A Religião Do 'Privatize Já' - O Contraditório

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7/21/2019 A Religião Do 'Privatize Já' - O Contraditório http://slidepdf.com/reader/full/a-religiao-do-privatize-ja-o-contraditorio 1/4 “O pastor Everaldo aceitou tudo o que eu sugeri e tem lido muitos livros”, diz Bernardo Santoro, do Instituto Liberal. (  Liberais, libertários e conservadores, uni-vos, Folha de São Paulo, 5.10.2014) Como vimos em um texto anterior, está se formando no Brasil um movimento fusionista que une os interesses de ultra-capitalistas e ultra-religiosos. Os ultra-religiosos entram com os fiéis e os ultra-capitalistas com o fiado. Por ultra-capitalismo, refiro-me à definição de capitalismo de Rand (1966): Quando eu me refiro a ‘capitalismo’, eu quero dizer completo, puro, ilimitado, capitalismo laissez-faire sem regulação – com uma separação entre Estado e economia, da mesma forma e  pelas mesmas razões que a separação entre Estado e religião. […] Toda interferência  governamental na economia consiste em dar benefício não-conquistado, extorquido à força, a alguns em detrimento de outros. Isso, como já sabemos, nada tem a ver com liberalismo. É Hayek (1960) quem nos conta que “[n]em Locke, nem Hume, nem Smith, […] foram completamente laissez-faire”. Para não haver dúvida, Montesquieu coloca isso com todas as letras:  A liberdade do comércio não é a faculdade dada aos negociantes de fazerem o que quiserem; isso seria antes a sua servidão. O que atrapalha o comerciante nem por isso atrapalha o comércio. (Montesquieu, 1748, Vol XX) Mesmo Friedman (1951) admitia que era necessário regular os mercados  A filosofia [individualista] atribuía quase nenhum papel ao Estado senão a manutenção da ordem e o cumprimento de contratos. Era uma filosofia negativa. O Estado só poderia fazer o mal. A regra tinha que ser o laissez faire. Ao assumir essa posição, subestimou-se o risco de que uns poderiam mancomunar-se para tirar vantagem e cercear a liberdade dos outros; falhou em  perceber que havia algumas coisas que o sistema de preços não poderia fazer e que, a não ser que essas outras coisas fossem supridas, o sistema de preços não poderia cumprir o papel ao qual ele é tão admiravelmente apto. Sobre o autor O Contraditório por André Levy

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“O pastor Everaldo aceitou tudo o que eu sugeri e tem lido muitos livros”, diz Bernardo Santoro,do Instituto Liberal. ( Liberais, libertários e conservadores, uni-vos, Folha de São Paulo,5.10.2014)

Como vimos em um texto anterior, está se formando no Brasil um movimento fusionista que uneos interesses de ultra-capitalistas e ultra-religiosos. Os ultra-religiosos entram com os fiéis e osultra-capitalistas com o fiado. Por ultra-capitalismo, refiro-me à definição de capitalismo de Rand(1966):

Quando eu me refiro a ‘capitalismo’, eu quero dizer completo, puro, ilimitado, capitalismo

laissez-faire sem regulação – com uma separação entre Estado e economia, da mesma forma e

 pelas mesmas razões que a separação entre Estado e religião. […] Toda interferência

 governamental na economia consiste em dar benefício não-conquistado, extorquido à força, a

alguns em detrimento de outros.

Isso, como já sabemos, nada tem a ver com liberalismo. É Hayek (1960) quem nos conta que “[n]emLocke, nem Hume, nem Smith, […] foram completamente laissez-faire”. Para não haver dúvida,Montesquieu coloca isso com todas as letras:

 A liberdade do comércio não é a faculdade dada aos negociantes de fazerem o que quiserem; isso

seria antes a sua servidão. O que atrapalha o comerciante nem por isso atrapalha o

comércio. (Montesquieu, 1748, Vol XX)

Mesmo Friedman (1951) admitia que era necessário regular os mercados

 A filosofia [individualista] atribuía quase nenhum papel ao Estado senão a manutenção da ordem

e o cumprimento de contratos. Era uma filosofia negativa. O Estado só poderia fazer o mal. A

regra tinha que ser o laissez faire. Ao assumir essa posição, subestimou-se o risco de queuns poderiam mancomunar-se para tirar vantagem e cercear a liberdade dos outros; falhou em

 perceber que havia algumas coisas que o sistema de preços não poderia fazer e que, a não ser que

essas outras coisas fossem supridas, o sistema de preços não poderia cumprir o papel ao qual ele

é tão admiravelmente apto.

Sobre o autorO Contraditóriopor André Levy

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Por isso fez a ressalva de que, no “neo-liberalismo”, “o Estado fiscalizaria o sistema, estabelecendocondições favoráveis à competição e a evitar monopólios”. A existência de monopólios sempre foi apreocupação dos liberais, já desde Adam Smith:

Os pedágios para a manutenção de uma auto-estrada não podem com segurança alguma ser 

 privatizados. (Smith, 1776, Vol. I, Cap III, Parte I, p. 786)

Mas há quem defenda privatização de tudo, como se fosse um remédio milagreiro, e ainda se auto-intitula liberal.

Privatizar ou não, segundo os liberais

Liberalismo não é receituário; é um conjunto de princípios morais, calcados principalmente nauniversalização das liberdades individuais. O liberalismo não é anti-Estado; ele é simplesmente afavor da equidade. Como se deve fazer é questão de percurso e engenharia econômica. Pode serpela via do mercado, ou do Estado; isso não importa. O que importa é que as liberdades individuaissejam as máximas possíveis, especialmente a daqueles que as menos têm.

Por isso liberais não são privatizadores dogmáticos. Se for possível criar um mercado concorrido,ótimo; é realmente um meio fantástico de se promover bem estar social. Mas mercado concorridonão cai do céu:

 [Os liberais] sabiam melhor que todos os seus críticos posteriores que não era por mágica, e sim

 pela evolução de “instituições bem construídas,” onde “as regras e os privilégios de interesses

opostos e vantagens negociadas” seriam reconciliadas, que canalizou exitosamente esforços

individuais para objetivos socialmente benéficos. (Hayek, 1960)

Muitas vezes, mercados concorridos não são possíveis nem com boa regulação. É o caso dos setoresem que os custos marginais são baixos em relação aos fixos. Por que? Porque para se cobrir custosfixos altos é preciso vender muito. Se os custos variáveis são baixos, quem tem escala pode jogar opreço lá embaixo, operando com margens suficientemente pequenas tal que a entrada de outrosno mercado não seja possível. Cria-se uma barreira de entrada. São chamados de oligopóliosnaturais. É o caso de telecomunicações, serviços financeiros e o setor de energia. A solução que sedeu até este momento, em quase todos os casos, no Brasil e no mundo, foi criar uma agênciareguladora. Já sabemos o que aconteceu com a Anatel; é muito fácil para um oligopólio cartelizar-se na captura do Estado. Eles competem entre si, mas na hora de aprovar leis que os beneficiam,estão no mesmo barco. E não é só no Brasil. Seria ingênuo acreditar que os reguladores do setor

financeiro nos EUA não tivessem a menor ideia do que os bancos e as seguradoras estavamfazendo com as hipotecas subprime. O que fazer então?

A solução liberal

É tudo uma questão de equilíbrio, de pesos e contrapesos (Montesquieu, 1748). Friedman (1951)explica:

 Neo-liberalismo [… b]uscaria usar a competição entre os produtores para proteger os

consumidores de serem explorados por eles, a competição entre os empregadores para proteger 

os trabalhadores e os proprietários, e a competição entre os consumidores para proteger os

 próprios empreendimentos.

Como porém se faz o contrapeso a um oligopólio natural? Se disse concorrendo com uma estatal,acertou. Estatais não são perfeitas, e também são passíveis de captura, tanto pela classe política,quanto pelos funcionários. Porém é exatamente por isso que funcionam como contrapeso; operamsob uma lógica diferente. Os gestores da estatal estarão sempre alertas quanto a abusos dasoligopolistas privadas, e vice-versa. Quem é um bom administrador de empresa sabe fazer amesma coisa com suas equipes, para que não fique refém de nenhuma delas.

Funciona? No setor financeiro brasileiro funciona. Em 2011, após ter alertado inúmeras vezes aosbancos que deveriam reduzir os seus spreads obscenos, a presidente instruiu aos bancos públicosa liderar o movimento, e os privados, por concorrência, tiveram que segui-la. Se esta foi umadecisão acertada são outros 500; o fato é que foi efetiva.

O erro então das privatizações na gestão FHC foi ter privatizado ao invés de ter simplesmenteaberto os mercados e o capital das estatais. Acertou ao fazer isso com a Petrobras. O problema aí

foi não ter aberto o mercado suficientemente para que de fato a Petrobras tivesse concorrência.

A Petrobras deve ser privatizada?

Não. Além do setor de energia ser um oligopólio natural, o petróleo é o lastro das moedas nomundo. De acordo com o FMI, a dívida pública dos EUA é maior que o seu PIB. Por que então ela é

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tão sólida? Porque é a moeda padrão de liquidação dos contratos de petróleo no mundo. Por issoestá tão frequentemente envolvido em guerras no Oriente Médio. Não é pelo petróleo em si; só 13%do que os EUA importam de petróleo vem da Arábia Saudita. Por isso também que as maioresempresas do petróleo do mundo – Saudi Aramco, Gazprom e Empresa Nacional de Petróleo do Irã –são estatais.

FRIEDMAN, Milton, Neo-Liberalism and Its Prospects, Farmand, 17 fevereiro 1951, pp. 89-93.

HAYEK, Friedrich A. The Constitution of Liberty, 1960.

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 1748.

RAND, Ayn. Capitalism: The Unknown Ideal, 1966.

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