publicou um livro sobre a guerra bacteriológica americana, que foi traduzido em todas as democracias populares e em diversos países capitalistas.

Passados alguns anos esse jornalista voltou a Pequim. A guerra da Coreia terminara. Pairava no ar uma Primavera de «Cem Flores» abriam-se bocas, os gigantescos saltos em frente ainda se não perfi: lavam no horizonte. O jornalista, ainda empolgado pela justa causa, falou da guerra bacter:iruógioa. Mosm-ocarrn-oo ev:asivos, sorriram-lhe amigavelmente e depois, dada a sua insistência, revelaram-lhe que nunca houvera guerra bacteriológica. Houvera decerto testemunhos, bombas, micróbios, mas os testemunhos eram forçados, as bombas não eram bacteriológicas e os micróbios provinham de cadáveres em decomposição. Depois da «Revolução húngara», esse jornalista saiu da Hungria e do partido. Encontrei-o muitas vezes. Contou-me esta história . . . e creio que a escreveu.

Depois, entre outros, houve o caso admirável do Governo Pro­visório do Vietname do Sul, governo de união nacional que conduzia a luta oontna a ocupação amerwall1Ja e os seUJS oolaborradores saigo­neses. A existência e a acção desse governo eram indpbitáveis e os nossos mais eminentes jornalistas, de Olivier Todd a Jean Lacoutlire, sentiam-se impressionados com a sua autonomia em relação ao Viet­name do Norte. Ora, logo após a derrota americana e a tomada de Saigão, esse governo desapareceu. Tal como em Os Contos da Lua Vaga o espectro de uma mulher aparentemente carnal vive ·vários a:nos com o seu ingénuo esposo, também o Governo Provisório, se era efectivamente provisório, não era um governo: era um fantasma !

Estas anedotas ilustram a dificuldade da informação em primeira mão junto dos próprios actores da realidade que queremos conhecer. Julgamos ser testemunhas e somos joguete de uma máquina inaudita destinada aos media. E são os progressos no sistema de informação -precisamente nos media- que permitem e suscitam um formidável progresso na encenação da vida social e política, o que ilustra o episódio NuXIOill que citei. A ;pall1iLr daí já se não tpade ver o que se passa, porque o sistema camufla a verdadeira informação, e o medo que inspira obriga cada um a dizer o que deve dizer. Aterrorizados e aterrorizantes cooperam assim, de forma vital para cada um, na comédia que se pode ver por toda a parte, quer mediaticamente, que directamente. Visitar um país ? Viajar ? Pior: todos os visitantes da China nos anos sessenta, da direita à esquerda, todos os autores de artigos e de livros, com excepção de Simon Leys, viram e descre-

23

Page 8: A Revisão Dos 2000.

ve_r~m a fé Ulllânim~ em Mao, as comunas-modelo, o entusiasmo indes­cntt~e~. a sabedona profunda. a audácia admirável, os resultados prodtgtOSOS.

Não se vê o que_ ~· ~ê-s~ ? que não é, e assim o que é não é (trata-se de uma «caluma IgtiObil») e o que não é é: os pseudofactos proclamam a sua verdade (pela boca dos porta-vozes, dos actores forçados); confessam (pela boca dos acusados).

Assim, o sistema estaliniano publicava e radiodifundia in extenso o_ relato dos proccessos de Moscovo, e sem dúvida os transmitiria em dtrecto se a t~levisão já existisse. Como saber, do exterior, candida­mente, o que e ver<!ade? Como não acreditar que a verdade es,tá do lado das proclamaçoes e das confissões unânimes ?

Reflictam?s um pouco, retrospectivamente, sobre os processos de M~o: os ~·-membros da velha goorda bolohevruqcwe, an.tigos com­pa~eiros de Lénm~, 5onfessar_am publicamente a sua traição perante o tnbunal. As conftssoes constituem uma prova empírica e lógica evi­dente: _um acusado q~e confessa o seu crime é autor dele, a menos que ~eJa louco. A htpótes~ da loucura está excluída quando todos os reus confessam e confumam as perversidades uns dos outros. Ao mesmo _tempo, ? luxo e a precisão dos pormenores concretos com _os quais os traidores descrevem as suas missões de sabotagem e espionagem conferem aos seus depoimentos altíssima verosimilhança.

, _Claro que é perturbante que a maioria dos companheiros de Lerune se lt.enham ~_?miado em S<~Jbotadores e espiões. Mas tendo em ~onta qu~ as conftssoes o provam, uma racionalização a posteríori explicará logtcamente a sua degradação (àqueles a quem não satis­faça a s~rpreendente explicação da traição original dos dirigentes da Revolu~ao de Outu~ro)_: _é a lógica do desvio e a lógica da lUJta que em p_enodo rev?luc1onano arrastam qualquer oposição para a sua próJ?na corru~a<? e, a torna~ permeável _à corrupção estrangeira. Bnfim, o próp~to mcnv_el contnbm para o cnvel: não se pode inventar se~~~hant~ C?Isa ! Ass~m. os processos são verídicos, não só para a o~m~ao publica comumsta, como também para boa parte da opinião publica uburg_uesa~ (que vê ~eles, sem dúvida, alguns excessos, mas eslavos, dostOievskianos, vychmskianos).

E no ent_anto ~udo isso é falso, como o demonstraram oportuna­mente T~otsk1 e VIctor Serge (tal como a falsidade das confissões de Rark foi dem.onstrada em 1948 ou 1949 por François Fejto, num artigo de E~pnt que me marcou definitivamente). Para proceder à sua dem?nstraç~<? :teve de pôr em evidência pequenas contradições, peque­nas ~mposstb!ltdades de facto nas confissões. Esses pormenores pouco c_onststent~s t?r~avam-,se_ decisivos assim que se insistia na impossibi­lidade ps1cologrca e. logtca de quase todos os velhos bolcheviques se poderem ter convertrdo em ,traidores e espiões.

24

Mas se os processos estão viciados, se as confissões são extor­quidas (por meio de tortura ? De ameaças ? De promessas ?), então a sua racionalidade parece desmoronar-se. São obra não da lógica judiciária moderna, mas sim da lá®ica !iatqu.isiJtoria.I, q'llle arrancava por meio da tortura a confissão de possessão demoníaca. Ora é isso mesmo que parece abSiurdo e inverosímil por parte de um partido que diz perfilhar uma doutrina científica, racional, materiali&ta, e de um Estado que pretende ser socialista. Isso só poderia ter sentido se o socialismo sovi&iro oouJrtru;re 'liiiil podetr baseado no Tle:l1rof e na Sacralidade, se o marxismo-leninismo escondesse de facto uma lógica teol~-rnágiJOa. Desde logo, as oopwmções pmmicadas no partido e no eXJéroüto, se enfraqueciam efeotivwnenrt:e as oompetências políitioas de um e as competências militares do outro, reforçavam ao mesmo tempo o Terror e a Sacralidade do poder.

Devia-se portanto considerar que o sistema soviético era o con­trário do que pretendia ser. Ora, nem os fiéis nem os espíritos carte­sianos do Ocidente podiam coiiCeber uma inversão tão grande da sua visão do mundo. Em matéria processual, a sua referência era ou o tribunal da Europa liberal ou o tribunal revolucionário de saJvação pública, e não o tribunal medieval que julgava os templários. A sua visão da URSS era a de uma sociedade sem classes, decerto espartana e disciplinada, mas não de um novo despotismo. Finalmente, se pare­cia absurdo que os réus fossem culpados, parecia não menos absurdo · que o não fossem, e neste double bínd de irracionalidade a única;;:oisa tangível continuava a ser as confissões.

E como~ nesse período tenso, qualquer crítica contra a URSS poderia parecer, na lógica antifascista maniqueísta, um apoio uob~ec­tivo» a Hirtler, esse antifaooismo leViaVJa, senão a aoreditaJr oo IIIleiDJI:ira, pelo menos a duvidar da verdade.

De qualquer modo, para compreender o que se passara seria necessário dispor sobre a URSS dos anos de 1935-1937, sobre a vida real do Kremlin, sobre a verdadeira natureza de Estáline (cuja bon­dade espantosa só era igualada pela modéstia) e sobre as condições em que eram extorquidas as confissões, informações verídicas encer­radas nas masmorras e nos gulags. Em contrapartida imperava a lenda, através das informações oficiais e dos relatos de viajantes. Claro que a verdade era sugerida indirectamente pela linguagem ritual, irnjuriosa, delirante da denúncia estaliniana, e era possível, a partir daJS fulhas e das tÍ!l1JCOOrêooiras das oond'issões, a partir de wonnações autênticas, tecer uma rede empírico-lógica susceptível de permitir compreender o que se passava psicológica, sociológica e historic~­mente. Os informadores autênticos, que conheciam por dentro o um­verso estalmiano porque tinham participado na aventura bolchevico­-comintemiana, falavam de experiência. Mas essa experiência era precisamente o que lhes valia serem identificados com os traidores dos

25

Page 9: A Revisão Dos 2000.

p~ocessos. D~sconfiava-se exaotamente das testemunhas dignas de cré­dito, denu~ciadas . como _hitler~:Hrotskistas ou na melhor das hipóteses como uantlcomumstas VIsceraiS».

~pois, com as reabilitações e as revelações do relatório K. (especia~mente sobre o emprego da tortura na URSS), a verdade veio ao de Cima. E desde ~1111:ão é a amplitude da mentira que causa pro­blemas: ~o~ que motivo o comunismo estaliniano necessitou de produzir mmterruptamente falsa informação ?

Para tentar compreendê-lo originariamente é necessário com­pr~nder que toda a fé_ vir?lenta suscita o fabrico de falsidades para a. J/lillpülf 'aOS olhos d~s m<?Tédulos. Neste sentido, menJte-se por «~S~ince­nd~e», mas essa smcendade não passa da parte emersa de algo ma~s comple~o que inclui o recalcamento das próprias dúvidas. Toda a fe (voltarei ~~ assunto no capÍitulo ((Que crer? Que fazer?») com­porta a sua duvida recalcada, a sua potencialidade de hipocrisia que ~uz a ~ em !toda a boa-llllá :tié. Mas são ãm,dis,pensá.veis ~­çoes especiais palfa q:ue a, :tié ,produza falsidades. iE,s;g,as oondições são os ~OII11~ em que a ifie passa por ruma ex.periência mteniOif critica. Assim, e no. m?mento em q.ue se desmorona a promessa messiânica do regresso 1mmente de Cnsto que se multiplicam as falsidades de todas as. ordens_ que atestam a dilivillndade de Jesus. Diviniza-se Cristo 9u~do_ Já ~e nao espera o seu regresso. A isso juntam-se as falsidades ~stl!uciOnals, como a falsa doação de Constantino que estabelece os drre1tos soberanos dos papas sobre Roma.

Não é menos notável que haja ainda maior necessidade de falsi­dades pa.ra OOil/Vencer do satanismo do mim.iJgo. Bm meados do século passado uma repartição vat~cru;ta exibiu uma mensagem assinada por Satanás encontrada nas algibeiras de um franco-mação. Trata-se do mesmo processo mental que produziu os Protocolos dos Sábios do Sião em que_ uma ass~mb~eia judaica suprema promulga o seu plano d~ corrupçao e dommaçao do mundo.

Estou .ii'l~namente convencido de que a grandiosa fábrica de falsi­dades estalm~ana tem na origem o mesmo tipo de causas. Foi no mom_<:_nt? em que se tom'?u. evi~ente, que se não cumprira a mensagem mes_s1a:mca de Mar~ e Lénme, Isto e, o advento do comunismo inter­naci?n~l e da sociedade sem classes, que se edificou a teoria do «S0~1~.hsmo num só J?.aís». ~ que se difundiu a imagem do uparaíso SOCialista». Desde entao, m~nterruptamente, a informação é dedicada a descrever o~ progressos mcessantes desse socialismo ideal, e tudo o que_ contradiga ou negue esse progresso é levado à conta de neo­-satm~o, que 111a época de Estáline adquire o aspeoto de ·«ihitle:ro­:tr~ts.~I~mo>>. A p~rtir daí, co~o na Idade Média, grandes encenações JUdicmr~as produzuam as confissões dos agentes diabólicos infiltrados no partido, por vezes nas suas cúpulas, o que é de fraca lógica racio­nal, mas de alta lógica mágico-religiosa. O inimigo satânico, como na

26

v cristã, está sempre prestes a sair vitorioso, mas as suas horrí':eis 111nquinações também estão sempre votadas ao malo_gro . Assim, quanto mais o imperialismo recua e se afunda, t~~t~ ~ais ameaçador

t ma e tanlto mais importa não afrouxar a v1grlancm. Actualmente, o Leste, russo e chinês, continua a alimentar o seu

rn lto e a produzir a sua lenda. Mas aqui, do exterior, já quase lhe n sofremos a fascinação. Não porque nos tenhamos tomado por nós próprios mais lúcidos, mas sim porque os aco~tecime.nt?s interno~, M URSS desde 1956 e na China desde 1973, tiveram virtude desi-

ncbriante. No entanto ainda não vemos claro. A noiJte informaciona1 con-

tinua a cobrir ~s dois Espaços gigantescos, tal como cobre o Viet­n me, o Camboja e outros. E nós permanecemos aqui expostos ao perigo informacional. Sofremos ainda de subinformação e de pseudo-·in,formação. _

Por toda a parte onde os media fornecem uma representaçao teatral da realidade, a informação esconde-se e cala-se. Pode, por acaso, murmurar-se ao ouvido, em conversa intima. Tem de se ir procurá-la nas catacumbas, entre boatos e fantasmas. Não há teste p.r6vio ;paro ,reconhecer 1a boa e a má inforJ?l~~ão, a v~ e a falsa. Saber ler, ver e discernir equivale a um dificll e aleattóno esforço de decifração e não a possuir-se uma capacidade verificadora como a dos aparelhos que detectam as notas de banco falsas.

, O poder da informação

Que é a informação ? Um acontecimento que se reproduz regu­larmente e que pode ser previs!l:o com certa 7erteza, <:_orno o nascer quotidiano do Sol, não nos fomece qualquer mforn:taçao. O que de­pende do já sabido, do já conhecido, ?o já garant:do; é, segundo o termo da teoria da inf01f1Il1ação sharunOIIlíLMla, redundancza. Um aoorute­cimento portador da informação é_ um 3:oont~cimento que, ?u P~ termo a uma incerteza, OIU traz novidade, Isto e, surpresa. Assim,_ sao portadores de informação, por um la~o. os resuLtados das corr~s, as competições desportivas e os sorteiOS, e por ~utro lado a t~aiçao e morte de Lin Piao a tomada como reféns de diplomatas amencanos e o rapto do juiz U;so. A informaç~? que re~olve um~ incerteza JX?d~ eliminar uma inquietação e tranquihzar. A mformaçao que _constltw uma surpresa pode pelo contrário inquict.~r e provocar a mrerteza sobre a nossa aptidão para conceber a .reah?ade. Compreende-s~ que o controlo total:iJtário da infull'Jilação se dediq•ue a ceilJS•UraT as. ~for­mações que inquietam e a fornecer as informações que tr~nqml1za~ .

Tudo o que não é redundância não é forçosamente mformaça_o. Inúmeros acontecimenttos não têm interesse para nós e porta111to nao

27

Page 10: A Revisão Dos 2000.

lhe concedemos nenhuma aten ão A . . . seuntes caminham sem que o ~eu. ol~stm, n; rua a maiOna dos tran-e nos automóveis com que se cruza;r ;e txe nas pesso~s. nos cães surgem em desordem, sem signific d . odo~ os a~tec!JIIlentos que oaJão da teoria sha!OO()tni~aoo 'd a Aso para nos: constituem, ainda no

ulh- ..1-- , ruz os. ll1JOISSaS VÚJdJaJS . •~ . 8 ~ .nu:m u:rruído de fundo furvtilh de ~Dw.aiiD·se melf-

oatlltes que não ooedem à ~· _ · lêllf i3JOOI1JI:eoJrntos in&ignifi-~tJudo, o que .é o:ruído» . ~çao e aJté ~Uifba·~ a lfe>eepção. e VJCe-versa. AJSisi!ID,

0 ,res~ das =~r .1nfoll1IIlaç_ao . pa~a outro,

o !lipostador, não passa de «f!llí.do» . . _. inf0111l1Jaçao oopttal para do BalllJglrulesh, do malira e do c=· o r:ao-31postado:r. Os desastlfes fundo para aqueles que se mtJeressam : = a pena5 va~ ruídos de ou pelo resultado das ·---=..1 P pelas rotaçoes da bolsa

UM~auas.

- Todas as manhãs a rádio e os ·om . - . çoes. Previamente eliminaram t' . J ats nos dao as suas mforma-cesto dos papéis, nele se dissolv~~tcms m~ores ~~· atiradas para o confirmações que lhes areceram r em rm os. Elu~maram igualmente tempo deixa-se de co~irm!l!f . ~oodantes. Asstm, passado algum sorte dos reféns de Teerão dtana~ente o estado estacionário da belece a informação. ' mas qua quer nova eveDJtualidade resta-

Há informações «fracas» que forn . _

Evel e do provável, como a vitÓria eleitor:f~~ ::J~:t~ç~o do prl evdisí­

m contrapartida a informa - . em co oca o. o lugar. ' çao torna-se forte se o outsider obtém

A informação pode ser não só forte , . mação rica contém novidade o . ' mas t~mbém nca. A infor-Assim, as informações fortes ~ ri~ s~~a, algo ~esperado, surpresa. tecimentos extraordinários, que no ao pro~rCtOIIl~d~s pelos acon­darem, como o pacto german s. p~rec~m tmposstvets antes de se ao Porto das Pérolas, o relató~~o~t·et~co. _e ~39, o ataqu~ japonês de 68, a prisão do o:band d ., ctsao OSC<?Vo-Peqmm, Maio Verão de 1980. o os quatro» e o movtmento polaco do

A informação dispõe de um . . imensa tanto para a acção como a energta potencial que pode ser para o pensamento Qualquer ooção illloertajaleart:ór.ia nooessilta d ' . , .

esta deve necessariamente alimentar-se de . f e _u:ma estr~eg!Ja ,. ~ tar procum informar-se dos re arati m o~açoes. A acçao mih­do inimigo e precisa de oc~l~ . vos, dos ,m~IOs e dos movimentos meio de um cód' ~ as suas propnas comunicações por

Igo secreto. Assim a mensa . ád ' ~on~os dos violinos do Outono»,' de 5 de g~m Vta r IO «OS, solu~os indica aos resistentes franceses u unho ?e 1944 a nOite, para o dia seguinte e permite-l~e~ â desem:arqu~ al~a~o está previsto própria luta armada. esenca ear sincromcamente a sua

O valor da informação acerca d ofensiva miHtar é de tal ord 0 mo~ento e do local de uma em que os serviços secretos do a tacante

28

esforçam por intoxicar, por meio de falsas informações secretas. serviços secretos inimigos, os quais se esforçam por descobrir a

.nr rmação ·«verdadeira» entre as falsas. No fim de con:tas, muitas vezes a informação verídica é totalmente submersa pelas informações fulsas. Assim, a informação fornecida por Sorge a Estaline, do ataque nl mão de Junho de 1941, foi incapaz de pôr termo à incerteza ou de bcliscM a falsa certeza do destinatário, obtuso ou iludido.

A guerra informacional tornou-se parte integrante e essencial da guerra propriamente dita, no século XX. Os beligerantes estendem a zona do segredo militar ao conjunto das informações civis. P roduzem lll1formações de guerra que suscitam e mantêm a fé na vitória e o ódio ao inimigo (sempre apresentado como agressor, sempre culpado de~ e a.trooidades).

Informação e ideologia

A nossa relação com o mundo exterior passa não só pelos media informacionais, mas também pelos nossos sistemas de ideias, que rece­bem, filtram e triam o que nos fornecem os media. Quando não temos opinião formada ou preconceito prévio, somos extremamente abertos às informações. Quando não possuímos estrutura mental ou ideológica capaz de a assimilar ou ~nscrever, a mformação transfor-

ma-se em ruído. ; Em contrapartida, quando dispomos de ideias firmes e definitivas.

somos IDJUito acolhedores para todas as informações que as confirmem, mas muitíssimo desconfiados para com as que as contrariem.

Mais ainda, somo capazes de resistir às informações não confor­mes com a nossa ideologia, recebendo essas informações niío como informações, mas sim como logros ou mentiras.

Como oo sabe há muito ·tempo. maiS se está Slei!11Jpre a esquecer, os espíritos individuais (e por seu intermédio as !ideologias ooleotiiVas) são rmuri!to C!lipaze>S de resistilf aos media quando estes difun.de!ID não só ideias, mas também informações contrárias às suas convicções e crenças profundas. Assim, os filmes de actualidades e as emissões de rádio da ocupação alemã tiveram influência quase nula sobre as opiniões e as esperanças dos Franceses. Estes viam apenas mistifica­ção nas enormes massas de prisioneiros e nas destruições de tanques russos apresentadas nos écrans. Ainda mais: a partir do Outolllo de 1940 imperou entre a opinião pública francesa uma informação-mito, embora nunca tenha sido confirmada pela rádio inglesa: o malogro do desembarque alemão em Inglaterra. No momento em que a esqua­dra alemã se preparava para o desembarque, os Ingleses tinham lar­gado fogo ao mazute que haviam espalhado no mar e provocado o

incêndio da armada nazi. 29

Page 11: A Revisão Dos 2000.

Os nossos si~temas men~is filtram a informação: ignoramos, censuramos, repudiamos e desmtegramos o que não queremos saber. Os Alemães que quiserom ignorarr- a existência dos campos nazüs igno­raram-na, e em 1945 as populações alemãs receberam como mentiras de propaganda as imagens e os relatos dos campos da morte· os F:nmceses que qll!iJsemm ÍBJlliOrar a ·toi1tlum oo hgélia ignor~-«J.a. Durante um ~no _implorei à minha amiga C. que lesse O Arquipélago do Gulag. Nao tmha tempo, mas encontrava vagar para ler Guattari e Lacan.

Deste modo, consegue-se não ver o que toda a gente vê, deixa-se de_ ver _o que se continua a ver (saturação) ou olha-se para outra coisa (diversao), mesmo quando temos todas as informações à nossa dis­posiçã?. Quase P?rle~a formular esta lei psicosocial: uma convicção bem firme destrói a mformação que a desmente.

Seria preciso todo um livro para mostrar como se consegue não ver nem saber. Com · efeito, o que actua em nós, ao mesmo tempo o?scuram~nt~ e :xtra-lu~idamente, é a vontade de impedir a informa­çao de atmgir a tdeologm. Então, afasta a informação, isto é, afasta-se dela. A ideologia faz explodir a informação ~«Atoarda ! Mentira ! Calúnia ! ») para que a informação não a faça explodir.

Que é uma ideologia do pooto de vista informacional ? É um sistema de ideias feito para controla:r, acolher e recusar a informação. Se a ideologia é teoria, está em princípio aberta à informação não conforme, que a pode pôr em causa. Se é doutrina, está em princípio fechada a qualquer informação não conforme. A ideologia política é muito mais doutrina do que teoria. Aqui chegamos a este problema capi,tJa~: a relação repulsiva e potencialmente desintegradora entre in­f~rmação e ideo_logia ~olítica. ·É por a :imfoi11llação ser llliiil explosivo virtual para a Ideologia que esta necessita de manter uma relação opressiva e repressiva no tocante à informação. . U~a informação forte pode abrir brecha num ponto fraco da Ideologia e provocar eventualmente a desintegração parcial ou total de todo o sistema de ideias. Assim, o pacto germano-soviético de 1939, isto é, a súbita aliança entre os dois inimigos mortais, comu­nismo e nazismo, contradiz o carácter absolutamente antifascista atri­buído à URSS, quando os países capitalistas ocidentais, acusados de complacência para com o nazismo, entravam em guerra contra a Ale­manha. Daí a perturbação verificada entre numerosos comunistas e simpatizantes, e para alguns a desagregação da sua crença. Mas entre a grande maioria a ideologia encontrou uma posição de retracção ~torno do 'Ilúcloo duro, que .não é o •a:nJI:.ifascismo, mas sim o anJticapi­tahsmo e a natureza intrinsecamente proletária de tudo o que faz a URSS. Assim, a URSS tem o dimeito de oonoLuiã todoo oo pactos sem nuoca alterar a sua oot,ureza emandpadora, e não tem liliOOhfll!lll privi-

30

·1 gio a conceder aos países o"n . .v ... lats, visto não existir diferença ubstancial entre fascismo e capitalismo. Aliás, os países ocidentais slavam prestes a entender-se com Hitler e Estáline frustou-lhe~ a

manobra. O paoto germano-soviético suxge então como uma medida de defesa vital ou uma manobra genial. Recorre-se portanto a um di positivo imunológico para neutralizar a informação, atenuá-la, ne-

á-la, invertê-la. E a maioria dos fiéis manteve-se fiel. Dezassete anos mais tarde a URSS interviillha na Hungria para

esmagar uma insurreição nacional~ A classe operária revoltara-se c ntra o «partido da classe operária» e o Exército «soviético» esma­gava os sovietes de Budapeste. Esta collltradiçã? trazida pelo. ac?nte-imento à ideologia era potencialmente explosiva e podia atmgir no

seu cerne o princípio justificador da URSS. Efectivamente, houve defecções, mas pouco numerosas. A ideologia conseg.uiu proteger o seu núcleo: a revolta dos operários húngaros fora desvirtuada, perve~­tida e subvertida peJa acção do imperialismo; ~ ~surreição. tend~a inevitavelmente para o restabelecimento do capitalismo,. pms fa~Ia perder ao partido da classe operária o seu JZoder, monopolista. Asstm. a informação transmudou-se e a «revoluçao hungar~» con':erteu:se em contra--revolução. Mas em dada altura- aoontecimento maudito - a ideologia estaliniana viu-se obrigada. ~ admitir a inf?rmação respeitante aos crimes e aos massacres estahm~nos, porq~e. a mforma­ção emanava da autoridade suprema do partido. E assisin!'-se a ~ste fenómeno espantoso: o próprio part.ido a travar, retardar, destilar gota a gota, e em certos ca:sos (o ~:3Jl'ltido ~UJD.ista Flf~ncês) censurar pura e simplesmente a mformaçao provemente da sua cupu~a. Era uma maneira de a máquina ideológica amortecer e por fim sufooM' a reddaot:ividade desilllltegmme da linful1Jl1Jação. Esta, final­mente asseptiada, mscrevia-se num lugar secund~rio, qua~e epifeno­menal, aoompanhada do seu alllltídotto: tOOSes onmes devtam-se ~s desvios pessoais de Estáline e não afectavam em ~ada a substâ~~la do socialismo a excelência do regime. e, melhor amda, a autocntica efectuada pr;vava de forma inoontestável a superiorida~e . do ~n~C? partido capaz de reconhecer os seus erros e de os corngir dehmtt-vamente.

Além disso, outra defesa é posta rapidamente em prática, silen-ciosa, irremediável: o recalcamento. As pessoas pensam no c~so o menos .possível e irr~tam-se quando o «inimigo» lho recorda: tal mfor­mação faz demasiado bem o jogo .das forças mal~ficas e torna-s_e portanto suja. Deve-se atirá-la o mais depressa posstvel para os cai-xotes do lixo da História.

Deste modo, por mais impressionante que seja, o efeito da infor-mação desintegrante pode ser apenas local e t~mporário. ~elhor:. o sistema, de futuro aguerrido, poderá enfrentar amda com maiOr resis­tência o vírus pela primeira vez vencido.

31

Page 12: A Revisão Dos 2000.

A abertura à informação

Não podemos abrir-nos completamente à informação. Um espí­rito sem ideias preconcebidas sofre, via os media, uma chuva incoe­rente de informações que se dissipam em ruídos. É indispeooável uma teoria que possa acolher a informação, isto é, que também a possa contestar. Mas essa ideologia, como acabamos de verificar, não se deve fleohar oobre si mesma, pois de contrário seríamos incapazes de receber a mais pequena lição do real e de acolher o novo.

Ora a virtude insubstituível da informação é a irrupção do real na idealidade, que há tendência para tomar pela realidade. É a irrup­ção do novo no sistema que tende a encerrar o mundo na sua própria regra e só pode ser contrariada pela novidade. Consequentemente, é de ter em coll!ta que o real e o novo irrompem sempre na teoria e na crença sob a forma de desregramento e ruptura. Lrrompem sempre numa racionadidade feohada sob a focma de irraciiOil.aHdade. E a vi.r­tudre da áalfurmação é~= a sua ;aptidão para die&tnlti!r a racionalização (sistema de idcias coereTiite que rpoot.ende encenra.r em si o J.1e·aJ) e oriru:' uma racionalidade nova (novo sistema coerente que integra a infor­mação). A informação constitui o antídoto da tendência natural da ideologia pall"a se dloohar em Sli tneS111a, isto é, da illelndêmcia da teoria para se fechar em doutrina e da doutrina se couraçar em dogma.

O acontecimento - a informação - deve ser capaz de nos enri­quecer, de nos ·transformar. de nos converter, simplesmente por nos permitir ver o que nos era invisível, saber o que ignorávamos e admi­tir o que nos parecia incrível.

Os factos só falam por si mesmos quando lhes é permitido fala.T. Os sistemas de ideias são necessários para que os factos nos possam transmitir a sua mensagem. Mas são eles que, tornados ideologias fechadas, os fazem calar. Devemos portanto tentar o controlo duplo; devemos aceitar que o núcleo duro da nossa ideologia seja submetido ao controlo da informação, mas é necessário, reciprocamente, que a informação seja controlada pela racionalidade, isto é, pelo reourso conjunto à verificação empírica e à verificação lógica.

Claro que o recurso directo à verificação empírica não é muito possível na maioria dos casos. Mas a diversidade/concorrência das fontes de informação efectua por si mesma uma primeira verificação que permite a emissão de informações uveroadeiras» que cada fonte teria isoladamente interesse em abafar e autoriza a nossa verificação pessoal por meio de confrontação e concordância (é por isso que necessitamos de excesso de informações). O recurso à verificação lógica corre o risco de degenerar em racionalização, que é, como se verá cada vez melhor neste livro, a inimiga íntima da racionalidade. Devemos portanto realizar um circuito difícil, aleatório, mas vital,

32

ti logia ---- - informação, em que estes dois termos se_ tor-1 t

n i rn complementares sem deixarem de permanecer antinómicos e anta­onistas.

11 condições de prodnção da informação

Só há o médium e a mensagem; há, como já vimos, o receptor: I lá também os centros que produzem, escolhem, controlam e ~man­dam a informação. O controlo desses centr?s de contr~lo susct~a u~ nr blema obsidiante: pode-se deixá-lo aos mteresses pnvados, tsto e, 1 co1111:rolo do dinheiro, ou deve-se submetê-lo ao controlo do Estado ?

Daí o dilema: imprensa do dinheiro ? Imprensa do Estado ? Examinemos a noção de u imprensa do dinheiro». À primeira vista

ignifica «imprensa para ganhar dinheiro» . Por:tanto im~rensa que 1 rata a informação como um produto comercial, seleccmnando a nformação rendível e eliminando a il11formação não rendível. Segundo

esse onütério, o ex1ira01'diJn.áJrio. o ,~uropreendoote, o _novo por ~ ~o, mas também o obsidiante, o apauwnante, o ador!lvel _e o odioso sao lltamente valorizados. Daí uma imprensa -«sensacionahsta», que esco­lhe e produz o que cria sensações. Por um lad?, a grande l.IDprensa llc informação que põe em relevo tudo o que ex~ste de surpreendente, tue deita mão in extre"!is_ ~ informaç_ã? da ú1ttma hor~;. pór outro~

u imprensa que conta histonas arquetipicas- amores . divmos, sagra dos-profanos entre olímpicos modernos (vedetas . de crne~a, cabeças coroadas, :etc.)- e que rpor :isso produz pserudo-wornnaçoes, subme­tendo-se às necessidades mitológicas.

A imprensa do dinheiro está porta.nto submeti~a a_ esta dupla t.ondênoia, e é a esta dluipla ltoodência que prooura .fiugtr a ~a _de opinião, que Vlende não mnto inful'mação como o en~e ideológtco da womna-ção, o que IJlOS reoondruz aos problemas al!l.Jte:noomenJt.e exa­m.i:nados da relação ideologi.ajÍ1lllfiOOIIlação.

À segunda vista a noção de «imprensa do dinheiro» significa não só «imprensa para ganhar dinheiro»,_ ':llas também imprensa que sele_c­ciona a informação consoante a utiltdade qu~ c?mporta ~ll_l relaç~o ao poder do dinheiro, ou _seja: ao sistem~ capitali_:-ta. Aqm Já se n_ao trata apenas de ganhar dmheiro com a ID:forll_laçao, trata-se tambem de submeter a informação ao poder do dinheuo.

Esta tendência desenvolve-se naturalmente na imprensa d: d_i­nheiro. Mas deve-se notar que se pode entl.'echocar com a ten~encta para «ganhar dinheiro». Com efeito, uma informação «sensa~ona~», que dá dinheiro, pode ser contrária ao interesse do p~er do d~het;o (escândalo financeiro), mas não pode ser morta, se existe concorrencta.

33

Page 13: A Revisão Dos 2000.

Há porta~t~ ~a contradi~ão interna na imprensa de dinheiro, e essa OOO!tlradãçao, VJ:tal pam a :infunmação, só pode ser manrtida na e pela concorrência.

A concorrê~ia entre jornais, rádios e televisões, a concorrência ~e . fontes de mformação, dá oportunidades à informação que o dmheiro ou o Es~do querem abafar. Um jornal marginal começa a lançar a ~revelaçao»; torna-se então possível, e mais tarde ou mais cedo provaJVed, .que onde OOUlVe!t COiOCOII'.rência a ãmfurmação saü.a e se espalhe n~ COnJu~to dos medi~. Assim, foi no sistema mais capitalista, ~a! tambe~ mais concorrenciaJ em matéria de imprensa, rádio e tele­VIsao- o Sistema amer~cano--:-, que os «escândalos» de My Lay e do ~atergate consegmram fmalmente invadir a vida política e ter os efeitos que. sabemo~. (O .massacre de My Lay deu-se em Março de 19~. ~ mformaçao fOI abafada no/pelo Ex·ército dos EUA. A obstmaçao de um jornalista acabou por a desvendar marginalmente. ~ Novembro- Dezembro de 1969 enoheu todos os jornais aane­ncanos).

. ~~ poc a . i~o.rmação valer dãnheiro qrue :fiJnaJmoote o próprio dinheiro contnbm para a difusão da informação cujo sentido contesta o poder do d.inheiro. Em contrap.artida, onde a informação não possui valor co~ercial, onde pode .funciOnar a censura, ou seja, onde existe mooopóho de Estado, a :mformação contestatária é expulsa dos media.

Assim, debaixo do problema imprensa do dinheiro/imprensa do Estado oculta-se outro que não o tapa inteiramente: concorrência/ /monopólio.

Para qrue haja concorrência tem de haver verdadeira pluralidade das fontes de informação. E é na e pela pluralidade das fontes que pode surgir a informação no que tem de perturbante.

Na realidade, pode haver concorrência no seio dos sistemas sob controlo do Estado quando institucional e socialmente existe relativa autonomia das fontes . Em França, os media do Estado estão inscritos num_ s.istema. ~e. concorrência que compreende a imprensa nacional, as rádiOs penfencas e as grandes agências internacionais. É necessário supercontrolar os media e fechar hermeticamente a sociedade para ocultar os grandes acontecimentos nacionais e internacionais. Mas mesmo nos países fechados informações estranhas infiltram-se através da propaga~ão das ondas de rádio. O planeta sofre mil coacções, mil censuras, ~rnl deformações locais e nacionais na informação, mas me­lhor. ou piOr, lentamente, dificilmente, a informação circula. A hege­moma das grandes agências anglo-saxónicas sobre par.te do globo contém em si mesma o an,tídoto contra o monopólio: a concorrência. Hoj~ a pluralidade,. a concorrência, é isso: o balão de oxigénio infor­~ac~onal da humamdade - a concorrência das informações, a concor­rencia das mensagens, a concorrência das ideias.

34

luformação totalitária

Num sistema totalitário a informação não é apenas uma infor-11111 o de Estado, é oobretu.do uma DOii11lação de Estado totalÍ!tário.

seu caráoter próprio não reside somente em estar submetida à 1 nsura desse Estado - donde resuita a subinformação - reside tam­

h 111 na conjunção entre a subinformação e a produção de pseudo-nformações que dão uma imagem ideal/lendária da sociedade.

Censura, camuflagem e encenação contribuem para criar um uni­v r ·o em que mil pseudo-informações louvam a excelência do sistema. , ' o as greves ou os motins que se silenciam e os conflitos internos quo se ocultam; os próprios acidentes ferroviários e de avião fo:r:am h tnidos da realidade soviética. Já não há histórias, e em última tná.lise já não há His.tória: o futuro é conhecido, está previsto e criado:

> progresso incessante no sentido da edificação do com~smo. Cria-se assim um universo mítico, amputado, embelecido, onde

j não existem informações no sentido em que o termo suscita sur­presa, imprevisto, perturbação. Esse universo «irreal» faz par.te, no ntanto, da realidade que o produz e que sem ele, corno vamos ver, • desmoronaria.

Os ingénuos imaginam que a imagem e a propaganda são dotadas do omnipotência e julgam que o formidável dispositivo da informação totalitária convence aqueles que o suportam. Mas lá dentro a classe operária sabe que não .tem direito à greve, o direito de escolher os , us delegados, nem o seu sindicato. Pior, o efeito dt boomerang runcioo.a muit:as 'Vezes: assim, para os oobjugados do !ÍlllJterior a palavra

cialismo designa a má sociedade, e a palavra capitalism<;» a boa. I uvida-se aJté das informações autênticas quando são fornecidas pela r nte oficial. Duvida-se de êxitos econômicos reais, depois de tantas proclamações mentirosas. O sistema impõe o inverso da sua .visão d mundo, excepto quando esta coincide com o sentimento naciOnal. Assim, no tocante aos êxitos astronáuticos e desportivos, e mesmo no caso da ocupação da Checoslováquia e do Afeganistão, há readerência c readesão à informação oficial.

É caso para nos perguntarmos então onde está a verdadeira eficácia de um sistema tão pouco convincente, que comporta tantas falhas e efeitos de boornerang e que incita às escutas clandestinas, dando por si mesmo um prémio de veracidad~ às rádios estrangeiras. Na realidade a sua eficácia é enorme e pohvalente.

Em pri~eiro lugar convence o mundo exterior. É no exterior que dispõe de um poder de persuasão sobre amplíssimas esfer~s. A sua imagem lendária tem tido força de verdade d~ Holl~ood ~s minas de cobre chilenas, dos prémios Nobel- Langevm, Johot-Cune, Pau.Ling - raos ca:Ill!pon.eses gregos, do filósofo !l1a.Oionalista ~o J>!Ldre guerrilheiro. A URSS continua a assegurar a sua J.enda nao so na

35

Page 14: A Revisão Dos 2000.

parte do mundo mais afastada d ' , . mas também entre grande parte âo~a~peais~ ~Amenca La-tina e África), e italianos. ranos e camponeses franceses

0 sistema informacional totalitár· d. -e!icácia interna. A primeira diz respeit;<: Is_po~ sobretudo de dupla -mformação. Para o compreender d a propna natureza da pseudo­wormação ,.,.., . • . d , . ' e vemos recordar-nos de que a

, ~ CiellOira as maqill'lnas se idemltii.f que lhe determina as acções No . 't IC~ oom o «programa» a informação mediática ide .ff SIS ema co~cebido pelo estalinismo programa; dita o que se de~; I~:;se c~m ~ · mforma_s:ão-J?rograma: é mais não seja para se não ter ab, sa . r, Izer e . nao dizer (quanto põe-se no conjunto das orrecimentos); dita a norma e im­conhecimentos que control~~rmas, das regras, das proibições, dos indivíduos entre si e na socied:de~omandam os comportamentos dos

Assim, a lenda soviética ou ma , t d O socialismo real dá . OIS a esempenha papel-chave. que ela deve ser e obrfgan~r~a aos. ~omens reais. Ditta à realidade o A lenda serve assim para cor:::n~xis a m~scarar-se do que deve ser. de uma poderosíssima realidade. ar a realidade, e a ttal título dispõe

A segunda eficácia interna d t r · . respeito à subinformação. Esta temo ota ~ttnsr:;o mformacional diz explosiva da informação Com tod como unçao ~espoletar a força maneiras, o sistema, ape~ar de a os ~~seus ~ews_ e de diversas consegue inibindo, reprimindo inta;u.~ ·t or;açao nao ser ~redível, e asfixiando as informações , qu gi I Izan o, colma·tando, Isolando inibir vitoriosamente essa potenci:lida;suem I u~ potencial explosivo entre outras coisas, evi,tar qualquer co et ~xp osiva, ~ que Jhe permite, protesto ou revolta. n agJO a partir de um foco de

Inversamente logo qu ·r· . . . , e se ven Ica afrouxamento da ce mtcia-se um processo que se t d . nsura o sistema. No Verão de 1980o~aG~e: adeJramente subversivo para tempo possível o bloqueio telefónico de erno Polaco mant:ve o mais policial à volta da cidade O d. . . Gdansk. e o cordao sanitário

~~~~~~~~. ae:~~~~~~d~e â~e~~:as o~fr~~~t:;~iõ~~ni~â~~t~ia~~ ~~:i~~a~: mação circulava, e ; comunic~ç1~e,a~~~~o rarefeita e lenta, a ~nfor: entre operários mas ta b, , por se estabelecer, nao so

, m em entre os operanos e o resto da população.

da «~:it~a:~~~~~·P;ag~rincipa~mente os da «r~volução húngara» e ção pode provocar uma ~'es%~~ r:ami~os que a .libertação da informa­essência do sistema. Paradoxal~enie ;~. cad~~~ q~ afecte a própria constante da informação aumenta Ih IsposJtiv? ~ despoletamento O potencial explosivo da inf -;-e a pote ·ncial!da~e explosiva. diminui quando é superabundo:::::.çao aumenta quando e rarefei·ta e

36

A intJatngihiJimção de ltJudo o que diz respeüoo ao sistema e às 111 I n ias SUJpremas do poder fornece o poder explosivo do sacrilégio 1 qualquer ataque ao intangível. Em contrapartida, nos sistemas 1l11r t,li ~tas em que o poder é minimamente sacralizado, sistemas que 11 1 6 toleram a crítica, mas também vivem da critica, a virtude

1 I siva da informação política atenua-se por saturação e pode ir 11 extinção. Tem tão pouca importância estrelar um ovo na chama

du Arco do Triunfo como atirar maçãs podres a Giscard. Mas seria 11111 aoto de lesa-Revolução fazer uma omeleta no mausuléu de Lénine ou atirar frutos variados às condecorações de Brejnev.

Assim, o ponto mais forte do sistema, isto é , o seu dispositivo 1111' rmacional, é ao mesmo tempo o seu ponto mais fraco. A perda ti > poder informacional provoca a desintegração em cadeia do totali­t tlismo. Claro que existem censuras mais ou menos apertadas, zonas I tolerância que são finalmente toleráveis ao sistema. Foi assim que

d pois de Estáline afrouxou a pressão sobre as artes- com a condi­~ • evidentemente, de as obras não afectarem nem a ideologia nem 1 política. Mas o sistema encontra-se de tal modo assente na sua UUJto-OOIOI1a1ização, :v.iMe de tal modo do terror e do tabu qllle teme

obsessivamente que o mais leve esboço de dessacralização, de «desta­buàzação», de deSitenrorização rprovoqllle ·Ulffi processo qllle lhe reja fatal.

u então, quando a dessacralização se torna inevitável, como a de l~stáline, ocasiona uma sacra1ização compensatória d'a direcção ' legial.

A apropriação mO!IlJOpoJista da informação não é UJma camoteris­tica secundária, constitui a pedra angular do poder totalitário. Este necessita da subinformação, da pseudo-informação e da contra-infor­mação, não só para mascarar a sua verdadeira natureza, mas também patra 0\.lillliPfÜ a sua verdadeiro IJlJa•tureza. Sem a produção/reprodução pwmanente da lenda, 1Sieílll a filtragem, a repressão e a destruição da informação, o sistema não poderia penpetuar-se e reproduzir-se.

O sistema justifica o seu controlo da informação com o estado de guerra. Está em guerra contra a mentira, a calúnia, a ideologia capitalista. Sofre o cerco e a provocação imperialistas. Conduz até à sua concretização final a luta de classes, que nas últimas fases , nos derradeiros estremeções do inimigo, só se agravará. Efectivamente, a URSS sofirem durante decénios o «cerco capi.talista» , no qual porém oonsegu:i.u abr.ir brechas e mocodtuz.ir .oU!!1has. De facto, a ideologia da IUJta de classes é uma ideologia de combate que visa a vitória total do socialismo sobre um inimigo implacável. Mas hoje, que o tempo do cerco cessou há vários deoénios, isto é, desde que a era do Império começou, é singular que o si~tema informacional se mantenha em pé de guerra, interna e externamente, em plena paz.

É que o partido trava a sua guerra contra a sociedade que dirige. Trava efectivamente uma luta de classes contra as diversas classes

37

Page 15: A Revisão Dos 2000.

sociais que constituem a nação, a fim de as impedir de comunicarem entre si, de se entenderem, e até de se coligarem. Trava uma guerra sem quavtel contra uma realidade social que de facto vive fora da lenda, sob a lenda. Mantém a aLta histeria da guerra, que intimida todos e esmaga no ovo, com a ajuda do NKVD, qualquer embrião de crítica ou de oposição.

Surge aqui a unidade profunda de combate e intimidação, em que o aparelho informacional, o aparelho policial e o aparelho militar desempenham conjuntamente o seu papel. Esses três aparelhos depen­dem do mesmo centro, o Partido/Estado, e têm por função conjunta manter a sua apropriação sobre toda a sociedade.

Assim, simultaneamente, o partido exprime a voz daqueles que oprime, oculta a realidade que escraviza, bem como a sua própria realidade, programa e produz um novo tipo de sociedade que, como veremos, ainda desafia os nossos meios de conhecimento e os nossos instrumentos de análise e faz tudo para impedir que se conheça e compreenda o que se passa nas sociedades chamadas socialistas, isto é, que se conheça e compreenda a sua verdadeira natureza.

Conclusão: Da necessária e insuficiente informação

1. O aparecimento e o desenvolvimento dos media estendeu sobre o planeta uma rede de informações que aumentou extraordina­riamente as possibilidades de conhecimento do mundo e do seu futuro. É estranho que tenha sido o progresso da informação e do conheci­mento que tenha provocado o progresso da deturpação e da ignorân­cia. As potências ameaçadas ,pelo poder inoor.macional veiculado pelos media não tiveram outro remédio senão subjugá-los para os trans­formar em instrumentos de cegueira. Desde que apareceu, a fotografia suscitou as truoagens da «fotografia espi:rtilta», onde apatreeiiMil eSipeiCt!ros e fantasmas. A história estaliniana da URSS foi autenticada por foto­grafias trucadas donde desapareceram para sempre os rostos de Tro­tski, de Bucarine e doutros velhos bolcheviques condenados por Está­line. Não há nada mais enganador do que os inúmeros documentários rodados sobre a China, a Sibéria e Cuba, sob os auspícios da câmara­-testemunha. Finalmente e sobretudo, os poderes que conltrolam a informação têm praticado sistematicamente a subinformação e pro­duzido a pseudo-informação. Como se vê, o progresso da mentira no campo da informação é a resposta ao progresso potencial da verdade proporcionado pelo desenvolvimento dos media. A mentira progrediu porque os media permitem o progresso real.

2. A 11boa» informação dificilmente pode ser autenticada pelo receptor dos media. Nem a imagem nem o testemunho são em si mes-

38

uw garantias absolutas. A •« boa» informação n~~ pode ser d~finida 11

flriori. o que pode ser definido ~ã~ as condtçoes~ d~ aparecm1:ento

11

1 boa ~informação, isto é, as comdiçoes de CO\llJOOl'II'OOCJ.a/mtagoon.smo

!111 órgãos de informação.

3. A concorrência e o antagonismo são, ~ece~sár~os à vida inf?t­. ai ao mesmo tempo que são necessanos a vtda democrática

lllll ton ' - d 't d no seu umo. sociedade. O problema da informaçao eve ser st ua o nntexto sociopolítico.

4. A informação-bem de Estado e a informação-mercadoria t~n­d m uma e outra, por motivos difen::ntes e s:gundo proc~s~os dtf~-1 :ntes, a degradar a sua qualidade ~e _mformaçao, que e o umco mezo de que dispomos para receber as ltçoes do real.

5. Temos absoluta necessidade de ser bem informado~, mas isso não é de modo algum suficiente para conhecer bem. .o rmP?rtan~e nüo é apenas a informação, é o s!stema .mental <:u o stsltema tde?lo­gico que acolhe, recolhe, recusa, sttua a informaçao e lhe dá se~tldo.

Com efeito, 0 acordo sobre os da~o~ não~ basta. A humamdade pré-copérnica e a humanidade pós-coperntca veem o mesmo Sol, mas para a primeira trata-se de um disco que gira à voLta .da Terra e para a segunda de um astro à roda c;Io q~ml a Terra gt.ra. Para_ se constituir a nova teoria foram necess~as, e cevto .• nova~ mformaço~s que trouxeram a perturbação aos antigos, mas f01 t~mbem necessáno que um novo sistema de hipóteses cooroote .~gw5Se colooar o Sol no centro do mundo e a Terra na sua penfena. . . _

Tudo se move portanto não só no plano exclustvo da mformaçao, mas também no plano do ciclo

informação __ _.., -- teoria ---+-- visão do mundo 1_...,. _____ 1 I_<- I

que permite destruir a ordem e a Otrganização do unive~so : suscitar a edificação de uma nova ordem e de uma nova, orgamzaçao ..

Um exemplo doutro gênero mostrar-nos-a que o senti?o da ma informação é susceptível de ser invertido consoante o ststema

~:spensamento que 0 integre. Georges Friedmann esc:eveu nos an~s trilnita A Crise do Progresso. A análn:se dos textos de ~ósofoo e esc.rt­tores do princípio do século mostrava-lhe que, coot~oote ao f1m do reculo anrtea'iOir, a ideia de progresso era ca?a vez .maiiS COIIllt~da peila intelligentsia ocidental. A sua visão ma:rxt~ do :ffiundo exrphoou

0 fenómeno: filósofos e escritores exprim~a~ a t~eolog1a da sua classe,

a burguesia, e esta, desde então em decbmo, deiXava escapar o f~cho do progresso, que apanhava a nova classe ascendente, o proletanado.

39

Page 16: A Revisão Dos 2000.

Vinte e cinco anos mais 'tarde o filósofo lia doutro modo os mes­~os _textos so?re os quais edificara a sua análise, os quais desde então Ja nao r~fl~ct1am. a seus _olhos as angústias da burguesia decadente, mas expn~uam, stm, a cnse profunda da civilização moderna perante a ambigmdade dos progressos da técnica. O próprio Georges Fried­mann ~unh~ o progresso em causa, o qual já não estava necessaria­mente mscnto n~ futuro histórico e se tornava uma possibilidade frágil e ameaçad~. Asslll, o que mudara fora a estrutura da visão do mundo. Georges Fnedmann não modificara os dados te~tuais de que dispunha· eram exactamente os mesmos textos. Mas a mudança da visão d~ mu~d? encontrava-se ligada à irrupção de novas informações político­-soctaiS, ,a novas _formas de_ aquisição(selecção dessa informação, a ~~vos me~odos de mterpretaça~. Quer dizer, o problema da informação e ~separavel_do proble~:;t da mterpretação pelo sistema de ideias que a mtegra, a Siil:ua e a reJeita, e que ela pode reformar ou revolucionar.

6. Vemos portanto que o problema da informação, necessário para sabermos o que se passa no mundo, nos obriga a remontar muito para cá e para lá da verificação das informações. Mergulha-nos em prob_lemas comple~os de estrutura mental, de crença, de ideologia, de confia~ça/desconfiança, de organização dos media, de organização da soc1e?ade. C?m~çamos a ~mpreender o que quer dizer . a palavra complexidade: , e nao pode_r . Isolar totat;nente um fenómeno para o comp~eender, e,_ pelo <X?ntra,no, a necess~dade de o ligar às suas arti­ouJ.a~o~s ~aturms. E ~~ e~ta a complexidade do problema da infor­maçao. nao ~e pod~ !Sola-lo completamente do problema social, do :PP<?b~e:ma da 1deologta, do problema do espírito humano. Há a distin­gUlbzlzdade e a não-separabilidade dos problemas. Isso aJSsusta. É de faoto assustador. Mas é a única via para tentar compreender.

OS DEFEITOS DAS PALAVRAS

As palavras mestras

Direita I Esquerda, Capitalismo I Socialismo, Fascismo f Antifas­cismo, Democracia I Totalitarismo são palavras que, entre todas as ~alavras de ~u~ ,n?s servimos para designar as coisas políticas, adqui­rlll'31IIl 1.1IIl pnvi.1ég10 e IWil.a p~e.pondernncia que as toma palavras mestras.

40

As palavras mestras são simultaneamente:

- palavras gigantescas que estendem o seu domínio a todo o campo político. Assim, conforme a óptica, democracia f dita­dura, socialismo I capitalismo, esquerda I direita disputam e par· tilham o mundo entre si;

- palavras hiperdensas, que concentram em si o máximo de signi­ficação e verdade, o que toma as outras palavras ocas e falsas;

- palavras nucleares, que são a~i~ os centros à roda dos quais gravitam as nossas crenças e tdetas;

- palavras cardinais, que nos indicam o baixo e o atto, o norte e o sul, o bom e o mau, a esquerda e a direita (daí justamente as ;palawas 'u:esqroorda» e ((direita»);

- palavras estratégicas, fortalezas das nos~as. ~nças polític~, ou, pelo contrário, palavras panzers que mtlmidam e aterron-zam o inimigo.

Assim, as palavras mestras são mais ?o que ~deias-chave que operam as distinções f oposições fundamentais que d_ao forma e sen-1 (I ao nosso uciverso. Tomam-se detentúlfas ~ ~ea1idalde. Torna~-se h per-reais. Acabamos mesmo por ver no cap1tahsm~, no comumsmo

no fasoismo não só a Sl.llbstância do .real, roas il:a!mbém ser.es dotados d existência e inteligência.

Temos sem dúvida necessidade de palavras-chave. de palavras • rdeais, de palavras nucleares, mas hoje enfrenta~os est~ problem~: n o serão as palavras mestras dos nossos vocabulános pohttcos d~mi­nantes cada vez menos palavras que ref~ectem fenó:n~os efecttvos

cada vez mais palavras-mistério (que se julgam exphcattvas, _qua~do elas é que deveriam ser explicadas), palav:r~s espec~ros que se Impoem

mo realidades e mascaram então as coisas reais, palavras podres (que perderam a sua virtude e a sua fecundidade) ?

No tocante aos nossos inimigos, verificamos que as palavras q~e para eles exprimem a realidade e _o valor supremos sa~ para . n<_>s palavras-ficção. Assim, a palav:ra uanano», que para os nazis expnm:u cientificamente a sua verdade e a sua superior~dade, ~ra nos nao corresponde a nenhuma realidade biológica, étmca, raci<_>nal. _Vemos perfeitamente que as palavras mesil:ras dos nossos adversános s~o oc~s, ilusórias, estão mortas e são mortais, ao passo que para eles sao reais, estão vivas e são vivificantes.

E as nossas? Quero falar aqui das palavras de «esquerda», a começar pelas palavras mestras «direita-esquerda».

Direita/Esquerda

As palavras direita/esquerda são palavras ~deais que, permitem situar politicamente qualquer ideia, frase ou de~tsao. Mas tem sempre

0 mesmo valor ? A sua oposição é sempre pertmente ? Um argum~n!o

imediato intimida e anula a questão: perguntarmo-nos se a opostçao

41